Napoleão à luz do Positivismo
- No final de novembro de 2023 estreou o filme Napoleão, dirigido por Ridley Scott e interpretado por Joaquim Phoenix
o Ridley Scott já dirigiu grandes filmes históricos, como Cruzada (embora tenha feito algumas tolices, como a ficção espacial Alien e, em menor medida, Blade Runner)
- O caso de Napoleão é exemplar da situação em que um “grande homem” não é a mesma coisa que alguém a ser celebrado e/ou valorizado
o Outro caso, mais contemporâneo para nós, é o de Hitler
- Aliás, o caso de Napoleão é interessante porque permite de uma única vez desfazer três mitos:
o O mito de que existiria a chamada “história positivista” e que ela consistiria no “culto aos grandes homens”
§ A história positivista é, acima de tudo, uma sociologia que se desenvolve ao longo do tempo, ao mesmo tempo em termos intelectuais, políticos e morais
· Mas, ao mesmo tempo, Augusto Comte tinha clareza de que muitas vezes os “acidentes históricos” são determinantes (assassinato de Júlio César; morte de Hoche e ascensão de Napoleão)
§ O culto aos grandes homens realmente existe no Positivismo, mas ele tem um caráter cultual, de valorização das ações construtivas dos seres humanos, e não propriamente intelectual, de explicação sociológica
o O mito de que basta ser um “grande homem”, ou melhor, um “homem famoso”, ou um líder com grande poder, para que esse homem/líder mereça ser celebrado, no âmbito do culto público
o O mito de que Napoleão, em particular, merece ser valorizado e/ou celebrado
§ Nesse sentido, é notável que muitas pessoas, que se dizem “críticas” reclamem que o filme em questão não seja elogioso e/ou um retrato mais fiel do tirano retrógrado
§ Na verdade, há gente que se diz “plural”, “aberta” e/ou “democrata” mas que consegue ao mesmo tempo criticar o militarismo no Brasil e, contraditoriamente, elogiar Napoleão como um “grande líder”!
- No âmbito do Positivismo, além dos aspectos indicados acima, Napoleão integra várias outras reflexões:
o Por um lado, ele integra plenamente a reflexão sobre a Revolução Francesa e, assim, a filosofia da história proposta por Augusto Comte – em particular, em termos de traição, degradação e corrupção dos altos, esperançosos e fraternos ideais e das práticas revolucionárias
§ Na edição da editora Akal (Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012[1]), a avaliação de Napoleão por Augusto Comte estende-se pelo menos da página 1021 até a página 1034 e encontra-se presente na lição n. 57 do Sistema de filosofia positiva, dedicada principalmente ao exame sociológico da Revolução Francesa
o Por outro lado, o culto retrógrado e militarista a Napoleão é substituído pelo culto republicano a Joana d’Arc
- Dito isso, algumas datas mínimas, para termos clareza do que tratamos:
o Nascimento em 1769, na Córsega (então recém-incorporada à França)
o 1789: início da Revolução Francesa
o 1792: início do governo da Convenção
Nacional
o 1793: generalato, no comando do Exército da Itália
o 1794: proclamação da República, após a
execução de Luís XVI
o 1798: campanha do Egito
o 1799: golpe civil-militar, com o estabelecimento do Consulado; torna-se o “Primeiro Cônsul”
o 1802: restabelecimento da escravidão no
império francês, em particular no Haiti
o 1804: coroado “imperador dos franceses”
o 1812: derrota na campanha da Rússia
o 1813-1814: derrota perante a Sexta Coligação; invasão da França e ocupação de Paris; exílio em Elba (na costa da Itália)
o 1814: entronização de Luís XVIII
o 1815: retorno no período dos Cem Dias; derrota em Waterloo e exílio em Santa Helena (no meio do Atlântico Sul)
o 1816: retorno de Luís XVIII
o Morte em 1821, no exílio, aos 51 anos
- Quando a Revolução Francesa estava em seus momentos finais, a ditadura militar era cada vez mais o desfecho previsível e mesmo necessário
o A ditadura militar tornou-se cada vez mais inevitável, na medida em que as guerras revolucionárias afastavam-se da defesa contra invasões externas, levavam os exércitos para solos e costumes estrangeiros, afastavam-nos dos assuntos internos, vinculavam-se menos com o patriotismo geral, identificavam-se mais com os líderes militares, deixavam de subordinar-se ao poder civil; por fim, as agitações metafísicas pareciam requerer, para sua compressão, a atuação militar
o Lázaro Hoche (1768-1797) era o grande general que se divisava como provável líder progressista dessa ditadura militar, mas sua morte prematura deu lugar ao imerecido Napoleão
