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17 abril 2024

Valorizar a Idade Média implica ser conservador?

No dia 23 de Arquimedes de 170 (16.4.2024) realizamos nossa prédica positiva. Demos então continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, concluindo a décima conferência (dedicada ao regime privado) e iniciando a undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão respondemos a uma questão histórica, filosófica, moral e política: valorizar a Idade Média implica o conservadorismo?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/Q5vGG) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/6isxj). O sermão começou aos 47 min 48 s.

As anotações que serviram de base para exposição oral estão reproduzidas abaixo.

*   *   *

Valorizar a Idade Média implica ser conservador? 

-        A questão que intitula este sermão pode parecer curiosa, surpreendente e até meio deslocada: de onde teria saído essa relação entre Idade Média e conservadorismo? Aliás, por que isso seria importante?

o   De fato, essa não é uma questão evidente, nem é evidente as suas respostas, mas, ainda assim, ela é importante e tem grandes conseqüências intelectuais, morais e práticas

-        Por que essa questão apresenta-se? Na verdade, quem a formulou?

o   Há diversos críticos do Positivismo – e mesmo algumas pessoas próximas a ele, não raras vezes católicos – que afirmam que a valorização da Idade Média por Augusto Comte implica a valorização das concepções católicas e, portanto, implica um claro conservadorismo

§  Vale realçar: essa crítica é feita mesmo por autores católicos – que, de maneira incoerente, buscando criticar o Positivismo, não hesitam em criticar o catolicismo

§  A noção de “conservador”, aqui, significa “retrógrado” e/ou repressor, favorável à censura, autoritário, fanático, intolerante.

o   De maneira implícita (mas muitas vezes explícita) está o raciocínio de que ser “progressista” implica desvalorizar a Idade Média e/ou valorizar a Antigüidade e/ou a modernidade

o   Também está implícita a concepção de que a Idade Média teria sido a “noite dos mil anos”, um longo período de fanatismo e barbárie

§  A concepção da “noite dos mil anos” é defendida não somente pelos “progressistas” anti-históricos como, não por acaso, pelos anglossaxões (ingleses e estadunidenses em particular), que adotam uma visão protestante e anticatólica da Idade Média

o   Em suma: como Augusto Comte valorizou a Idade Média, ele teria valorizado a barbárie, o fanatismo, a estupidez etc., assim como teria desvalorizado o progresso, as luzes, o esclarecimento etc.

§  De maneira implícita, Augusto Comte também teria valorizado (ou defendido) algum “autoritarismo”

·         Essa valorização (ou defesa) de “autoritarismo” ocorreria porque a valorização da Idade Média, por Augusto Comte, ocorreu a partir da leitura dos autores católicos José de Maistre e Luís de Bonald

o   Comte valorizava em De Maistre a atuação do papado (e, de modo geral, do sacerdócio) como intermediário moral das relações sociais medievais, não o irracionalismo teológico nem o despotismo político

·         A associação maliciosa entre Comte e De Maistre-De Bonald foi afirmada, por exemplo, pelo ex-frade Roberto Romano – que, não por acaso, sempre fingiu ignorar que Augusto Comte valorizava Diderot, D’Alembert, Condorcet etc. e que (como veremos longamente abaixo) a opinião de Comte sobre a Idade Média era qualquer coisa menos “acrítica”

-        Para limpar o terreno e responder com clareza à pergunta inicial (“valorizar a Idade Média implica o conservadorismo?”):

o   Augusto Comte afirmou: Trata-se sobretudo, no fundo, de incorporar intimamente ao Positivismo, com melhoramentos radicais, tudo quanto o sistema católico da Idade Média pode realizar ou sequer esboçar de grande e de terno” (Correspondência Sagrada, 32ª carta, de Augusto Comte a Clotilde; de 5 de agosto de 1845[1])

-        Qual a importância, no âmbito do Positivismo, da valorização da Idade Média?

o   São vários os sentidos; podemos indicar os seguintes: (1) afirmação da continuidade humana, com o vínculo entre a Antigüidade e a modernidade; (2) estabelecimento do terceiro termo do progresso; (3) desenvolvimento moral, após os desenvolvimentos intelectual e social

o   Talvez o aspecto mais importante seja a afirmação da continuidade humana, com todas as conseqüências disso

