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26 junho 2024

Transição para o Positivismo no politeísmo e no fetichismo

No dia 9 de Carlos Magno de 170 (25.6.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, concluindo a sua undécima conferência, dedicada ao regime público.

Como a leitura comentada esteve um pouco travada nas prédicas anteriores, decidimos novamente nesta semana não realizar o sermão - que, de qualquer maneira, como indicamos anteriormente, apresenta apenas um caráter complementar na prédica. 

Assim, pudemos estender-nos nos comentários ao Catecismo positivista, que, nessa prédica, referiram-se à transição para a Religião da Humanidade nos países politeístas (Índia, por exemplo) e nas sociedades fetichistas (por exemplo, tribos centro-africanas). 

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/xbZ6g) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/QwnEk).

A leitura comentada começou aos 21 min 28 s.

 


23 junho 2024

Transição para o Positivismo no monoteísmo extraocidental

No dia 2 de Carlos Magno de 170 (18.6.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência, dedicada ao regime público.

Como a leitura comentada esteve um pouco travada nas prédicas anteriores, decidimos não realizar o sermão - que, de qualquer maneira, apresenta apenas um caráter complementar na prédica. 

Assim, pudemos estender-nos nos comentários ao Catecismo positivista, que, nessa prédica, referiram-se à transição para a Religião da Humanidade nos países monoteístas que não integram o Ocidente, ou seja, em particular a Rússia (na época em que o Catecismo foi escrito, o Império Russo), a Turquia (na época em que o Catecismo foi escrito, o Império Turco-Otomano) e o Irã (na época em que foi escrito o Catecismo, a Pérsia). 

Antes de iniciarmos a leitura comentada do Catecismo, fizemos comentários adicionais sobre alguns livros:

- A esquerda não é woke, de Susan Neiman

- O momento comtiano, Laicidade na I República e Comtianas brasileiras, além de outros, de Gustavo Biscaia de Lacerda

- O léxico de Augusto Comte, de Ângelo Torres.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/sX11C) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/Mnayr).

A leitura comentada começou aos 43 min 43 s.



30 maio 2024

Da divindade à Humanidade

No dia 9 de São Paulo de 170 (28.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando seguimento à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

Na parte do sermão tratei do culto à Humanidade e da passagem da noção e do culto à divindade monoteísta para a noção e o culto à Humanidade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/3Laee) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/XaHXi).

O sermão começou em 1 h 03 min 02 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


 Da divindade à Humanidade

-        O sermão de hoje foi sugerido por fontes variadas: textos em periódicos nacionais, dúvidas de neófitos

o   O que queremos comentar são alguns aspectos da passagem da divindade à Humanidade, em termos intelectuais e morais

-        Nos manuais de Filosofia, de História e de Sociologia, as referências contemporâneas a Augusto Comte costumam ser superficiais e limitadas a observações mecânicas e desconexas sobre a lei dos três estados

o   O enunciado final da lei intelectual dos três estado é o seguinte: “Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes (VII)”

§  Essa lei é a sétima da Filosofia Primeira, integrando o “Segundo grupo, essencialmente subjetivo” e, então, a “2ª série: leis dinâmicas do entendimento”

-        Além disso, em uma carta ao dr. Audiffrent, de 15 de Homero de 69 (12.2.1857), Augusto Comte afirma que a positividade não se limita nem se reduz à mera ciência; além disso, em virtude de seu caráter analítico e, daí, da falta de vista de gerais, bem como dos vícios próprios ao academicismo, a ciência pode descambar para um absolutismo: o resultado disso tudo é que a verdadeira positividade constitui-se em um quarto estágio, que seria o da positividade sintética, necessariamente filosófica

o   Na minha opinião, essa observação de Augusto Comte resume-se na idéia de que devemos passar das concepções absolutas (e egoístas) para as relativas (e altruístas)

§  Assim, é necessário passar das concepções e do culto absolutos, à divindade, para a concepção e o culto relativos, à Humanidade

-        Passar da divindade à Humanidade é então uma questão inicialmente intelectual que tem conseqüências morais muito claras, muito grandes e muito imediatas

o   Seguindo o espírito metafísico da nossa época, quando alguém se emancipa intelectualmente, ou seja, quando alguém deixa de lado as ficções teológicas, o impulso básico é o de adotar um comportamento destruidor e negador

