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O sermão de hoje foi sugerido por fontes
variadas: textos em periódicos nacionais, dúvidas de neófitos
o O
que queremos comentar são alguns aspectos da passagem da divindade à
Humanidade, em termos intelectuais e morais
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Nos manuais de Filosofia, de História e de
Sociologia, as referências contemporâneas a Augusto Comte costumam ser
superficiais e limitadas a observações mecânicas e desconexas sobre a lei dos
três estados
o O
enunciado final da lei intelectual dos três estado é o seguinte: “Cada
entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e
positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade
proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)”
§ Essa
lei é a sétima da Filosofia Primeira, integrando o “Segundo grupo,
essencialmente subjetivo” e, então, a “2ª série: leis dinâmicas do
entendimento”
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Além disso, em uma carta ao dr. Audiffrent, de
15 de Homero de 69 (12.2.1857), Augusto Comte afirma que a positividade não se
limita nem se reduz à mera ciência; além disso, em virtude de seu caráter
analítico e, daí, da falta de vista de gerais, bem como dos vícios próprios ao
academicismo, a ciência pode descambar para um absolutismo: o resultado disso
tudo é que a verdadeira positividade constitui-se em um quarto estágio, que seria o da positividade sintética,
necessariamente filosófica
o Na
minha opinião, essa observação de Augusto Comte resume-se na idéia de que
devemos passar das concepções absolutas (e egoístas) para as relativas (e altruístas)
§ Assim,
é necessário passar das concepções e do culto absolutos, à divindade, para a
concepção e o culto relativos, à Humanidade
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Passar da divindade à Humanidade é então uma
questão inicialmente intelectual que tem conseqüências morais muito claras,
muito grandes e muito imediatas
o Seguindo
o espírito metafísico da nossa época, quando alguém se emancipa
intelectualmente, ou seja, quando alguém deixa de lado as ficções teológicas, o
impulso básico é o de adotar um comportamento destruidor e negador
§ Isso
significa, na prática, que a tendência, após a emancipação, é desprezar o culto
e adotar uma perspectiva individualista, “isolacionista” e intelectualista
o Mas
é necessário agir contra essa tendência e assumir com clareza, sinceridade e
altruísmo o culto à Humanidade
§ O
culto à Humanidade consiste em amarmos essa figura bela e carinhosa, que nos
conforta e prepara para a vida, bem como nos prepara para a transformação para
a subjetividade
§ O
culto à Humanidade, assim como, de modo geral, as orações positivistas, não é
nunca interesseiro: buscamos reconhecer e agradecer àqueles (e àquelas!) que
nos são e que nos foram importantes, por mais próximas ou mais distantes que
estejam de nós; esse reconhecimento é a demonstração de gratidão e um esforço
para ficarmos no nível dessas pessoas e da Humanidade
·
“Aqueles que estão mais próximos de nós”: pai,
mãe, irmãos, irmãs, filhos, filhas, sobrinhos, sobrinhas, netos, netas, amigos
·
“Aqueles
que estão mais distantes de nós”: desde pessoas que moram longe de nós até pessoas
que morreram muito tempo atrás (Aristóteles, César, São Paulo, Dante – Augusto
Comte, Clotilde, Miguel Lemos e Teixeira Mendes!) até aqueles que ainda não
nasceram
·
Sem deixar de mencionar, é claro, os animais domésticos
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Para dar continuidade à exposição, farei uma
digressão baseada em um texto jornalístico – um texto em si degradante, mas que
pode ajudar-nos a entender o culto à Humanidade
o Em
8 de Moisés de 170 (8.1.2024), a Folha de
S. Paulo publicou um artigo desprezível de um dito filósofo, o sr. Luís
Felipe Pondé, intitulado “A ciência evoluiu a humanidade, mas você se reconhece
nessa crença?”
