Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
23 junho 2025
Décio Villares: "A Humanidade" e variações
07 maio 2025
Diálogo sobre o sincretismo no Positivismo 1
O texto
abaixo corresponde a uma versão editada de um diálogo que ocorreu no dia 6 de
maio de 2025, em um grupo do Whattsapp que trata do Positivismo e da Religião
da Humanidade. Esse diálogo foi motivado por um participante do grupo, um jovem
estudante interessado no Positivismo, que, em meio às conversas do grupo, teve
uma dúvida sobre o sincretismo religioso. As respostas foram dadas por Hernani
Gomes da Costa. Esse diálogo foi tão esclarecedor que julgamos valer a pena
publicá-lo.
O diálogo foi
editado com dois objetivos principais: por um lado, adequar a conversa a uma
versão publicada; por outro lado, preservar a privacidade do estudante.
* * *
Estudante
Uma pergunta,
que pode parecer bobagem. Nas religiões afro-brasileiras é comum o sincretismo
dos santos católicos com os orixás (São Jorge = Ogum etc.) por questões
históricas. No Positivismo em algum momento houve o sincretismo da Humanidade
com a Virgem Maria? Os positivistas podem associar os dois símbolos (Humanidade
e Maria) nos cultos? Seja em particular, seja em público – por exemplo, fazendo
um altar positivista com a imagem de Maria.
Hernani
Excelente
pergunta! O Positivismo procura antes de tudo compreender qual foi o processo
de construção dos símbolos, bem como as razões pelas quais eles se tornam
populares durante um tempo e são em seguida substituídos por outros.
Nesse
sentido, interpretamos a Virgem Mãe como representando o ideal humano que
consiste no máximo de pureza e de ternura juntos. A pureza significa a
compressão do egoísmo e é representada pela idéia da Virgem; a ternura é a
expansão do altruísmo, representada, no caso, pela idéia da mãe. A necessidade
sociológica e moral que criou esse símbolo obedeceu inconscientemente a uma
tentativa de conjugar a pureza e a ternura numa só imagem.
O sincretismo
operou-se em todas as religiões de modo inconsciente e espontâneo, mediante as
associações formadas entre as idéias de vários deuses que se assemelhavam em
seus papéis e personalidade. A proposta do Positivismo é a de tornar esse
processo sincrético algo consciente e deliberado, de modo a assim
sistematizá-lo.
Augusto Comte
manifestou o desejo de que as futuras representações de imagens da Humanidade
tivessem os traços de Clotilde de Vaux. Mas ele também elegeu uma imagem
católica de sua preferência.
Tudo quanto
importa no caso, portanto, é que não haja confusão entre as crenças. Qualquer
símbolo que estimule o amor pode integrar o altar. Seja de que religião for. Mas
esse culto se tornará de fato sobrenatural se os símbolos que adotarmos ainda
se referirem às crenças originais correspondentes aos mitos, tais como eles
foram a princípio imaginados.
Estudante
Compreendo. Então
o sincretismo dentro do positivismo pode ser benéfico se não misturamos os
significados. É necessário ressignificar o símbolo.
Hernani
Sim! O
símbolo pode ser ressignificado de pelo menos duas formas. Mantendo sua identidade original e mudando seu modo de sua existência; de objetiva para
subjetiva. Ou então cultuando-o segundo uma interpretação
nova. Vejamos um exemplo. Podemos historicamente cultuar Prometeu na
qualidade de uma criação mítica da Humanidade que veio a compor certa religião.
Nesse caso mantivemos o conteúdo original da idéia de Prometeu, e apenas
mudamos sua existência, de objetiva para subjetiva. Mas podemos também ver
Prometeu como símbolo que representa o primeiro ser humano a obter fogo através
de fricção. Nesse último caso o símbolo de Prometeu sofreu uma mudança de
significado, passando a representar uma outra idéia. (Citei Prometeu pelo fato
de ele representar o primeiro dia do ano no Calendário Positivista concreto).