§  Isso significa, na prática, que a tendência, após a emancipação, é desprezar o culto e adotar uma perspectiva individualista, “isolacionista” e intelectualista

o   Mas é necessário agir contra essa tendência e assumir com clareza, sinceridade e altruísmo o culto à Humanidade

§  O culto à Humanidade consiste em amarmos essa figura bela e carinhosa, que nos conforta e prepara para a vida, bem como nos prepara para a transformação para a subjetividade

§  O culto à Humanidade, assim como, de modo geral, as orações positivistas, não é nunca interesseiro: buscamos reconhecer e agradecer àqueles (e àquelas!) que nos são e que nos foram importantes, por mais próximas ou mais distantes que estejam de nós; esse reconhecimento é a demonstração de gratidão e um esforço para ficarmos no nível dessas pessoas e da Humanidade

·         “Aqueles que estão mais próximos de nós”: pai, mãe, irmãos, irmãs, filhos, filhas, sobrinhos, sobrinhas, netos, netas, amigos

·          “Aqueles que estão mais distantes de nós”: desde pessoas que moram longe de nós até pessoas que morreram muito tempo atrás (Aristóteles, César, São Paulo, Dante – Augusto Comte, Clotilde, Miguel Lemos e Teixeira Mendes!) até aqueles que ainda não nasceram

·         Sem deixar de mencionar, é claro, os animais domésticos

-        Para dar continuidade à exposição, farei uma digressão baseada em um texto jornalístico – um texto em si degradante, mas que pode ajudar-nos a entender o culto à Humanidade

o   Em 8 de Moisés de 170 (8.1.2024), a Folha de S. Paulo publicou um artigo desprezível de um dito filósofo, o sr. Luís Felipe Pondé, intitulado “A ciência evoluiu a humanidade, mas você se reconhece nessa crença?”

§  O texto apresenta a idéia de que o progresso da ciência ajudou a humanidade e que, com isso e ao mesmo tempo, serviu para a emancipação mental, contra a teologia

§  O texto conclui afirmando que as mudanças indicadas acima tiveram desenvolvimento no Positivismo e na Religião da Humanidade – sendo que esta última consiste em “masturbação filosófica” (Pondé)

o   O sr. Luís Felipe Pondé esposa concepções teológicas agostinianas, preferindo a irracionalidade da fé absoluta e um pessimismo sobre o ser humano à racionalidade e ao otimismo humanista; ao mesmo tempo, seu comportamento indica que ele tem vergonha de assumir essas concepções, preferindo manifestar um desprezo generalizado pelos progressos do ser humano e uma atitude cínica a respeito dos seus problemas

§  O fato de que tanto o governo do estado de São Paulo, por meio da TV Cultura, quanto a Folha de S. Paulo dêem espaço privilegiado (e pago) para alguém como o sr. Luís Felipe Pondé dá a medida da degradação moral e intelectual do país – o que confirma um pouco o comportamento desprezível desse senhor, embora ele jamais vá assumir que é um representante perfeito do que ele mesmo despreza

§  Vale lembrar que o desprezo cínico pelos problemas humanos e a concepção, igualmente cínica, de que o ser humano é sempre ruim, é uma postura moral, intelectual e prática muito cômoda, em que a pessoa que a adota não ajuda nada nem ninguém, exime-se antecipadamente de qualquer problema e de qualquer responsabilidade mas goza do superficial prestígio da “criticidade”

o   A vulgar observação de Pondé repete, sob uma forma extremamente degradante, uma antiga crítica dos católicos (e dos monoteístas) ao culto da Humanidade: a de que o adorador celebra a si mesmo

§  Isso é falso desde o início, seja em relação à Humanidade, seja em relação à teologia

o   Augusto Comte foi sempre muito cuidadoso com essa concepção e elaborou tanto o dogma quanto o culto (e o regime) da Humanidade de modo que o adorador não se adore a si mesmo

§  Em primeiro lugar, temos que ter clareza desde o início de que, de fato há, sim, uma identidade de natureza entre a Humanidade e cada um dos seres humanos