§  A noção de continuidade humana indica que a Idade Média seguiu-se de maneira orgânica à Antigüidade e que dela seguiu-se a Idade Moderna

§  Lembremos que a reação à decadência do catolicismo, a partir do século XIV, passou a desvalorizar a Idade Média com a noção de “renascimento”

§  Essa concepção foi entronizada mesmo por autores que afirmaram o progresso humano, como no caso exemplar de Condorcet e seu “Esboço de um quadro histórico dos progressos do espírito humano”

o   Reafirmada a continuidade humana, Augusto Comte estabelece que a Idade Média é o terceiro termo de uma série progressiva

§  Uma progressão, ou, em todo caso, uma série qualquer só pode ser estabelecida quando há três termos; assim, para que fosse possível realmente afirmar o progresso humano, a partir do caso exemplar do Ocidente, a apreciação da Idade Média era necessária

o   Deixando de lado as concepções segundo as quais a Idade Média foi uma “noite de mil anos”, o seu duplo aspecto católico-feudal constitui para Augusto Comte o desenvolvimento moral, com conseqüências sociais bem marcadas

§  Assim como a Idade Média correspondeu ao desenvolvimento moral, a Grécia correspondeu ao desenvolvimento intelectual e Roma, ao desenvolvimento prático

o   Algumas citações interessantes:

§  Comenta o Prof. David Carneiro (Civilização católico-feudal, São Paulo, Athena, 1940; p. 125): “Foi Augusto Comte quem veio mostrar, contrariando os seus precursores sociológicos, que a Idade Média não constituía rotura da continuidade humana e que emanava do regime precedente; que a sua função era provisória e não definitiva e que enfim a Idade Moderna proveio da Idade Média”

§  Frederic Harrison (em The New Calendar of Great Men, 2ª ed., MacMillan, London, 1920; p. 273) resume da seguinte maneira as missões da Idade Média:

 

 

Missão

Agente principal

1)                   

Purificar e disciplinar as mais ferozes paixões humanas, especialmente a desumanidade, o orgulho e a luxúria

Igreja Católica

2)                   

Como meio e corolário da missão anterior, elevar a posição da mulher

3)                   

Proteger os fracos, dignificar a gentileza e elevar o valor da natureza humana

4)                   

Suprimir a prevalência da guerra universal e transformar a guerra de conquista em guerra de defesa

Feudalidade/cavalaria

5)                   

Estabelecer verdadeiros governos locais, sob a sanção de deveres recíprocos, em vez da submissão a um império centralizado

6)                   

Suprimir a escravidão e fundar a instituição do trabalho livre

 

§  Ainda observa Harrison: “O resultado foi atingido, é verdade, muito imperfeitamente: com muita confusão, crueldade e loucura; mas também com magníficos heroísmo e autodevotamento. Se em última análise [o esforço da Idade Média] foi um fracasso, isso ocorreu porque o sucesso era impossível com tão limitado conhecimento e falsas idéias. Mas ela foi o ponto de virada da história; foi a transição cardeal e produziu algumas grandes coisas que nunca foram vistas na Terra antes ou desde então. As memórias amargas que seus fracassos deixaram são devidas a isto: que nunca se reconheceu quão inteiramente provisório ela foi” (p. 273).

o   Em suma: a valorização da Idade Média por Augusto Comte assume pelo menos dois aspectos: (1) afirmação da continuidade histórica (em que a Idade Média é uma transição orgânica e necessária entre a Antigüidade e a Idade Moderna) e (2) desenvolvimento moral (ocorrido necessariamente após e a partir dos desenvolvimentos anteriores, intelectual e prático)

o   Todos esses aspectos evidenciam com uma clareza ofuscante que a valorização da Idade Média por Augusto Comte foi sempre no sentido do progresso

§  O progresso aí é tanto o desenvolvimento do ser humano quanto a regulação dos atributos humanos

