O artigo abaixo foi escrito como réplica a um outro texto, publicado alguns dias antes, no jornal Gazeta do Povo. Embora eu faça referência expressa a esse artigo inicial, lendo a minha réplica torna-se logo evidente que não faz muita diferença a leitura do primeiro texto; em outras palavras, a minha réplica sustenta-se por si mesma e apresenta informações e interpretações por si só.
A minha réplica foi publicada em 8.5.2020 e está disponível aqui. A versão abaixo é um pouco maior que a publicada na Gazeta do Povo.
O artigo também foi publicado - com acesso aberto - no jornal carioca Monitor Mercantil, na edição de 23 a 25 de maio de 2020; ele encontra-se disponível aqui. Lá embaixo porei também a versão JPG do artigo.
N. B.: A data de publicação do meu artigo não poderia ser mais emblemática: em 8 de maio de 1945 a Alemanha nazista rendeu-se de maneira incondicional aos Aliados, encerrando a luta contra o fascismo na Europa.
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O Positivismo como cortina de fumaça para
os erros da direita brasileira
O artigo “O
que é o Positivismo, a filosofia política que faz a cabeça dos militares
brasileiros”, escrita pelo jornalista Rafael Salvi e publicada na Gazeta do Povo em 4.5.2020, é uma
coleção inacreditável de mitos, invenções arbitrárias e erros sobre o
Positivismo, sobre seu criador, Augusto Comte, e sobre a atuação dos
positivistas no Brasil; praticamente
todas as suas informações estão erradas, o que é mesmo notável. Aliás, não
por acaso, entre suas fontes – todas elas de segunda, terceira ou quarta mãos –
estão Olavo de Carvalho e João Camilo de Oliveira Torres, dois intelectuais
conservadores e produtores em série de mitos, invenções arbitrárias e erros. Na
mesmíssima senda anda Rodrigo
Constantino,
celebrado “autor” – mas não “pesquisador” nem “historiador”, nem “filósofo” –
da nova direita radical brasileira. Todos eles colecionam, como se fosse uma
competição, tolices e erros sobre o Positivismo, em um esforço aparentemente
coordenado contra essa doutrina nas últimas semanas. Em virtude disso, merece
uma réplica que seja minimamente detalhada.
Comecemos pela obra do francês Augusto Comte (1798-1857),
fundador da Sociologia, da História das Ciências, do Positivismo e da Religião
da Humanidade. A sua principal obra foi o Sistema de
política positiva (1851-1854), em que, repetindo várias considerações
pacifistas presentes em sua obra preparatória do ponto de vista intelectual (o Sistema de filosofia positiva
(1830-1842)), ele afirma com todas as letras que a política moderna tem que ser
pacifista e civilista, que as forças armadas devem ser dissolvidas e que as
forças policiais devem ter um caráter cidadão e de manutenção da ordem pública.
De maneira correlata, a política moderna deve caracterizar-se pela “separação
entre os dois poderes”, ou seja, pela separação entre os poderes temporal e
espiritual, em que o Estado não tem religião oficial e as religiões não se
beneficiam do poder do Estado – o que em termos gerais equivale à laicidade do
Estado. Política pacifista, civilista e laica: as liberdades de pensamento, de
expressão e de associação são a base da organização social e política e esta,
por sua vez, fundamenta-se na fraternidade universal e no respeito mútuo. O
resultado disso tudo é que a política moderna – republicana – é cada vez mais
regulada pela moral, pelos valores, e, de maneira concomitante, cada vez menos
regulada pela força física.
Uma outra consequência da “separação entre os dois poderes”
é que o governo não pode ser constituído pelos “sábios” ou pelos técnicos.
Evidentemente é necessário que o Estado tenha seus técnicos, assim como um
corpo burocrático responsável pela realização das políticas públicas; todavia,
há uma gigantesca diferença entre o Estado possuir um corpo técnico e esse
mesmo Estado ser dirigido pelos técnicos. Augusto Comte dizia com todas as
letras que os “sábios” não podem mandar no Estado; esse regime político era por
ele chamado de “pedantocracia” (palavra criada por Stuart Mill) – “governo dos
pedantes” – e, em termos atuais, ela poderia ser chamada de “tecnocracia”. Para
Comte, o governo deve ser dirigido por cidadãos com espírito público, visão de
conjunto, sensibilidade social, tolerância e fraternidade – e sempre atentos às
opiniões e avaliações da opinião pública.
Vale notar que, justamente porque era movido por um espírito
histórico, relativo e altruísta, Augusto Comte afirmava a necessidade de uma
política moderna que fosse positiva, incluindo nessa política o respeito
escrupuloso e cuidadoso pelas religiões antigas e por seus papéis históricos;
sendo francês, Comte indicava aí nomeadamente o catolicismo. Essa regra foi
cumprida pelos positivistas, mas, ao mesmo tempo, foi ridicularizada pela esquerda
e “esquecida” pela direita católica; em qualquer caso, como a respeito de
vários outros aspectos, ela foi objeto de desinformação.
A atuação dos positivistas no Brasil seguiu à risca essas
orientações. O autor da bandeira nacional republicana, o vice-Diretor da Igreja
Positivista do Brasil, Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), tinha em mente os
valores indicados acima ao seguir a orientação comtiana e incluir o “Ordem e
Progresso” na bandeira. Aliás, nas centenas
de publicações da IPB, Teixeira Mendes e Miguel Lemos (1854-1917, Diretor da
IPB) não se cansaram nunca de repetir esses valores e de refutar os sofismas
daqueles que atribuem o militarismo ao Positivismo. (Aliás, exatamente para
combater a desinformação antipositivista, uma dessas publicações está
disponível para consulta pública e gratuita no portal Archive.org.)