·         Na seqüência veremos em que consiste essa “identidade de natureza”

§  Por outro lado, a Humanidade é um ser coletivo e é realmente superior a cada ser humano individual

§  A concepção da Humanidade é abstrata, mas sua atuação sobre nós é bastante concreta: ela existe desde muito tempo antes de nós e continuará existindo muito tempo depois; mesmo enquanto somos vivos, o conjunto dos seres humanos ainda é (cada vez) maior que nós mesmos

§  A concepção de Humanidade é a do “conjunto dos seres humanos convergentes, passados, futuros e presentes”

·         O aspecto da convergência já retira várias pessoas desse conjunto

·         O aspecto do passado e do futuro evidencia que se trata de uma concepção subjetiva e que o elemento objetivo é apenas um liame passageiro entre as duas massas subjetivas

·         Sempre é importante lembrar que também na Humanidade estão os animais úteis e/ou domésticos, que nos fazem companhia e que com freqüência se sacrificam em benefício do ser humano

§  De qualquer maneira, em relação aos seres humanos vivos, em relação à parte do “presente”, cada um não é integrante da Humanidade: enquanto vivemos objetivamente somos apenas servidores da Humanidade

·         A Humanidade não é todo-poderosa nem é unitária; ela precisa dos seres humanos vivos para manter-se e desenvolver-se; em outras palavras, ela precisa de nós

§  Como um conjunto, a Humanidade é um ser à parte de nós: o “viver para os outros” torna-se plenamente coerente nesse sentido, pois vivemos para melhorar as condições da Humanidade, isto é, de um ser que depende de nós mas que não somos nós

§  Somente após a transformação (isto é, após nossas mortes) é que poderemos, subjetivamente, integrar a Humanidade

·         Essa integração dá-se por meio do sacramento da incorporação: nesse processo, deixamos de ser servidores da Humanidade para passarmos a ser integrantes da Humanidade

o   A incorporação ocorre sete anos após a transformação e baseia-se em um exame cuidadoso da vida do falecido

·         A incorporação à Humanidade é uma recompensa adicional para cada digno servidor da Humanidade e sinal de que cada servidor foi, realmente, digno; mas a dedicação contínua como servidor (vivo) da Humanidade é uma satisfação e um objetivo por si só, além de indicar a dignidade de cada um e estabelecer se cada um merece ou não a incorporação à Humanidade

·         Em outras palavras, a incorporação à Humanidade é uma justa recompensa a vida digna e bem vivida, que, todavia, está bem longe de esgotar todo o valor de um ser humano individual

§  A identidade de natureza que indicamos antes, de cada ser humano individual com a Humanidade, esclarece-se plenamente agora: essa natureza idêntica é em relação às três partes do ser humano (afetividade, inteligência e atividade prática); mas isso não equivale a dizer que a Humanidade é igual a cada ser humano individual

·         Novamente: a Humanidade é maior, é anterior e posterior a nós e precisa de cada um de nós para existir, manter-se e desenvolver-se

o   A crítica teológica (“o adorador que adora a si mesmo”) só seria aceitável se a perspectiva individualista e egoísta, própria à teologia, mantivesse-se no Positivismo

§  Na teologia há indivíduos que se relacionam diretamente com a divindade e que se preocupam com o destino de suas próprias almas; o cuidado com os outros é mais ou menos acidental em relação à salvação da própria alma

·         A salvação da própria alma, além disso, é um capricho da divindade teológica, ou o resultado de uma barganha, ou o resultado de uma chantagem

§  Em total oposição à teologia (monoteísta), na Religião da Humanidade há seres humanos que atuam sempre em benefício dos demais e que vêem (isto é, que sentem e entendem) que atuar em benefício dos demais é uma satisfação por si só e que a incorporação póstuma e subjetiva à Humanidade é apenas o complemento e o reconhecimento dos méritos objetivos

o   Em suma: a crítica teológica ao culto da Humanidade mantém profundamente as concepções teológicas, não entendendo as motivações reais e profundas do culto à Humanidade

