Reproduzimos abaixo o opúsculo n. 256 da Igreja Positivista do Brasil, de 1908, que tem por título "Basta de lutas fratricidas".
Da autoria de Raimiundo Teixeira Mendes e publicado originalmente há quase 120 anos, ele é tristemente atualíssimo e é por isso que o publicamos. Como se pode ler abaixo, sua atualidade reside em particular em que as "lutas fratricidas" que se combatia em 1908 eram (1) estimuladas por mensagens presidenciais que (2) excitavam grupos militaristas.
Esse opúsculo, além de revelar-se atualíssimo, mais uma vez evidencia que - contra o senso comum acadêmico brasileiro - o Positivismo é pacifista e civilista, ou seja, é antimilitarista e contra a violência.
A transcrição do opúsculo foi gentilmente feita pelo Prof. Fernando Pita, da UERJ.
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Nº 256
IGREJA E APOSTOLADO POSITIVISTA DO BRASIL
O Amor por princípio
e a Ordem por base:
o Progresso por fim
Viver
para outrem.
Viver às claras.
Basta de lutas
fratricidas
A propósito da agravação que a mensagem
presidencial veio a produzir na agitação militarista, devida à retomada das
tradições da diplomacia imperial.
Todos os artifícios retrógrados introduzidos depois para impedir
semelhante resultado foram tão impotentes para reanimar o cadáver da guerra
como o do teologismo, mesmo sob pretexto de progresso, e apesar da ausência das
convicções públicas que deviam estigmatizar essa conduta. Em relação ao mais
imoral desses expedientes, ouso proclamar aqui os votos solenes que faço, em
nome dos verdadeiros positivistas, para que os árabes expulsem energicamente os
franceses da Argélia, se estes não a souberem dignamente restituir àqueles.
Ufanar-me-ei sempre de ter, na minha infância, desejado ardentemente o sucesso
da heroica defesa dos espanhóis. (Augusto
Comte – Catecismo Positivista, 13ª Conferência)
Uma
frase pungentíssima e desastradíssima da mensagem presidencial veio
inesperadamente produzir uma agravação na agitação militarista determinada e
entretida pela retomada das tradições diplomáticas peculiares ao tristíssimo
passado imperial do povo brasileiro. Essa frase é tanto mais condenável quanto
forma o mais insólito contraste com as mais nobres aspirações pacíficas da
diplomacia ocidental. Julgamos por isso do nosso dever apelar, ainda uma vez,
para o altruísmo e a razão das classes dominantes, e especialmente do Sr.
Presidente da República, e sobretudo do Sr. Ministro das Relações Exteriores.
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Nesse
intuito, basta recordar a série das publicações em que, desde o seu início, em
1881, o Apostolado Positivista do Brasil tem-se esforçado por fazer chegar ao
público e aos estadistas brasileiros o conjunto dos ensinos de Augusto Comte
acerca da missão pacífica reservada à diplomacia. É incontestável que essa
vulgarização — graças à índole essencialmente humanitária do povo brasileiro,
como de todas as nações ibero-americanas — tem contribuído para conjurar as
mais graves consequências dos extravios militaristas.
Mas
essa influência continua a ser contrariada pela educação metafísica das classes
letradas, educação que as expõe às mais cruéis devastações da política
retrógrada, inaugurada pela sanguinária dominação de Robespierre e desenvolvida
pelo triunfo ainda mais sanguinário do primeiro Bonaparte.
Sem
atenderem para a conduta dos grandes políticos ocidentais desde Henrique IV,
nem para a incomparável evolução dos pensadores modernos, entre os quais basta
citar Leibniz, Kant, Condorcet e Augusto Comte, nem para o irresistível
ascendente da fraternidade universal na massa feminina e proletária, os
políticos brasileiros se deixam fascinar pelas vitórias efêmeras da
retrogradação no Ocidente europeu, no correr do século XIX.
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Para
dissipar essas funestas ilusões, nos limitaremos a lembrar aqui a lista das
publicações a que aludimos. Elas podem ser encontradas em muitas das
bibliotecas públicas do Brasil, além de que várias foram distribuídas pelos
estadistas brasileiros a ocidentais, sobretudo americanos.
A
essa lista, juntaremos apenas 2 ordens de ponderações. Eis a lista de que nos
ocupamos:
Imigração chinesa.
