Reproduzimos abaixo alguns trechos iniciais da grandiosa última obra de Augusto Comte, a sua Síntese subjetiva (1855), que, planejada para ter quatro volumes, ficou apenas em seu volume inicial, dedicado à lógica.
Os trechos reproduzidos abaixo são alguns dos que foram inicialmente selecionados, indexados e traduzidos por Luís Bueno Horta Barbosa; eles apresentam o conceito positivo de lógica, com as necessárias reflexões teóricas e históricas que o justificam. Como se verá, a partir de um entendimento real do ser humano (afetivo, prático e intelectual, em sua interação com o mundo e com o próprio ser humano), a lógica não é reduzida à operação intelectualista de símbolos, mas é ententendida como um instrumento que se vale de diversos recursos para auxiliar o ser humano em suas atividades.
* * *
Instituição da Lógica Positiva
Definição
normal da lógica
“Para caracterizar a lógica relativa
que convém à síntese subjetiva, é preciso comparar a sua definição normal com o
esboço que formulei, seis anos atrás, na introdução da minha obra principal.
Guiado pelo coração, eu já ali proclamei e mesmo sistematizei a influência
teórica do sentimento. Uma apreciação mais completa fez-me também consagrar, no
mesmo lugar, o ofício fundamental das imagens nas especulações quaisquer. Sob
este duplo aspecto, o referido esboço foi satisfatório pois abraçou o conjunto dos meios lógicos, retificando
a redução que deles fazia a metafísica que só empregava os sinais. Toda a
imperfeição desse esboço consiste em que o destino de tais meios achou-se excessivamente
restrito, por não me haver eu desprendido bastante dos hábitos científicos.
Parece, por essa definição, que a verdadeira lógica limita-se a desvendar-nos
as verdades que nos convêm, como se o domínio fictício não existisse para nós,
ou não comportasse nenhuma regra. Nós devemos sistematizar tanto a conjectura
quanto a demonstração, votando todas as nossas forças intelectuais, bem com as
nossas forças quaisquer, ao serviço continuo da sociabilidade, única fonte da
verdadeira unidade.
Reconstruída convenientemente, a
definição da lógica, incidentemente formulada na pagina 448 do tomo primeiro da
minha Política positiva, exige duas
retificações conexas, não no que se refere aos meios mas sim no que se refere
ao objetivo. Deve-se substituir nela desvendar
as verdades por inspirar as concepções,
para caracterizar a natureza essencialmente subjetiva das construções
intelectuais, e a extensão total do seu domínio, não menos interior do que exterior.
Com esta dupla retificação, a minha fórmula inicial torna-se plenamente
suficiente. Então somos finalmente conduzidos a definir a lógica: O concurso normal dos sentimentos, das imagens,
e dos sinais, para inspirar-nos as concepções que convêm às nossas necessidades
morais, intelectuais e físicas. Não obstante, esta definição exige duas explicações
conexas, a primeira relativa aos meios que ela indica, a segunda relativa ao
fim que assinala” (Síntese subjetiva,
p. 26).
Apreciação
dos meios lógicos
“Considerada sob o primeiro aspecto,
basta que essa definição se ache convenientemente ligada á teoria fundamental
da natureza humana. Segundo esta teoria, o conjunto do cérebro concorre para as
operações quaisquer da sua região especulativa. Elaboradas pelo espírito sob o
impulso do coração assistido do caráter, todas as nossas concepções devem trazer
a marca destas três influências. À frente dos meios lógicos, é preciso pois
colocar os sentimentos que, por fornecerem ao mesmo tempo a fonte e o destino
dos pensamentos, servem-se da conexidade das emoções correspondentes para
combiná-los. Nada poderia substituir esta lógica espontânea, à qual se devem
sempre, não somente os primeiros sucessos dos espíritos sem cultura, mas também
os mais poderosos esforços das inteligências bem cultivadas.
Não podemos sistematizar a lógica,
como não podemos regular o conjunto da existência humana, senão subordinando os
dois outros meios essenciais a este processo fundamental, único comum a todos
os modos e graus do entendimento. As operações intelectuais, limitadas a este
regime, poderiam ser fortes e profundas; mas ficariam vagas e confusas, porque
ele não comporta a precisão e a rapidez exigidas por tais operações, visto a
impossibilidade de se tornar ele bastante voluntário. Juntas aos sentimentos,
as imagens tornam o espírito mais pronto e mais nítido, por ser o uso delas
mais facultativo. Elas combinam-se com eles, mediante a ligação natural entre
cada emoção e o quadro da sua realização. Toda a eficácia delas resulta desta
conexidade, que permite ás imagens evocar os sentimentos dos quais elas
inicialmente derivaram.
Sob tal assistência, o coração
institui um segundo regime lógico mais preciso e mais rápido do que o primeiro,
mas menos seguro e menos poderoso, no qual as concepções formam-se pela combinação
das imagens. Uma espontaneidade menor distingue este modo do precedente e não
lhe permite uma equivalente generalidade, embora ele surja sem cultura. Nunca
ele basta para tornar as deduções, as induções, ou as construções, tão prontas
e tão nítidas quanto o exige o seu destino estético, teórico ou prático. Elas
só podem preencher estas condições juntando o socorro dos sinais propriamente
ditos ao poder dos sentimentos assistidos das imagens. Tal é o complemento
necessário da verdadeira lógica, inteiramente esboçada na animalidade, mas só
desenvolvida pela sociabilidade” (Síntese
subjetiva, p. 27).
