Evidentemente, somente o primeiro desses dois objetivos foi razoavelmente cumprido: o segundo objetivo, isto é, a exposição da análise conjuntural comtiana exigiria um exame detido dos textos comtianos, em particular da lição 46 do Sistema de filosofia positiva - exame que, em virtude de sua extensão, eu não poderia realizar neste momento.
Em todo caso, parece-me que expor publicamente essas minhas anotações pode ter alguma utilidade.
* * *
Augusto Comte avalia sua época:
Análise de conjuntura comtiana
Gustavo Biscaia de Lacerda
A “análise de conjuntura” seria
u’a metodologia desenvolvida pela Ciência Política para avaliação do momento
presente. Todavia, como argumentou acertadamente Velasco e Cruz (2000), a
Ciência Política – pelo menos no Brasil – não desenvolveu um conjunto de
parâmetros, regras, normas e, principalmente, uma tradição de “análise de
conjuntura”: em outras palavras, no país não se sabe o que é, ou melhor, de
modo mais preciso, não se sabe como definir e propor de maneira didática a “análise
de conjuntura”, sem que se reproduza, de alguma forma, os relatos meramente
factuais, de caráter mais ou menos anedótico e que se assemelham fortemente à
atividade jornalística, conforme notou com clareza Fábio Wanderley Reis (apud Braga,
2006, p. 1)[1].
Contrariamente ao que se
considera muitas vezes, parece-nos que a melhor maneira de definir a
"análise de conjuntura" é por meio do recorte que ela faz, ou seja, por meio do seu objeto específico, em vez da metodologia empregada; nesse sentido,
ela seria apenas e tão-somente uma análise sociológica, ou
político-sociológica, que aborda um lapso temporal relativamente reduzido e
que, principalmente, considera o momento presente (e, a partir disso, sugere
desenvolvimentos futuros para os fenômenos analisados). Assim, enquanto de modo
geral as pesquisas político-sociológicas consideram processos e fenômenos
passados, alguns já distantes muitas décadas e mesmo séculos, a análise de
conjuntura realiza o mesmo exercício mas considerando que a distância temporal
entre o momento em que se escreve e os processos em apreço não é muito longa –
no limite, podem ocorrer virtualmente ao mesmo tempo.
Por outro lado, se o que
individualiza a análise de conjuntura como exercício intelectual é a distância
temporal entre a escrita da investigação e os fenômenos estudados, não se pode
dizer que a metodologia empregada seja específica; assim, o cientista político
ou o sociólogo usarão na análise de conjuntura as mesmas ferramentas
intelectuais que estão à sua disposição para as investigações ordinárias sobre
eventos passados. Em outras palavras, é incorreto entender a análise de
conjuntura como uma técnica específica de análise político-sociológica – ainda
que, sem dúvida, ela corresponda a um exercício intelectual particular.
Talvez seja possível uma
precisão aqui: o traço distintivo da análise de conjuntura impõe uma precaução
teórica e metodológica, no sentido de que a ausência de afastamento temporal
dificulta a determinação do valor sociológico que os fenômenos analisados podem
ter. Ainda assim, a dificuldade de avaliar o peso efetivo dos fenômenos tem que
ser sopesada em relação à teoria sociológica empregada: afinal de contas,
deixando de lado eventos completamente imprevistos (que, por definição, são
impassíveis de avaliação científica a
priori[2]), a
função da teoria – de qualquer teoria
– é determinar o que é importante e o que é secundário, quais são os atores
sociais e as tendências sociopolíticas relevantes, quais as ordens de
importância dos variados processos sociopolíticos etc. A análise de conjuntura,
nesse sentido, com base no passado, interpreta o presente com vistas ao aconselhamento
para o futuro; ou melhor, como argumentou Augusto Comte (1969, 48è
leçon), com base no passado ela propõe um quadro para o futuro, interpretando
assim o presente. Dito de outra maneira, a análise de conjuntura permite ao
analista realizar plenamente a lógica da inferência científica, aplicando ao futuro,
na forma de previsões científicas, os esquemas relacionais desenvolvidos em
relação ao passado na forma de explicações, conforme proposto por John Stuart
Mill[3]
(cf. PERISSINOTTO, 2009).