§  Para quem conhece o Positivismo e a Religião da Humanidade, é tão evidente que chega a ser escandaloso que digam ou sugiram o contrário, mas, ainda assim, é necessário reafirmá-lo: todo progresso implica, como pré-condição, a liberdade, que, aliás, é condição da ordem e não do progresso

-        A valorização da Idade Média e da continuidade histórica não é algo secundário, não é detalhe nem é mero ornamento:

o   O Positivismo não pode desprezar ou negligenciar as religiões preliminares, devendo incorporar seus avanços: “o Positivimso não poderia ser a verdadeira religião se ele não pudesse sempre aceitar plenamente a sucessão do teologismo, e mesmo do fetichismo, que devem ser, em todos os aspectos, os seus precursores naturais ” (Política[2], II, p. 346)

o   Nesse sentido, vale lembrar adicionalmente que há um impulso contemporâneo em favor da valorização de todas as religiões e perspectivas; esse impulso tem um aspecto multicultural e, nesse sentido, é pleno de problemas e incoerências, mas, de qualquer maneira, ele visa a de fato fazer respeitar todas as religiões: em face desse impulso, por que estaria errado o Positivismo?

-        Exposta a parte negativa deste sermão (em que demonstramos que é falsa e de má fé a acusação de conservadorismo feita a Augusto Comte devido ao seu elogio da Idade Média), podemos passar para a parte positiva do sermão, examinando rapidamente como de fato Augusto Comte apreciava a Idade Média

o   Faremos na seqüência várias citações indiretas de Augusto Comte, tanto para apresentar o seu pensamento a respeito da Idade Média quanto para indicar o quanto é errada e maliciosa a crítica de que o Positivismo seria conservador ao avaliar a Idade Média

-        Em primeiro lugar, Augusto Comte considera que a Idade Média durou 900 anos, entre os séculos V e XIII, ou, grosseiramente, entre os anos 400 e 1300

o   A Idade Média divide-se, então, em três fases, cada uma de três séculos de duração:

§  “Estabelecimento fundamental”[3]: dispersão política, com ênfase na autonomia local; séculos V a VII

§  “Guerras defensivas contra os politeístas do Norte e sua incorporação pela força e pela religião”[4]: coordenação central: séculos VII a X

§  “Guerra defensiva contra o monoteísmo islâmico, em que há o estabelecimento do papado como maior poder e em que o poder temporal se distingue do espiritual”[5]: conjugação da autonomia local com a coordenação central: séculos XI a XIII

-        Como vimos, a Idade Média apresentava um duplo aspecto: o católico e o feudal

o   Ambos esses elementos foram responsáveis por um dos mais importantes resultados da Idade Média: a preponderância dos sentimentos sobre a ação e sobre a inteligência (Apelo[6], p. 30)

o   Cada um desses elementos foi o responsável principal – mas não único, nem exclusivo – por alguns desenvolvimentos ocorridos durante o período

o   A ação do catolicismo deveu-se em parte à sua doutrina, mas em parte muito maior à ação de seu sacerdócio

§  A doutrina católica foi importante para a afirmação do universalismo doutrinário; para a afirmação direta da moralidade humana; de maneira um tanto confusa, para a separação dos dois poderes (Temporal e Espiritual)

§  A emancipação feminina e a valorização das mulheres; a emancipação dos trabalhadores; a adoçamento dos hábitos; a separação entre os dois poderes: isso foi obra do sacerdócio

·         Como observa Augusto Comte, a sabedoria prática do sacerdócio, a começar pelo papado, foi a principal responsável por alguns dos mais importantes progressos ocorridos na Idade Média

·         O sacerdócio, além disso, foi o responsável pela aplicação atenuada, racional e relativa do dogma católico; sem essa sabedoria prática, o dogma seria aplicado em sua inteira irracionalidade, com os previsíveis piores resultados possíveis (como, diga-se de passagem, em escala muito aumentada e piorada, vê-se hoje em dia)

§  Outros aspectos importantes sobre a ação social e moral do catolicismo indicados por Augusto Comte, em particular em relação às limitações e aos defeitos da doutrina católica:

·         A moral universal baseada nos deveres é instituição católica (Política, II, p. 120)

·         A transição realizada pelo Positivismo visa a reconstruir, melhor que na Idade Média, a República Ocidental (Política, IV, p. 501)