Mensagem ao embaixador chinês em Londres, 1881.
Question
franco-chinoise. Idem, 1881.
Questão de limites
entre o Brasil e Argentina, 1884.
Esboço biográfico
de Benjamin Constant, fundador da República brasileira. Acha-se
aí uma apreciação da diplomacia imperial especialmente da guerra do Paraguai,
1892.
Pelos indígenas
brasileiros, 1894.
À nossa irmã a
República do Paraguai. 1894.
A propos du conflit
hispano-américain, Bulletin 2, 1898.
Sentence arbitrale
de Berne, sur la contestation entre la France et le
Brésil. Bulletin 8, 1900.
A questão do Acre. Boletins
22, 29, 30. 1901, 1903, 1904.
A questão com o
Peru. Boletim 32, 1904.
A República e o
militarismo, 1906.
O militarismo ante
a política moderna, 1907.
A diplomacia e a
regeneração social. I. A missão diplomática, II. A franqueza
diplomática, III A Conferência de Haia em 1907, publicados estes últimos (III)
também em francês, 1907.
Ainda os indígenas
do Brasil e a política moderna, 1907.
Ainda o militarismo
perante a política moderna. A propósito da agitação a que deu lugar a lei
do sorteio, 1908.
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Isto
posto, a primeira das nossas observações atuais deduz-se logo da inspeção da
lista precedente. Ela mostra que as intervenções acerca dos extravios
solidários, diplomáticos e militaristas do governo brasileiro têm se tornado
mais frequentes depois que o Ministério do Exterior foi confiado ao Sr.
Paranhos do Rio Branco. Hora, quando se compara o conceito de que goza o Sr.Ministro
do Exterior, e os seus antecedentes, qual dos presidentes que o têm apoiado, e
quando se considera a situação do Brasil em relação às nações vizinhas, não se
pode ter a mínima dúvida de que é ao atual Sr.Ministro do Exterior que cabe a
responsabilidade capital da política dos governos brasileiros que por ele se têm
guiado, e mesmo a dos governos sul-americanos alarmados. Eis por que devemos dirigir
especialmente este apelo ao Sr.Ministro das Relações Exteriores.
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Ninguém
melhor do que o Sr.Ministro sabe o alcance real dos motivos que determinaram a
sua elevação política. Porque os sucessos brasileiros dos arbitramentos aque
ligou o seu nome podem ser tão legitimamente atribuídos à preeminência do seu
patriotismo e da sua habilidade diplomática, como o fracasso brasileiro do
arbitramento em que figurou o Sr. Joaquim Nabuco pode ser imputado à falta de
civismo e à imperícia deste. Em tais litígios — como em todos os processos —, o
êxito depende sobretudo das disposições dos juízes. A justiça das causas e o
mérito dos negociadores, inseparável daquela, não podem, pois, ser aquilatados
simplesmente pela sentença, frequentemente tão cega como a sorte das guerras.
Aliás,
só por um abuso de linguagem poder seria invocar a justiça em
semelhantes pleitos. Porque as nações ocidentais disputam-se então um
território que elas arrancaram, com requintada crueldade, às ingênuas tribos
fetichistas que o povoavam. Como dizia o velho José Bonifácio, cumpre não
esquecer que todos são usurpadores.
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Semelhante
reflexão mostra logo que o arrastamento com que a turba-multa dos letrados
políticos brasileiros aclamou os sucessos diplomáticos do Sr.Ministro do
Exterior foi devido unicamente à anarquia moral e mental da sociedade
contemporânea, que perdeu a moral e a fé teológicas sem ter ainda achado a
moral e a fé científicas. A marcha do povo brasileiro, lisonjeada no seu amor-próprio
nacional, acompanhou o cegamente as classes dominantes que o desnorteiam em vez
de dirigi lo.
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Tais
foram as circunstâncias que determinaram o último presidente e o seu sucessor,
ligados espontaneamente pelos seus precedentes monarquistas, a confiarem a
conduta da diplomacia brasileira, e mesmo sul-americana, ao Sr.Ministro do
Exterior. Nesta situação excepcional, o Sr.Ministro podia, e pode ainda,
transformar a sua elevação política em pedestal de uma verdadeira glória,
tornando-se o promotor abençoado da paz sul-americana.