A
teoria lógica dos metafísicos
“Devemos considerar a teoria lógica
dos metafísicos como caracterizando-lhes ao mesmo tempo a impotência para regularem
o estado social e inaptidão para conceberem-na. Antes do surto deles na Grécia,
o teologismo tinha tido os seus vícios teóricos espontaneamente compensados
pelo seu destino prático, embora o seu método seja tão pessoal quanto o do
ontologismo. Todos os perigos desse método desenvolveram-se quando a cultura
intelectual passou dos padres para os filósofos, os quais, apesar das suas
tendências pedantocráticas, não puderam instituir a especulação abstrata senão
afastando o ponto de vista coletivo. Uma intuição necessariamente individual,
na qual a inteligência esquecia ao mesmo tempo a sua subordinação ao sentimento
e o seu destino para a atividade, foi então erigida em estado normal da razão
teórica. Nada pode caracterizar melhor esta degradação do que a sistematização
da lógica pelo emprego exclusivos dos sinais, afastando os sentimentos e mesmo
as imagens. Ela constituiu a primeira e principal manifestação da doença
ocidental, na qual o homem isola-se da Humanidade” (Síntese subjetiva, p. 31).
A
elaboração dos pensamentos pelos sentimentos auxiliados pelos sinais e pelas imagens
“Em virtude desta explicação, a
sistematização lógica é devida, tanto quanto a unidade geral, a preponderância
do coração sobre o espírito. Devemos considerar os sinais e as imagens como auxiliares
dos sentimentos na elaboração dos pensamentos. Esta assistência acha-se assim
fornecida pelas duas partes essenciais do aparelho intelectual, respectivamente
consagradas uma à concepção, a outra à expressão, sendo que esta exige sempre a
ação. Toda meditação que não produz imagem é incompleta, e toda contemplação torna-se
confusa sem semelhante guia. Uma e outra são, pois, caracterizadas pelas imagens,
cuja consideração, ativa ou passiva, forma o principal domínio do espírito
interiormente dirigido pelo coração. Uma última função torna-se então
necessária para transmitir ao exterior o resultado geral da elaboração
realizada no interior. Referidos a este destino, do qual se deriva a sua reação
mental, os sinais adquirem a sua principal dignidade, visto caber-lhes o
privilegio de instituir, entre o Grão-Ser e os seus servidores, as comunicações
que proporcionam, a estes os elementos, àquele o produto, do trabalho
intelectual” (Síntese subjetiva, p. 33).
Apreciação
do objetivo da lógica
Disciplinar
a inteligência
“Considerada quanto ao seu fim, a
lógica teve de ser ao mesmo tempo a mais antiga e a mais viciosa das
construções filosóficas. Ela quis diretamente regular o elemento médio da existência
humana separando-o da sua fonte social e do seu destino prático. Ciência, a
lógica pôs o aforismo fundamental que subordina a ordem intelectual à ordem física,
sem daí concluir que o conhecimento da primeira exigia a apreciação da segunda,
cujo estudo achava-se então limitado aos fenômenos mais simples. Arte, ela não
pôde instituir mais do que um vão aparelho de regras metafísicas, que não comportavam
outra eficácia, senão a de compensar, por alguns hábitos de generalidade, a
especialidade necessária da positividade preliminar. Por ter renunciado ao domínio
poético, a lógica, na sua exclusiva preocupação da verdade, não tardou a
sentir-se incapaz de iniciativa, e contentou-se com sistematizar a aptidão,
mais nociva do que útil, de provar sem achar” (Síntese subjetiva, p. 34).
Impossibilidade
de disciplinar a inteligência antes do positivismo
“Na realidade não se podia instituir
a lógica antes que a construção da religião positiva tivesse essencialmente
terminado a iniciação humana. Mas alcançado esse termo, uma solução decisiva
torna-se possível, e mesmo oportuna, para o grande problema que a Idade Média
pôs, por um esboço provisório, visando regular as forças quaisquer” (Síntese subjetiva, p. 35).
Em
que consiste a dificuldade dessa solução
“Vista no seu conjunto, a
dificuldade consiste sobretudo em disciplinar o espírito, já porque ele foi o
elemento mais perturbado pela revolução moderna, já porque é preciso colocá-lo
em condições de assistir ao principio regenerador na sistematização universal” (Síntese subjetiva, p. 35).
Verdadeiro
destino da inteligência
“Reduzida ao seu verdadeiro destino,
a inteligência deve ajudar o sentimento a dirigir a atividade: este oficio basta
para instituir o regime mental. Então o espírito, renunciando à estéril
independência sonhada pelo orgulho metafísico, coloca a sua verdadeira grandeza
na digna submissão à ordem fundamental que nós devemos suportar e modificar.
Guiada pelo espetáculo exterior, a inteligência adapta a marcha das suas
concepções à marcha dos fenômenos, cujos estados futuros ou passados podem ser
assim julgados por meio das nossas operações interiores, visto a perpetuidade
das duas economias paralelas. Ela reconheceu que esta correspondência nunca pode
ser absoluta; ela aspira instituí-la apenas no grau que o exigem as nossas
verdadeiras necessidades” (Síntese
subjetiva, p. 35).