§  O sr. Luís Felipe Pondé, ao retomar essa crítica, nem foi intelectualmente original nela nem se preocupou em ser moralmente digno: ao retomá-la, o “filósofo” oficial de São Paulo foi apenas vulgar, mesquinho e superficial

-        Um aspecto importante para o culto à Humanidade: a Humanidade não é uma alegoria

o   Uma alegoria é um modo de falar, é apenas um símbolo

§  Se a Humanidade fosse apenas uma alegoria, isto é, um jeito de falar, o culto à Humanidade seria também apenas um jeito de falar

o   Mas a Humanidade é uma abstração que serve de verdade para o culto: ela estimula o altruísmo, estabelece o caráter histórico e subjetivo-objetivo do ser humano e concentra nossa atenção e nossos esforços afetivos, intelectuais e práticos

§  Assim, assumidamente a Humanidade é uma idealização e um ideal: é uma idealização porque é uma concepção abstrata (baseada em uma realidade concreta); é um ideal porque é um valor, u’a meta a ser perseguida

o   Além disso, sendo um ser superior, a adoração à Humanidade permite a digna submissão (que, por ser digna, não é degradante) – e, afinal, a submissão é a base do aperfeiçoamento

o   Assim, a Humanidade é realmente a nossa deusa positiva, isto é, a nossa deusa relativa, altruísta, subjetiva-altruísta

23 maio 2024

Cidadania, confiança, responsabilidade

As citações abaixo, extraídas da undécima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime público, apresentam toda uma densa filosofia política que impressiona por seu realismo, seu respeito à dignidade humana e sua antecipação radical dos mais profundos desejos políticos atuais. Não por acaso, Augusto Comte soube ver através das disputas políticas e sociais tão tristemente características da nossa época e que opõem direita e esquerda, retrógrados e revolucionários, tradicionalistas, ultraliberais, comunistas e democráticos.

Alguns esclarecimentos. O Catecismo positivista foi escrito por Augusto Comte em 1852 como um livro de explicação e divulgação do Positivismo, ou melhor, da Religião da Humanidade; ele foi escrito na forma de diálogos entre um sacerdote e u’a mulher. Os textos abaixo foram extraídos da quarta edição, de 1934, da tradução brasileira, originalmente de 1895, feita por Miguel Lemos, fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil. Na estrutura do Catecismo subjaz a concepção da tríplice natureza humana, em que o ser humano organiza-se em sentimentos, em idéias e em atividade prática: para regular e estimular cada uma dessas partes, a religião organiza-se por sua vez, respectivamente, em culto, em dogma e em regime. O culto e o regime, por sua vez, organizam-se em privados e públicos: os privados são individuais e domésticos, ao passo que os públicos referem-se à vida coletiva “nacional” (ou extradoméstica).

Para facilitar o entendimento de cada uma das citações abaixo, incluímos títulos; esses títulos não devem ser entendidos como esgotando as idéias presentes em cada uma das citações. São estes os três títulos: (1) “Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos”; (2) “Confiança e responsabilidade”; (3) “Todos os cidadãos são funcionários sociais”.

Embora os trechos sejam mais ou menos autoexplicativos, alguns esclarecimentos e observações adicionais podem ser úteis.

Antes de mais nada, deve-se notar que os nossos hábitos contemporâneos – amplamente metafísicos – consagram o entendimento de que não se deve confiar nos governantes, ou seja, que os governantes são por definição irresponsáveis, egoístas, mesquinhos. É claro que isso pode acontecer concretamente e que, de fato, infelizmente ocorre com freqüência. Todavia, não se pode assumir por princípio que os governantes terão esse comportamento reprovável e desprezível; é o contrário o que deve ser pressuposto: deve-se pressupor que os governantes merecem a nossa confiança. O pressuposto de que os governantes terão um comportamento reprovável serve para cinicamente legitimar e justificar esse comportamento reprovável, ou seja, esse pressuposto acaba atuando no sentido contrário do que supostamente denuncia; além disso, é bastante claro que pressupor que os governantes não merecem confiança torna sem sentido qualquer reclamação de que os governantes, por qualquer motivo, não merecem confiança. Também se deve notar que não é porque algum ideal é freqüentemente desrespeitado que ele deixa de ser válido por si só. Por fim, esse ideal não é somente moralmente correto: ele também se baseia na natureza das coisas, ou seja, ele baseia-se na realidade sociológica.