A literatura brasileira, na
medida em que possui alguma tradição de análise conjuntural, concentra-se em
autores de origem marxista: tanto Velasco e Cruz (2000) quanto Braga (2006), ao
mesmo tempo em que, de diferentes maneiras, filiam-se a correntes marxistas, desenvolvem
suas análises conjunturais e indicam também a riqueza das análises inspiradas
em Marx (O 18 Brumário, Guerra civil em França), Lênin (Que fazer?, O imperialismo), Gramsci (Maquiavel)
etc. Além das vertentes marxistas, o que a literatura indica é que outros
autores que serviriam de inspiração para análises conjunturais seriam Tocqueville
(Lembranças de 1848) e Weber (Parlamento e governo). Entretanto, um
autor que apresenta longas análises de conjuntura mas que, devido a diversos
motivos[4],
não é usado como inspiração é Augusto Comte.
Aquilo que poderíamos chamar de
“análises de conjuntura” na obra de Comte estão presentes em vários livros, de
diferentes maneiras: seja nos vários prefácios e nos corpos das obras
“religiosas” (Système de politique
positive, Appel aux conservateurs,
Synthèse subjective), seja no seu
amplo epistolário. Mas, de qualquer maneira, para os presentes objetivos é na
lição 46 do Système de philosophie
positive, presente no volume IV dessa obra, que se encontra uma longa
análise conjuntural, desenvolvida a título de justificativa política da
necessidade e da oportunidade da criação de uma filosofia positiva e, portanto,
da criação da própria Sociologia. A lição, isto é, o capítulo em tela
intitula-se precisamente “Considérations politiques préliminaires sur la
nécessité et l’opportunité de la physique
sociale, d’après l’analyse fondamentale de l’état social actuel”[5] e
foi publicado em 1838; esse título indica de maneira clara sua intenção – qual
seja, realizar a “análise fundamental do estado social atual”. Aliás, consoante
os traços característicos da análise conjuntural que indicamos acima – trata-se
de um exercício político-sociológico como qualquer outro, com a particularidade
de que se concentra no momento presente –, ao expor suas "considerações
preliminares", Comte já desenvolve a própria Sociologia.
Quais são os elementos da
análise de conjuntura realizada por A. Comte?
-
crise ocidental crescente desde o fim da Idade
Média, exposta claramente pela Revolução Francesa;
-
constituição de três grupos sociais e
intelectuais e, a partir disso, de três partidos políticos na França do século
XIX: os retrógrados, os revolucionários e os estacionários;
-
análise da constituição intelectual (i. e.,
dos princípios sociopolíticos) de cada um desses grupos;
-
relação desses grupos com a ordem e com o
progresso;
-
necessidade e possibilidade de um terceiro
princípio sociopolítico – a filosofia positiva –, resultando em um movimento
político que permita ao mesmo tempo a ordem e o progresso;
-
análise das possibilidades de adesão dos grupos
existentes ao novo movimento político;
-
análise da atuação política dos intelectuais.
Referências bibliográficas
BRAGA, Sérgio S. 2006. Alternativas políticas e configuração do bloco no poder na última
conjuntura eleitoral brasileira. O que fazer? Curitiba: Grupo de Análise de
Conjuntura.
COMTE, Augusto. 1908. Cours de philosophie positive. V. IV:
Contenant la partie dogmatique de la philosophie sociale. Paris:
Schleicher. Disponível em: https://ia700804.us.archive.org/2/items/coursdephilosop04comt/coursdephilosop04comt.pdf.
Acesso em: 2.dez.2014.
COMTE, Augusto. 1969. Cours de philosophie
positive. V. IV:
Contenant la partie dogmatique de la philosophie sociale. Paris: Anthropos.
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Acesso em: 2.dez.2014.
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Augusto Comte e o “Positivismo” redescobertos. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 17, n. 34, p.
319-343, out. Disponível
em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v17n34/a21v17n34.pdf. Acesso em: 2.dez.2014.
LACERDA, Gustavo B. 2011. Uma
teoria política histórica:
o republicanismo comtiano. Artigo apresentado no XXVI Simpósio Nacional de
História, realizado entre 17 e 22 de julho, em São Paulo. Digit. Disponível em:
http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300899247_ARQUIVO_GustavoBiscaiadeLacerda-Teoriapoliticahistoricacomtiana.pdf.