·         O catolicismo fez prevalecer a repressão do egoísmo, mas o desenvolvimento do altruísmo é mais eficaz, pois a melhor restrição de um impulso é o desenvolvimento de seu antagonista, como feito pela cavalaria na Idade Média (Política, IV, p. 282)

·         O catolicismo não produziu as mudanças medievais, mas apenas as consagrou (Política, II, p. 109)

·         O catolicismo é incapaz de regular a vida pública, limitando-se à doméstica (Política, II, p. 112)

·         Na Idade Média, embora a vida privada fosse regrada pelo viver às claras, a vida pública continuava regrada pelos mistérios e pelas intrigas (Política, IV, p. 460)

·         Além disso, há a necessidade de uma concepção geral do futuro para que se possa efetivamente viver às claras – algo que só o Positivismo pode fazer (Política, IV, p. 460)

·         O catolicismo foi contraditório ao querer sistematizar a moral mas retirando o homem do mundo (Apelo, p. 30-31)

·         O Positivismo deve reparar os estragos católicos, em particular ao afirmar a existência natural do altruísmo (Apelo, p. 31)

§  Retomando o tema da crítica católica à valorização positivista da Idade Média:

·         No final das contas, isso não é casual

·         Vale notar que foram as reflexões da reação católica à Revolução Francesa que permitiram a Augusto Comte apreciar a Idade Média (Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo[7], p. 421)

o   Mas – o que é notável e que era notável no século XIX como, de modo geral, ainda o é hoje em dia – o Positivismo faz mais justiça a De Maistre que o catolicismo (Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo, p. 87)

o   O Positivismo é a única religião capaz de glorificar sem incoerência todas as etapas preliminares da Humanidade (Apelo, p. 85-86)

o   Ainda assim, os retrógrados (e os revolucionários) são ingratos em relação ao Positivismo, não retribuindo a justiça praticada pela religião positiva (Apelo, p. 86)

o   O Positivismo deve obter apoios entre os retrógrados, desde que isso não seja entravado por fanatismos que realcem os meios em vez dos fins (Apelo, p. 86)

o   A retrogradação não possui nunca um caráter orgânico (Apelo, p. 87)

o   Os retrógrados são contraditórios, pois exigem a unidade mas não cumprem as suas principais condições da unidade (Apelo, p. 87)

o   Os retrógrados concebem o século XIX isolando-o do século XVIII, assim como concebem a Idade Média sem a filiar à Antigüidade: sem considerarem a totalidade histórica (ou seja, do passado), são incapazes de conceber o futuro e elaboram uma síntese parcial, local e temporária (Apelo, p. 89)

·         A anarquia metafísica nega a influência histórica (Apelo, p. 43)

·         O espírito revolucionário devastou o sentido de continuidade, especialmente a partir da Idade Média e em relação a ela (Apelo, p. 43)

·         O catolicismo negou a continuidade, ao repudiar seus antecessores (Apelo, p. 44)

·         O catolicismo é tão culpado disso quanto o protestantismo ou o deísmo, pois foi o primeiro a romper a cadeia da continuidade, ao negar seus antepassados antigos (Política, IV, p. 371)

·         Depois do catolicismo, foram os protestantes e os deístas que negaram seus antecessores, cometendo a mesma injustiça em relação ao catolicismo que este cometera em relação ao seu próprio passado (Apelo, p. 44)

·         A Idade Média tendia, em termos espirituais (catolicismo), para a teocracia, ao passo que, em termos temporais (feudalidade/cavalaria), tendia para a modernidade (Apelo, p. 47)

·         Os únicos que são capazes de compreender a Idade Média são os positivistas, ao ligá-la aos seus antecedentes e aos seus sucessores (Apelo, p. 95)

o   O elemento feudal desenvolveu outros traços importantes:

§  Desenvolveu a cavalaria e os hábitos sistemáticos de gentileza, cuidado com os fracos e os pobres, veneração e dedicação às mulheres

§  Também desenvolveu o governo local, com a necessária coordenação com o poder central

·         Esse traço, importante por si só, também resultou em hábitos de autogoverno e na chamada “emancipação das comunas”, que foram os germes das cidades industriais e republicanas posteriores

