Mostrando postagens com marcador Criticidade. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Criticidade. Mostrar todas as postagens

04 novembro 2021

Augusto Comte e militância editorial na edição nova de “Os pensadores”

          A Folha de S. Paulo recentemente lançou uma nova edição da famosa e importante coleção “Os pensadores”. É uma coleção bonita, bem acabada, com volumes extremamente bem produzidos: papel de qualidade, capa dura, artes agradáveis nas capas. Muitos dos volumes são sumamente interessantes e informativos; entre os 30 volumes dessa nova edição figura, como segundo publicado, uma obra de Augusto Comte, o seu Discurso sobre o espírito positivo. A inclusão de Comte e, em particular, desse volume específico, suscitam algumas reflexões; mas, para tratarmos disso, temos antes que considerar o conjunto da nova coleção.

1. Sobre o viés identitário-crítico-militante da nova coleção “Os pensadores”

A coleção foi lançada em 24 de outubro de 2021, em 30 volumes, com os números 1 e 2 lançados promocionalmente juntos, como é habitual; são os volumes dedicados respectivamente a Platão (A República) e a Augusto Comte (Discurso sobre o espírito positivo)[1]. Na página eletrônica promocional (https://pensadores.folha.com.br/index.html) não há indicação de quem seria o seu organizador (está na moda falar-se em “curadoria”); na página dos volumes impressos dedicada aos dados bibliográficos há apenas a menção às responsáveis pela “Organização geral do projeto”: Ana Paula Duarte, Letícia Carvalho e Mariana Dalmaso, as três do jornal Folha de S. Paulo. Sobre Letícia Carvalho e Ana Paula Duarte obtemos informações apenas na matéria propagandística de outra coleção do jornal, lançada no início de 2021 e dedicada a fotografias (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/02/colecao-de-livros-da-folha-revisita-fotos-memoraveis-do-jornal-dos-ultimos-100-anos.shtml): Carvalho é “gerente geral de marketing” e Duarte é analista de projetos. A partir de seu perfil na rede Linkedin (https://br.linkedin.com › in › mariana-dalmaso-603471133), descobrimos que Mariana Dalmaso é “analista de marketing sênior”. Como é difícil ver de que maneira especialistas em propaganda teriam qualificações para decidir questões de filosofia, o resultado é que simplesmente não é possível saber quem de fato organizou a coleção; todavia, na absoluta ausência de indicações de quem de fato selecionou os volumes da presente coleção e com quais critérios, resta a essas três profissionais os ônus das escolhas efetivamente feitas.

Vale a pena prestarmos atenção ao nome da coleção: é “coleção Folha Os Pensadores”. Bem vistas as coisas, não se trata de uma edição nova de “Os pensadores”, anteriormente publicada pela editora Abril e subsidiárias; de fato, é uma coleção inteiramente nova. Assim, o que a Folha de S. Paulo fez foi valer-se de um nome já consagrado para lançar e divulgar o seu próprio projeto comercial-editorial (e político).

Dito isso, a nova coleção distingue-se bastante das edições anteriores, seja pela quantidade de volumes, seja pelos títulos incluídos.

Em relação à quantidade de volumes, ela é bastante limitada: pelo menos em uma primeira leva, são apenas 30, o que a distingue muito das edições anteriores, em particular da primeira e da segunda, que tiveram mais de 60 volumes, alguns com obras de vários autores encartados em um único livro.

Em relação aos títulos incluídos, eles chamam a atenção por serem inovadores em vários aspectos: por um lado, em vez de os volumes publicarem excertos de várias obras (às vezes artigos isolados), com ou sem traduções de obras completas, a nova edição publica um único título de cada autor. Por outro lado, autores que anteriormente já haviam sido publicados receberam traduções de novos títulos, como nos casos de Augusto Comte – que, por exemplo, recebeu uma nova tradução do Discurso sobre o espírito positivo (de 1844, até então publicado apenas pela Martins Fontes), em vez de dos dois primeiros capítulos do Sistema de filosofia positiva (de 1830-1842, vulgarmente chamado de Curso de filosofia positiva), dos 2/3 iniciais do capítulo 1 do Discurso sobre o conjunto do Positivismo (de 1848) e da integralidade do Catecismo positivista (de 1853). Por fim – e isto é o mais importante –, vários “novos” autores foram incluídos, resultando em que, embora o conjunto da seleta de título não seja muito coerente, o viés geral é bastante claro: trata-se de uma coleção organizada para ser “crítica” e militante, com um certo pendor identitário.

O viés identitário-crítico-militante salta aos olhos com os seguintes autores e títulos:

  • bell hooks – Ensinando a transgredir (v. 3)
  • Voltaire – O preço da justiça (v. 6)
  • Michel Foucault – A sociedade punitiva (v. 9)
  • Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres (v. 10)
  • Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens (v. 11)
  • Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos (v. 14)
  • Carter G. Woodson – A (des)educação do negro (v. 16)
  • Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro abolicionista (v. 20)
  • Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária (v. 21)
  • John Stuart Mill – Sobre a liberdade (v. 24)
  • Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão (v. 25)
  • Edison Carneiro – Ladinos e crioulos (v. 27)
  • Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo (v. 28)

A seqüência de títulos não segue a ordem cronológica, nem de nascimento dos autores nem, portanto, de publicação das obras; na verdade, não parece haver nenhum critério de lançamento. Enfim, dos 30 volumes inicialmente propostos, podemos considerar que 13, ou seja, 43,33%, têm o perfil aproximado de identitário-crítico-militantes. Essa classificação, não há dúvida, pode ser discutida, como nos casos de Boétie e de Stuart Mill: o primeiro por ser medieval e o segundo por ser comum ao liberalismo; mas, ainda assim, salta à vista as editoras terem escolhido logo esses autores e esses títulos em meio a centenas de outros possíveis. Por outro lado, as escolhas de Bell Hooks, Michel Foucault, Mary Wollstonescraft, Jean-Jacques Rousseau e Karl Marx, além das novidades na coleção Carter Woodson, Luiz Gama e Edison Carneiro dão o inequívoco tom crítico-militante e identitário. Voltaire era claramente um polemista e podemos considerar que Schopenhauer integra a relação por ser seu livro um manual de manipulação da verdade e do discurso, ou seja, é um manual de produção de desinformação. (O que dissemos sobre Schopenhauer pode ser aplicado, mutatis mutandis, ao volume escolhido de Sto. Agostinho.)

Há alguns autores cuja inclusão é discutível ou estranha: Lévi-Strauss é bem-vindo, mas o seu Antropologia estrutural 1 é um livro estritamente técnico e acadêmico, não sendo passível de consumo pelo grande público; melhor seria incluir o Antropologia estrutural dois, o Antropologia estrutural 3, algum dos vários volumes das Mitológicas, o Pensamento selvagem, o Totemismo hoje ou até os Tristes trópicos. O mesmo pode ser dito, a fortiori, de Aristóteles: sua Política ou sua Ética nicomaquéia, quem sabe mesmo sua Constituição de Atenas, seria muito mais adequado ao perfil da coleção (e tanto a Política quanto a Ética nicomaquéia são infinitamente superiores à República de Platão, ou melhor, a qualquer coisa de Platão). De Maquiavel escolheram A arte da guerra: entretanto, essa é uma obra menor (de um autor também menor): dele poderia ser publicado, com muito mais proveito, os seus Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. De Sto. Agostinho, suas Confissões seriam uma escolha mais interessante que a estranha escolha feita de Sobre a mentira.

Essa pequena coleção apresenta alguns títulos que satisfarão também os liberais: Bastiat, Mises, Léo Strauss e, novamente, Stuart Mill; quem sabe Weber e Adam Smith. Além disso, há volumes mais claramente morais, como os de Descartes, Sto. Agostinho, Adam Smith. Por fim, os volumes de Lévi-Strauss, Ruth Benedict, Durkheim e Hobbes servem, talvez, para indicar que a verdade e a mentira, a justiça e a injustiça têm que ser entendidos de maneira relativa e nos quadros de sociedades estruturadas em termos de culturas e de estados e, nesse sentido, integram o viés crítico-militante da coleção. Se adicionarmos aos 13 volumes inicialmente relacionados como “identitário-crítico-militantes” os quatro volumes sociológicos, teremos 17 volumes; se somarmos a esses os volumes liberais – cuja inclusão pode ser entendida também como uma forma de a militância crítico-identitária conhecer os argumentos de seus adversários –, teremos um total de 22 volumes, correspondentes a 73,33%, isto é, cerca de 3/4 do total. (Esse valor é subestimado, pois deixamos de lado Sto. Agostinho, Maquiavel e Augusto Comte: com esses três volumes adicionais, teríamos 25 livros crítico-militantes, ou 83,33%.)

Em suma, a relação de títulos selecionados para a nova edição da coleção “Os pensadores” é variada e incoerente a respeito de vários títulos; essa incoerência talvez tenha o objetivo de satisfazer a diversos públicos. Ainda assim, o conjunto da coleção exibe uma orientação bastante clara; seu objetivo não é meramente informar, ilustrar e fornecer elementos intelectuais e morais para a edificação dos leitores e a sua ampliação do entendimento do mundo. Em vez disso, o objetivo da coleção é fornecer elementos intelectuais para a militância política e social, com um sentido “crítico” e identitário – em outras palavras, em favor do combate da metafísica esquerdista contra a metafísica direitista.

Feitas essas considerações iniciais, podemos avaliar a inclusão do volume Discurso sobre o espírito positivo, de Augusto Comte.

2. Sobre a inclusão de Augusto Comte na atual coleção “Os pensadores”

Em face do viés caracterizado acima, torna-se legítima perguntar: por que incluíram Augusto Comte nessa nova edição de “Os pensadores”? De modo mais específico: por que incluíram uma nova tradução do Discurso sobre o espírito positivo?

