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02 dezembro 2014

Anotações sobre análise de conjuntura - uma proposta comtiana

Os comentários abaixo correspondem a algumas reflexões que desenvolvi nas últimas semanas a respeito do que se chama, na Ciência Política, de "análise de conjuntura"; ao escrevê-los, minhas preocupações foram (1) definir minimamente o que é a análise conjuntural e (2) expor alguns dos aspectos da obra de Augusto Comte que podem ser tomados como elementos seguros para uma análise de conjuntura. 

Evidentemente, somente o primeiro desses dois objetivos foi razoavelmente cumprido: o segundo objetivo, isto é, a exposição da análise conjuntural comtiana exigiria um exame detido dos textos comtianos, em particular da lição 46 do Sistema de filosofia positiva - exame que, em virtude de sua extensão, eu não poderia realizar neste momento. 

Em todo caso, parece-me que expor publicamente essas minhas anotações pode ter alguma utilidade.

*   *   *


Augusto Comte avalia sua época:
Análise de conjuntura comtiana

Gustavo Biscaia de Lacerda

A “análise de conjuntura” seria u’a metodologia desenvolvida pela Ciência Política para avaliação do momento presente. Todavia, como argumentou acertadamente Velasco e Cruz (2000), a Ciência Política – pelo menos no Brasil – não desenvolveu um conjunto de parâmetros, regras, normas e, principalmente, uma tradição de “análise de conjuntura”: em outras palavras, no país não se sabe o que é, ou melhor, de modo mais preciso, não se sabe como definir e propor de maneira didática a “análise de conjuntura”, sem que se reproduza, de alguma forma, os relatos meramente factuais, de caráter mais ou menos anedótico e que se assemelham fortemente à atividade jornalística, conforme notou com clareza Fábio Wanderley Reis (apud Braga, 2006, p. 1)[1].

Contrariamente ao que se considera muitas vezes, parece-nos que a melhor maneira de definir a "análise de conjuntura" é por meio do recorte que ela faz, ou seja, por meio do seu objeto específico, em vez da metodologia empregada; nesse sentido, ela seria apenas e tão-somente uma análise sociológica, ou político-sociológica, que aborda um lapso temporal relativamente reduzido e que, principalmente, considera o momento presente (e, a partir disso, sugere desenvolvimentos futuros para os fenômenos analisados). Assim, enquanto de modo geral as pesquisas político-sociológicas consideram processos e fenômenos passados, alguns já distantes muitas décadas e mesmo séculos, a análise de conjuntura realiza o mesmo exercício mas considerando que a distância temporal entre o momento em que se escreve e os processos em apreço não é muito longa – no limite, podem ocorrer virtualmente ao mesmo tempo.

Por outro lado, se o que individualiza a análise de conjuntura como exercício intelectual é a distância temporal entre a escrita da investigação e os fenômenos estudados, não se pode dizer que a metodologia empregada seja específica; assim, o cientista político ou o sociólogo usarão na análise de conjuntura as mesmas ferramentas intelectuais que estão à sua disposição para as investigações ordinárias sobre eventos passados. Em outras palavras, é incorreto entender a análise de conjuntura como uma técnica específica de análise político-sociológica – ainda que, sem dúvida, ela corresponda a um exercício intelectual particular.

Talvez seja possível uma precisão aqui: o traço distintivo da análise de conjuntura impõe uma precaução teórica e metodológica, no sentido de que a ausência de afastamento temporal dificulta a determinação do valor sociológico que os fenômenos analisados podem ter. Ainda assim, a dificuldade de avaliar o peso efetivo dos fenômenos tem que ser sopesada em relação à teoria sociológica empregada: afinal de contas, deixando de lado eventos completamente imprevistos (que, por definição, são impassíveis de avaliação científica a priori[2]), a função da teoria – de qualquer teoria – é determinar o que é importante e o que é secundário, quais são os atores sociais e as tendências sociopolíticas relevantes, quais as ordens de importância dos variados processos sociopolíticos etc. A análise de conjuntura, nesse sentido, com base no passado, interpreta o presente com vistas ao aconselhamento para o futuro; ou melhor, como argumentou Augusto Comte (1969, 48è leçon), com base no passado ela propõe um quadro para o futuro, interpretando assim o presente. Dito de outra maneira, a análise de conjuntura permite ao analista realizar plenamente a lógica da inferência científica, aplicando ao futuro, na forma de previsões científicas, os esquemas relacionais desenvolvidos em relação ao passado na forma de explicações, conforme proposto por John Stuart Mill[3] (cf. PERISSINOTTO, 2009).

