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26 novembro 2025

Monitor Mercantil: Cancelamento do Positivismo, da academia à bandeira

No dia 21 de Frederico de 171 (25.11.2025) o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o nosso artigo "Cancelamento do Positivismo: da academia à bandeira nacional".

Aliás, considerando o tema desse artigo, devemos manifestar aqui o nosso profundo agradecimento pelo jornal Monitor Mercantil, que há cerca de um ano e meio abriu-nos as portas para que, contra o cancelamento do Positivismo, pudéssemos manifestar nossas opiniões.

Reproduzimos abaixo o texto. O original está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/cancelamento-do-positivismo-da-academia-a-bandeira-nacional/.

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Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC).


Cancelamento do positivismo: da academia à bandeira nacional

A regra sobre o positivismo é o cancelamento, que começa na academia e descamba para a política prática. Por Gustavo Biscaia de Lacerda.


Em diversas ocasiões apresentamos nesta página reflexões a partir do positivismo, às vezes fazendo comentários sobre ele. Desta vez temos que comentar diretamente o tratamento dispensado ao positivismo – que, para usar uma gíria atual, consiste em um cancelamento sistemático, que começa nas universidades e rapidamente descamba para a política prática.

Antes de mais nada, lembremos que o positivismo é uma das mais importantes filosofias, políticas e religiões; tratar dele – e com honestidade! – não é questão de gosto ou preferência pessoal ou filosófica. Ele é referência básica quando se trata de ciências humanas, e é impossível tratar da história do Brasil sem que se refira também a ele.

Além disso, a filosofia, a política e a religião criada por Augusto Comte afirma com todas as letras o pacifismo, a fraternidade universal e o universalismo de vistas, bem como o caráter social da República e o respeito digno e escrupuloso com os grupos sociais frágeis. Assim, deveria ser evidente que o positivismo seja lido e ouvido, pelo menos para que a discordância com ele seja baseada no efetivo conhecimento; mas com ele ocorre o clássico “não conheço, não li e não gosto”.

No ambiente acadêmico há um senso comum crítico que afirma que nada é puramente intelectual, havendo também sempre interesses políticos e sociais envolvidos. Essa ideia tem graves problemas intelectuais e políticos, mas ela torna-se bastante evidente quando é posta em prática por pesquisadores que fazem questão dela.

Os livros de coletâneas revelam em particular esses aspectos. As coletâneas têm várias utilidades; fiquemos com indicar os temas que devem ser abordados (que “prestam”) e quais os autores autorizados a falar do que quer que seja (que merecem ter prestígio).

Consideremos três cientistas sociais brasileiros consagrados: Lília Schwarcz, Celso Castro e Christian Lynch. Nos últimos 15 anos, cada um deles organizou numerosas coletâneas: Schwarcz organizou Um enigma chamado Brasil, Dicionário da República, Agenda brasileira, Cidadania: um projeto em construção; Castro organizou Além do cânone, Textos básicos de sociologia, Introdução às ciências sociais; Lynch organizou Interpretações do Brasil, Pensamento político brasileiro, Visões da independência.

Poderíamos citar outros pesquisadores; mas esses três conjugam a intensa atividade acadêmica com o profundo conhecimento teórico e empírico – incluindo sobre o positivismo.

Em face da importância intelectual e prática do positivismo, esses dez livros com uma profusão de autores e temas deveriam apresentar muitas referências a Comte, Benjamin Constant, Teixeira Mendes, Ivan Lins, Pereira Barreto, Laffitte, Rondon etc., bem como sobre republicanismo, bandeira nacional, filosofia das ciências, teoria do Brasil, abolição, trabalhismo, indigenismo etc. Aliás, não apenas “referências”, mas artigos e capítulos dedicados a isso. Ora, não há nada nesses livros que se refira ao positivismo. Nada.