A
política positiva não discute a origem das forças sociais, e propõe-se
apenas a dirigir a aplicação dessas forças, segundo os interesses supremos da Humanidade.
E assim tem procedido o Apostolado Positivista do Brasil, desde o seu início.
Fiel
aos ensinos de Augusto Comte, o Apostolado Positivista tem, portanto, apelado
continuamente para o altruísmo e a razão do Sr.Ministro do Exterior,
esforçando-se por patentear e todo o bem que a sua posição lhe proporciona
fazer, toda a glória que daí reverterá para o povo brasileiro e para o seu nome
individual, e assinalado, indiretamente, a gravidade da condenação em que está
incorrendo e fazendo incorrer o povo brasileiro, persistindo na política
militarista do Império.
Da
mesma maneira que quando pela vamos para o altruísmo e a razão do ex-imperador
D. Pedro II, não nos desanima o contraste entre a iminente posição política do Sr.Ministro
do Exterior e a nossa humildade apostólica. Porque somos apenas órgãos, imperfeitíssimos
embora, da elite das almas humanas, mulheres e homens em todos os tempos em
todos os lugares, condensadas pela evolução social em Augusto Comte. Em tais
condições, é essa elite a quem ouviria o Sr.Ministro, e não a nós; como é essa
elite que o Sr.Ministro desconhece quando menospreza as reflexões de que somos
apenas fiéis transmissores.
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Apoiados
em tais convicções, ainda uma vez solicitamos a atenção do Sr.Ministro do
Exterior parar a meditação científica do Passado e a previsão, também científica,
da Posteridade, sem as quais o nosso tempestuoso Presente não pode ser
compreendido, e, portanto, guiado.
A
evolução da Humanidade é regida por leis naturais tão superiores à intervenção
dos homens como as leis astronômicas. Seja qual for o poder de que um povo ou
um estadista pensem dispor, em um momento dado, esse povo e esse homem são
fatalmente dominados pelas leis da evolução social. O homem se agita e a Humanidade
o conduz.
Todo
o poder dos povos e dos homens só lhe permite perturbarem momentaneamente tal
evolução, se lhe for contrário, ou acelerarem-na, se lhe for favorável. Daí
resulta que a Posteridade não poderá nem ser frustrada, nem ser corrompida, os
aplausos e os sucessos do Presente são impotentes para conter ou desviar a obra
secular das gerações.
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Em
virtude dessa evolução, o futuro do povo brasileiro será o que ela determina, e
não o que o amor-próprio dos estadistas atuais pode ambicionar. Assim como o
povo brasileiro quebrou a unidade política da raça lusitana, o mesmo povo
fragmentar se há em nações independentes politicamente, desde que a
fatal vulgarização da poesia, da ciência, e da indústria, houver permitido satisfazer
plenamente às aspirações da fraternidade universal. Igualfuturo aguarda os
grandes Estados atuais, grandes pelo território. É, pois, para o
encaminhamento pacífico desse ideal inevitável de livre união religiosa, que
devem convergir todos os esforços dos verdadeiros estadistas.
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Daí
decorre o dever atual de manter a paz a todo o transe. Só a invasão do
território brasileiro, não contestado e habitado efetivamente por
brasileiros, e não simplesmente explorado por aventureiros, pode justificar
hoje a repulsa pelas armas. Mas, mesmo então, cumpre não proceder para com os
povos mais fracos ou equivalentes, como não se procederia para com os povos
mais fortes. É preciso ter sempre presente a conduta tantas vezes observada e
ainda ultimamente seguida por ocasião da ocupação inglesa da ilha da Trindade.
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Ora,
seria simplesmente quimérico imaginar um ataque dessa ordem por parte das
nações que cercam o Brasil. Lemos o folhetoCorrendo o véu, e essa
leitura basta para mostrar quanto seria fácil ao Sr.Ministro do Exterior
dissipar todas as apreensões ali enumeradas.
A
homogeneidade social dos povos sul-americanos assegura desde logo ao povo
brasileiro, à vista de uma superioridade numérica e de sua posição geográfica,
uma força política que o torna o principal responsável pela página América do Sul.