28 agosto 2024
Programa republicano mínimo – Orientações para o voto no dia 6 de outubro
IGREJA POSITIVISTA VIRTUAL
Programa republicano mínimo
Orientações para o voto no dia 6 de outubro
1. Introdução:
a necessidade de critérios para escolher candidatos
Neste ano, no dia 6 de outubro, teremos eleições
municipais, em que a população brasileira elegerá seus novos prefeitos e
vereadores; desde o dia 16 de agosto temos campanha eleitoral. Os partidos
políticos, a Justiça Eleitoral, os meios de comunicação e vários grupos da
sociedade civil afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de
maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente,
para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a
“consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”. No máximo há a afirmação de
que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso
querendo dizer que os candidatos devem pensar e agir de maneira semelhante aos
eleitores – o que, dizendo com clareza, está muito distante dos verdadeiros
interesses sociais.
Com o objetivo de auxiliar a reflexão pública e, na medida
do possível, orientar nossos concidadãos eleitores na escolha de candidatos a
prefeito e a vereador, apresentaremos neste documento alguns critérios positivos e critérios negativos – ou seja, opiniões e comportamentos que os candidatos
devem apresentar para serem escolhidos,
bem como opiniões e comportamentos que são motivos para rejeitar candidatos.
Este manifesto é
dirigido a todos e todas os brasileiros e brasileiras, nossos concidadãos
eleitores e nossas concidadãs eleitoras.
Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente:
mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso
indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.
Antes, porém, é importante expor os fundamentos políticos,
sociais e morais dos critérios que apresentaremos.
2. A
política positiva e a república
Desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma República.
Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele
é um dos mais densos e importantes na vida de qualquer cidadão. A noção de
república é um ideal: nem sempre esse
ideal realiza-se na prática, mas isso não é motivo para desvalorizar o ideal,
nem para rejeitá-lo. Vejamos, então, quais são os elementos desse ideal.
O sentido fundamental da república é o bem comum:
efetivamente se dedicar ao bem-estar
coletivo, superando o individualismo,
o egoísmo, os particularismos, isso é ser republicano. Além disso, a
república também se opõe à monarquia e, portanto, à sociedade de castas; em
outras palavras, na república o valor de
uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em
que nasceu (pelo “berço”).
Mais importante do que isso, a dedicação ao bem comum
significa a subordinação da política à
moral, ou seja, a subordinação da política aos princípios e valores maiores
da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à
Humanidade. Somente assim a atividade política pode ser entendida como a
dedicação ao bem comum e, a partir disso, ser fiscalizada e responsabilizada.
Disso se seguem várias conseqüências. A primeira delas é
que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração. A fraternidade universal é um valor
básico: como todos devem orientar suas condutas para a melhoria de vida de todos,
o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de
todos são pilares da vida coletiva. Daí se segue também que as relações sociais
têm que ser pacíficas: qualquer forma
de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a
fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às
discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio
ambiente e, claro, aos animais.
Uma segunda conseqüência é que, embora toda sociedade
moderna seja composta por patrícios e proletários, a maior parte da sociedade é
composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores) e os esforços sociais
têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o
objetivo que deve orientar a ação dos patrícios.
A regra republicana básica é o “viver às claras”: cada um deve adotar
valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis e de fato viver conforme
esses valores. No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às
claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, ou seja,
são passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. A
publicidade dos atos e das motivações é a regra, nunca a exceção. Como
conseqüência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o
prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.
A instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: o aconselhamento não pode nem
precisa da violência do Estado para fazer-se valer, nem o Estado pode
condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Isso é o que se
chama vulgarmente de “laicidade”; uma de suas conseqüências é que sacerdotes devem manter-se afastados do
Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar
sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão. O afastamento dos
sacerdotes em relação à política não quer
dizer alienação nem indiferença; quer dizer que, como sacerdotes, não podem
trabalhar para o Estado.
A separação entre igreja e Estado é a base das liberdades
fundamentais: são as liberdades de crença, de manifestação e de associação,
assim como o direito de ir e vir, o habeas
corpus e o devido processo legal. Adicionalmente, os órgãos do Estado –
especialmente os que são responsáveis diretos pelo atendimento à população – e
os servidores públicos devem ser valorizados, mantendo-se sempre também a
dignidade da chamada iniciativa privada.