o Eis o trecho em que Augusto Comte avalia o advento de Napoleão, no curso da Revolução Francesa:
“Por tanto, era sin lugar a dudas imposible que el conjunto de tal situación no condujese enseguida a la instalación espontánea de una verdadera dictadura militar, cuya tendencia, retrógrada o progresiva, por lo demás, a pesar de la influencia natural de una reacción pasajera, tenía que depender en gran medida, y sin ninguna duda más que en ningún otro caso histórico, de la disposición personal de aquel que habría de honrarse de ello, entre tantos ilustres generales que la defensa revolucionaria había suscitado. Debido a una fatalidad eternamente deplorable, esta inevitable supremacía, a la que el gran Hoche parecía estar en un principio tan oportunamente destinado, le cayó en suerte a un hombre casi ajeno a Francia, surgido de una civilización retrasada, y especialmente animado, bajo el secreto impulso de una naturaleza supersticiosa, por una involuntaria admiración hacia la antigua jerarquía social, mientras que la inmensa ambición que le devoraba no se encontraba realmente en armonía, pese a su vasto charlatanismo característico, con ninguna eminente superioridad mental, salvo la relativa a un indiscutible talento para la guerra, mucho más ligado, sobre todo en nuestros días, a la energía moral que a la fuerza intelectual” (Filosofia, lição 57, p. 1023)[2]
- Vários aspectos da avaliação de Napoleão por Augusto Comte:
o Napoleão não entendeu o espírito da época, preferindo (mesmo que secretamente, ou melhor, hipocritamente) o Antigo Regime e sentindo-se à vontade apenas nele; além disso, mesmo em meio à necessária ditadura militar que teria lugar na França, Napoleão poderia e deveria ter estimulado e orientado melhor os esforços nacionais para a reorganização social, no sentido da positividade, da paz, da fraternidade – como esteve muito claro para líderes que foram grandes chefes militares e grandes estadistas, anteriores a Napoleão, como Cromwell, Richelieu e Frederico II
o Napoleão foi ativamente militarista, monarquista e traidor dos ideais da Revolução Francesa: ele realizou a “ressurreição oficial do catolicismo”; o “estimulo sem exemplo que então receberam todos os instintos egoístas não dispensou o espírito militar de fundar sua orgia final sobre um recrutamento forçado” (Catecismo, p. 444)[3]
o A defesa nacional forçada pelas contínuas e generalizadas guerras de conquista provocadas por Napoleão foi o único meio de conjugar a glória nacional francesa com a preservação da memória desse líder degradante:
“La vergonzosa forma de este indispensable derrocamiento ha constituido desde ese momento la única base sobre la que se ha hecho posible establecer, con una especie de éxito pasajero, una aparente solidaridad entre nuestra propia gloria nacional y la memoria individual de aquel que, más nocivo para el conjunto de la humanidad que ningún otro personaje histórico, siempre fue especialmente el más peligroso enemigo de una revolución de la que una extraña aberración ha obligado a veces a proclamarlo el principal representante” (Filosofia, lição 57, p. 1028-1029)[4]
o Napoleão pretendeu criar uma nova dinastia, com a pretendida reconstituição – degradada e servil – do catolicismo oficial, sob a justificativa de conceder estabilidade ao regime
o É necessário afirmar que o militarismo ativo era o meio empregado para que não se evidenciasse o ridículo da renovada monarquia napoleônica
o Napoleão corrompeu a moral nacional francesa, estimulando a tirania e oferecendo a Europa de butim como contrapartida à degradação moral
§ O conjunto da política imperial levou a França a oscilar entre duas vergonhas: ou a violência de suas armas ou a traição de seus princípios
§ Ele pôs a França em perigo e estimulou a retrogradação na Europa, ao estimular a criação de coalizões retrógradas contra o imperialismo napoleônico
o Contra as intenções militaristas, imperialistas, monarquistas e clericalistas de Napoleão, as “invasões imperiais” estimularam os anseios de liberdade e independência nos povos invadidos, o que, indiretamente, de fato favoreceu a difusão dos ideais revolucionários
- O culto a Napoleão era considerado por Augusto Comte como irracional e imoral; além disso, o seu nacionalismo chauvinista era encarado como desprezível e indigno da França