A literatura brasileira, na medida em que possui alguma tradição de análise conjuntural, concentra-se em autores de origem marxista: tanto Velasco e Cruz (2000) quanto Braga (2006), ao mesmo tempo em que, de diferentes maneiras, filiam-se a correntes marxistas, desenvolvem suas análises conjunturais e indicam também a riqueza das análises inspiradas em Marx (O 18 Brumário, Guerra civil em França), Lênin (Que fazer?, O imperialismo), Gramsci (Maquiavel) etc. Além das vertentes marxistas, o que a literatura indica é que outros autores que serviriam de inspiração para análises conjunturais seriam Tocqueville (Lembranças de 1848) e Weber (Parlamento e governo). Entretanto, um autor que apresenta longas análises de conjuntura mas que, devido a diversos motivos[4], não é usado como inspiração é Augusto Comte.

Aquilo que poderíamos chamar de “análises de conjuntura” na obra de Comte estão presentes em vários livros, de diferentes maneiras: seja nos vários prefácios e nos corpos das obras “religiosas” (Système de politique positive, Appel aux conservateurs, Synthèse subjective), seja no seu amplo epistolário. Mas, de qualquer maneira, para os presentes objetivos é na lição 46 do Système de philosophie positive, presente no volume IV dessa obra, que se encontra uma longa análise conjuntural, desenvolvida a título de justificativa política da necessidade e da oportunidade da criação de uma filosofia positiva e, portanto, da criação da própria Sociologia. A lição, isto é, o capítulo em tela intitula-se precisamente “Considérations politiques préliminaires sur la nécessité et l’opportunité de la physique sociale, d’après l’analyse fondamentale de l’état social actuel”[5] e foi publicado em 1838; esse título indica de maneira clara sua intenção – qual seja, realizar a “análise fundamental do estado social atual”. Aliás, consoante os traços característicos da análise conjuntural que indicamos acima – trata-se de um exercício político-sociológico como qualquer outro, com a particularidade de que se concentra no momento presente –, ao expor suas "considerações preliminares", Comte já desenvolve a própria Sociologia.

Quais são os elementos da análise de conjuntura realizada por A. Comte?

-        crise ocidental crescente desde o fim da Idade Média, exposta claramente pela Revolução Francesa;
-        constituição de três grupos sociais e intelectuais e, a partir disso, de três partidos políticos na França do século XIX: os retrógrados, os revolucionários e os estacionários;
-        análise da constituição intelectual (i. e., dos princípios sociopolíticos) de cada um desses grupos;
-        relação desses grupos com a ordem e com o progresso;
-        necessidade e possibilidade de um terceiro princípio sociopolítico – a filosofia positiva –, resultando em um movimento político que permita ao mesmo tempo a ordem e o progresso;
-        análise das possibilidades de adesão dos grupos existentes ao novo movimento político;
-        análise da atuação política dos intelectuais.