Finalmente, as instituições sociais fundamentais devem ser
valorizadas, a começar pela família.
Entre a família e a sociedade política (as pátrias) as relações são de
complementaridade, não de oposição; o papel da família é o de desenvolvimento
afetivo e de educação moral, preparando os cidadãos para a vida na sociedade
mais ampla; o papel da sociedade política é o de realizar os trabalhos práticos
necessários para manter e desenvolver a vida de todos. Como é mais ampla, a sociedade política regula e protege a
família. As pátrias, por sua vez, devem todas unir-se em prol da
Humanidade. Assim como os proletários devem ser valorizados e respeitados, as
mulheres devem ser valorizadas e ter sua dignidade mantida e afirmada.
Esses valores e essas práticas constituem muito do que é a
república, embora não a esgotem. Tudo isso almeja a realização dos um dos
supremos ideais dos brasileiros e de todos os seres humanos, que é a união da
ordem com o progresso. Como dissemos em outro manifesto[1],
quando a ordem e o progresso ficam separados, eles tornam-se antagônicos um em
relação ao outro, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada
e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união
das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e
valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste
na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da
ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser
entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância. O respeito à
ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma
forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado
que se submete ao seu comandante.
3.
Recomendações positivas: procurar
candidatos com este perfil
Considerando os valores e os princípios indicados acima,
recomendamos que se vote em
candidatos a prefeito ou a vereador que apresentem estas características:
-
respeitem e façam valer
a separação entre igreja e Estado (a chamada “laicidade do Estado”)
-
respeitem a dignidade
humana e a fraternidade universal
-
respeitem a dignidade
do espaço público e das instituições republicanas
-
respeitem a dignidade e
valorizem as condições de vida da população brasileira, em particular dos
trabalhadores e dos mais pobres, além dos povos indígenas
-
respeitem a dignidade e
valorizem a família, independentemente da orientação sexual de cada família
-
respeitem e valorizem a
dignidade das mulheres
-
tenham histórico de
combate ao racismo e a outras discriminações
-
tenham histórico de
defesa da dignidade e das condições de vida dos animais
-
tenham histórico de
defesa do meio ambiente
4.
Recomendações negativas: recusar
candidatos com este perfil
Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos
que não se vote em candidatos a
prefeito ou a vereador que tenham um histórico pessoal e intelectual contrário
ao republicanismo. De modo específico, rejeitamos
candidaturas que apresentem estas características:
-
sejam membros de
cleros, ou seja, sacerdotes, padres, pastores ou equivalentes
-
promovam o clericalismo
nas funções públicas (o uso do Estado para promover cultos e/ou doutrinas)
-
desvalorizem os
problemas sociais e/ou criminalizem a pobreza
-
promovam a cultura da
violência, em particular estimulando a difusão e o uso de armas de fogo pela população
civil
-
promovam valores e
práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas
identitárias
-
neguem os problemas
ambientais (os “negacionistas climáticos”)
-
promovam a “cultura do
cancelamento”
-
promovam a “cultura da
baixaria”
-
tenham histórico de
ligação com o crime, na forma de apoio ou participação em milícias; de apoio ou
participação no crime organizado; de irresponsabilidade pessoal
-
promovam o racismo, a
misoginia e preconceitos diversos
Curitiba, 28 de agosto
de 2024.
[1] Abaixo-assinado A bandeira nacional republicana não é fascista, de 26 de outubro de 2022, disponível em: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657.
14 maio 2024
Manter a memória é preservar a Humanidade
24 janeiro 2024
Necessidades individuais satisfeitas pelas religiões
No dia 23 de Moisés de 170 (23.1.2024) iniciamos as atividades da Igreja Positivista Virtual no ano de 170 (2024). Nessa ocasião, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência, dedicada ao conjunto do regime.