O professor Benjamin Constant Botelho de Magalhães
(1836-1891) – positivista por opção religiosa, filosófica e política, militar
por necessidade, como se vê na monumental
biografia que Teixeira Mendes escreveu sobre ele – era igualmente adepto
dessas concepções. Assim, o ensino que ele realizava na Escola Militar e na
Escola Politécnica era civilista, pregando o afastamento dos militares (como
militares) da vida política nacional e ocidental. Exatamente por isso, Benjamin
Constant e sua orientação foram objeto de ódio pelos militaristas, que pregavam
a politização das forças armadas e a militarização da política. Entre esses
militares, o mais famoso e importante foi o arquigolpista General Pedro Aurélio
de Góis Monteiro (1889-1956), que, apoiando o golpe de 1930, apoiou também todos
os militares golpistas dali por diante, em particular aqueles simpáticos ao
integralismo (a versão nacional do fascismo) e que fizeram o golpe de 1964,
como o antigo integralista Olímpio Mourão Filho (1900-1972). No regime
autoritário de 1964, um dos seus apoiadores de primeira hora foi o economista
“liberal” Roberto de Oliveira Campos (1917-2001); apesar de “liberal”, ele foi
Ministro do Planejamento do governo autoritário e nunca deixou de chamar-se de
“tecnocrata”.
Todas essas informações são públicas e disponíveis para
consulta; só é necessário buscar as fontes originais, não as secundárias,
terciárias, quaternárias... Uma informação mais difícil de obter, todavia, são
as opiniões de Henrique Batista da Silva Oliveira e Alfredo de Morais Filho –
como Benjamin Constant, positivistas por opção religiosa, filosófica e
política, militares por necessidade – a respeito dos militares de 1964. A
partir de conversas pessoais que mantive com eles e também de relatos de amigos
meus, para eles quem deu o golpe de 1964 eram “fascistas”; não por acaso, chamavam
Góes Monteiro de “Gás morteiro”, que enquanto viveu fez o possível para
combater com agressividade os positivistas militares. Por outro lado, o tecnocrata
autoritário Roberto Campos, que é objeto de admiração dos liberais e da nova
direita brasileira – incluídos aí o Ministro da Economia Paulo Guedes, o
astrólogo Olavo de Carvalho e o autor Rodrigo Constantino – era encarado como alguém
sem patriotismo, um “entreguista”, que aliás até o fim de sua vida desejava
vender o patrimônio brasileiro para os estrangeiros. A nova direita, embora
afirme defender a “liberdade” e combater a “tecnocracia”, não vê problema
nenhum em celebrar Góes Monteiro e Roberto Campos e em atribuir os defeitos de
gente como eles ao “Positivismo”.
Todos os erros teóricos e históricos indicados acima provêm
da (nova?) direita conservadora (neste caso, “católica” e “liberal”): não é por
acaso que citam em profusão J. C. Oliveira Torres. Entretanto, é motivo de
assombro, ou de ridículo, que repitam os mesmíssimos erros que a esquerda
sempre gostou de imputar ao Positivismo e aos positivistas. Embora seja possível
incluir aí Marilena Chauí e Michel Löwy, um autor menos espalhafatoso foi o
historiador paulista Sérgio Buarque de Hollanda (1902-1982), fundador do
Partido dos Trabalhadores. Como já tive oportunidade
de indicar
e refutar,
Sérgio Buarque repetiu todas as desinformações indicadas acima, com a espantosa
inovação de pretender entender a obra de Augusto Comte melhor que o próprio
Teixeira Mendes!
Olavo de Carvalho, Rodrigo Constantino e agora Rafael Salvi,
entre outros, têm-se dedicado a imputar ao Positivismo os seus próprios erros:
politização dos militares, aumento da violência na política, desprezo pelos
aspectos morais e afetivos na vida sociopolítica, desprezo pela fraternidade e
pela tolerância, instrumentalização do Estado por ideologias
político-religiosas etc. Eles atribuem ao Positivismo a militarização da
política, mas ao mesmo tempo apoiam um governo que se caracteriza exatamente
por essa militarização e por um esforço de tecnocratização do Estado; aliás,
fazem eco ao voto de extermínio dos positivistas proferido em 9.3.2020 por um
dos filhos do Presidente da República.
Infelizmente, tudo isso é apenas distração e desinformação.
Desde há alguns anos vivemos um novo tenentismo, com crescentes grupos
paramilitares bastante agressivos, de origem castrense e civil; esse novo
tenentismo não tem sido reprimido pelas Forças Armadas, que o tolera como se
não fosse profundamente perturbador, tanto da ordem político-social quanto da
própria disciplina militar.
Nesses termos, os golpes dirigidos contra o Positivismo e os
positivistas servem apenas para (tentar) disfarçar a própria política
antirrepublicana e anticívica seguida atualmente pela direita nacional. De modo
mais específico, a difusão renovada dessa desinformação integra uma campanha
promovida pela direita histérico-política desde há algumas semanas no sentido
de incentivar os militares – que cada vez mais integram o governo, movidos, sem
dúvida, por um sincero embora equivocado senso de dever e de patriotismo – a
abandonarem o comportamento constitucional e republicano de obediência às
regras e de limitação da atividade propriamente política (felizmente
interpretados pela direita como sinais de Positivismo) e a adotarem um renovado
comportamento político ativista, intervencionista e autoritário.
A crítica ao Positivismo, assim, é uma nuvem de fumaça e um
código da direita para um eventual golpe militar fascista.
Gustavo Biscaia de Lacerda é positivista ortodoxo e Doutor
em Sociologia Política.