Mostrando postagens com marcador Regime positivo. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Regime positivo. Mostrar todas as postagens

09 abril 2024

O que é o patriciado?

No dia 16 de Arquimedes de 170 (9.4.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, abordamos o conceito de "patriciado" no âmbito do Positivismo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/CCHo6) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/HEMrz). O sermão começou aos 51 min 11 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


O que é o patriciado? 

-        Há algumas semanas um novo adepto do Positivismo, que se tem mostrado interessado em aspectos práticos da doutrina, pediu que eu abordasse a concepção de “patriciado”: daí esta prédica

o   Como veremos, a teoria do patriciado é simples em seus termos gerais, embora guarde relações com muitos aspectos da Religião da Humanidade

o   Dessa forma, diversos aspectos desta exposição serão comentados inicialmente em um momento e serão concluídos em outro momento: não se trata de fragmentar o raciocínio, mas de juntar aos poucos os vários elementos para que eles constituam um todo orgânico

-        O conceito de “patriciado” acaba surgindo no cruzamento de diversas teorias específicas de Augusto Comte

o   Essas teorias são: a teoria religiosa e da regulação moral da sociedade (é a teoria do sacerdócio); a teoria da política positiva (é a sociocracia e os poderes Temporal e Espiritual); a teoria das atividades práticas (a teoria da indústria)

o   Como sabemos, as teorias do sacerdócio e da sociocracia foram expostas e desenvolvidas no Sistema de política positiva e nas obras assessórias (Catecismo positivista, Apelo aos conservadores, correspondência)

o   Mas a teoria da indústria foi apenas projetada: ela seria exposta e desenvolvida no tomo IV da Síntese subjetiva, previsto para a década de 1860

o   De qualquer maneira, como ficará evidente ao longo desta exposição e como uma decorrência natural das teorias do sacerdócio e da sociocracia, a proposta positivista do patriciado não faz nenhum sentido fora dos quadros da Religião da Humanidade e da respectiva regeneração por via religiosa

§  Em particular, isso significa (1) que o patriciado não é um conceito apenas político-econômico e (2) que o patriciado não é uma palavra diferente para tratar da burguesia (e justificá-la)

-        Indo diretamente ao ponto: os patrícios são os líderes, ou melhor, os chefes econômicos

o   O nome “patrício” vem da Antigüidade romana, homenageando os líderes políticos e chefes das famílias da República romana

§  Essa homenagem indica o quanto Augusto Comte respeitava e valorizava os romanos

§  Da mesma forma, a palavra “proletariado”, também adotada por Augusto Comte, tem origem nos plebeus romanos

o   Os patrícios – cujo conjunto constitui o patriciado – representam a providência material da Humanidade

o   Os patrícios são os responsáveis pela produção material da Humanidade, decidindo o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual tecnologia, empregando quantos trabalhadores, visando a qual mercado específico etc.

§  Augusto Comte determina quatro tipos gerais de atividades produtivas: a agricultura, a indústria, o comércio e, estimulando cada um deles, os bancos

o   Os empreendimentos devem limitar-se pela capacidade de responsabilizarem-se pessoalmente por suas atividades

§  Augusto Comte não chegou a desenvolver estes aspectos, mas parece-nos que a responsabilização deve ser avaliada por seus efeitos concretos, o que abrange a geração de empregos, os salários pagos, as condições de trabalho e a qualidade e a quantidade da produção

·         A máxima prática – “a riqueza é social em sua origem e deve ter uma destinação social” – impõe-se com toda a clareza aqui

o   Vale lembrar que essa máxima é positivista e que só o Positivismo elaborou-a

·         Há espaço para o lucro, mas este deve ser entendido como a condição para o crescimento econômico e para os investimentos produtivos; o lucro não pode ser visto como um fim em si mesmo nem como a satisfação da ganância

o   Nesse sentido, o lucro não é único nem, de longe, é o principal parâmetro para avaliar o “sucesso” de algum empreendimento

o   O sucesso de um empreendimento é a sua capacidade de satisfazer as necessidades sociais: como já indicamos, geração de empregos de qualidade, produção de produtos úteis e de qualidade

§  Além disso, no aspecto da responsabilização pessoal há um aspecto de conhecimento pessoal entre o patrão e os empregados, com relações afetivas desenvolvendo-se entre eles