Na matéria propagandística que anunciava o lançamento da coleção (https://www1.folha.uol.com.br/ilustrada/2021/10/colecao-folha-os-pensadores-reune-escritos-essenciais-do-pensamento-ocidental.shtml), somos informados que Durkheim é o “‘fundador’” da Sociologia – a palavra “fundador” posta entre aspas na matéria acima: “Isso para não falar no "fundador" da sociologia como ciência, Émile Durkheim, em As regras do método sociológico”. Augusto Comte é considerado apenas “filósofo” (como se não tivesse fundado a Sociologia) e fundador do Positivismo. A explicação dada pela matéria para a inclusão de Augusto Comte é esta: “O segundo [volume] é o Discurso sobre o espírito positivo, em que o francês Auguste Comte formulou a doutrina do positivismo – inspiradora do lema inscrito na bandeira do Brasil”.

As matérias propagandísticas servem apenas para divulgar para o grande público um determinado produto; como se sabe, elas combinam informação, desinformação, omissões e exageros; no caso de uma coleção de livros de filosofia, essas características acentuam-se, na medida em que se torna muito difícil vender conceitos filosóficos. Ainda assim, as propagandas em questão têm algo de sugestivo.

Parece-nos que Augusto Comte foi incluído pelo menos por dois motivos, ambos vinculados ao atual contexto político brasileiro. O primeiro motivo é que, devido à renovada militarização promovida por Bolsonaro no governo federal, fala-se muito em “Positivismo” – embora de maneira extremamente errada e mentirosa[2] –; esse motivo é o que se depreende da propaganda indicada acima. Apesar de o motivo anterior poder vincular-se ao viés crítico-militante da nova coleção “Os pensadores”, o fato é que podemos conceber outro motivo, mais diretamente crítico-militante, para a inclusão de Augusto Comte nessa coleção: trata-se de uma afirmação do valor social, político e moral da ciência e – é importante dizê-lo com clareza: a despeito das idéias e das intenções do próprio Comte – também é a busca de um cientificismo anticlericalista. Senão, vejamos.

As três obras presentes nas versões anteriores da coleção “Os pensadores” oferecem dificuldades intransponíveis para os objetivos crítico-militantes e editoriais da coleção.

  • Cada um dos volumes publicados nesta nova edição apresenta a obra completa: ora, o Sistema de filosofia positiva foi originalmente publicado em seis volumes e 60 capítulos, dos quais apenas os dois primeiros capítulos foram publicados nos “Pensadores” anteriores. É possível crer que a extensão dessa obra completa inviabilizou a sua inclusão na presente edição dos “Pensadores”.
  • Já o Discurso sobre o conjunto do Positivismo é menor, com seis capítulos (grandes), oferecendo a vantagem – supostamente desejada pela edição nova dos “Pensadores” – de expor as idéias centrais do Positivismo. Entretanto, contrariando o viés crítico-militante da coleção, Augusto Comte afirma com todas as letras em Religião da Humanidade nessa obra. Além disso, os 2/3 iniciais do capítulo 1 desse livro expõem as características principais do espírito positivo e criticam o espírito teológico; mas o 1/3 final desse mesmo capítulo 1 critica o espírito metafísico, que é justamente o espírito que informa o materialismo marxista e, de modo mais amplo, o viés crítico-militante da atual “Pensadores”. (Não por acaso, o tradutor desse trecho foi o marxista José Artur Gianotti, que omitiu o 1/3 final do capítulo 1 para não fornecer instrumentos para a crítica ao seu próprio marxismo.)
  • O Catecismo positivista foi a única obra comtiana publicada na íntegra nas edições anteriores dos “Pensadores”; entretanto, esse livro oferece o evidente problema de que se trata de um “catecismo”, isto é, da exposição sistemática de uma “religião”. Isso vai de encontro à militância crítica da edição atual dos “Pensadores” e, em particular, à projetada perspectiva cientificisto-anticlericalista desejada em Comte.

Outras obras de Comte, aliás também já traduzidas para o português, poderiam ter sido publicadas (talvez retraduzidas): os seus Opúsculos de juventude (1819-1828) e o Apelo aos conservadores (1855). O primeiro desses volumes – cuja segunda tradução é da autoria dos positivistas Ivan Lins e João Francisco de Souza e foi publicada em 1972 pela Universidade de São Paulo – é muito interessante e apresenta em germe inúmeras das perspectivas de Comte; entretanto, essas perspectivas estão presentes apenas em germe e há o emprego de expressões que produzem equívocos, como no caso da “física social” (equívocos que, claro, são amplamente explorados pela desinformação inspirada em preocupações políticas). Em todo caso, não consigo identificar o motivo para as organizadoras da atual coleção “Os pensadores” terem preferido o Discurso sobre o espírito positivo e não os Opúsculos de juventude – ainda que essa escolha pareça-me acertada, pela maturidade maior do Discurso em relação aos Opúsculos. Já o Apelo aos conservadores é também uma obra pequena e de divulgação, com a vantagem de ser eminentemente política; sua tradução para o português data de 1899 e foi feita por Miguel Lemos (fundador e diretor da Igreja Positivista do Brasil). Se o objetivo da atual coleção “Os pensadores” fosse expor as perspectivas filosóficas do Positivismo tendo em vista apenas a conjuntura política atual, esse livro seria ideal; mas, como estamos argumentando, o objetivo da inclusão de Comte na coleção foi um pouco diferente.

Augusto Comte, fundador do Positivismo e da Religião da Humanidade, também fundador da Sociologia, da Moral Positiva e da História das Ciências, era radicalmente contrário ao anticlericalismo e ao cientificismo. Sua oposição ao anticlericalismo e ao cientificismo baseava-se em motivos históricos, sociológicos, filosóficos e morais: essas duas perspectivas são absolutistas e antirrelativistas; elas negam a historicidade e desviam o ser humano da fraternidade, do altruísmo, do conhecimento e da atividade positiva; elas estimulam a arrogância, a vaidade, o orgulho, a violência, o intelectualismo. Em suma, são contra o amor, a ordem e o progresso.

As organizadoras da atual coleção “Os pensadores” com toda a certeza ignoram todas as afirmações e concepções indicadas no parágrafo acima, provavelmente porque se limitam a ser crítico-militantes.O Discurso sobre o espírito positivo consiste na verdade no discurso de abertura do curso público ministrado por Augusto Comte durante algumas décadas, intitulado “Curso filosófico de Astronomia popular”. Esse curso era dedicado à instrução científica dos proletários parisienses e oferece de maneira exemplar uma forma filosófica de estudo das ciências, em termos de seus métodos, de seus principais resultados específicos e de suas importâncias filosóficas. Nesse curso, o discurso inicial expunha os princípios filosóficos que orientavam a apresentação e o entendimento subseqüentes da Astronomia; mas não se trata de mera exposição epistemológica e metodológica do curso. São várias idéias concatenadas aí; senão, vejamos.

A ciência é o resultado da busca humana de entendimento da realidade conjugada com a busca de soluções para os problemas práticos; satisfazendo necessidades gerais da natureza humana (que se desenvolve ao longo do tempo, em face das realidades sociais e ambientais), a ciência é o resultado de um longo processo de desenvolvimento de modos de satisfazer essas necessidades – desenvolvimento que passou antes pelos absolutos teológico-metafísicos e que agora entre na positividade científica. Todavia, apesar da importância dos resultados próprios a cada ciência, cada uma delas tende a fechar-se em si mesma, a ignorar as demais e desconsiderar totalmente as necessidades humanas profundas, ou seja, as ciências entregues a si mesmas tendem a ser incoerentes e a tornarem-se absolutas: a única solução possível é elaborar uma filosofia que organize os vários resultados das ciências, de modo a permitir que elas relacionem-se entre si de maneira permanente e sistemática; que elas mantenham-se sempre no âmbito do relativismo; que – e isto é o principal – elas atenham-se à satisfação das necessidades humanas. Essa filosofia não é uma “filosofia científica”, pois não se trata da aplicação dos métodos da ciência à filosofia; ao contrário, é a reflexão filosófica sistematizando, organizando e orientando a prática e a reflexão científicas. Com isso, fica evidente que há diferenças entre o “espírito científico” (próprio à atividade cotidiana dos cientistas) e o “espírito positivo” (mais amplo, generalizante, coordenador e orientador). As conseqüências práticas disso eram evidentes para Augusto Comte desde o início, seja em termos políticos e sociais, seja em termos morais e intelectuais; o desenvolvimento e a sistematização dessas concepções levaram o fundador do Positivismo a fundar também a Religião da Humanidade nos anos seguintes, em parte graças à poderosa ação moral e intelectual exercida sobre ele por Clotilde de Vaux.

O Discurso sobre o espírito positivo, assim como todas as demais obras de Comte, apresenta um forte espírito histórico: por si só isso já rejeita o anticlericalismo, isto é, o combate sistemático às religiões teológicas, predecessoras da religião positiva que afirma o ser humano. Da mesma forma, a cuidadosa distinção entre a prática científica e a avaliação filosófica dos resultados das ciências rejeita o que se chama atualmente de cientificismo. Nas obras posteriores de Comte essas duas perspectivas estarão ainda mais claras, como no Sistema de política positiva e na Síntese subjetiva. Mas, de qualquer maneira, publicado em 1844, o Discurso sobre o espírito positivo é a derradeira obra pré-religiosa de Augusto Comte – não por acaso, posterior ao Sistema de filosofia positiva (1830-1842) mas um pouco anterior ao seu intenso, breve e respeitoso relacionamento com Clotide de Vaux (no “ano sem par” – 1845-1846). A próxima obra escrita e publicada por A. Comte já evidenciaria a Religião da Humanidade e também o viés marcadamente político e social do Positivismo, como efeitos tanto de Clotilde quanto da II República Francesa (1848-1851): o Discurso sobre o conjunto do Positivismo, de 1848.

A inclusão do Discurso sobre o espírito positivo na versão nova da coleção “Os pensadores” apresenta, portanto, um caráter bastante ambígüo. A publicação em si desse volume tem quer comemorada; o fato de ele ser vendido promocionalmente em conjunto com o v. 1 certamente o disseminará de uma forma que os demais volumes não conseguirão. Entretanto, os motivos profundos que levaram à sua inclusão baseiam-se em preconceitos; enquanto Augusto Comte desejava superar a oposição suicida entre a ordem e o progresso, as organizadoras da versão nova dos “Pensadores” insistem nessa oposição, transformando e mantendo, por um lado, a ordem em uma ordem retrógrada e o progresso em um progresso anárquico.