Essas considerações todas aplicam-se tanto à realidade política quanto à realidade econômica. Quando Augusto Comte fala em “superiores” e “inferiores”, ele não se refere à qualidade moral das pessoas, mas à sua situação social; em outras palavras, os superiores são aqueles que estão em cima e têm poder, ao passo que os inferiores são os que estão embaixo e não têm (ou têm menos) poder.

Em segundo lugar, a referência aos “dois poderes” e à sua separação considera o poder que muda o comportamento a partir do aconselhamento, da opinião e dos valores, ou seja, subjetivamente, que é o poder Espiritual, e o poder que modifica o comportamento impondo essa modificação, ou seja, objetivamente, que é o poder Temporal. De maneira mais simples, eles correspondem respectivamente ao sacerdócio e ao governo propriamente dito. A teoria política e social do Positivismo consagra a separação entre ambos como um dos fundamentos da política moderna.

Em terceiro lugar, a idéia de que todos são “funcionários sociais” não deve ser confundida com a concepção comunista e liberal de que todos seriam “funcionários públicos” (ou, por outra, funcionários do Estado). A preocupação de Augusto Comte é em valorizar o altruísmo e as preocupações de todos para com todos; ao contrário do que a mentalidade moderna e burguesa propõe, as atividades individuais não são estritamente pessoais, no sentido de servirem apenas para satisfazer necessidades pessoais e egoísticas. Todas as atividades têm um objetivo coletivo e são as necessidades sociais que devem ser atendidas. É por isso que a riqueza tem origem social e é por isso que a riqueza tem que ter uma destinação social. Assim, sem negar a existência do âmbito privado e doméstico, o Positivismo rejeita a concepção moderno-burguesa que opõe de maneira sistemática e rígida o público e o privado: eles não são âmbitos duros, estanques e antinômicos, mas são acima de tudo complementares: a vida individual e doméstica prepara-nos para a vida pública e esta corrige os defeitos daquela.

Para concluir: todas essas concepções baseiam-se em um exame detido da realidade sociológica, histórica e antropológica do ser humano. Ao mesmo tempo em que elas baseiam-se em estudos sociológicos, elas têm em mira objetivos sociais, políticos e morais bastante claros, em particular, como já indicamos, ultrapassar as disputas entre reacionários e revolucionários, entre direita e esquerda, entre ordem e progresso – disputas tão tristemente próprias ao Ocidente dos últimos vários séculos. A teoria política ocidental, profundamente marcada (e consciente e intencionalmente marcada) pelas disputas oscilatórias dos últimos séculos, com grande dificuldade, com grande esforço, apenas atualmente consegue elevar-se um pouco da superficialidade dessas disputas e, por meio da noção de “cidadania”, aproximar-se de concepções mais amplas, mais profundas e mais saudáveis como as que Augusto Comte apresentou, com assombrosa antecipação, cerca de 170 anos atrás. 

*          *          * 

(1) “Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos”

“O SACERDOTE – O regime público consiste todo ele, minha filha, em realizar dignamente esta dupla máxima: Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos. Nenhuma sociedade pode perdurar se os inferiores não respeitarem os superiores. Nada confirma melhor semelhante lei do que a degradação atual, em que, por falta de amor, cada um não obedece senão à força; se bem que o orgulho revolucionário deplore o pretendido servilismo de nossos antepassados, que sabiam amar seus chefes. A segunda parte dupla condição social é, pois, comum a todos os tempos. Mas a primeira não foi realmente introduzida senão na Idade Média; pois que toda a Antigüidade, salvo felizes exceções pessoais, pensava de modo diverso, como o atesta seu aforisma predileto: Paucis nascitur humanum genus[1]. Assim, a harmonia pública repousa sobre a atividade dos dois melhores instintos altruístas, respectivamente apropriados aos inferiores [veneração] e aos superiores [bondade] em suas mútuas relações. Todavia, este concurso só pode surgir e persistir nas almas assaz preparadas por um hábito suficiente da mais enérgica, conquanto a menos eminente [apego], das três inclinações simpáticas mediante um justo surto dos afetos domésticos.