·         Não apenas se trata de relações afetivas (altruístas) entre patrão e empregados, mas também do desenvolvimento de verdadeira confiança mútua

o   Como o capital é social em origem e destinação, os patrícios devem ser vistos – e, acima de tudo, eles devem ver a si mesmos – como os administradores do capital material humano em favor da sociedade, não como “donos” da riqueza

§  A administração do capital é responsabilidade pessoal intransferível de cada patrício

§  Como gestores, eles devem ter a capacidade para isso, ou seja, eles devem ter poderes para isso

·         Suas amplas (ou melhor, suas pesadas) responsabilidades exigem que eles tenham amplos poderes

§  Mais do que outros, os patrícios devem entender e aplicar a noção de deveres mútuos

·         Todos têm deveres para com todos; mas, dependendo da situação de cada um, alguns têm maiores deveres que outros: no caso dos patrícios, seus deveres são realmente maiores que os dos demais

-        A atuação dos patrícios pode, e deve, ser contraposta à atuação das outras forças sociais:

o   Em relação ao proletariado, os patrícios são a força concentrada; o proletariado é a força dispersa

§  Augusto Comte lembra que o proletariado tem poder por meio da união; já os patrícios são poderosos devido aos meios de que dispõem – e, por isso, seus desvios são muito mais graves

o   Em relação ao sacerdócio, os patrícios representam o poder temporal; o sacerdócio é o poder espiritual

o   Em relação às mulheres, os patrícios representam a força física; as mulheres constituem o aconselhamento moral

-        Os patrícios são os servidores da Humanidade mais diretamente expostos ao egoísmo individualista e às perspectivas de detalhe

o   Os patrícios são os responsáveis pela conservação, pela reprodução e pelo aumento das riquezas materiais

§  As riquezas materiais são temporárias, no sentido de que, com o passar do tempo, todas elas degradam-se (é claro que algumas degradam-se mais rapidamente que outras); da mesma forma, há muitos tipos de riquezas materiais e os resultados de uma atividade são os insumos de outras atividades: o resultado desses aspectos é que são necessários muitos chefes práticos para muitas atividades contínuas

§  Essas atividades são egoístas e particularistas por si sós

o   Assim, os patrícios são os mais expostos às piores condições mentais e morais: embora sacerdotes, proletários e mulheres corram determinados riscos morais, intelectuais e práticos, conforme suas situações e suas atividades, o fato é que são os patrícios os que mais se sujeitam ao egoísmo

§  A conseqüência disso é que os chefes práticos são aqueles que mais dificilmente aceitaram a Religião da Humanidade e sua disciplina moral

§  Essa maior dificuldade, ou melhor, essa maior resistência (que não é necessariamente passiva) implica até mesmo conflitos entre os chefes práticos e as demais forças sociais (orientadas pelo sacerdócio)

·         De qualquer maneira, importa lembrar: o poder Temporal pertence aos chefes práticos; caso as outras forças sociais (sacerdotes, proletariado, mulheres) assumam o poder Temporal, essas outras forças necessariamente se degradarão

-        Os marxistas, com seu desprezo geral por tudo que não é marxista, consideram que o conceito positivista de “patriciado” é uma forma diferente de falar “burguesia”

o   Evidentemente, essa forma de pensar dos marxistas está errada e consiste em um preconceito desprezível, que em todos os sentidos só piora as coisas

o   Esse preconceito marxista é um preconceito e não é aceitável; entretanto, de uma forma bastante oblíqua, podemos considerar que esse preconceito marxista ajuda a entender o valor do patriciado: o patriciado consiste nos chefes práticos que não são burgueses

o   Ao contrário do que os preconceitos marxistas difundiram, os próprios marxistas não têm o monopólio das concepções críticas sobre a burguesia: Augusto Comte era extremamente severo contra a burguesia, entendendo-a como mesquinha, egoísta, frívola, oportunista, dinheirista

§  Além de criticar a burguesia, Augusto Comte também criticava a “burguesocracia” – o que deveria encerrar toda e qualquer discussão a respeito do suposto caráter “burguês” do Positivismo

§  Frederic Harrison – que, aliás, como muitos outros positivistas no mundo todo, na Inglaterra fundou sindicados e confederações de sindicados – punha-se contra a “plutonomia”, isto é, contra a regulação social estipulada pelos ricos[1]

o   Considerando os problemas morais e práticos a que os patrícios estão expostos, uma forma bastante direta de evidenciar o grau de difusão do Positivismo, de aceitação da Religião da Humanidade e de implantação da sociocracia é verificar quantos burgueses tornaram-se patrícios e, de qualquer maneira, quantos patrícios há na sociedade