3. Sobre a edição e a tradução do Discurso na atual coleção “Os pensadores”

Para concluir, convém fazermos alguns comentários sobre as presentes edição e tradução do Discurso.

Como dissemos logo no início deste texto, os livros da nova coleção “Os pensadores” estão bastante bem cuidados em termos editoriais: papel de qualidade (Chambril Avena 80 g/cm2, agradável ao tato), tamanho aceitável (16,3 x 23,8 cm), capa dura, arte da capa agradável. A edição é boa e, além do sumário no início do livro, há também uma tabela sinóptica no final, indicando os temas de cada um dos parágrafos do livro.

 

Fonte: https://pensadores.folha.com.br/index.html.

 

Todavia, essa edição apresenta uma série de pequenos erros que incomodam e que podem atrapalhar um pouco a leitura; todos esses erros são devidos às decisões editoriais, mas alguns deles poderiam ter sido sanados antes da publicação caso a editora tivesse tomado a decisão simples – e, aliás, muito razoável – de consultar positivistas para rever a tradução e/ou a edição; por outro lado, alguns outros erros foram impostos pelo lamentável acordo ortográfico de 1990 (cujo objetivo, no fundo, era aumentar o mercado editorial brasileiro nos países lusófonos, especialmente africanos).

Comecemos pelo nome do autor: Augusto Comte. Desde que o Positivismo passou a ser difundido no Brasil, em meados do século XIX, a versão em português do nome francês “Auguste” era corrente; assim, em todos os bem mais de 500 títulos da Igreja Positivista do Brasil, publicadas entre c. 1880 e c. 1930, o nome do filósofo está devidamente em português: Augusto. Esse hábito saudável, de verter para a língua pátria os prenomes estrangeiros, manteve-se até bem depois, como se pode ver na capa da tradução de Ivan Lins para os Opúsculos de filosofia social, de 1972. Esse hábito de traduzir para a língua pátria é comum também nos países de línguas espanhola, inglesa, francesa e alemã.

 

Fonte: https://www.estantevirtual.com.br/sebotraca/augusto-comte-biblioteca-dos-seculos-opusculos-de-filosofia-social-2615776725?show_suggestion=0

 

Entretanto, em meados dos anos 1980, talvez já na década de 1970, passou a constituir-se no Brasil um estranho consenso, no sentido de que os prenomes não seriam traduzíveis. É verdade que há nomes que são, de fato, intraduzíveis, na medida em que não há versões em português para eles: nomes em japonês ou em mandarim apresentam em particular essa dificuldade. Acessoriamente, pode-se considerar o respeito aos países de origem e, portanto às suas culturas. Mas o fato é que nenhuma dessas considerações obriga-nos a rejeitar a tradução dos prenomes. É evidente que “Pierre”, “Pietro” e “Peter” são as versões em francês, italiano e inglês para “Pedro” e, como sabem por exemplo os hispanofalantes, não há nenhum problema, nem há nenhuma ofensa, em ler no original “Pierre”, “Pietro” ou “Peter” e passar para “Pedro” na tradução. Adicione-se a isso o fato de que o nome “Augusto” já estava consagrado no Brasil (e, convém notar, também em Portugal), com um uso extremamente difundido e, acima de tudo, mais que centenário.

Um outro problema derivado do nome do autor, mas agora relativo ao seu sobrenome, é o adjetivo derivado de “Comte”. Mais uma vez: tradicionalmente, por um hábito mais que centenário, sempre se usou no Brasil o adjetivo “comtiano”. O “i” surgiu da pronúncia carioca dessa palavra, o que não é problema nenhum. Mas, contrariando a forma consagrada, o malogrado acordo ortográfico de 1990, entre suas inúmeras e equívocas previsões estipulou que o nome de origem deve ser rigorosamente seguido para que se forme o respectivo adjetivo. Dito de outra maneira: devido ao acordo, literalmente por decreto deixou-se de lado o “comtiano” e passou-se ao “comteano”, a partir do nome “Comte”.

Vejamos o título do livro. Na capa aparece apenas “Discurso sobre o espírito positivo”; até aí, tudo bem: está conforme o título original. Mas na folha de rosto percebemos um estranho subtítulo: “ordem e progresso” – e, pior, em caixa baixa (isto é, em letras minúsculas). Mas o original não possui esse tal subtítulo, ainda que o “Ordem e Progresso” seja uma das máximas do Positivismo.

Essa estranha inclusão de subtítulo poderia ter sido decidida arbitrariamente pela editora, como se achasse bonito, ou conveniente, ou sagaz (em uma “sacada” comercial). Mas há algumas referências no texto que nos informam que o texto de base seria uma “segunda edição”, publicada em 1908, sendo que a “primeira edição” seria de 1898. Uma busca rápida pelo portal Internet Archive logo nos fornece o resultado que esclarece a situação; veja-se a imagem abaixo, que corresponde à folha de rosto da edição francesa usada na tradução do volume ora publicado na coleção “Os pensadores”.

 


Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n11/mode/2up.

 

O “Ordem e Progresso”, que o tradutor (Walter Sólon) entendeu ser um subtítulo, atua na folha de rosto do original precisamente como o que é: u’a máxima política; se quiserem, pode ser entendida como uma epígrafe, mas de maneira nenhuma como um subtítulo. Vejamos a capa de um opúsculo da Igreja Positivista do Brasil escolhido um pouco ao acaso e que ilustra o que argumentamos.

 

Fonte: arquivo pessoal.

 

Esse opúsculo, que é uma prestação pública de contas (financeiras mas, acima de tudo, políticas) de 1892, apresenta uma grande quantidade de elementos informativos; alguns são elementos de instituição, data e lugar, outros referem-se ao tema (o título, o subtítulo, a epígrafe) e outros referem-se aos valores religiosos e políticos mobilizados: neste último caso, as máximas positivistas encontram-se entre a instituição promotora (“Relijião da Humanidade”, com a ortografia simplificada proposto por Miguel Lemos) e o título do opúsculo. Deve-se notar que, mesmo em meio à profusão de informações, não há a menor dúvida de que as frases “O Amor por Princípio i a Ordem por Baze; o Progresso por Fim”, “Viver para outrem” e “Viver às claras” não integram o título ou o subtítulo e que poderiam, em certo sentido, ser entendidas como epígrafes do documento.

Certo: podemos admitir, sem dificuldade, que o erro de inserir o “Ordem e Progresso” como subtítulo acaba sendo fácil de cometer. Mas é exatamente essa a questão: sendo fácil de cometer, bastaria às organizadoras da coleção e/ou ao tradutor do livro que fizessem uma simples consulta aos positivistas brasileiros para dirimir a dúvida.

Ao longo deste texto comentamos em vários momentos que o Discurso é de 1844; entretanto, a informação dada logo no início da tradução é que a “primeira edição” seria de 1898 e a “segunda”, de 1908. Esses dois erros são bem menos escusáveis e são bem mais devidos às decisões das organizadoras da coleção e/ou do tradutor. A decisão que eles tomaram, juntamente com a inclusão de um suposto subtítulo, foi a exclusão às referências de que a edição que empregaram para traduzir o livro era a edição comemorativa do centenário de nascimento de Augusto Comte. No alto da folha de rosto do original está escrito com todas as letras, de maneira muito clara e em caixa alta: “Edição do centenário de Augusto Comte”. Mais do que isso: na suposta “primeira edição”, há apenas um “Aviso do editor”; no final desse “Aviso” há uma nota adicional, cujo início é o seguinte: “Nesta segunda edição...”. Embora haja aí uma ambigüidade a respeito da “segunda” edição, o fato é que não há nenhum título, como aparece na atual versão brasileira (“Nota do editor à 2ª edição”) e, de qualquer maneira, deveria ser evidente que se trata de uma segunda edição em relação à versão comemorativa anteriormente publicada. Nada disso está claro na atual versão da coleção “Os pensadores”; mas, como já indicamos, uma simples consulta aos positivistas brasileiros resolveria tudo isso com rapidez e facilidade.

 

 

Fonte: https://archive.org/details/discourssurlesp00parigoog/page/n21/mode/2up.

 

Por fim: limitando-nos à “Nota do editor da 1ª edição” (cuja tradução correta seria “Aviso do editor”), notamos que na edição brasileira o ano de 1851 – em que o v. 1 do Sistema de política positiva foi publicado – aparece como sendo 1951. Mais uma vez, um erro que poderia ser muito facilmente sanado com uma consulta simples aos positivistas brasileiros.

Para concluir estes comentários, vale a pena lembrarmos que não é só a atual versão dos “Pensadores” que trata mal o volume dedicado a Augusto Comte: as edições anteriores cometeram também erros mais ou menos graves no volume dedicado a Augusto Comte; esses erros foram deliberados desde o início e sua perpetuação, ao longo das várias edições da coleção, foi igualmente deliberada. Sem nos deter em pormenores, podemos de pronto indicar quatro problemas:

1)      o emprego da forma francesa para o prenome do pensador, contra o uso consagrado no Brasil;

2)      o uso de “h” minúsculo para escrever “Humanidade” – que, tanto nos originais de Comte quanto nos escritos da Igreja Positivista do Brasil e dos positivistas brasileiros de modo geral, sempre foram escritos com “h” maiúsculo –;

3)      a inclusão de um parágrafo presente no “Prefácio” da primeira edição francesa do Catecismo positivista, em que A. Comte refere-se ao czar Nicolau I: esse parágrafo Comte decidiu suprimir das edições seguintes, o que foi feito na tradução brasileira desse volume, da lavra de Miguel Lemos, mas que a editora Abril Cultural, por obra de J. A. Gianotti, decidiu incluir novamente – sem que essa inclusão indevida fosse explicada ou justificada e ainda menos afirmada com clareza para os leitores –;

4)      um erro tipográfico presente no título do Calendário positivista concreto, o famoso “Calendário histórico” positivista. O título correto é “Calendário positivista para um ano qualquer ou quadro concreto da preparação humana”; entretanto, na palavra “preparação” faltou o “p” inicial, convertendo a palavra em “reparação”. O sentido de cada uma das duas palavras é muito diferente e, sem sombra de dúvida, gera equívocos.