Referências bibliográficas
BRAGA, Sérgio S. 2006. Alternativas políticas e configuração do bloco no poder na última conjuntura eleitoral brasileira. O que fazer? Curitiba: Grupo de Análise de Conjuntura.
COMTE, Augusto. 1908. Cours de philosophie positive. V. IV: Contenant la partie dogmatique de la philosophie sociale. Paris: Schleicher. Disponível em: https://ia700804.us.archive.org/2/items/coursdephilosop04comt/coursdephilosop04comt.pdf. Acesso em: 2.dez.2014.
COMTE, Augusto. 1969. Cours de philosophie positive. V. IV: Contenant la partie dogmatique de la philosophie sociale. Paris: Anthropos.
Grange, Juliette. 2003. Expliquer et comprendre de Comte à Dilthey. In: Zaccaï-Reyners, N. (dir.). Explication et compréhension. Regards sur les sources et l'actualité d'une controverse épistémologique. Bruxelles: Université de Bruxelles.
HEILBRON, Johan. 2006. Comment penser la genèse des sciences sociales? Revue d'Histoire des Sciences Humaines, Paris, n. 15, p. 103-116. Disponível em: http://www.cairn.info/revue-histoire-des-sciences-humaines-2006-2-page-103.htm. Acesso em: 2.dez.2014.
LACERDA, Gustavo B. 2009. Augusto Comte e o “Positivismo” redescobertos. Revista de Sociologia e Política, Curitiba, v. 17, n. 34, p. 319-343, out. Disponível em: http://www.scielo.br/pdf/rsocp/v17n34/a21v17n34.pdf. Acesso em: 2.dez.2014.
LACERDA, Gustavo B. 2011. Uma teoria política histórica: o republicanismo comtiano. Artigo apresentado no XXVI Simpósio Nacional de História, realizado entre 17 e 22 de julho, em São Paulo. Digit. Disponível em: http://www.snh2011.anpuh.org/resources/anais/14/1300899247_ARQUIVO_GustavoBiscaiadeLacerda-Teoriapoliticahistoricacomtiana.pdf. Acesso em: 2.dez.2014.
Nogueira, Marco A. 2013. As ruas e a democracia: ensaios sobre o Brasil contemporâneo. Rio de Janeiro: Contraponto.
PERISSINOTTO, Renato M. 2009. Comparação e Ciência Social: modelos teóricos e aplicações práticas. In: CODATO, A. & TRIBESS, C. (orgs.). Anais do evento Política, História e sociedade: perspectivas comparadas. Curitiba: NUSP-UFPR.
VELASCO E CRUZ, Sebastião. 2000. Teoria e método na análise de conjuntura. Educação & Sociedade, São Paulo, v. XXI, n. 72, p. 145-152, ago.
Werneck Vianna, Luiz. 2006. Esquerda brasileira e tradição republicana. Estudos de conjuntura sobre a era FHC-Lula. Rio de Janeiro: Revan.





[1] Todavia, isso não equivale à ausência de bons cultores e praticantes da análise de conjuntura no país: os livros de Luís Werneck Vianna (2006) e de Marco Aurélio Nogueira (2013) são boas coletâneas de análises conjunturais desenvolvidas respectivamente pelos seus autores. Os textos de Nogueira, em particular, ainda que revisados posteriormente para publicação, foram redigidos literalmente à medida que os eventos analisados desenrolavam-se ante suas vistas, o que indica o caráter "momentâneo" da análise de conjuntura.

[2] Embora seja mais ou menos evidente, é necessário dizê-lo com todas as letras: isso não impede, por certo, a avaliação a posteriori desses eventos: dessa forma, embora os eventos imprevistos por definição não sejam passíveis de antecipação racional, sem dúvida que eles podem ser avaliados e examinados após sua realização à luz da(s) teoria(s) sociopolítica(s). Além disso, ao contrário do que apregoam algumas teorias e metodologias sociológicas e históricas de viés contextualista, inspiradas em determinadas formas de idealismo (como as de M. Weber, de Q. Skinner e de M. Bevir), a mera ocorrência de tais eventos imprevistos não anula nem impede a eficácia lógica das teorias sociopolíticas e, de modo mais específico, das previsões racionais que elas porventura façam.