§  Inversamente, pode-se determinar o quanto uma sociedade está distante da sociocracia por meio da rejeição dos chefes práticos dos ideais sociocráticos e do patriciado

-        Embora evidentemente fosse contra os conflitos, Augusto Comte reconhecia um valor prático na chamada “luta de classes”

o   Para Augusto Comte a luta de classes não tem as características que os marxistas definem para ela; ou seja, para o Positivismo, a luta de classes não é um ideal moral-social; não é a força motora da história; não é a condição para o fim das “contradições sociais”; não pode nunca assumir o aspecto de guerra de classes

§  Vale notar que todos os elementos da noção marxista de “luta de classes” distorcem o entendimento da realidade e pioram muito os problemas sociais

o   Rejeitado todo o conteúdo revolucionário, destruidor e violento da luta de classes, o valor que Augusto Comte percebia nela era, por um lado, o de evidenciar as necessidades do proletariado e, por outro lado, evidenciar a necessidade de regulação social e moral das relações sociais

-        Passando para o âmbito propriamente político, o poder Temporal deve ser chefiado por patrícios

o   Esse aspecto é decorrente do caráter industrial das sociedades positivas: o poder cabe a quem realmente é o responsável pelas principais atividades sociais (o sacerdócio nas teocracias, os chefes militares na Antigüidade e na Idade Média)

o   O poder Temporal é mais restrito que o poder Espiritual, mas, de qualquer maneira, ele não pode ser ocupado por pessoas concentradas em seus egoísmos

§  A noção de que os patrícios correspondem aos chefes práticos regenerados pela Religião da Humanidade já indica alguns de seus atributos

§  Ainda assim, as atividades e as exigências políticas são diferentes das econômicas: isso Augusto Comte não chegou a tratar

§  Não deixa de ser notável que, no calendário positivista, exista um mês para a política moderna (Frederico, o duodécimo mês), com indivíduos com atividades claramente discerníveis, mas que o mês da indústria moderna (Gutenberg, o nono mês) não haja propriamente líderes, no sentido do patriciado

§  De qualquer maneira, a exigência de que os chefes políticos tenham perspectivas gerais e sejam efetivamente dotados de um sentimento social levou Augusto Comte a recomendar que, extraordinariamente, o poder Temporal seja ocupado por um proletário em vez de por patrícios

-        Por fim: com a idade de 63 anos deve ocorrer a aposentadoria, por meio do sacramento do retiro: Augusto Comte recomendava que os patrícios retirados constituíssem uma corporação – por mais informal que fosse – da “cavalaria patrícia”, dedicada a afirmar e difundir os valores e as práticas da Religião da Humanidade entre os patrícios atuantes e também a corrigir injustiças e desvios

-        Em suma:

o   Os patrícios consistem nos chefes práticos (“empreendedores econômicos”) regenerados pela Religião da Humanidade

§  Essa “regeneração” consiste na aceitação e, mais ainda, na aplicação dos parâmetros positivistas

·         Em um sentido afirmativo, esses parâmetros são a responsabilidade pessoal por suas ações e decisões; a preocupação com o bem comum; o entendimento de que o capital é social em sua origem e destinação e que os chefes práticos são gestores da riqueza, não seus donos absolutos

·         Em um sentido negativo, esses parâmetros são a rejeição do comportamento mesquinho, egoísta, frívolo próprio à burguesia e à burguesocracia



[1] Citamos Harrison porque há alguns anos um artigo de sua autoria foi recuperado por um antropólogo francês (disponível aqui: https://www.cairn.info/revue-du-mauss-2014-1-page-309.htm&wt.src=pdf); mas é claro que não foi apenas ele que se manifestou contra a burguesia e a burguesocracia e, mais importante que isso, que se manifestaram a favor da fraternidade e da sociocracia. Um pouco ao acaso, podemos citar os seguintes nomes: os irmãos Lagarrigues no Chile; Fabien Magnin e seus amigos proletários na França; ainda na França, o sindicalista e criador de uma confederação sindical Auguste Keufer; evidentemente, também Miguel Lemos, Teixeira Mendes e os positivistas ortodoxos brasileiros.

26 março 2024

Que é a "ditadura republicana"?

No dia 2 de Arquimedes de 170 (26.3.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua décima conferência (dedicada ao regime privado).