 



[1] Eis a relação completa dos títulos, por ordem de lançamento:

  1. Platão – A República
  2. Auguste Comte – Discurso sobre o espírito positivo
  3. bell hooks – Ensinando a transgredir
  4. René Descartes – Regras para a orientação do espírito
  5. Max Weber – Ciência e política: duas vocações
  6. Voltaire – O preço da justiça
  7. Claude Lévi-Strauss – Antropologia estrutural
  8. Santo Agostinho – Sobre a mentira
  9. Michel Foucault – A sociedade punitiva
  10. Mary Wollstonecraft – Reivindicação dos direitos das mulheres
  11. Jean-Jacques Rousseau – Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens
  12. Nicolau Maquiavel – A arte da guerra
  13. Adam Smith – Teoria dos sentimentos morais
  14. Karl Marx – Manuscritos econômico-filosóficos
  15. Frédéric Bastiat – A lei
  16. Carter G. Woodson – A (des)educação do negro
  17. Aristóteles – Sobre a alma
  18. Ludwig von Mises – As seis lições
  19. Immanuel Kant – Crítica da razão pura
  20. Luiz Gama – Humor e crítica: armas do pioneiro abolicionista
  21. Étienne de la Boétie – Discurso sobre a servidão voluntária
  22. Ruth Benedict – Padrões de cultura
  23. Émile Durkheim – As regras do método sociológico
  24. John Stuart Mill – Sobre a liberdade
  25. Arthur Schopenhauer – A arte de ter razão
  26. Friedrich Hayek – O caminho da servidão
  27. Edison Carneiro – Ladinos e crioulos
  28. Ludwig Feuerbach – A essência do cristianismo
  29. Thomas Hobbes – Leviatã
  30. Leo Strauss – Direito natural e história

[2] A esse respeito, cf. meus textos “Positivismo como cortina de fumaça para os erros da direita brasileira” (disponível em https://monitormercantil.com.br/positivismo-como-cortina-de-fumaca-para-os-erros-da-direita-brasileira/) e “Os conservadores entre alguns acertos e muitos erros – avaliando o conservadorismo à luz do Positivismo” (disponível em https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2021/10/a-revista-insight-inteligencia-em-sua.html).

24 maio 2021

Positivismo, uma oportunidade desperdiçada no Brasil

O período de maior atividade da Igreja Positivista do Brasil ocorreu entre 1881 (ano de sua fundação) e 1927 (ano de morte de Teixeira Mendes); nesse quase meio século, as propostas do Positivismo incluíram uma quantidade enorme de temas: política trabalhista, política indigenista, defesa da liberdade de pensamento, liberdade profissional, paz na América do Sul e na Europa, abolição da escravidão e incorporação do proletariado, fim da monarquia, proclamação e organização da República; combate ao racismo e à discriminação; proposta de uma liga ecumênica em favor da Humanidade; história do Brasil, história da Europa; teoria neurológica, teoria das ciências, teoria social, teoria política; história de Augusto Comte – e muitos, muitos outros assuntos. Em bem mais de 600 publicações – algumas delas com duas ou três páginas, muitas com centenas de páginas –, eles realizaram efetivamente a proposta comtiana, ou melhor, positivista de constituição de um novo poder Espiritual.

O Positivismo obteve grande sucesso no Brasil porque era uma filosofia e uma política que prometia e realizava a modernização (política, intelectual, social, institucional) do país; na conjuntura específica do século XIX, o Positivismo afirmava a importância intelectual e prática da ciência, bem como a afirmava a República e o fim da escravidão; tudo isso constituía, por si só, um projeto impressionante, mas, mais do que isso, resultaria em um legado que poderia ter grandes frutos caso os brasileiros quiséssemos preservá-lo.

O Positivismo afirma a importância da ciência mas é, ao mesmo tempo, uma religião; ele afirma a importância da ordem mas aspira ao progresso assim como, inversamente, busca o progresso mas não rejeita a ordem; afirma o primado da sociedade industrial e a relevância política da luta de classes, mas rejeita a violência e é favorável ao entendimento entre as classes sociais; afirma a sociedade positiva mas respeita as teologias e as metafísicas... como indicamos acima, isso e muito mais constitui as propostas positivistas, apresentadas em detalhes e aplicadas rigorosamente desde meados do século XIX no Brasil, mas principalmente no período entre 1881 e 1927. O comum dos políticos; o comum dos acadêmicos; o comum dos sacerdotes; o comum dos historiadores e dos filósofos vê todas essas oposições como sendo absolutas e inconciliáveis; com isso, rejeitam o Positivismo e a Religião da Humanidade, assim como rejeitam os esforços para mediar conflitos inerentes à vida em sociedade e à historicidade própria ao ser humano; essas diversas rejeições, por outro lado, é claro que quem as pratica vê-se beneficiado.

Conciliar a ordem com o progresso; conciliar o proletariado com a classe patronal; em uma época de primado da ciência manter uma religião e ainda respeitar as teologias e as metafísicas; respeitar o governo mas sem abdicar da possibilidade de supervisão política e moral sobre o governo e, inversamente, o governo manter a ordem pública sem jamais ofender as liberdades de pensamento e de expressão: essas e outras propostas exigem dos governantes e dos cidadãos um comportamento que é firme e seguro, mas ao mesmo tempo reconhece que a vida não aceita extremismos e que há muito tempo já ultrapassamos, ou já temos as condições históricas, morais e intelectuais para ultrapassarmos a violência, a intolerância, a censura. Enquanto a teologia e a metafísica baseiam-se no absolutismo filosófico e, historicamente, estiveram associadas ao militarismo, a positividade exige o relativismo e permite o pacifismo; assim, baseados no amor, isto é, no altruísmo, é possível conjugar pólos extremos que, até então, foram inimigos inconciliáveis. Ao mesmo tempo, muitos dos problemas cujas soluções já eram sugeridas pelos positivistas desde o final do século XIX ainda nos atormentam, mais de um século depois, ao mesmo tempo em que outros problemas com que temos que lidar atualmente poderiam ter sido evitados, ou diminuídos, caso a política positiva tivesse sido ouvida e praticada anteriormente: epidemia de consumo de drogas, violências contra as mulheres, miséria avassaladora e burgueses irresponsáveis, militarismo, violência urbana, conflitos insolúveis entre “progressistas” e reacionários.

Do final da década de 1920 (e até antes) até os dias atuais houve muitos outros movimentos sociais, políticos e intelectuais além do Positivismo; com raríssimas exceções, embora esses diversos movimentos criticassem uns aos outros, o que eles tinham (e têm) em comum é a negação de todos os demais movimentos, sejam aqueles que os precederam, sejam aqueles com que se defrontam em um dado momento. Embora digam falar em nome de todos, esses vários grupos falam apenas em seus próprios nomes, negando ou excluindo os demais grupos.

Não é por acaso que um dos traços principais da nossa sociedade – da nossa civilização, se considerarmos com atenção – é a “criticidade”; como dizem com um orgulho equívoco (e cínico) os marxistas, o “parricídio intelectual” sistemático foi alçado à posição de virtude intelectual e política elementar. Quem vem depois sempre nega quem veio antes; quem vem depois afirma que quem veio antes não era bom e, portanto, suas ações têm que ser desfeitas, negadas, rejeitadas. Restringindo-nos aos que vieram após os positivistas (ou melhor, após Miguel Lemos e Teixeira Mendes), não é isso que vemos e vimos com a “antropofagia” da “Semana de arte moderna”? Com a Revolução de 1930? Com o golpe de 1937? Com a redemocratização de 1946? Com o golpe de 1964? Com a constituinte de 1987-1988? Com a eleição do PT em 2002? Com o impedimento de Dilma em 2015? O atual Presidente da República não foi eleito com uma plataforma de “destruir tudo” (que, aliás, ele pratica com evidentes esmero e aplicação)?

Ora, os positivistas afirmavam a conjugação do progresso com a ordem e da historicidade com os avanços: não é por outro motivo que, por exemplo, a bandeira nacional republicana tem elementos de inovação, progresso e avanço (o círculo azul com o céu estrelado e a faixa branca com o belíssimo “Ordem e Progresso” em verde) em um fundo que já existia na bandeira imperial (o retângulo verde e o trapézio amarelo). Enquanto os positivistas afirmamos que os cleros teológicos deverão extinguir-se naturalmente, à medida que as populações forem emancipando-se das teologias (das suas promessas fantásticas e de suas punições fantasmagóricas), e, por isso, é-nos recomendado que contribuamos com a manutenção material desses mesmos cleros – para não morrerem de fome –, o que os cleros teológicos fizeram e fazem? Impõem a todo custo suas crenças, por meio do peso do Estado; perseguem todos aqueles que não compartilham de suas crenças. (E, por sua vez, os intelectuais, sempre “críticos”, ridicularizam o generoso voto positivista.) Enquanto os positivistas afirmamos que tanto os proletários quanto os patrícios são necessários para a sobrevivência material da sociedade, para a preservação e o aumento das riquezas, e que, portanto, é necessário que eles colaborem, que cada grupo perceba que tem deveres inalienáveis em relação ao outro grupo e ao conjunto da sociedade, o que é que liberais e marxistas fizeram desde sempre a respeito do Positivismo? De maneira muito característica e sugestiva, antes de mais nada ridicularizaram a noção de deveres mútuos – e, portanto, afirmaram a irresponsabilidade coletiva de cada grupo –; em seguida, cada qual afirmou seu próprio particularismo, seja na forma do “capitalismo selvagem” (e agrarista, no caso específico do Brasil), seja na forma da “revolução do proletariado”. Como todos sabemos, isso resultou em um século de conflitos políticos recorrentes e por vezes sangrentos; em uma burguesia profundamente irresponsável e sem sentimento de nacionalidade e em um proletariado enfraquecido, desmobilizado, paupérrimo mas com laivos revolucionários.