-        Sobre a cavalaria, Augusto Comte observa o seguinte:

o   O catolicismo desenvolveu a pureza, mas foi a cavalaria que desenvolveu a ternura (Apelo, p. 53-54)

o   A cavalaria é que operou empiricamente a conciliação entre a espiritualidade católica e a temporalidade feudal (Apelo, p. 94)

o   O impulso regenerador da cavalaria foi interrompido bruscamente pelo protestantismo (Apelo, p. 117)

§  Os ideais cavaleirescos ainda eram vivos e pulsantes no século XVI, como ilustra a vida e a atuação de Pierre Terrail, o Cavaleiro Baiardo (1473-1524)

o   A cavalaria manteve e desenvolveu o preceito de subordinar dignamente a vida privada à pública, como indicado pela Antigüidade (Política, IV, p. 292)

o   Inácio de Loiola buscou retomar os esforços da cavalaria, além do culto à Virgem; mas seus esforços fracassaram e sua tentativa transformou-se em uma hipocrisia opressiva e degradante (Apelo, p. 117)

o   Vale lembrar que os cruzados (atuantes na terceira fase medieval) paulatinamente substituíram a ficção extra-humana de deus pela idealização humana da Virgem Maria (Apelo, p. 118)

o   Uma prova de que o culto da Virgem Mãe é mais devido à ternura feudal que à pureza católica é o fato de ele não se ter desenvolvido entre os bizantinos, a despeito da identidade doutrinária (Política, IV, p. 412)

o   Sem o instinto cavalheiresco, isto é, sem a atuação da cavalaria, a Idade Média teria entravado o dogma do Grande Ser (Apelo, p. 37-38)

-        Em suma:

o   A valorização da Idade Média por Augusto Comte assume pelo menos dois aspectos:

§  (1) afirmação da continuidade histórica (em que a Idade Média é uma transição orgânica e necessária entre a Antigüidade e a Idade Moderna)

§  (2) Desenvolvimento moral (ocorrido necessariamente após e a partir dos desenvolvimentos anteriores, intelectual e prático)

§  Todos esses aspectos evidenciam com uma clareza ofuscante que a valorização da Idade Média por Augusto Comte foi sempre no sentido do progresso, não no do “conservadorismo”

§  A valorização da Idade Média por Augusto Comte implicava necessariamente a seleção dos aspectos positivos desse período, que devem ser incorporados com “melhorias radicais”

o   A Idade Média constituiu-se pela fusão do catolicismo e do feudalismo

§  O catolicismo teve aspectos positivos principalmente devido à atuação prática do seu sacerdócio, que regulou principalmente a vida privada e estimulou a pureza (a contenção, ou, no caso, a repressão do egoísmo)

§  O feudalismo teve efeitos positivos principalmente devido à cavalaria, estimulando a ternura (o estímulo direto do altruísmo) e subordinando a vida privada à vida pública

 



[1] Ver também, de R. Teixeira Mendes, O ano sem par (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900), p. 295.

[2] Augusto Comte, Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 5. ed. Paris: Larousse, 1929.

[3] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[4] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[5] Fonte: David Carneiro, Civilização católico-feudal (São Paulo, Athena, 1940), p. 125.

[6] Augusto Comte, Apelos aos conservadores. Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1899.

[7] Augusto Comte, Discours préliminaire sur l’ensemble du Positivisme, in: Système de politique positive ou traité de Sociologie instituant la Religion de l’Humanité. 5. ed. Paris: Larousse, 1929, v. I.

09 abril 2024

O que é o patriciado?

No dia 16 de Arquimedes de 170 (9.4.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, abordamos o conceito de "patriciado" no âmbito do Positivismo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/CCHo6) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/HEMrz). O sermão começou aos 51 min 11 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

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O que é o patriciado? 