§ O
texto apresenta a idéia de que o progresso da ciência ajudou a humanidade e
que, com isso e ao mesmo tempo, serviu para a emancipação mental, contra a
teologia
§ O
texto conclui afirmando que as mudanças indicadas acima tiveram desenvolvimento
no Positivismo e na Religião da Humanidade – sendo que esta última consiste em “masturbação
filosófica” (Pondé)
o O
sr. Luís Felipe Pondé esposa concepções teológicas agostinianas, preferindo a
irracionalidade da fé absoluta e um pessimismo sobre o ser humano à
racionalidade e ao otimismo humanista; ao mesmo tempo, seu comportamento indica
que ele tem vergonha de assumir essas concepções, preferindo manifestar um
desprezo generalizado pelos progressos do ser humano e uma atitude cínica a
respeito dos seus problemas
§ O
fato de que tanto o governo do estado de São Paulo, por meio da TV Cultura,
quanto a Folha de S. Paulo dêem
espaço privilegiado (e pago) para alguém como o sr. Luís Felipe Pondé dá a
medida da degradação moral e intelectual do país – o que confirma um pouco o
comportamento desprezível desse senhor, embora ele jamais vá assumir que é um
representante perfeito do que ele mesmo despreza
§ Vale
lembrar que o desprezo cínico pelos problemas humanos e a concepção, igualmente
cínica, de que o ser humano é sempre ruim, é uma postura moral, intelectual e
prática muito cômoda, em que a pessoa que a adota não ajuda nada nem ninguém,
exime-se antecipadamente de qualquer problema e de qualquer responsabilidade
mas goza do superficial prestígio da “criticidade”
o A
vulgar observação de Pondé repete, sob uma forma extremamente degradante, uma
antiga crítica dos católicos (e dos monoteístas) ao culto da Humanidade: a de
que o adorador celebra a si mesmo
§ Isso
é falso desde o início, seja em relação à Humanidade, seja em relação à
teologia
o Augusto
Comte foi sempre muito cuidadoso com essa concepção e elaborou tanto o dogma
quanto o culto (e o regime) da Humanidade de modo que o adorador não se adore a
si mesmo
§ Em
primeiro lugar, temos que ter clareza desde o início de que, de fato há, sim,
uma identidade de natureza entre a
Humanidade e cada um dos seres humanos
·
Na seqüência veremos em que consiste essa “identidade
de natureza”
§ Por
outro lado, a Humanidade é um ser coletivo
e é realmente superior a cada ser
humano individual
§ A
concepção da Humanidade é abstrata, mas sua atuação sobre nós é bastante concreta:
ela existe desde muito tempo antes de nós e continuará existindo muito tempo
depois; mesmo enquanto somos vivos, o conjunto dos seres humanos ainda é (cada
vez) maior que nós mesmos
§ A
concepção de Humanidade é a do “conjunto dos seres humanos convergentes,
passados, futuros e presentes”
·
O aspecto da convergência já retira várias
pessoas desse conjunto
·
O aspecto do passado e do futuro evidencia que
se trata de uma concepção subjetiva e que o elemento objetivo é apenas um liame
passageiro entre as duas massas subjetivas
·
Sempre é importante lembrar que também na
Humanidade estão os animais úteis e/ou domésticos, que nos fazem companhia e
que com freqüência se sacrificam em benefício do ser humano
§ De
qualquer maneira, em relação aos seres humanos vivos, em relação à parte do
“presente”, cada um não é integrante
da Humanidade: enquanto vivemos objetivamente somos apenas servidores da Humanidade
·
A Humanidade não é todo-poderosa nem é unitária;
ela precisa dos seres humanos vivos para manter-se e desenvolver-se; em outras
palavras, ela precisa de nós
§ Como
um conjunto, a Humanidade é um ser à parte de nós: o “viver para os outros”
torna-se plenamente coerente nesse sentido, pois vivemos para melhorar as condições da Humanidade, isto é, de um ser que
depende de nós mas que não somos nós
§ Somente