Tal solução reside inteiramente na separação fundamental entre os dois poderes espiritual e temporal. Não é possível assegurar a dedicação dos fortes aos fracos senão pelo advento de uma classe de fortes que só possa obter ascendente social devotando-se aos fracos, em virtude da livre veneração destes. É assim que o sacerdócio se torna a alma da verdadeira sociocracia. Mas isto supõe que ele se cinja sempre a aconselhar, sem nunca poder mandar” (Comte, 1934, p. 358-359)

 

(2) “Confiança e responsabilidade”

“O SACERDOTE – [...] Todas as complicações sociais inspiradas pela desconfiança não conduzem realmente senão à irresponsabilidade. Confiança inteira e plena responsabilidade, tal é o duplo caráter do regime positivo” (Comte, 1934, p. 363)

 

(3) “Todos os cidadãos são funcionários sociais”

“A MULHER – [...] Erigindo todos os cidadãos em funcionários sociais, em virtude da utilidade real de seus ofícios respectivos, o positivismo nobilita a obediência e consolida o comando. Em vez de ter um simples destino privado, cada atividade sente-se honrada pela sua digna participação no bem público. Ora, para obter esta salutar transformação, o sacerdócio nunca precisará suscitar um entusiasmo excepcional. Bastar-lhe-á sempre fazer prevalecer por toda parte uma exata apreciação das realidades habituais” (Comte, 1934, p. 366)

 



[1] Nota de Miguel Lemos: “Paucis nascitur humanum genus” (Lucano, Farsália, livro 5º, v. 343): “O gênero humano vive para um pequeno número de homens”. 

22 maio 2024

Que seria um "positivismo leninista"?

No dia 2 de São Paulo de 170 (21.5.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos uma deriva do Positivismo, ou seja, uma tendência possível e negativa que, assim, não corresponde aos impulsos profundos e verdadeiros do Positivismo: trata-se do "positivismo leninista".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui (versão interrompida): https://encr.pw/qMIpB e aqui (versão completa): https://acesse.dev/tLYLY) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/7vequ). O sermão começou aos 54 min 45 s.

Tivemos problemas na transmissão da prédica: o Facebook travou em diversos momentos e, por algum  motivo desconhecido, o Youtube encerrou a transmissão pouco antes de 47 min.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *

O que seria um “positivismo leninista”? 

-        O tema desta semana é um pouco inusitado: queremos comentar o que seria um “positivismo leninista”

o   Antes de mais nada: por que tratar disso?

o   Por vezes alguns aderentes do Positivismo – sejam neófitos (novos na doutrina), sejam mais conhecedores da doutrina com mais tempo – tendem a apresentar alguns traços de comportamento que podemos chamar de “leninista”

§  Esse comportamento apresenta-se com freqüência de maneira irrefletida, ingênua, de boa fé

§  Ainda assim, embora possa surgir de boa fé, esse comportamento é problemático, seja porque não segue o Positivismo em termos morais, intelectuais e práticos (ao propor interpretações não positivas e/ou sentimentos não altruístas), seja porque suas conseqüências efetivas são daninhas (em particular, ao produzir sistematicamente atritos)

§  Esse é um perigo que muitos podem correr

o   Em outras palavras, este sermão é menos uma admoestação e mais um alerta

-        A referência inicial aqui é a Vladimir Ilich Ulianov (1870-1924), vulgarmente conhecido por “Lênin”

o   Lênin foi um teórico político mas, acima de tudo, foi um “revolucionário profissional” e um líder político prático

§  Sua capacidade de trabalho era realmente espantosa e ele, bem ou mal, dedicou sua vida inteira à consecução dos seus projetos sociais e políticos