-        Há algumas semanas um novo adepto do Positivismo, que se tem mostrado interessado em aspectos práticos da doutrina, pediu que eu abordasse a concepção de “patriciado”: daí esta prédica

o   Como veremos, a teoria do patriciado é simples em seus termos gerais, embora guarde relações com muitos aspectos da Religião da Humanidade

o   Dessa forma, diversos aspectos desta exposição serão comentados inicialmente em um momento e serão concluídos em outro momento: não se trata de fragmentar o raciocínio, mas de juntar aos poucos os vários elementos para que eles constituam um todo orgânico

-        O conceito de “patriciado” acaba surgindo no cruzamento de diversas teorias específicas de Augusto Comte

o   Essas teorias são: a teoria religiosa e da regulação moral da sociedade (é a teoria do sacerdócio); a teoria da política positiva (é a sociocracia e os poderes Temporal e Espiritual); a teoria das atividades práticas (a teoria da indústria)

o   Como sabemos, as teorias do sacerdócio e da sociocracia foram expostas e desenvolvidas no Sistema de política positiva e nas obras assessórias (Catecismo positivista, Apelo aos conservadores, correspondência)

o   Mas a teoria da indústria foi apenas projetada: ela seria exposta e desenvolvida no tomo IV da Síntese subjetiva, previsto para a década de 1860

o   De qualquer maneira, como ficará evidente ao longo desta exposição e como uma decorrência natural das teorias do sacerdócio e da sociocracia, a proposta positivista do patriciado não faz nenhum sentido fora dos quadros da Religião da Humanidade e da respectiva regeneração por via religiosa

§  Em particular, isso significa (1) que o patriciado não é um conceito apenas político-econômico e (2) que o patriciado não é uma palavra diferente para tratar da burguesia (e justificá-la)

-        Indo diretamente ao ponto: os patrícios são os líderes, ou melhor, os chefes econômicos

o   O nome “patrício” vem da Antigüidade romana, homenageando os líderes políticos e chefes das famílias da República romana

§  Essa homenagem indica o quanto Augusto Comte respeitava e valorizava os romanos

§  Da mesma forma, a palavra “proletariado”, também adotada por Augusto Comte, tem origem nos plebeus romanos

o   Os patrícios – cujo conjunto constitui o patriciado – representam a providência material da Humanidade

o   Os patrícios são os responsáveis pela produção material da Humanidade, decidindo o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual tecnologia, empregando quantos trabalhadores, visando a qual mercado específico etc.

§  Augusto Comte determina quatro tipos gerais de atividades produtivas: a agricultura, a indústria, o comércio e, estimulando cada um deles, os bancos

o   Os empreendimentos devem limitar-se pela capacidade de responsabilizarem-se pessoalmente por suas atividades

§  Augusto Comte não chegou a desenvolver estes aspectos, mas parece-nos que a responsabilização deve ser avaliada por seus efeitos concretos, o que abrange a geração de empregos, os salários pagos, as condições de trabalho e a qualidade e a quantidade da produção

·         A máxima prática – “a riqueza é social em sua origem e deve ter uma destinação social” – impõe-se com toda a clareza aqui

o   Vale lembrar que essa máxima é positivista e que só o Positivismo elaborou-a

·         Há espaço para o lucro, mas este deve ser entendido como a condição para o crescimento econômico e para os investimentos produtivos; o lucro não pode ser visto como um fim em si mesmo nem como a satisfação da ganância

o   Nesse sentido, o lucro não é único nem, de longe, é o principal parâmetro para avaliar o “sucesso” de algum empreendimento

o   O sucesso de um empreendimento é a sua capacidade de satisfazer as necessidades sociais: como já indicamos, geração de empregos de qualidade, produção de produtos úteis e de qualidade

§  Além disso, no aspecto da responsabilização pessoal há um aspecto de conhecimento pessoal entre o patrão e os empregados, com relações afetivas desenvolvendo-se entre eles

·         Não apenas se trata de relações afetivas (altruístas) entre patrão e empregados, mas também do desenvolvimento de verdadeira confiança mútua

o   Como o capital é social em origem e destinação, os patrícios devem ser vistos – e, acima de tudo, eles devem ver a si mesmos – como os administradores do capital material humano em favor da sociedade, não como “donos” da riqueza

§  A administração do capital é responsabilidade pessoal intransferível de cada patrício

§  Como gestores, eles devem ter a capacidade para isso, ou seja, eles devem ter poderes para isso