Acresce que a vulgarização da Religião da Humanidade aqui, vulgarização que não
existe em grau comparável nas outras nações sul-americanas, inclusive o Chile,
apesar dos esforços dos nossos correligionários Lagarrigue, torna essa
responsabilidade ainda mais irrecusável.
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De
sorte que, da elevação moral e política do governo brasileiro depende
essencialmente hoje a dissipação de todas as prevenções e preconceitos nacionalistas
dos povos que rodeiam o Brasil, em relação a este.
Por
outro lado, a política positiva demonstra que, apesar dos manejos quaisquer da
política brasileira, a paz sul-americana poderia ser mantida, se as nações que
rodeiam o Brasil ouvissem os conselhos de Augusto Comte. Mas a falta de
propaganda positivista sistemática nessas nações as expõeàs ciladas de um cego
amor-próprio nacional. E isso constitui uma atenuante para os extravios
políticos dos respectivos governos, atenuante que se torna agravante para a
conduta militarista do governo brasileiro.
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Cremos
que seria inútil insistir mais para patentear ao Sr.Ministro do Exterior quanto
urge que ele coloque a sua elevação política ao serviço real da causa da Humanidade,
que é, ao mesmo tempo, a causa do povo brasileiro. Semelhante atitude lhe granjearia
uma glória imortal; ao passo que a persistência da diplomacia imperial só pode
acarretar uma inevitável condenação por parte da elite dos contemporâneos e do
conjunto da Posteridade, tanto sobre a sua memória, como sobre esta angustiosa
fase
histórica do povo brasileiro.
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Quanto
à nossa segunda ordem de reflexões, refere-se à conduta dos republicanos
brasileiros, isto é, daqueles para os quais a república significa a supremacia
da fraternidade universal, buscando na poesia, na ciência, e na
indústria, os únicos elementos da grandeza nacional.
Os
nossos antecedentes históricos e toda a evolução brasileira e americana, depois
da nefanda guerra do Paraguai, induzem a crer que a agitação militarista atual
e os extravios imperialistas da diplomacia brasileira não terão poder de
suscitar uma nova luta fratricida entre as nações sul-americanas. Entretanto,
essas cruéis circunstâncias bastam para fomentar um sobressalto político e
moral extremamente favorável a todas as perturbações sociais.
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Nessas
condições, devemos recordar que a nenhum patriota, civil ou militar, é
lícito colaborar na política imperialista atual do governo brasileiro, e muito
menos tomar parte em guerras que possam resultar de tal política. Todos os
sacrifícios, pessoais, domésticos, e cívicos, devem ser preferidos, sem
hesitação, a contribuir-se para a renovação das monstruosas lutas que têm
ensanguentado e desonrado a memória dos povos americanos.
Cumpre,
pois estarem todos preparados para recusar obedecer a qualquer ordem do governo
nesse sentido, preferindo os ultrajes de que foi vítima o velho José Bonifácio,
por parte dos seus contemporâneos, e mesmo o martírio de Tiradentes, votado à
infâmia pelos que se proclamavam então os órgãos do povo lusitano. Tudo deve
ser aceito, menos prestar-se a ser instrumento de estadista que se
transformarem em algozes da humanidade e das pátrias sul-americanas.
E
temos fé que os brasileiros de onde não consentiram em ser cegamente arrastados
a macular sacrilegamente, em carnificinas de canibais, o emblema de aspirações
regeneradoras da Humanidade, que Benjamin Constant lhes legou. Para afastarmos
horrorizados tamanha catástrofe, basta a lembrança de que a política imperial
que se tenta reviver conduziu os nossos antepassados a profanarem, em ferozes
guerras fratricidas, civis e sul-americanas, e na persistência dos crimes em
nome da escravidão africana, o símbolo que o velho José Bonifácio lhes dera, a
fim de evocar habitualmente as mesmas aspirações, resumidas desde então na sua
fórmula: A sã política é filha da moral e da razão.
Pela Igreja e Apostolado
Positivista do Brasil,
R. Teixeira Mendes,
Vice-Diretor
Em nossa sede, Templo da Humanidade,
rua Benjamin Constant, nº 30.
Rio, 10 de Moisés de 120 (10 de
janeiro de 1908).
(Publicado
na seção ineditorial do Jornal do Commercio de 11 de janeiro de1908)