Antes da leitura comentada, indicamos diversas atividades realizadas no período do recesso:
- a comemoração da Festa da Humanidade (1º de Moisés/1º de janeiro);
- a celebração do nascimento de Augusto Comte e também a celebração de Rosália Boyer (19 de Moisés/19 de janeiro);
- a criação da coleção "Positivism" na biblioteca virtual Internet Archive.
Depois desses anúncios, lembrando que o Positivismo é uma religião cívica, lemos o manifesto intitulado "Pela república, a favor da sociocracia, contra o terrorismo fascista", lançado em 8 de Moisés de 170 (8.1.2024) (disponível aqui: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/01/manifesto-pela-republica-favor-da.html).
Na parte do sermão, comentamos as necessidades individuais satisfeitas pelas religiões. As anotações que serviram de base para essa exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.
A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (disponivel aqui: https://l1nq.com/psLt3) e Igreja Positivista Virtual (disponível aqui: https://acesse.one/uBHLP).
A leitura do manifesto iniciou-se aos 13 min 56 s.
A leitura comentada do Catecismo positivista começou aos 34 min 25 s.
O sermão começou em 1h 12 min 05 s.
* * *
-
Há algumas semanas tivemos uma
observação, que é também uma espécie de dúvida, apresentada por um jovem que
tem estudado o Positivismo:
o Por
vezes as teologias obtêm e mantêm seus aderentes devido à necessidade de muitos
indivíduos de verem-se tutelados integralmente, o tempo todo, por entidades
todo-poderosas
-
Em primeiro lugar, a percepção de
que há teológicos que precisam desse tipo de tutela não pode conduzir-nos à
ilusão, ou até ao preconceito, de que todos os teológicos buscam essa tutela
o Em
primeiro lugar, devemos lembrar que há diferentes tipos de teologia e que,
portanto, elas geram ou estipulam diferentes tipos de comportamentos
§ A
busca de tutela é mais própria ao monoteísmo – e, em particular, ao monoteísmo
cristão – que ao politeísmo, em que os vários deuses têm comportamentos
díspares mas que, com freqüência, não são exatamente tutelares (e as tutelas
são particulares a grupos ou âmbitos específicos)
o Mas,
de qualquer maneira, mesmo no caso do monoteísmo cristão, diferentes tradições
e diferentes indivíduos têm relações diferentes com a divindade
§ A
relação de submissão solicitante mantém-se em geral, mas é claro que, por um
lado, há indivíduos que requerem menos a tutela, assim como, por outro lado, há
indivíduos que solicitam mais a tutela
-
A busca de uma divindade todo-poderosa
que tutele o tempo todo os indivíduos é característica de naturezas mais
frágeis, por vezes em termos objetivos (isto é, pessoas que vivem na pobreza ou
na miséria), mas com freqüência em termos subjetivos
o Em
face disso, duas reflexões surgem:
§ (1)
Pessoas mais frágeis precisam de mais apoio
·
Mas não devemos criticar essa
necessidade em si mesma: isso é uma questão de respeito às características
pessoais de cada um e mesmo às condições sociais em que vivem, além de isso
evocar a regra do dever altruístico: a dedicação dos fortes pelos fracos
§ (2)
Mas, por outro lado, em certas situações, essa busca de tutela tem de fato um
aspecto de infantilidade, em que um adulto busca o apoio subjetivo de uma
figura paterna (ou, mesmo, em termos mais amplos, de uma figura parental)
o Ora,
como indicamos antes, diferentes religiões estimulam diferentes sentimentos e,
daí, conduzem a diferentes comportamentos: os monoteísmos efetivamente
estimulam mais a busca de uma tutela absoluta:
§ As
figuras patriarcais, tutelares e vingativas do judaísmo e do cristianismo, a
divindade punitiva do Islã, mesmo as ambigüidades afetivas e apocalípticas da
trindade cristã
§ Tudo
isso, próprio a uma época que já se encerrou há muito e muito tempo, ainda hoje
estimula bastante muitos comportamentos irresponsáveis, seja porque são
“fanáticos”, seja porque são infantilizados
-
Feitos esses comentários, devemos
ter cuidado com outra coisa: não devemos apenas criticar a situação dos
monoteístas que buscam a tutela; devemos considerar que essa busca em si mesma
corresponde a uma necessidade humana verdadeira e legítima, mas cuja solução