·         Suas amplas (ou melhor, suas pesadas) responsabilidades exigem que eles tenham amplos poderes

§  Mais do que outros, os patrícios devem entender e aplicar a noção de deveres mútuos

·         Todos têm deveres para com todos; mas, dependendo da situação de cada um, alguns têm maiores deveres que outros: no caso dos patrícios, seus deveres são realmente maiores que os dos demais

-        A atuação dos patrícios pode, e deve, ser contraposta à atuação das outras forças sociais:

o   Em relação ao proletariado, os patrícios são a força concentrada; o proletariado é a força dispersa

§  Augusto Comte lembra que o proletariado tem poder por meio da união; já os patrícios são poderosos devido aos meios de que dispõem – e, por isso, seus desvios são muito mais graves

o   Em relação ao sacerdócio, os patrícios representam o poder temporal; o sacerdócio é o poder espiritual

o   Em relação às mulheres, os patrícios representam a força física; as mulheres constituem o aconselhamento moral

-        Os patrícios são os servidores da Humanidade mais diretamente expostos ao egoísmo individualista e às perspectivas de detalhe

o   Os patrícios são os responsáveis pela conservação, pela reprodução e pelo aumento das riquezas materiais

§  As riquezas materiais são temporárias, no sentido de que, com o passar do tempo, todas elas degradam-se (é claro que algumas degradam-se mais rapidamente que outras); da mesma forma, há muitos tipos de riquezas materiais e os resultados de uma atividade são os insumos de outras atividades: o resultado desses aspectos é que são necessários muitos chefes práticos para muitas atividades contínuas

§  Essas atividades são egoístas e particularistas por si sós

o   Assim, os patrícios são os mais expostos às piores condições mentais e morais: embora sacerdotes, proletários e mulheres corram determinados riscos morais, intelectuais e práticos, conforme suas situações e suas atividades, o fato é que são os patrícios os que mais se sujeitam ao egoísmo

§  A conseqüência disso é que os chefes práticos são aqueles que mais dificilmente aceitaram a Religião da Humanidade e sua disciplina moral

§  Essa maior dificuldade, ou melhor, essa maior resistência (que não é necessariamente passiva) implica até mesmo conflitos entre os chefes práticos e as demais forças sociais (orientadas pelo sacerdócio)

·         De qualquer maneira, importa lembrar: o poder Temporal pertence aos chefes práticos; caso as outras forças sociais (sacerdotes, proletariado, mulheres) assumam o poder Temporal, essas outras forças necessariamente se degradarão

-        Os marxistas, com seu desprezo geral por tudo que não é marxista, consideram que o conceito positivista de “patriciado” é uma forma diferente de falar “burguesia”

o   Evidentemente, essa forma de pensar dos marxistas está errada e consiste em um preconceito desprezível, que em todos os sentidos só piora as coisas

o   Esse preconceito marxista é um preconceito e não é aceitável; entretanto, de uma forma bastante oblíqua, podemos considerar que esse preconceito marxista ajuda a entender o valor do patriciado: o patriciado consiste nos chefes práticos que não são burgueses

o   Ao contrário do que os preconceitos marxistas difundiram, os próprios marxistas não têm o monopólio das concepções críticas sobre a burguesia: Augusto Comte era extremamente severo contra a burguesia, entendendo-a como mesquinha, egoísta, frívola, oportunista, dinheirista

§  Além de criticar a burguesia, Augusto Comte também criticava a “burguesocracia” – o que deveria encerrar toda e qualquer discussão a respeito do suposto caráter “burguês” do Positivismo

§  Frederic Harrison – que, aliás, como muitos outros positivistas no mundo todo, na Inglaterra fundou sindicados e confederações de sindicados – punha-se contra a “plutonomia”, isto é, contra a regulação social estipulada pelos ricos[1]

o   Considerando os problemas morais e práticos a que os patrícios estão expostos, uma forma bastante direta de evidenciar o grau de difusão do Positivismo, de aceitação da Religião da Humanidade e de implantação da sociocracia é verificar quantos burgueses tornaram-se patrícios e, de qualquer maneira, quantos patrícios há na sociedade