o O culto a Napoleão baseava-se no estímulo direto da vaidade nacional francesa, além de um estímulo geral aos vícios próprios a todos os seres humanos
§ Como indicamos antes, o culto a Napoleão exigia o militarismo ativo, a fim de distrair a atenção para o ridículo da coisa
o No lugar do culto a Napoleão, Augusto Comte afirmava a necessidade de substituição pelo culto a Joana d’Arc, que conduziu a França à vitória final – em particular, garantindo a independência do reino – no final da Guerra dos Cem Anos (1337-1453)
§ Como indicamos antes, o culto positivista a Joana d’Arc, realizado pelo menos até a I Guerra Mundial, era plenamente republicano e secular
§ A afirmação pública do culto a Joana d’Arc em substituição ao de Napoleão foi feita por Augusto Comte na conclusão de um de seus cursos de história da Humanidade, sendo efusivamente aplaudido
o Adicionalmente, vale notar que Augusto Comte, ao começar a projetar o culto público e o calendário positivista concreto em 1847, considerou que o último dia do ano deveria ser consagrado à reprovação pública de alguns tipos
§ Considerações posteriores indicaram que um tal tipo de prática pública seria antipositiva e contrária ao altruísmo, ao estimular o ódio e, no final das contas, ao também celebrar personagens que devem ser desprezadas
§ De qualquer maneira, Augusto Comte considerou inicialmente três nomes, depois reduzidos para dois: o imperador Juliano, o apóstata; Felipe II (depois excluído dessa consagração às avessas) – e, acima de todos, Napoleão
- É perfeitamente válida a aproximação da figura de Napoleão da de Hitler
o Aspectos de aproximação:
§ Ambos foram militaristas e imperialistas
§ Ambos ansiaram dominar toda a Europa
§ Ambos foram, portanto, profunda e violentamente retrógrados
o Aspectos de distanciamento:
§ O projeto hitleriano envolvia necessariamente o genocídio racista dos judeus e de outros grupos sociais; além disso, as ações de Hitler resultaram na destruição e posterior divisão da Alemanha: os alemães não se esquecem do segundo elemento e o mundo não perdoa o primeiro elemento
§ Napoleão não destruiu a França; mas é claro que suas ações institucionais permitiram a substituição orgânica do seu império pela monarquia que tinha sido gloriosamente extinta cerca de 20 anos antes
§ Sendo bem franco: é o chauvinismo francês mantém o mito napoleônico – estimulado desde o início pelo próprio Napoleão!
· Inversamente, o genocídio praticado por Hitler, o seu sistemático antissemitismo, a destruição total que ele causou à Alemanha e a reação universal contra o nazismo tornaram (não por acaso e com justiça) inaceitável qualquer menção a ele
o Por certo que Augusto Comte viveu quase um século antes de Hitler; mas podemos sugerir o seguinte:
§ Sem desculpar nada das ações de Hitler, o fato é que ele consistiu claramente em um “ponto fora da curva” e, portanto, apresenta um caráter excepcional
§ Napoleão, por outro lado, atuou inserido no processo histórico da Revolução Francesa; podendo liderar esse processo, ele conscientemente escolheu trair e corromper os ideais desse processo
· Assim, Napoleão não foi um “ponto fora da curva”, mas ele escolheu levar a curva para a direção errada
[1] Vale notar que essa edição é bastante ambígüa. Por um lado, é uma tradução bem feita, do francês para o espanhol, de muitos capítulos do Sistema de filosofia positiva, em particular as lições 46 a 57, ou seja, os volumes 4, 5 e metade do 6. Injustificadamente o organizador decidiu deixar de lado as lições 58 a 60, que concluem a referida obra. Todos esses capítulos – do 46 ao 60 – correspondem à fundação da Sociologia de Augusto Comte, errada mas propositalmente chamada de “Física Social”. Por fim, o tradutor – Juán R. Goberna Falque – redigiu uma longa introdução, bem como inseriu muitas notas explicativas; refletindo a ofensiva ambigüidade do emprego da expressão “Física Social”, tanto a introdução quanto muitas das notas são aviltantes e desmerecem profundamente, a partir do mais banal cientificismo academicista, a obra de Augusto Comte. Em suma, resta apenas a tradução (incompleta) da primeira Sociologia de Augusto Comte.
[2] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.
[3] Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1934.
[4] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.