Procurando falar a todos os grupos e a todas as classes – ou seja, procurando aconselhar e orientar as idéias e os valores de todos os cidadãos –, os positivistas religiosos mantemo-nos rigorosamente fora dos governos; ao procurarmos manter a dignidade do poder Espiritual, queremos com isso termos condições de dirigirmo-nos a cada cidadão sem apelarmos para a força do Estado sem que ninguém tenha medo disso e, ao mesmo tempo, quando e se for necessário, possamos criticar a conduta pública (e até privada) dos governantes. Em nome dos interesses coletivos, afirmamos as responsabilidades mútuas de patrões e empregados, assim como afirmamos a importância de o Estado agir para desenvolver economicamente a sociedade, mas sem nunca, jamais, impedir as liberdades de pensamento e de expressão. Ao mesmo tempo que afirmamos que a ciência esclarece a realidade e que é uma base segura, respeitamos as crenças teológicas e metafísicas; sabemos que mais tempo, menos tempo, todos os seres humanos serão irmãos na Humanidade, a despeito das diferenças de classes e de nacionalidades, deixando para trás as crenças que tiveram sua importância histórica mas que não correspondem mais à realidade e às necessidades humanas: nisso tudo há o primado da paz, do respeito mútuo, da tolerância.

Com exceção dos positivistas, qual grupo pode dizer que propôs as idéias e colocou em prática os parâmetros acima? As ironias e os deboches que intelectuais (acadêmicos ou não) com tanta freqüência dirigem aos positivistas sugere não que a Religião da Humanidade esteja errada em suas propostas, mas, justamente ao contrário, que ela está certa – e que, portanto, é necessário ridicularizá-la. Católicos, marxistas, liberais – e, mais recentemente, também as feministas –: todos esses grupos falam apenas por si mesmos, rejeitam os demais, mantêm (quando não incentivam) os conflitos, negam a historicidade (tanto a continuidade quanto as inovações) e, se não fosse pouco, desejam a todo custo obter e manter o poder. Tudo isso é o oposto do Positivismo.

Entre 1881 e 1927, mas começando bem antes e avançando para bem depois, os positivistas propusemos (propomos) o progresso – com amor e ordem –; a sociedade industrial – sem exploração, sem revolução –; a paz – com dignidade, tolerância e respeito mútuo. Não há dúvida de que esses foram alguns dos elementos cruciais que justificaram a fama e a importância do Positivismo naquela fase. Mas o Brasil – e, de modo geral, o Ocidente – preferiu deixar de lado as propostas e as lições do Positivismo... para substituir pelo quê? Por nazismo, fascismo, comunismo, liberalismo radical, fundamentalismo teológico, irracionalismo, niilismo, individualismo hedonista e por aí vai.

É triste constatar: ao deixar de lado o Positivismo, o Brasil (mas também o Ocidente) desperdiçou uma oportunidade ímpar para resolver, encaminhar e/ou evitar muitos problemas sociais, políticos, morais, intelectuais que assolam nosso país. O Positivismo é mais um caso de oportunidade desperdiçada; mas se isso ocorreu no passado, não há motivo para que continue sendo assim; o Positivismo, a Religião da Humanidade permanece válido, útil, altruísta – em uma palavra, positivo. Cumpre-nos, com urgência, retomar essas propostas.

30 junho 2020

Aforismos sociológicos IX


Aforismos sociológicos IX

 

§ 1º – Sobre tolerância e sociedades livres na época das “redes sociais”

 

Um dos aspectos centrais das sociedades contemporâneas é a noção de “tolerância”, isto é, de respeito mútuo entre os vários indivíduos e, em particular, entre as várias concepções sobre a realidade e a sociedade. Relacionam-se, portanto, disposições individuais e concepções de mundo, em que, por um lado, temos indivíduos que aceitam mais facilmente outras perspectivas e concepções que propõem maior abertura para outras concepções; por outro lado, há indivíduos que aceitam com maior dificuldade ou que não aceitam outras perspectivas, da mesma forma que há concepções que rejeitam outras concepções. Da mesma forma, há muitos casos intermediários, em que há a aceitação em determinadas situações e a rejeição em outras[1].

O que importa notar, de qualquer maneira, é que as sociedades contemporâneas – ou, sendo mais específico: as sociedades modernas, influenciadas pela evolução histórica européia, que se caracterizam pelo pluralismo social, político, filosófico e religioso, pelo relativismo científico, pela separação entre igrejas e Estado, pelas liberdades de pensamento, expressão e associação – têm como uma de suas características fundamentais a tolerância. Esse fato não deixa de corresponder à clássica situação em que uma necessidade torna-se virtude: considerando o momento central na história européia das guerras religiosas, a tolerância mútua foi o mecanismo encontrado para que as guerras civis e internacionais cessassem e os grupos pudessem conviver com um mínimo de harmonia; desse imperativo político a tolerância tornou-se uma virtude social[2].

Independentemente de discordâncias filosófico-religiosas e políticas, vale notar que a mera e inescapável ocorrência das idiossincrasias pessoais já é um fator que exige a tolerância; afinal, cada pessoa tem suas particularidades, devidas aos mais variados fatores: formação genética, ambiente familiar, ambiente escolar, vicissitudes da vida, redes de relacionamento, religião professada, país e época em que vive etc. Nessa combinação infindável de fatores, cada um tem seu temperamento, que, dentro de determinados limites[3], tem que ser respeitado – isto é, tem que ser tolerado.

Também é importante afirmar que tolerar não é concordar: tolerar é aceitar o diferente, mesmo – e principalmente – não gostando dele; em última análise, a tolerância consiste em resignar-se (contrafeito ou não) com a existência de grupos e idéias diferentes das próprias. Assim, criticar não é ser intolerante: a crítica integra o quadro geral de liberdades de pensamento e de expressão; quem é criticado tem o direito de responder às críticas e pode, igualmente, replicar a quem o criticou inicialmente. A crítica, se mantida no âmbito das palavras e das idéias, ainda está no quadro da tolerância; mas pregar a destruição – isto é, o fim por meios violentos do que é considerado diferente – e, ainda mais, passar à ação concreta, isso é ser intolerante[4].

O ideal da tolerância é cada vez mais respeitado – pelo menos no Ocidente – desde as guerras de religião, dos séculos XVI e XVII; no século XVIII o Iluminismo tornou-o um elemento central de reflexão e da prática política, o que felizmente continuou no século XIX e também no começo do século XX. Entretanto, após 1918, as profundas e nefastas conseqüências da I Guerra Mundial conduziram inúmeros países a deixarem de lado esse ideal e a erigirem o desprezo sistemático por outras religiões e grupos sociais (os “judeus”, os “negros”, os “burgueses”, os “capitalistas”, os “comunistas” etc.) como fundamento de sua afirmação política, com as piores e mais detestáveis conseqüências sociais e políticas. Ainda assim, com o término da II Guerra dos 30 Anos, em 1945, a tolerância foi recuperada, sendo um dos fundamentos por exemplo da Organização das Nações Unidas; o fim da Guerra Fria, a desintegração do bloco comunista e a vitória das democracias liberais pareciam sacramentar a tolerância como princípio sociopolítico no final do século XX.

A década de 2010 introduziu um novo elemento que mudou completamente a forma como a tolerância vinha sendo entendida – no caso, a internet e, de modo mais específico, as chamadas “redes sociais”. Sugerimos as seguintes características como explicativas do estímulo das redes sociais à intolerância:

1)      imediatismo das reações;

2)      isolamento físico dos indivíduos que “interagem” eletronicamente;

3)      ausência de relações pessoais face-a-face;

4)      constituição de grupos (ou redes) temáticas e por afinidades em bolhas, que excluem perspectivas diferentes;

5)      ausência de mediação moral, intelectual e política na constituição das redes e das bolhas.

A maior parte – se não a totalidade – dessas características não é novidade para quem presta atenção aos efeitos sociais e políticos das redes sociais. O conjunto acima resulta em um quadro terrível, em que indivíduos fisicamente isolados interagem apenas eletronicamente, à distância, com outros indivíduos, com assombroso imediatismo; as reações são exatamente isso, reações imediatas, não pensadas, não pesadas, não avaliadas. O relacionamento pessoal de caráter físico perde-se, mas não é somente isso que se vai: a enorme riqueza que as relações pessoais trazem deixa de existir, como os mecanismos não escritos de comunicação (gestos, expressões, tons de voz, movimentos corporais). Ainda há mais que se perde: o relacionamento face-a-face impõe limitações à expressão de cada um; frente a diferentes indivíduos, cada um avalia, mesmo que implicitamente, mesmo que inconscientemente, se o que falará é conveniente, se é respeitador, se será bem entendido etc. Essas avaliações contextuais correspondem a um aspecto importante do aprendizado moral e social de todos os indivíduos; quem não sabe lidar com elas é entendido como problemático, assim como, inversamente, aqueles que instrumentalizam sem maiores preocupações morais são vistos como doentes. Ora, nas redes sociais a avaliação contextual da comunicação é jogada fora; em vez de cada indivíduo deparar-se concretamente com uma outra pessoa que conjuga na sua frente uma subjetividade que se expressa a cada movimento com uma objetividade física, nas redes sociais os indivíduos a todo momento relacionam-se apenas com abstrações; essas abstrações, por sua vez, devido ao imediatismo das reações e ao contínuo da participação nas redes, acabam tornando-se um espelho do próprio indivíduo que reage.

O afastamento físico entre as pessoas não é em si o mais problemático; antes da internet, as pessoas comunicavam-se à distância, por meio de cartas, de telegramas, de livros: ocorre que esses instrumentos impunham, ou impõem, uma reflexão prévia para suas respostas. O elemento do imediatismo é posto de lado.

Os quatro elementos iniciais indicam que as redes sociais estimulam poderosamente as paixões; nesse sentido, essas paixões, desenvolvidas sem freios, rejeitam a tolerância. Surge aí o quinto elemento, a ausência de mediação moral, intelectual e política. Tanto o isolamento físico quanto o imediatismo das reações levam a que os indivíduos reajam exprimindo apenas o que está em suas cabeças; como os relacionamentos pessoais e a reflexão meditada sobre os temas são deixados de lado, os indivíduos dão livre curso aos seus instintos imediatos; correndo o risco de ser pleonástico, os indivíduos tornam-se cada vez mais individualizados, as pessoas tornam-se cada vez mais isoladas. Ora, nesse isolamento, há a perda do que Augusto Comte chamava de “poder Espiritual”, isto é, daquelas pessoas e daquelas estruturas sociais responsáveis pela disseminação de valores e idéias, bem como pelo aconselhamento moral de cada um. Essa perda de importância do poder Espiritual pode ser demonstrada mesmo pela virulência com que os indivíduos reagem mesmo contra os “gurus” que costumam incitar as paixões nas redes sociais: deixados entregues às suas próprias e piores paixões, os indivíduos não toleram que os seus próprios gurus imponham limites às suas paixões.