teológica (em particular monoteísta), como de hábito, é inadequada
o Antes
de prosseguirmos, devemos lembrar que as divindades monoteicas – seja a do
judaísmo, seja a do catolicismo, seja a islamismo – estão radicalmente
separadas dos seres humanos, não precisam dos seres humanos para nada e, ante
elas, os seres humanos estão solitários e desamparados
§ A
solidariedade terrena é certamente estimulada pelo altruísmo inato ao ser
humano, mas, do ponto de vista dogmático, tal solidariedade é apenas uma forma
de aumentar o exército de indivíduos isolados (e interesseiros) perante a
divindade que não tem nenhum interesse real em nós
-
A noção de “Humanidade” tem, e tem
que ter, um aspecto de conforto, de apoio; esse elemento é tanto objetivo
quanto subjetivo
o Antes
de mais nada, devemos ter clareza de que o apoio fornecido pela Humanidade é de
caráter relativo e não absoluto, ou seja, não é todo-poderoso e em larga medida
depende das ações dos seres humanos
o Augusto
Comte referia-se por vezes à Humanidade como a nossa “providência real”: esse
aspecto de “providência” já deixa claro que é ela, a Humanidade, que nos cria e
que, em última análise, fornece-nos tudo aquilo de que precisamos
§ A
imagem que representa a Humanidade (a mulher com cerca de 30 anos, segurando em
seu colo um bebê) sugere diretamente o apoio, o carinho, o afeto, o conforto
que a Humanidade provê e inspira-nos
o Mas
a Humanidade é relativa e é composta; como dizia Augusto Comte a partir de
Dante, ela é “filha de seu filho”: a Humanidade tem vários âmbitos de atuação
-
Por um lado, a Humanidade é um ser
composto: seus mínimos elementos são as famílias e as mátrias; nas famílias e
nas mátrias – e também, cada vez mais, no que se chama atualmente de “sociedade
internacional” – buscamos e obtemos os apoios de que necessitamos
o O
centro moral de cada família é a mulher, seja como esposa, seja como mãe:
assim, o conforto moral que ela provê é uma prefiguração da deusa positiva
o Além
disso, em parte generalizando o apoio doméstico, em parte solucionando as
dificuldades que, concretamente, todos podemos enfrentar na obtenção de apoio e
amparo doméstico, Augusto Comte elaborou a concepção dos “anjos da guarda”
§ Os
anjos da guarda consistem precisamente naquelas figuras que nos ampara(ra)m
afetivamente e que, por isso, são merecedoras da nossa idealização pessoal
§ Essas
idealizações são esforços conscientes da nossa parte de homenagear essas
figuras, estabelecendo-as como importantes e poderosos apoios subjetivos em
nossas vidas, o que resulta, além disso, em estímulos contínuos para o nosso
desenvolvimento e aperfeiçoamento moral, intelectual e prático
-
Por outro lado, a ação da Humanidade
é tanto objetiva quanto subjetiva:
o Citamos
há pouco as famílias e as mátrias (e até a sociedade internacional): elas têm
um caráter objetivo, ao fornecer-nos o amparo material em nossas vidas
o Mas
as famílias, as mátrias e a Humanidade, evidentemente, também atuam de maneira
subjetiva, ao estimular, alimentar e regular nossos sentimentos e nossas idéias
§ Aliás,
é exatamente dessa forma e a partir dela – isto é, da característica subjetiva –
que cada um de nós pode ter o apoio e o amparo da Humanidade:
·
Seja por meio da inspiração da
figura abstrata da Humanidade, seja por meio da ação mais direta e concreta das
nossas mães, das nossas esposas, das nossas irmãs, a Humanidade acolhe-nos e
conforta-nos
·
Por outro lado, as famílias, as
mátrias, a Humanidade inspiram-nos a noção de dever, isto é, de
responsabilidades de todos para com todos, em
particular dos fortes para com os fracos
o O
resultado dos aspectos objetivos e subjetivos é que a Humanidade:
§ Conforta-nos
ativa e passivamente, direta e indiretamente
§ Cria,
mantém e desenvolve as condições para esse conforto
§ Esse
conforto não é só subjetivo, mas é também objetivo, na medida em que a
realidade humana não é a de um isolamento individual radical, mas é a de
relações permanentes por todos os lados – relações que, aliás, não se limitam
aos seres humanos, mas estendem-se aos animais domésticos e, por meio do
fetichismo, também a muitos objetos, ao Sol, à Lua, ao fogo etc.