Acesso em: 2.dez.2014.
Nogueira,
Marco A. 2013. As ruas e a democracia:
ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto.
PERISSINOTTO, Renato M. 2009. Comparação e
Ciência Social: modelos teóricos e aplicações práticas. In: CODATO, A. & TRIBESS, C. (orgs.). Anais do evento Política, História e sociedade: perspectivas
comparadas. Curitiba: NUSP-UFPR.
VELASCO E CRUZ, Sebastião. 2000. Teoria e
método na análise de conjuntura. Educação
& Sociedade, São Paulo, v. XXI, n. 72, p. 145-152, ago.
Werneck
Vianna, Luiz. 2006. Esquerda
brasileira e tradição republicana. Estudos de conjuntura sobre a era
FHC-Lula. Rio de Janeiro: Revan.
[1]
Todavia, isso não equivale à ausência de bons cultores e praticantes da análise
de conjuntura no país: os livros de Luís Werneck Vianna (2006) e de Marco
Aurélio Nogueira (2013) são boas coletâneas de análises conjunturais
desenvolvidas respectivamente pelos seus autores. Os textos de Nogueira, em
particular, ainda que revisados posteriormente para publicação, foram redigidos
literalmente à medida que os eventos analisados desenrolavam-se ante suas
vistas, o que indica o caráter "momentâneo" da análise de conjuntura.
[2]
Embora seja mais ou menos evidente, é necessário dizê-lo com todas as letras:
isso não impede, por certo, a avaliação a
posteriori desses eventos: dessa forma, embora os eventos imprevistos por
definição não sejam passíveis de antecipação racional, sem dúvida que eles
podem ser avaliados e examinados após sua realização à luz da(s) teoria(s)
sociopolítica(s). Além disso, ao contrário do que apregoam algumas teorias e
metodologias sociológicas e históricas de viés contextualista, inspiradas em
determinadas formas de idealismo (como as de M. Weber, de Q. Skinner e de M.
Bevir), a mera ocorrência de tais eventos imprevistos não anula nem impede a
eficácia lógica das teorias sociopolíticas e, de modo mais específico, das
previsões racionais que elas porventura façam.
[3]
Convém notar, entretanto, que embora Comte e Stuart Mill concordem com a
aplicabilidade ao futuro dos esquemas usados para explicar o passado, eles
divergem profundamente no que se refere à estrutura mesma desses esquemas
explicativos: enquanto Stuart Mill propõe uma lógica causalista, Comte rejeita
a concepção de "causa" e considera que as leis sociológicas – como,
de resto, as leis naturais – consistem em esquemas abstratos (“teóricos”,
portanto) que vinculam fenômenos particulares a explicações gerais. Como
indicou Juliette Grange (2003), por um lado as críticas dos sociólogos cultores
da metodologia dita “compreensiva” dirigem-se a esse esquema causalista,
incorretamente imputado por eles a Comte; por outro lado, a proposta comtiana
rejeita o causalismo de Stuart Mill na medida em que este remete à idéia
metafísica de “causa”, que, como se sabe, foi objeto da crítica de D. Hume.
[4]
Entre os motivos para não se usar Comte, não somente para análises de
conjuntura como, de modo geral, para quaisquer análises sociopolíticas, podemos
indicar os seguintes: (1) o desconhecimento generalizado de sua obra, com a
redução de suas análises ao mero enunciado da lei dos três estados
intelectuais; (2) causando esse desconhecimento, a má vontade, o preconceito e
a consideração geral de que Comte e o Positivismo são o "outro"
teórico, a serem combatidos e usados como formas de xingamento intelectual; (3)
a discutível qualificação de Comte não como fundador da Sociologia, mas como
autor pertencente à pré-história da disciplina e das Ciências Sociais, ou seja,
como irrelevante para a "imaginação sociológica" (cf. HEILBRON, 2006;
LACERDA, 2009).
[5]
“Considerações políticas preliminares sobre a necessidade e a oportunidade da física social, a partir da análise
fundamental do estado social atual”.
(Reprodução livre, desde que citada a fonte.)