No sermão abordamos a proposta de "ditadura republicana".

Antes do sermão, comentamos o livro O homem e sua ficha, do positivista cearense Jesus Pereira Soares (Rio de Janeiro, Civilização Brasileira, 1988), que é um belo e interessante relato e profissão de fé do autor como servidor público inspirado e orientado pelo Positivismo e como integrante da assessoria econômica da Presidência da República nos anos 1940 e 1950.


Fonte: https://bonifacio.net.br/interpretes-do-brasil-assessoria-economica-do-segundo-governo-vargas/

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/4fjrm) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/wkWus). O sermão começou em 58 min 40 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


O que é a ditadura republicana? 

-        Como sabemos, quando se fala popularmente no Positivismo, pensa-se de modo geral em alguns chavões, com freqüência mal explicados ou simplesmente errados: a lei dos três estados, o “Ordem e Progresso”, alguns militares positivistas – e, no que depende dos liberais, também a “ditadura republicana”

o   A associação contemporânea da palavra “ditadura” com autoritarismos, com violência, com truculência (e, não por acaso, com os militares e com a violência policial), torna o conceito de “ditadura republicana” algo bastante delicado de ser tratado

o   De qualquer maneira, há algumas semanas um interessado no Positivismo pediu que tratássemos desse tema: assim, aqui estamos[1]

-        Para limparmos o terreno, antes de começarmos a tratar do que é a ditadura republicana, é importante sabermos o que ela não é[2]

o   A ditadura republicana não é um autoritarismo

§  Pode não parecer muito evidente, mas Augusto Comte não usava a palavra “autoritarismo”, que é de uso bastante contemporâneo (posterior à II Guerra Mundial)

§  Para nós, “autoritarismo” é um regime político moderno, mantido pela força, isto é, pela violência militar, policial e civil-burocrática

·         O autoritarismo, nesse sentido, equivale à “ditadura”, e é oposto à “democracia”

·         A “democracia”, por sua vez, consiste em um regime de liberdades, em que o governo obedece à “vontade popular”; em que o governo é eleito periodicamente e em que a atuação do Estado é limitada tanto por uma carta constitucional quanto pela “separação dos poderes”

§  Seguindo a tradição filosófico-política vigente no século XIX, os regimes políticos autoritários, ou melhor, os regimes políticos negativos para Augusto Comte eram a tirania, o despotismo, o absolutismo político e a opressão

·         As características desses regimes políticos negativos eram o emprego político da violência, a ausência de liberdades, a imposição de crenças e também um caráter retrógrado geral – e a união dos dois poderes (Temporal e Espiritual)

§  Augusto Comte, na Política positiva (1851-1854), emprega habitualmente a expressão “ditadura” em um sentido neutro, ou seja, como sinônima de “governo” ou de “regime político”

·         Assim, há ditaduras progressistas, ditaduras liberais (no sentido de que apóiam as liberdades), ditaduras pacíficas; inversamente, há ditaduras retrógradas, ditaduras violentas, ditaduras militares etc.

·         Entre o rol de ditaduras, há a “ditadura republicana”

·         A palavra ditadura é empregada por Augusto Comte no sentido de “ditar”, isto é, de indicar as regras e as leis – ou seja, no sentido de “governar”

-        A expressão “ditadura” tem origem romana; ela consistia em uma magistratura excepcional[3]

o   (As magistraturas eram os cargos públicos de Roma)

o   Na República romana, em situações de grande perigo público – como no caso de guerras em que estivessem à beira da derrota, ou em caso de invasões do seu território, ou mesmo no caso de graves distúrbios civis –, escolhia-se um “ditador”

o   O ditador tinha um mandato fixo (seis meses, prorrogáveis por mais seis) e seus poderes eram os mais amplos possíveis (vida e morte, decisões com aplicação imediata, justiça irrecorrível), mas não eram ilimitados: ele não podia mudar as instituições fundamentais da República

-        Até o final do século XIX, a palavra ditadura tinha um sentido neutro ou mesmo positivo[4]; foi com o comunismo que isso mudou, seja com a proposta de “ditadura do proletariado” (cujo sentido de “autoritarismo do proletariado” nunca foi fingido por Marx), seja com a Revolução Russa em 1917

o   A ditadura nazista (1933-1945) foi a pá de cal final sobre os sentidos neutros ou positivos para a palavra “ditadura”

o   Após a II Guerra Mundial, os estadunidenses popularizaram a “ditadura” como conceito antinômico em relação à “democracia”, fosse para defender a sua democracia no âmbito da Guerra Fria, fosse para caracterizar as ditaduras opostas (nazista e/ou soviética)