Bem vistas as coisas, o que as redes sociais têm feito é realizar no início do século XXI vários dos maiores temores que pensadores do século XIX (como Gustavo le Bon) e do século XX (como José Ortega y Gasset) tinham a respeito da democracia. Tais pensadores não eram propriamente contra a democracia, isto é, contra as liberdades; mas eles temiam muito que indivíduos entregues a si mesmos e às suas paixões produziriam os piores resultados possíveis: espírito de manada, (suposta) auto-suficiência – e, para o que nos interessa, intolerância.

Ortega y Gasset chamava esse gênero de ser humano de “homem-massa”, que se sente confortável em sua ignorância e, assim, não hesita em emitir “opiniões” sobre as questões mais variadas, em particular aquelas sobre assuntos sobre os quais não conhece. Esse homem-massa não é necessariamente o popular, o comum do povo, pois os especialistas também se comportam como massa; aliás, muitas vezes, justamente porque são especialistas em uma determinada área (particularmente áreas técnicas), muitos profissionais, e mesmo cientistas, consideram-se capacitados e autorizados a opinar sobre aquilo que desconhecem. A política, como se refere a todos os cidadãos, é especialmente atingida pela ação dos homens-massa; da mesma forma, a cada vez maior politização, ou a radicalização política, intensifica esses aspectos.

Augusto Comte, por seu turno, observava que o fundamento filosófico desse comportamento é o dogma da liberdade absoluta de consciência; mais uma vez, a arrogante e auto-suficiente pretensão de poder opinar sobre tudo sem a devida preparação (filosófica, teórica e, acima de tudo, moral). Os integrantes dessas bolhas, como observamos há pouco, adotam um comportamento ambíguo a respeito dos seus líderes: na medida em que os líderes estimulam os instintos agressivos e de manada, eles são seguidos; mas caso esses líderes destoem do comportamento projetado pelos aderentes, a adesão falha ou simplesmente é suspensa. Nesse sentido, os líderes têm um papel principalmente negativo, ao estimularem os instintos agressivos e de manada; a efetiva orientação positiva – que consiste no estímulo à moderação, à reflexão, à ação prudente, fraterna e esclarecida – é desprezada[5].

O problema aqui não são as liberdades de expressão e de pensamento; também não é o desejo de manifestar-se sobre qualquer assunto. O problema central é a arrogância, cada vez mais generalizada e estimulada pelas redes sociais, de que basta ter a possibilidade de escrever alguma coisa em redes sociais para que isso seja considerado “opinião” fundamentada. Aliás, é também a arrogância que justifica e é justificada pela confusão de que basta todos terem “sentimentos” (desejos, anseios etc.) para que tais “sentimentos” sejam convertidos imediatamente em opiniões. Como observamos antes, a política, em particular, padece desse problema, na medida em que, como vivemos em sociedades republicanas, todos têm o direito de manifestarem-se sobre os assuntos da polis, mesmo que não entendam desses problemas. A dificuldade que vivemos, o temor expresso pelo conceito de “homem-massa”, é quando o direito de manifestar-se sobre os assuntos da polis converte-se em dever de manifestar-se; é quando a manifestação apesar da ignorância sobre os assuntos torna-se manifesta-se devido à ignorância sobre os assuntos. E, claro, a ignorância sobre os assuntos inclui também o desconhecimento sobre os fundamentos e a dinâmica da própria polis e da sociedade que abriga essa polis. Para usar uma expressão jocosa, não há como isso dar certo[6].

A intolerância estimulada pelas “redes sociais” caracteriza-se por um feroz espírito de grupo, em que internamente o grupo (mais ou menos restrito e, por paradoxal que seja, mais ou menos ignorante de seus próprios membros) é solidário a si mesmo, mas agressivo a quem não o integra. Nesse sentido, trata-se de um forte desvio da fraternidade, a que se somam a falta de afeto mais amplo e o estímulo (mais uma vez agressivo) a instintos egoístas e destruidores.

A virulência, o particularismo, o fechamento em si mesmas das bolhas das “redes sociais” levam naturalmente a considerar-se se é possível mantermos uma sociedade livre e aberta. As “redes sociais” estimulam o clima político de “nós contra eles”; nisso se perdem o respeito mútuo, a tolerância e os debates públicos, transformados em ondas de xingamentos recíprocos[7]. Esse clima é explorado e estimulado pelos partidos políticos, pelos próprios políticos (que, assim, transformam-se em demagogos sistemáticos) e são repetidos à exaustão pelos “intelectuais orgânicos” à direita e à esquerda (professores primários, secundários e universitários, jornalistas, “articulistas”, “gurus”). A proliferação das fake news faz parte integrante desse novo ambiente. As fake news têm como objetivo disseminar a desinformação, isto é, a disseminação de informações erradas para estimular a confusão intelectual, moral e política. Por fim, no caso específico das eleições, elas tendem a perder o caráter de “debates” (característica que, desde sempre e no final das contas, elas apresentam apenas de maneira superficial e muito idealizada) para assumirem o aspecto de “democracia de plebiscito”. Em suma: é de temer-se que as “redes sociais” estejam criando uma combinação de oclocracia, mantida e estimulada pelos homens-massa, com tirania, mantida pelo líder preferido desses mesmos homens-massa – tudo isso em meio à desinformação disseminada pelas fake news e pelo clima de ódio e intolerância.

Pessoalmente, tenho dúvidas sobre se a estrutura interna, a lógica das “redes sociais” permite mesmo a idealizada “qualificação” do debate. O que argumentei acima é que a forma como as redes sociais reúnem as pessoas resulta, na prática, em repelir o debate e, nesse sentido, não há o que ser qualificado.

Há grupos sociais e políticos que afirmam que uma forma de evitar ou de reverter essas tendências negativas seria “ocupar espaço” nas redes sociais. Entretanto, considerando as observações acima, é caso de pôr-se em dúvida essa expressão: se os grupos constituem-se como bolhas, não haveria espaço para ser ocupado, pois não haveria brechas para que a moderação, a prudência e a tolerância pudessem ser incluídas e surtir efeito. Dessa forma, “ocupar espaço” consistiria somente em jogar, de modo cada vez mais intenso, mais propaganda, mais fake news, nas redes sociais – em um procedimento que, aliás, pode ser (e é) empregado pelos vários grupos uns contra os outros. Além disso, não é claro se a palavra de ordem de “ocupar espaços” não contribui para essa mesma dinâmica negativa, na medida em que ela baseia-se em uma concepção militar, isto é, de combate e destruição dos inimigos, em vez do convencimento dos adversários (isto é, dos concidadãos).

A apreciação acima é bastante pessimista, sem dúvida nenhuma; em contraposição – é o princípio da prudência – convém admitir que o advento do rádio e, depois, da TV suscitaram no século XX também grande pessimismo. (Aliás, o mesmo pode ser dito do advento dos textos de massa.) Infelizmente, será necessário passarmos por alguns mares turbulentos para que as “redes sociais” entrem em uma dinâmica mais positiva, ou menos negativa.

Novamente: o conjunto destas observações resulta em uma avaliação negativa. Melhor dizendo, é uma avaliação claramente pessimista. Em face dela, o que se impõe é a necessidade imperiosa de fazer-se alguma coisa a respeito. Pessoalmente, não tenho conhecimentos de engenharia da computação para argumentar muito, mas tenho a impressão de que as próprias “redes sociais” são limitadas nas alterações que podem implementar. Assim, a solução parece-me que está na sociedade civil: por um lado, na valorização da sociabilidade direta; por outro lado, a forte (re)valorização da tolerância, do apaziguamento social geral; com base nisso, a constituição de pressões para “qualificar” os debates e para rejeitar tanto os intelectuais e gurus que estimulam a intolerância quanto – ainda mais – a realidade dos homens-massa.

§ 2º – Nota sobre a meritocracia

 

-        Os debates atuais sobre a meritocracia são enviesados:

o   de um lado, defensores da “justiça social”, a favor das políticas de “inclusão social” e das “cotas sociais”, ou seja, de modo geral, defensores das cotas raciais em concursos públicos;

o   de outro lado, críticos das “cotas sociais” e defensores sem mais da meritocracia

-        Embora seja possível entender a meritocracia como uma organização social que valoriza o melhoramento e o aperfeiçoamento (a busca geral pelo mérito, pela excelência, pela boa qualidade), no âmbito dos atuais debates é necessário entender a meritocracia como um sistema de seleção de quadros técnicos e dirigentes

-        É claro que há relações variadas entre a estrutura geral da sociedade e o sistema de seleção de quadros; a meritocracia como seleção de quadros só faz sentido em uma sociedade que valorize a qualidade, ou que valorize mais a qualidade que outras características possíveis para a seleção de quadros

-        A melhor forma de entender a importância da meritocracia é compará-la com o outro tipo ideal polar de seleção de quadros, o sistema de castas:

o   A meritocracia seleciona quadros a partir de qualidades mais ou menos objetivas, medidas de acordo com critérios variados (geralmente por meio de questões a serem respondidas, mas também por meio de atividades práticas); a partir do desempenho dos postulantes ao cargo, elabora-se uma arrolagem em que os que se saem melhor em tais avaliações são selecionados;

§  Deve-se notar que os cargos são criados previamente à nomeação dos funcionários; a concorrência aos cargos e às funções está em princípio aberta a todos os cidadãos – com restrições vinculadas a requisitos técnicos, como experiência de vida (resultando em restrições etárias) e/ou conhecimentos específicos (resultando na exigência de determinados diplomas)

o   Na sociedade de castas, cada profissão está confinada a um estrato social específico: quem nasce em uma determinada família terá somente uma profissão (ou ocupação) e cada profissão é exercida apenas por um conjunto determinado de famílias. É claro que em cada estrato e em cada profissão há os bons e os ruins, mas isso não impede que haja uma eventual degradação geral da qualidade das atividades desenvolvidas por um estrato específico; da mesma forma, não há a possibilidade de trânsito entre estratos, de modo a permitir que indivíduos capazes de realizar atividades de outros estratos realizem-nas