§  Inversamente, pode-se determinar o quanto uma sociedade está distante da sociocracia por meio da rejeição dos chefes práticos dos ideais sociocráticos e do patriciado

-        Embora evidentemente fosse contra os conflitos, Augusto Comte reconhecia um valor prático na chamada “luta de classes”

o   Para Augusto Comte a luta de classes não tem as características que os marxistas definem para ela; ou seja, para o Positivismo, a luta de classes não é um ideal moral-social; não é a força motora da história; não é a condição para o fim das “contradições sociais”; não pode nunca assumir o aspecto de guerra de classes

§  Vale notar que todos os elementos da noção marxista de “luta de classes” distorcem o entendimento da realidade e pioram muito os problemas sociais

o   Rejeitado todo o conteúdo revolucionário, destruidor e violento da luta de classes, o valor que Augusto Comte percebia nela era, por um lado, o de evidenciar as necessidades do proletariado e, por outro lado, evidenciar a necessidade de regulação social e moral das relações sociais

-        Passando para o âmbito propriamente político, o poder Temporal deve ser chefiado por patrícios

o   Esse aspecto é decorrente do caráter industrial das sociedades positivas: o poder cabe a quem realmente é o responsável pelas principais atividades sociais (o sacerdócio nas teocracias, os chefes militares na Antigüidade e na Idade Média)

o   O poder Temporal é mais restrito que o poder Espiritual, mas, de qualquer maneira, ele não pode ser ocupado por pessoas concentradas em seus egoísmos

§  A noção de que os patrícios correspondem aos chefes práticos regenerados pela Religião da Humanidade já indica alguns de seus atributos

§  Ainda assim, as atividades e as exigências políticas são diferentes das econômicas: isso Augusto Comte não chegou a tratar

§  Não deixa de ser notável que, no calendário positivista, exista um mês para a política moderna (Frederico, o duodécimo mês), com indivíduos com atividades claramente discerníveis, mas que o mês da indústria moderna (Gutenberg, o nono mês) não haja propriamente líderes, no sentido do patriciado

§  De qualquer maneira, a exigência de que os chefes políticos tenham perspectivas gerais e sejam efetivamente dotados de um sentimento social levou Augusto Comte a recomendar que, extraordinariamente, o poder Temporal seja ocupado por um proletário em vez de por patrícios

-        Por fim: com a idade de 63 anos deve ocorrer a aposentadoria, por meio do sacramento do retiro: Augusto Comte recomendava que os patrícios retirados constituíssem uma corporação – por mais informal que fosse – da “cavalaria patrícia”, dedicada a afirmar e difundir os valores e as práticas da Religião da Humanidade entre os patrícios atuantes e também a corrigir injustiças e desvios

-        Em suma:

o   Os patrícios consistem nos chefes práticos (“empreendedores econômicos”) regenerados pela Religião da Humanidade

§  Essa “regeneração” consiste na aceitação e, mais ainda, na aplicação dos parâmetros positivistas

·         Em um sentido afirmativo, esses parâmetros são a responsabilidade pessoal por suas ações e decisões; a preocupação com o bem comum; o entendimento de que o capital é social em sua origem e destinação e que os chefes práticos são gestores da riqueza, não seus donos absolutos

·         Em um sentido negativo, esses parâmetros são a rejeição do comportamento mesquinho, egoísta, frívolo próprio à burguesia e à burguesocracia



[1] Citamos Harrison porque há alguns anos um artigo de sua autoria foi recuperado por um antropólogo francês (disponível aqui: https://www.cairn.info/revue-du-mauss-2014-1-page-309.htm&wt.src=pdf); mas é claro que não foi apenas ele que se manifestou contra a burguesia e a burguesocracia e, mais importante que isso, que se manifestaram a favor da fraternidade e da sociocracia. Um pouco ao acaso, podemos citar os seguintes nomes: os irmãos Lagarrigues no Chile; Fabien Magnin e seus amigos proletários na França; ainda na França, o sindicalista e criador de uma confederação sindical Auguste Keufer; evidentemente, também Miguel Lemos, Teixeira Mendes e os positivistas ortodoxos brasileiros.