-        Agora que vimos o que a ditadura republicana não é, podemos com tranqüilidade passar para o que ele é

-        Ainda com o objetivo de limparmos o terreno, convém apresentarmos alguns aspectos gerais da ditadura republicana, antes de abordarmos seus elementos específicos[5]

o   É um regime de liberdades: liberdades civis (ir e vir, devido processo legal, habeas corpus) e, ainda mais, de plenas liberdades de consciência, de expressão e de associação

o   Considerando a separação dos dois poderes, é um regime de governo limitado

o   É o regime político próprio à sociocracia, isto é, à organização social positiva, baseada na prevalência da opinião pública

o   Ainda vinculados à sociocracia estão os elementos do pacifismo (e da rejeição da violência), do fim do militarismo, da confiança mútua (entre o governo e os cidadãos; entre os cidadãos entre si), da responsabilidade social e política, dos estados de pequena extensão, da afirmação das mátrias, da afirmação da Humanidade sobre as pátrias/mátrias

-        Para entendermos a ditadura republicana, temos que ter clareza e lembrar que, assim como não se pode ter o espírito absoluto na filosofia, não se pode ter o espírito absoluto na política

o   Assim, não faz sentido a pesquisa puramente abstrata e de caráter teológico-metafísico sobre “o melhor tipo de governo”: cada sociedade tem seu tipo adequado de governo

o   Durante a Idade Média e, de modo geral, durante os períodos teológicos, o governo foi absoluto, no sentido de que suas ordens eram indiscutíveis; além disso, o governante era visto como o representante da divindade na Terra

o   Em uma sociedade positiva e relativa, as decisões do governo têm que ser passíveis de exame e de crítica pública; o governo é o agente do interesse público; a importância da confiança pública e da responsabilidade social é plenamente reconhecida e valorizada

o   No meio do caminho entre a teologia e a positividade há a metafísica – e a teoria política metafísica atualmente é liberal e democrática

§  Lembremos: a metafísica é destruidora, dissolvente, “crítica”; em termos políticos, uma outra característica da metafísica é considerar como permanente instituições puramente transitórias (em particular aquelas destinadas a destruir as instituições anteriores)

§  O aspecto mais claramente metafísico no liberalismo é a desconfiança radical em relação ao poder: essa desconfiança vincula-se à decadência dos poderes antigos, que, após a Idade Média, passaram a tornar-se desregulados e opressivos

·         A idéia, e até o sentimento, de que o poder sempre será ruim está na base dos raciocínios dos liberais (políticos e/ou econômicos) e apóia o individualismo liberal

§  No que se refere à metafísica democrática, ela apresenta-se com clareza ao considerarmos a concepção da “soberania popular”

·         Entendida de maneira positiva (ou melhor, positivada), ela pode ser entendida como o governo da opinião pública

·         Nos textos de Rousseau, a soberania popular é a consideração de que o “povo” sempre sabe tudo, sempre sabe o que quer, nunca erra e exige que todos creiam em uma religião civil

o   A ditadura republicana surge como uma instituição intermediária e temporária entre a fase atual, da metafísica democrático-liberal, e a fase sociocrática plenamente positiva

-        Agora que limpamos o terreno, demos algumas indicações elementares sobre a política positiva e indicamos o aspecto de transição da ditadura republicana, torna-se mais simples, rápido e fácil apresentar seus elementos específicos[6]:

o   A ditadura republicana é um regime político republicano, em que o bem comum (“res publica”) é o parâmetro fundamental, afirmado pela opinião pública, e em que as liberdades devem ser, sempre, garantidas

o   Em particular, a separação entre os dois poderes (Temporal e Espiritual) deve ser cuidadosamente mantida: como o objetivo da ditadura republicana é realizar a transição, a sua atuação deve ser no sentido de garantir as condições sociais e políticas próprias à transição

o   Em que consiste a transição? A transição consiste no restabelecimento da ordem espiritual, ou seja, (1) no restabelecimento de um poder espiritual legítimo, verdadeiro e adaptado à sociedade e, portanto, (2) no estabelecimento de um poder espiritual positivo

o   O papel da ditadura republicana, então, é o de manter a ordem temporal em meio à anarquia espiritual, enquanto o poder espiritual positivo estabelece-se: evidentemente, a condição fundamental e necessária para isso é a liberdade espiritual (liberdades de consciência, de expressão e de associação)

o   Considerando por um lado o papel específico da ditadura republicana como regime de transição e por outro lado a necessidade permanente da separação entre os dois poderes nas sociedades modernas, o resultado é que a ditadura republicana deve assumir a característica da “laicidade do Estado”, conforme é habitualmente entendida

o   Augusto Comte determina três fases progressivas na transição:

§  (1) nem o conjunto da sociedade nem o governante é positivista, mas é possível e necessário adotar uma série de medidas: garantia clara e plena das liberdades de consciência, expressão e associação; fim do anonimato; fim dos orçamentos teóricos (igrejas, universidades); extinção da legislação de propriedade intelectual; sistema público de comemorações históricas

§  (2) a sociedade não é positivista, mas o governante é e por isso o governo assume um caráter progressista, ao adotar as seguintes medidas: supressão das Forças Armadas, transformação de Paris em metrópole ocidental, junção das máximas “Ordem e Progresso” e “Viver para outrem”

§  (3) tanto o governante quanto a sociedade são positivistas

o   Quando ocorrer a terceira fase da transição, será possível instalar o regime político normal, em que o poder do Estado será organizado em um triunvirato, ou seja, dividido entre três governantes, cada um deles oriundo de um ramo do patriciado bancário e responsável por uma área específica

§  Interior (proveniente da agricultura)

§  Finanças (proveniente da indústria)

§  Exterior (proveniente do comércio)

§  Os eventuais conflitos graves entre os triúnviros são mediados pelo poder Espiritual

-        Em termos institucionais, a ditadura republicana caracteriza-se pelo seguinte:

o   Governo unipessoal: ou seja, república presidencialista

o   Parlamento apenas orçamentário e reunido apenas durante suas atividades orçamentárias

§  O parlamentarismo apresenta uma série enorme de defeitos e problemas morais e políticos: dispersa (e/ou nega) a responsabilidade; divide e inutiliza o poder; finge que é um órgão espiritual; estimula a mesquinhez, a corrupção e as intrigas (apoiando e sendo apoiado pelo jornalismo político)

o   A “soberania” é da sociedade (logo, não é nem divina nem do “povo”): a sociedade manifesta-se sozinha e com autonomia, por si só, seja por meio do poder Espiritual, seja por meio de seus órgãos variados (clubes cívicos, associações, sindicatos etc.)

o   As leis são propostas pelo governo e submetidas à avaliação pública durante períodos variáveis durante alguns meses; a sociedade manifesta-se e, com base nas manifestações sociais e após elas, o governo decreta finalmente as leis

o   Os mandatos são vitalícios, até a idade da aposentadoria (Augusto Comte indica a idade de 63 anos); o governante indica o seu sucessor, que é sujeito à avaliação (e, portanto, à aceitação) pública

§  Esse é o instituto da “hereditariedade sociocrática”

o   Augusto Comte aceita a instituição do voto – voto universal, aliás –, apesar do seu caráter profundamente crítico e dissolvente, com três modificações fundamentais, introduzidas a fim de garantir-se a responsabilidade nas decisões:

§  Voto apenas a partir dos 28 anos

§  Voto público (isto é, a descoberto)

§  Voto transferível (ou seja, a possibilidade de um eleitor atribuir a própria capacidade de votar a outro cidadão – que, por sua vez, passa a poder contar com dois votos – e assim sucessivamente)

o   Como deve ter ficado evidente, todas as instituições propostas acima para a transição (e, aí, para a ditadura republicana) ficam na dependência de o poder Espiritual fazer valer a preponderância do altruísmo sobre o egoísmo



[1] A presente exposição baseia-se longamente no livro de nossa autoria, ou seja, de Gustavo Biscaia de Lacerda, O momento comtiano: república e política no pensamento de Augusto Comte (Curitiba: UFPR, 2019). Nesse livro eu cito longa e textualmente Augusto Comte e discuto em detalhes cada um dos aspectos considerados, incluindo os temas contemporâneos que geram confusão (como, por exemplo, a equivalência contemporânea entre “ditadura” e “autoritarismo”).

[2] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[3] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[4] Cf. Lacerda, seção 5.1.

[5] Cf. Lacerda, cap. 3, cap. 5 (em particular seções 5.2-5.3) e cap. 6.

[6] Cf. Lacerda, seção 5.3.