§  Uma variação atenuada da sociedade de castas é a aristocracia do Antigo Regime: o nome da estrutura indica “governo dos melhores” (áristos + cratia), mas era na verdade uma casta, um estrato social autodenominado de “melhor”: da Idade Média para a modernidade, enquanto as sociedades eram mais agrárias que urbanas; os servos eram muitos e que os citadinos eram poucos e desorganizados; os assuntos públicos não eram particularmente complicados e resumiam-se muito na arte da guerra; a nobreza fornecia bons quadros, esse mecanismo de seleção funcionava a contento; mas a partir do momento em que as sociedades tornaram-se mais urbanas e as cidades afirmaram-se como locais de liberdade; que as atividades tornaram-se mais pacíficas e industriais e mais complicadas; que os citadinos e as comunas emanciparam-se, os negócios públicos deixaram de poder ser tratados apenas por amadores, passando a exigir-se o tratamento técnico específico, bem como a ascensão social e política das camadas que tinham esse conhecimento: a excelência autointitulada passou a ceder lugar à excelência comprovada (nos termos de Giovanni Sartori: comprovada em particular pelos outros, não por si próprios); isso é o que fica evidente no Portugal da Revolução de Avis (1383-1385), que registra uma clara “revolução burguesa” (como indicado por Alexandre Herculano em O monge de Cister)

-        Dessa forma, a meritocracia é a afirmação da excelência aberta a toda a sociedade, bem como o instrumento de combate à aristocracia e à sociedade estamental própria à Idade Média (mas, de modo geral, a toda sociedade de castas) e, portanto, é o instrumento de ascensão social por definição, ao mesmo tempo em que é um instrumento de seleção de quadros que garante a qualidade e/ou que minimiza os prejuízos e os desperdícios

-        Nas polêmicas atuais – que, de fato, apresentam bem pouco o aspecto de “debates”, isto é, de troca de idéias, consistindo muito mais em disputas e em trocas de agressões –, os defensores da “justiça social” combatem a meritocracia, isto é, combatem justamente o instrumento que garante a abertura dos quadros públicos a indivíduos provenientes de todos os grupos e classes sociais e que permitiria o avanço vertical de seus membros; inversamente, os defensores da meritocracia demonstram-se insensíveis para com as condições concretas em que vive a maior parte da população brasileira, marcada pela pobreza

o   Os defensores políticos contemporâneos da meritocracia não propõem nenhuma solução para o sério problema da péssima qualidade geral da educação e da instrução das classes mais baixas do Brasil, preferindo aferrar-se à fórmula – correta em si mesma, de qualquer maneira – de que a meritocracia deve prevalecer

o   Por outro lado, os defensores da “justiça social”, ao mesmo tempo em que criticam e desvalorizam a meritocracia, com enorme freqüência defendem atalhos institucionais – e, ainda pior, atalhos particularistas para favorecer grupos específicos, ditos “minoritários” (até o momento: mulheres e “negros”)

§  Dessa forma, a lógica universalista própria à meritocracia e constitutiva da idéia moderna de cidadania é solapada

§  Para piorar, entre os mecanismos já existentes para realização institucional desses atalhos, há medidas violentamente daninhas – em particular, os tribunais raciais para aferição da “negritude” de candidatos denominados de “negros” (dos quais se excluem totalmente os “brancos”)

-        Poder-se-ia, talvez, argumentar que a meritocracia conforme apresentada aqui é apenas uma idealização, que ela não corresponde à prática e que, na verdade, há um sem-número de obstáculos à sua realização, incluindo aí o que se poderia chamar de “perversões do ideal”: perpetuação do acesso a possibilidades em determinados grupos, fechamento do acesso a outros grupos etc.

o   Nenhuma dessas objeções parece-me efetiva ou válida. Um ideal permanece importante na medida em que pode ser aplicado útil e positivamente na realidade; se há espaços sociais em que a meritocracia universalista não se verifica, o que se deve fazer é aplicá-la, ou seja, universalizar os procedimentos, não os restringir. Por outro lado, a meritocracia já realizou importantes alterações na sociedade, ao permitir a constituição de ideais universalistas, o acesso de indivíduos de todas as classes a cargos e postos segundo suas aptidões e não de acordo com seu berço etc.

-        Há um problema adicional em relação à meritocracia; na verdade, não se trata de um “problema”, mas das relações que ela sugere com um traço de nossa sociedade e que, para muitos, torna-a problemática: são as relações com o ideal de igualdade.

o   A meritocracia promove os “melhores”, a excelência, o que, por definição, é contra o ideal de igualdade. Sem dúvida que o ideal de igualdade foi tomado em inúmeros sentidos nos últimos dois ou três séculos, passando de uma igualdade moral e social para, por exemplo, igualdade de condições de partida (Rawls). Mas o fato é que a meritocracia e a igualdade são valores opostos; mesmo a obra de Rawls é um esforço para conjugá-las, um tanto sem sucesso

o   A “igualdade” é insustentável em si mesma; a despeito disso, há um aspecto do que seus defensores argumentam que vale a pena reter e que, aliás, relaciona-se à “justiça social”: trata-se do respeito à dignidade humana, às garantias mínimas de condições de vida para todos os seres humanos; essas condições de vida abrangem aspectos materiais, intelectuais, sociais, políticos e morais

o   Dessa forma, a meritocracia tem que ser promovida como um ideal social geral e como um procedimento específico para seleção de quadros; mas ela tem que ser conjugada com os valores da fraternidade e do amor universal: de outra maneira, ela pode aproximar-se de uma forma de darwinismo social

o   Os comentários acima evidentemente são uma resposta às críticas sofridas pelo conceito de meritocracia, a partir dos defensores da “justiça social”.

o              Entretanto, uma reflexão sobre os motivos que levam os defensores da “justiça social” a criticar a meritocracia levaram-me a considerar porque, de fato, ocorrem tais críticas.

o              As conclusão a que pude chegar são as seguintes: (1) por um lado, os defensores da “justiça social” são defensores também, em um nível mais profundo, da idéia de “igualdade social”; (2) por outro lado, os defensores da “justiça social” temem que a meritocracia instaure uma espécie de “darwinismo social”.

o              Vejamos cada uma dessas possibilidades.

o              (1) No que se refere ao uso da “justiça social” como uma forma de promoção da igualdade, há um problema inicial: o que é “igualdade”? Os defensores dessa idéia de modo geral são imprecisos e vagos a respeito e, dessa forma, são profundamente incoerentes. Essa imprecisão pode ser intencional ou não, mas o fato é que se pode entender a igualdade de diferentes maneiras, com resultados teóricos e práticos imensamente diversos entre si: pode ser a igualdade perante a lei (a isonomia), pode ser a presunção de igualdade moral entre os indivíduos, pode ser a igualdade de status social, pode ser a igualdade de condições materiais, pode ser a igualdade intelectual, pode ser a igualdade das condições mínimas de vida etc. etc. Como se vê, não se pode presumir que a “igualdade” é uma coisa única; mesmo defensores notáveis e realmente respeitáveis da noção de igualdade, como Norberto Bobbio, são vagos a respeito. De qualquer maneira, o que a “esquerda” – e Bobbio define a esquerda como o viés político que defende a igualdade – entende por “igualdade” é u’a mistura (confusa e vaga) das várias noções acima, em particular em seus aspectos materiais e de status: de maneira grosseira, é um desejo de que todos tenham as mesmas coisas (o que não é idêntico a que todos tenham condições mínimas dignas), que todos tenham o mesmo status e, em conseqüência disso, a igualdade também se transforma em uma rejeição do “capitalismo” (que também não é conceituado, ou, se é, é conceituado de maneira pobre).

§             (Pode-se argumentar que a “esquerda” não define a igualdade dessa forma: mas o problema é que a “esquerda” NÃO define a igualdade; a observação de que a igualdade é sempre apresentada como um conceito vago e impreciso não é acidental. A crítica reiterada ao “capitalismo”, a defesa contumaz dos regimes comunistas – que impunham, pela força, a igualdade de condições materiais -, a ênfase em grupos sociais de base etc. reforçam o fato de que a “igualdade” defendida é a material e a de status social.)

§             Ora, deixando de lado possibilidades menos óbvias (como a isonomia, o respeito à dignidade humana e as condições mínimas dignas de vida), o fato é que a meritocracia não apenas é contra as sociedades de castas, como também é contra a igualdade. Nesses termos, muitos dos defensores da “justiça social” são contra a meritocracia não devido à defesa da “justiça social” – que, em si mesma, como argumentei antes, é perfeitamente compatível com a meritocracia -, mas porque no fundo tais defensores da “justiça social” defendem a igualdade (material e de status) e não efetivamente a “justiça social”.

o              (2) Tomado isoladamente, o conceito de meritocracia pode ligar-se a uma forma de darwinismo social: neste caso, algumas queixas dos defensores da “justiça social” são absolutamente corretas. Quanto mais alto na estrutura social, maiores as chances de um indivíduo de ter sucesso em sua vida e, nesse sentido, de evidenciar excelência ou mérito; inversamente, quanto mais baixo na estrutura social, maiores as dificuldades. O pobre ou o miserável que não tem o que comer, não tem como estudar, não tem como condições financeiras de dedicar-se a lazeres mais custosos – esse indivíduo em princípio não tem como praticar uma atividade qualquer em que se possa ser chamado de “excelente”. Há exceções a isso, é claro, e como o exemplo do samba demonstra, mesmo a pobreza não impede o exercício da criatividade humana. Mas, ainda assim, é necessário deixar de lado a visão vinculada aos indivíduos e assumir perspectivas mais amplas e mais estruturais.

§             Aliás, mesmo de uma perspectiva mais ampla é necessário adotar um viés mais histórico: algumas atividades são mais valorizadas em algumas épocas, enquanto em outros momentos elas são desvalorizadas; as possibilidades de desenvolvimento de determinadas aptidões variam nesse sentido: por exemplo, as inquestionáveis habilidades militares e políticas de Júlio César seriam inaceitáveis nos dias atuais.