[3] Convém notar, entretanto, que embora Comte e Stuart Mill concordem com a aplicabilidade ao futuro dos esquemas usados para explicar o passado, eles divergem profundamente no que se refere à estrutura mesma desses esquemas explicativos: enquanto Stuart Mill propõe uma lógica causalista, Comte rejeita a concepção de "causa" e considera que as leis sociológicas – como, de resto, as leis naturais – consistem em esquemas abstratos (“teóricos”, portanto) que vinculam fenômenos particulares a explicações gerais. Como indicou Juliette Grange (2003), por um lado as críticas dos sociólogos cultores da metodologia dita “compreensiva” dirigem-se a esse esquema causalista, incorretamente imputado por eles a Comte; por outro lado, a proposta comtiana rejeita o causalismo de Stuart Mill na medida em que este remete à idéia metafísica de “causa”, que, como se sabe, foi objeto da crítica de D. Hume.

[4] Entre os motivos para não se usar Comte, não somente para análises de conjuntura como, de modo geral, para quaisquer análises sociopolíticas, podemos indicar os seguintes: (1) o desconhecimento generalizado de sua obra, com a redução de suas análises ao mero enunciado da lei dos três estados intelectuais; (2) causando esse desconhecimento, a má vontade, o preconceito e a consideração geral de que Comte e o Positivismo são o "outro" teórico, a serem combatidos e usados como formas de xingamento intelectual; (3) a discutível qualificação de Comte não como fundador da Sociologia, mas como autor pertencente à pré-história da disciplina e das Ciências Sociais, ou seja, como irrelevante para a "imaginação sociológica" (cf. HEILBRON, 2006; LACERDA, 2009).

[5] “Considerações políticas preliminares sobre a necessidade e a oportunidade da física social, a partir da análise fundamental do estado social atual”.

(Reprodução livre, desde que citada a fonte.) 

06 janeiro 2014

Nova edição da Sociologia de Augusto Comte

Foi recentemente publicada uma nova edição dos capítulos que Augusto Comte escreveu sobre Sociologia no "Sistema de filosofia positiva"; essa edição tem a vantagem adicional, para nós brasileiros, de ser em espanhol:


Convém notar, todavia, que o título "Física Social" é enganador, ao sugerir que, para Comte, a Sociologia é mecanicista e que os seres humanos seriam como os átomos ou como equações matemáticas, ou seja, seriam como robôs. Nada mais enganoso: nada disso se evidencia nem no "Sistema de filosofia positiva", nem nas principais obras, que são as religiosas ("Sistema de política positiva", "Catecismo positivista", "Apelo aos conservadores", "Síntese subjetiva", "Discurso sobre o conjunto do Positivismo").

Uma notícia bibliográfica foi publicada sobre esse livro:


Não é dos comentários mais interessantes e em vários momentos rende-se às modas intelectuais de nossa época, mas pelo menos faz um pouco de publicidade.

30 outubro 2012

Nova edição parcial do "Sistema de filosofia positiva"


Uma boa notícia: o Michel Bourdeau, que é um especialista sério no pensamento de Augusto Comte, está co-organizando uma nova edição do "Sistema de filosofia positiva" (vulgarmente conhecido como "Curso de filosofia positiva"). Essa edição, no entanto, é parcial, pois cobre apenas os capítulos 46 a 51 da "Filosofia", correspondentes a algumas lições sobre a Sociologia comtiana (as do v. IV da obra).

Reproduzo a notícia divulgada no blogue Positivists (http://positivists.org/blog/archives/477):



New edition of Auguste Comte’s ‘Cours de philosophie positive’, Lessons 46-51 (1830-42)


The volume contains Comte’s first six lessons on sociology edited and freshly annotated by Michel Bourdeau, Laurent Clauzade, and Frédéric Dupin.
  1. Political arguments showing the necessity and timeliness of the science of society
  2. Survey of the main philosophical attempts already made in order to create a social science
  3. The most important features of the positive method in the rational study of social phenomena
  4. Necessary relations between social physics and the other parts of positive philosophy.
  5. Preliminary considerations about social static : the general theory of the spontaneous order of human societies
  6. Fundamental laws of social dynamics : the general theory of the natural progress of mankind
Éditions Hermann, Paris, 2012, 480 pages, 17 x 24 cm, 48 €, publishers page for detailed information.