Apesar da importância do positivismo para as ciências humanas e para a história do Brasil, os organizadores das coletâneas acima decidiram, de maneira muito consciente, que o positivismo não merece ser tratado ou abordado, assim como pesquisadores positivistas não merecem a dignidade de integrar coletâneas. Não se pode dizer que essas ausências se devam à ignorância dos organizadores; com certeza eles rejeitariam ser tratados como ignorantes.

Se a ciência não é apenas intelectual, mas tem profundos aspectos políticos, as decisões dos três pesquisadores acima são motivadas não somente por preferências filosóficas, mas também por interesses políticos. Ausência de referências, impossibilidade de manifestação, silenciamento de perspectivas: isso tem efeitos intelectuais e práticos. Por meio das coletâneas acima, decidiu-se que o positivismo não deve ser conhecido nem ouvido: ele não pode existir. Segundo a gíria identitário-digital, trata-se do mais puro cancelamento.

Essas práticas acadêmicas têm consequências políticas muito diretas e palpáveis. A mais recente consiste no Projeto de Lei 5.883/2025, de autoria do deputado federal Chico Alencar, protocolizado no dia 18 de novembro, em que o carioca propõe que se mude a bandeira nacional, incluindo a palavra “Amor” antes do “Ordem e Progresso”.

A proposta do deputado Alencar é generosa e, considerando a nossa agressiva época, faz sentido e até merece apoio. Na verdade, há vários anos, Alencar se manifesta nesse sentido, integrando um “Movimento Amor na Bandeira”.

Esse grupo refere-se ao positivismo, a Augusto Comte, a Teixeira Mendes; mas muitas das observações que eles fazem sobre o positivismo e os positivistas estão erradas, ao mesmo tempo em que se recusam a ouvir os positivistas. Repetem erros sobre uma doutrina e de seus praticantes, justamente em aspectos centrais para a vida e a prática política do país, mas recusam-se a ouvir alguns dos diretamente envolvidos. A inclusão do “Amor” talvez dê prestígio e votos, mas não impede o cancelamento.

Sem entrar no mérito da questão, Alencar e seu movimento difundem conscientemente dois erros:

  • 1) o “Ordem e Progresso” seria uma corrupção da máxima fundamental do positivismo, “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”;
  • 2) o autor da bandeira, Raimundo Teixeira Mendes, ao resumir a fórmula completa, teria suprimido o “amor” por medo dos militares que proclamaram a República.

Esses dois erros fazem uma barafunda de muitas coisas ruins e algumas boas: ignorância sobre o positivismo e os positivistas; ignorância sobre a Proclamação da República, seus membros, seus ideais; mistificação sobre a monarquia; rejeição ao militarismo (em particular ao de 1964).

É claro que a frase “O amor por princípio…”, sendo filosófico-moral, é mais densa e profunda que o simples “Ordem e progresso”. Entretanto, o “Ordem e progresso” não é um resumo da outra frase, tendo existência por si só, ao representar ideais sociopolíticos. Estreitamente vinculadas, elas têm âmbitos diferentes e, daí, redações diferentes, relativas a situações diferentes. O “Ordem e progresso”, portanto, não é uma corrupção teórica.

Por outro lado, quando ocorreu a Proclamação da República, Teixeira Mendes projetou por si só uma bandeira que foi depois encaminhada ao governo provisório republicano por Benjamin Constant; como este era uma pessoa gentil, pacífica, convergente e extremamente respeitada, a proposta de Teixeira Mendes foi aceita. Portanto, nada de um covarde submetido a brucutus em meio a uma quartelada.

Como positivista, a difusão consciente desses erros causa-me irritação e tristeza. Mas como cidadão brasileiro tenho a sensação de que uma proposta simpática, que poderia suscitar uma boa reflexão e estimular bons sentimentos, apresenta vícios morais e intelectuais bem em sua origem e que traem a intenção da proposta.

Silenciamento, recusa em reconhecer os outros, recusa em ouvir aqueles de quem se fala… no que se refere ao positivismo, como se vê, a regra é o cancelamento, que começa na academia e que, da pior maneira possível, descamba para a política prática.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.