§             Da mesma forma, mas seguindo uma outra perspectiva, convém notar que nem todos têm interesse em ser excelentes em algo; muitos gostam de ser apenas bons, ou apenas regulares em suas atividades, sem serem medíocres.

o              Ora, u’a meritocracia pura, que valorizasse apenas e tão-somente os “melhores”, deixaria para trás uma grande massa desvalorizada: isso, sem dúvida, seria “injusto”. Essa meritocracia “pura” seria uma forma de darwinismo social.

§             Como evitar esse darwinismo social? Sem dúvida alguma, não é combatendo a idéia do mérito, não é combatendo a concepção de que se deve valorizar os melhores e, inversamente, que se deve incentivar a melhoria (individual e coletiva). Se não é aceitável ser-se contra a meritocracia e se a meritocracia “pura” pode ser daninha, a solução é complementar a meritocracia com algum(ns) outro(s) princípio(s) – por exemplo, o respeito à dignidade humana, a fraternidade, a tolerância. Nos termos de Augusto Comte, esse “complemento” seria um princípio – no duplo sentido de ser um valor norteador e de estar no começo: seria, precisamente, o “Amor” que está no “princípio”.

o              Ora, bem vistas as coisas, é aceitável entender a fraternidade, a dignidade, a tolerância como valores que fundamentam parte da noção (vaga) de “igualdade” da “esquerda”. Comte e Isaiah Berlin consideravam que essa fraternidade da igualdade era uma concepção deturpada da fraternidade, ao conduzir a um diagnóstico e a um programa errados. Mas, ainda assim, é aceitável considerar que a fraternidade, a dignidade, a tolerância integram parte do programa dos defensores da “justiça social”. Nesses termos, é fácil perceber o quanto são compatíveis – e, mais do que isso, são complementares – a meritocracia e a “justiça social”.

§ 3º – “Estudos críticos” como metafísica profundamente daninha e essencialmente negativa (i. e., destruidora)

 

-        A palavra “crítica”, como se sabe, tem pelo menos dois sentidos: por um lado, ela indica um período de transição e/ou de enfraquecimento generalizado dos valores de uma determinada ordem social (“crise”); por outro lado, ela também indica uma avaliação percuciente e profunda, supostamente não ingênua mas sempre “radical”

o   O segundo sentido tem sido largamente utilizado, embora de maneira “não crítica”, pois que ingenuamente ignora que a radicalidade de seu sentido associa-se à virulência das suas considerações. Dito de outra forma, as “análises críticas” não somente “profundas” e “verdadeiras”, mas são, antes de mais nada, destruidoras

o   O caráter destruidor das “críticas” baseia-se no sentido dado pela palavra originária, que é “crise”, ou seja, desestabilização profunda de uma ordem qualquer

o   Nesses termos, propor uma análise “crítica” de algo não é propor um estudo aprofundado e “realista” sobre esse algo; estudos aprofundados e realistas podem ser propostos usando-se palavras como “estudos aprofundados e realistas”; quando se propõe fazer-se uma análise crítica, o que se propõe de fato é fazer-se uma análise destruidora, virulenta

-        Assim, é necessário sistematicamente se substituir a palavra “crítica” como sinônimo de “avaliação” pela palavra... “avaliação”

o   Os pós-modernismos, os pós-estruturalismos, os “estudos pós-coloniais”, os “estudos culturais” e os estudos identitários integram de pleno direito os “estudos críticos” e seus profundos defeitos intelectuais e morais

§ 4º – Algumas anotações sobre o republicanismo

 

-        De modo geral, o republicanismo é uma teoria política, não sócio-política: com isso quero indicar que ele propõe um determinado status geral para todos os cidadãos, em caráter universal, independentemente das classes sociais. Evidentemente, é uma teoria que se põe contra, de facto e/ou de jure, diferenças formais de status, como as vigentes nas sociedades de estados e, a fortiori, nas sociedades de castas

-        É necessário reconhecer-se que, além da positivista, há pelo menos mais uma teoria republicana que mais ou menos leva em consideração as classes sociais, ou melhor, que as considera como atores ativos: é a de Maquiavel, com o choque entre as classes e, em particular, a ação dos “pequenos” contra os “grandes” como motor e garantia das liberdades

o   No caso de Maquiavel, falar-se em “classes” não deixa de ser uma grande imprecisão e, até certo ponto, mesmo um erro, na medida em que toma as categorias políticas adotadas pelo florentino (“grandes” e “pequenos”) como sinônimo de categorias sócio-econômicas; todavia, de maneira aproximativa esse procedimento de tomar as categorias como sinônimas não é totalmente errado, pois na Florença renascentista as condições políticas e sócio-econômicas eram largamente coincidentes. Ainda assim, é importante notar que é apenas um uso aproximado e que as “classes”, aí, não têm o mesmo peso que o adotado por Marx; além disso, enquanto Maquiavel admitia a manutenção da pólis, mesmo que com suas divisões, para Marx a luta de classes é guerra civil a partir das clivagens sócio-econômicas

o   Augusto Comte também defendia a ação dos proletários para cobrar dos patrícios as suas responsabilidades; dessa forma, ele falava claramente em caráter instrumental da “luta de classes” (mas, bem entendido, no sentido de “luta de classes” que empregamos a respeito de Maquiavel, acima, e não no de Marx)

-        A idéia da cidadania, como um esquema teórico político, é em tudo semelhante ao republicanismo e, inversamente, bem vistas as coisas, o republicanismo é uma teoria da cidadania. Isso se evidencia na obra de T. H. Marshall, em que a isonomia – mas não a igualdade rousseauniana – é um traço da cidadania, repelindo, dessa forma, as distinções jurídicas de status, compensatórias ou não

-        A teoria sócio-política de Augusto Comte também define um protagonismo para as classes sociais; tomando como base a isonomia, o proletariado tem a função de fiscalizar e cobrar a correção das atitudes do patriciado. Nesse sentido, a luta de classes não é valorizada por seu suposto caráter revolucionário, mas ela pode ter um caráter instrumental para a manutenção da moralidade pública, em um sentido social e republicano 





[1] Michael Watzer (Da tolerância, São Paulo, M. Fontes, 1999) propõe a existência de cinco “regimes” de tolerância: império multinacional, sociedade internacional, consociação, Estado-nação e sociedade imigrante. O quadro que consideramos é o mais habitual nas reflexões sobre a tolerância e enquadra-se no regime do Estado-nação, na terminologia de Walzer.

[2] Bem vistas as coisas, ainda no âmbito da história das religiões, a tolerância é uma virtude que acabou impondo-se devido ao específico absolutismo próprio aos monoteísmos; os politeísmos apresentam maior plasticidade teórica, sendo capazes de incorporar diferentes credos, seja pela simples expansão do panteão, seja pela assunção de que vários deuses teriam apenas diferentes nomes. É claro que os politeísmos progressistas, próprios às sociedades guerreiras, apresentam essa maior plasticidade; os politeísmos conservadores, de sociedades dominadas pelos sacerdócios, são um pouco mais refratárias.

Outra observação do âmbito da história das religiões: muitos apóstolos afirmaram a importância da tolerância e do respeito mútuo, especialmente no sentido de que as conversões não poderiam nunca ser feitas por meio da violência. São Paulo é um exemplo disso; Maomé, por outro lado, foi bastante ambíguo a respeito, havendo uma fase tolerante e outra fase impositiva no Corão.

[3] Os limites são o maior ou menor egoísmo, a maior ou menor competência técnica, a maior ou menor sagacidade etc.

[4] Nas disputas atuais, que se têm caracterizado pela forte e agressiva politização, pela intensa polarização, muitos grupos afirmam que a mera crítica é sinal de intolerância: ora, se criticar algo ou alguém é ser intolerante, isso se converte em intolerância à manifestação das idéias. Dessa forma, é importante insistir: a simples crítica (por mais dura que possa ser tal crítica) não é, em si mesma, intolerância. A pregação e a realização da destruição do que é criticado, isso, sim, é intolerante. Em outras palavras, a intolerância vincula-se de verdade ao estímulo e ao emprego à violência.

[5] Historicamente, tais líderes agressivos existiram em todas as sociedades e em todas as épocas; freqüentemente foram chamados de populistas, demagogos, fanáticos: deveria ser bastante claro, mas a dificuldade em tais denominações é que, se os intolerantes podem, de fato, ser chamados de populistas, demagogos e fanáticos, a recíproca não é necessariamente verdadeira.

Modernamente, os líderes fascistas e totalitários – de direita ou de esquerda – correspondem a eles. No Brasil recente podemos identificá-los em partidos da extrema esquerda, embora também em partidos da esquerda moderada – Lula e seu entorno podem ser incluídos nessa categoria. Entretanto, é no lado da direita, de uma nova direita, que se pode identificar com clareza meridiana esse perfil: Olavo de Carvalho é o grande campeão desse gênero humano que desponta atualmente no país. Não deixa de ser surpreendente – e, talvez, também revelador – o fato de que esse astrólogo mudou-se há muitos anos para os Estados Unidos, de onde pode xingar impunemente políticos, pesquisadores e grupos sociais no Brasil.

[6] Deveria ser apenas uma ironia, mas é um sinal poderoso da degradação de certos círculos sociais, morais e intelectuais o fato de que é justamente na “direita”, que costumava citar Ortega y Gasset para criticar os homens-massa, que se verifica o maior estímulo à (e a maior exploração política da) ação dos homens-massa. Afinal de contas, não é possível qualificar de outra maneira os agressivos (contra os outros) e dóceis (em relação ao seu guru) seguidores de Olavo de Carvalho.

[7] Com o aprofundamento do uso das “redes sociais”, esse clima também deve aprofundar-se. Nesse quadro, os famosos algoritmos das redes sociais, isto é, os mecanismos eletrônicos responsáveis pela atribuição de possíveis interesses a cada um dos usuários, também assumem grande importância. Não por acaso, as empresas que controlam as redes sociais têm sido intensamente cobradas, com razão, pelo aperfeiçoamento desses mecanismos, chegando mesmo a interferir em casos evidentes de incitação à violência, à intolerância e à discriminação.