após a transformação (isto é, após nossas
mortes) é que poderemos, subjetivamente,
integrar a Humanidade
·
Essa integração dá-se por meio do sacramento da
incorporação: nesse processo, deixamos de ser servidores da Humanidade para passarmos a ser integrantes da Humanidade
o A
incorporação ocorre sete anos após a transformação e baseia-se em um exame cuidadoso
da vida do falecido
·
A incorporação à Humanidade é uma recompensa adicional para cada digno servidor da
Humanidade e sinal de que cada servidor foi, realmente, digno; mas a dedicação
contínua como servidor (vivo) da Humanidade é uma satisfação e um objetivo por
si só, além de indicar a dignidade de cada um e estabelecer se cada um merece
ou não a incorporação à Humanidade
·
Em outras
palavras, a incorporação à Humanidade é uma justa recompensa a vida digna e bem
vivida, que, todavia, está bem longe de esgotar todo o valor de um ser humano
individual
§ A
identidade de natureza que indicamos antes, de cada ser humano individual com a
Humanidade, esclarece-se plenamente agora: essa natureza idêntica é em relação
às três partes do ser humano (afetividade, inteligência e atividade prática);
mas isso não equivale a dizer que a
Humanidade é igual a cada ser humano individual
·
Novamente: a Humanidade é maior, é anterior e
posterior a nós e precisa de cada um de nós para existir, manter-se e
desenvolver-se
o A crítica teológica (“o adorador que adora a
si mesmo”) só seria aceitável se a perspectiva individualista e egoísta, própria
à teologia, mantivesse-se no Positivismo
§ Na
teologia há indivíduos que se relacionam diretamente com a divindade e que se
preocupam com o destino de suas próprias almas; o cuidado com os outros é mais
ou menos acidental em relação à salvação da própria alma
·
A salvação da própria alma, além disso, é um capricho da divindade teológica, ou o
resultado de uma barganha, ou o
resultado de uma chantagem
§ Em
total oposição à teologia (monoteísta), na Religião da Humanidade há seres
humanos que atuam sempre em benefício dos demais e que vêem (isto é, que sentem
e entendem) que atuar em benefício dos demais é uma satisfação por si só e que
a incorporação póstuma e subjetiva à
Humanidade é apenas o complemento e o
reconhecimento dos méritos objetivos
o Em
suma: a crítica teológica ao culto da Humanidade mantém profundamente as
concepções teológicas, não entendendo as motivações reais e profundas do culto
à Humanidade
§ O
sr. Luís Felipe Pondé, ao retomar essa crítica, nem foi intelectualmente
original nela nem se preocupou em ser moralmente digno: ao retomá-la, o
“filósofo” oficial de São Paulo foi apenas vulgar, mesquinho e superficial
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Um aspecto importante para o culto à Humanidade:
a Humanidade não é uma alegoria
o Uma
alegoria é um modo de falar, é apenas um símbolo
§ Se
a Humanidade fosse apenas uma alegoria, isto é, um jeito de falar, o culto à
Humanidade seria também apenas um jeito de falar
o Mas
a Humanidade é uma abstração que serve de verdade para o culto: ela estimula o
altruísmo, estabelece o caráter histórico e subjetivo-objetivo do ser humano e
concentra nossa atenção e nossos esforços afetivos, intelectuais e práticos
§ Assim,
assumidamente a Humanidade é uma idealização e um ideal: é uma idealização porque
é uma concepção abstrata (baseada em uma realidade concreta); é um ideal porque
é um valor, u’a meta a ser perseguida
o Além
disso, sendo um ser superior, a adoração à Humanidade permite a digna submissão
(que, por ser digna, não é degradante) – e, afinal, a submissão é a base do
aperfeiçoamento
o Assim,
a Humanidade é realmente a nossa deusa positiva, isto é, a nossa deusa
relativa, altruísta, subjetiva-altruísta