§ Mas
temos que insistir neste ponto: o conforto objetivo e subjetivo provido pela
Humanidade estimula e, na verdade, exige a noção de dever, isto é, de
responsabilidade de todos para com todos
-
Como uma decorrência do aspecto
anterior (objetividade/subjetividade), a ação da Humanidade dá-se tanto no
presente quanto, ainda mais, no passado e no futuro:
o A
distinção entre passado/futuro e presente conduz-nos à distinção entre a vida
objetiva e a vida subjetiva de uma forma mais precisa, ao indicar que na vida
subjetiva estão todos os seres humanos convergentes que já morreram, além de
aqueles todos que ainda não nasceram; na vida objetiva estão os servidores da
Humanidade, os seus agentes concretos, que são todos os indivíduos que atuam em
prol dos seres humanos e das coletividades
§ Não
existem indivíduos por si sós; o que há são integrantes de famílias e de
mátrias, que também colaboram para a Humanidade
o Por
um lado, os indivíduos, ou melhor, os agentes concretos da Humanidade são os
titulares de deveres
§ Esses
deveres, aliás, mudam de acordo com os grupos sociais que se considera; quanto
mais recursos tiverem os grupos sociais, maiores são seus deveres e, portanto,
maiores são as cobranças que devem ser feitas sobre eles
§ De
qualquer maneira, como já indicamos algumas vezes: entre os deveres que cabem a
todos estão os de atuarem em prol dos demais (é o objetivo concreto do “viver
para outrem”) e, portanto, o de atuarem objetivamente como a providência que é
a Humanidade
o Por
outro lado, os agentes concretos da Humanidade são confortados, inspirados,
alimentados e orientados pela Humanidade em suas ações
§ A
lei do dever, isto é, o “viver para outrem”, é também um ideal, um objetivo
geral que orienta a vida de cada um de nós
§ Assim,
sob a inspiração da Humanidade, colaboramos ativamente para o melhoramento e o
enriquecimento da vida de todos como, em termos “puramente” individuais, temos
sempre objetivos de vida: não ficamos nunca sozinhos no universo nem ficamos
desorientados em nossas vidas
-
Para concluir:
o Como
dissemos antes, diferentes religiões estimulam diferentes traços da natureza
humana
o Os
monoteísmos estimulam com freqüência – e talvez de maneira particular – a busca
do tutelamento individual, ou melhor, a busca de uma tutela infantilizante
o Mas
se a tutela infantilizante é uma solução que, no final das contas, é
degradante, ainda assim podemos considerar que ela baseia-se por vezes em
necessidades legítimas – de apoio, de amparo, até mesmo de orientação na vida
o A
respeito de todos esses aspectos, a noção e a realidade da Humanidade
satisfazem mais e melhor os seres humanos:
§ Os
vários níveis concretos da Humanidade apóiam-nos e amparam-nos de verdade
§ A
noção abstrata de Humanidade estabelece a lei do dever, que permite o apoio e o
amparo e que dá sentido à vida de cada um de nós
§ Essas
diversas concepções podem parecer muito abstratas à primeira vista, mas elas
são radicalmente concretas: nossas mães são nossos amparos; cada família, cada
mátria, cada indivíduo, cada animal, cada fetiche atua para melhorar nossas
vidas: é assim, e é só assim, que age a Humanidade e que é possível termos
apoio e amparo
·
Inversamente, cada ser humano que
atua de maneira egoística e/ou destrutiva age contra a lei do dever e contra a
Humanidade