§  Ele dedicou sua vida a realizar a revolução comunista na Rússia; seus esforços intelectuais foram sempre envidados nesse sentido e subordinados à atividade prática

o   Nascido na Rússia, suas atividades políticas tornaram-no objeto de perseguição oficial do Estado, o que o levou a exilar-se na Suíça; isso, contudo, não diminuiu suas atividades; durante a I Guerra Mundial, durante o ano de 1917, que foi de exaustão de todos os exércitos europeus (e, a bem da verdade, de exaustão dos países beligerantes e das respectivas sociedades civis), ele aproveitou-se do colapso do exército russo, da liderança russa e também do apoio alemão para voltar à Rússia e, em outubro, dar um golpe de Estado na república russa que fora pouco antes proclamada (em fevereiro)

o   Com isso, ele tornou-se líder da nova Rússia comunista e, a partir de 1922, também da União Soviética

-        Sobre as características do que chamamos aqui de “positivismo leninista”:

o   Para evitar querelas desnecessárias: as características que indicaremos baseiam-se em uma idealização, ou seja, baseando-se na realidade (do comportamento efetivo de Lênin), identificamos alguns traços salientes que, em seu conjunto, podem (e devem) ser identificados como próprios ao revolucionário russo

o   As características que veremos e que nos interessam são negativas e devem, portanto, ser evitadas ou até combatidas

-        Eis os traços que podemos indicar como integrando o “positivismo leninista”:

o   (Tendência à) intolerância

o   (Tendência ao) dogmatismo

o   Cientificismo (donde: intelectualismo)

o   Tecnocratismo

o   Rigidez política

o   (Tendência ao) autoritarismo/concepção hierárquica das organizações

o   Organizações entendidas como tropas

-        Como se percebe com facilidade, as características do “positivismo leninista” giram em torno de uma dureza mental e prática e da falta de ternura (ou seja, uma falta de altruísmo)

o   Em suma: o “positivismo leninista” consiste na tendência a ignorar, em termos morais, intelectuais e práticos, a Religião da Humanidade

-        Devemos notar que as características do “positivismo leninista” são muito próprias ao marxismo

o   O marxismo tem uma concepção dura e agressiva da vida

§  Como já indicamos inúmeras vezes, a idéia da “luta de classes”, por exemplo, é bastante literal: trata-se afinal de guerra de classes

o   Mas esses traços não são apenas próprios ao marxismo e ao leninismo; eles integram algumas concepções muito disseminadas sobre as relações sociais: são as concepções que cinicamente reduzem a vida em sociedade a meras disputas incessantes de poder

§  Essas concepções cínicas, autodenominadas de “realistas”, não por acaso chamam concepções como a Positivista de “ingênuas”, “idealistas”, até mesmo “românticas”

§  É claro que, no final das contas, deve-se determinar qual concepção respeita e valoriza mais o ser humano; qual concepção reconhece o que o ser humano faz com, além e/ou apesar das disputas de poder; qual concepção evita mais as guerras; qual concepção valoriza a dignidade humana e a justiça social etc.: certamente é o Positivismo e não esse cínico “realismo” (marxista ou não)

-        Todas as características indicadas do “positivismo leninista” são evitadas ou impedidas no Positivismo de maneira muito clara; de modo geral, os remédios são estes:

o   Afirmação clara do altruísmo, em particular da ternura

o   Relativismo filosófico

o   Separação dos dois poderes

o   Respeito à dignidade humana, ou seja, à autonomia individual

o   Compreensão da tríplice natureza humana e das relações entre sentimentos, idéias e atividade prática

o   Em suma: deve-se levar a sério a Religião da Humanidade

-        Além das características acima, que constituem o que chamamos de “positivismo leninista”, é claro que também podemos identificar inúmeras outras características de Lênin:

o   Essas outras características – mais uma vez: em particular as negativas – não nos parecem corresponder ao “positivismo leninista”

§  Evidentemente, o problema está com os traços negativos; considerando o relativismo positivista, os traços positivos até podem ser motivo de admiração e emulação

o   Negativas:

§  Crueldade

§  Maquiavelismo (“os fins justificam os meios”)

§  Amoralismo/imoralismo

§  Ódio mortal à burguesia e ao feudalismo, chegando ao ponto de não temer matar sumariamente burgueses e senhores feudais

§  Golpismo político profissional

o   Positivas:

§  Pragmatismo político

§  Habilidade intelectual

§  Capacidade organizativa

§  Intensa dedicação ao trabalho

§  Abnegação profunda pela causa esposada

§  Subordinação da inteligência à atividade prática