Anotações sobre as hierarquias positivas
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A noção de hierarquia é uma das principais na
política atual e também é um conceito fundamental no Positivismo: mas é evidente
que o sentido dado à palavra “hierarquia” na Religião da Humanidade é muito
diferente do dado na política atual
o
Na política atual, a hierarquia é a relação
vertical, basicamente política, mas com certa freqüência também social, em que
um indivíduo ou um grupo está acima dos demais e, por isso, tem poder sobre
esses demais, isto é, manda neles
o
Embora no Positivismo esse sentido político e
social esteja presente, ele é secundário em relação a um sentido filosófico
mais amplo
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O sentido fundamental da hierarquia no
Positivismo é o de organização, de princípio de arranjo
o
O enunciado elementar das hierarquias no
Positivismo é o da 14ª lei da filosofia primeira: “Todo classamento positivo
procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva como
objetiva”
o
Adicionalmente, há também a lei dos
intermediários, correspondente à 15ª e última lei da filosofia primeira: “Todo
intermediário deve ser subordinado aos dois extremos cuja ligação opera”
§ Vale
notar que essas duas leis integram a seção mais subjetiva da filosofia primeira
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Retomando o conteúdo: o que a lei da hierarquia
estabelece é que toda e qualquer classificação tem que ser elaborada
considerando a generalidade decrescente ou crescente, seja ela objetiva, seja
ela subjetiva
o
Um primeiro aspecto que se evidencia do
princípio acima é que “classificação” equivale a “hierarquia” e vice-versa, o
que corrobora a nossa afirmação anterior de que, no Positivismo, a hierarquia é acima de tudo igual a “organização,
arranjo”
o
Em segundo lugar, é necessário ter-se clareza de
que, no Positivismo, as hierarquias, ou as classificações, não consistem em
meras listas, ou meras seqüências
§ Como
veremos adiante, o Positivismo valoriza inúmeras seqüências específicas; em
alguns casos, tais seqüências são extremamente valorizadas, desenvolvidas e
aprofundadas: mas, ainda assim, tais seqüências não são, em si mesmas,
classificações
o
Esse princípio vale para as classificações
científicas e também para as classificações sociais e morais
§ A
lei da classificação das ciências (também chamada de “hierarquia das ciências”)
exemplifica uma classificação ao mesmo tempo científica e moral, com
generalidade objetiva decrescente e generalidade subjetiva crescente
§ A
classificação (hierarquia) social proposta por Augusto Comte revela uma
generalidade subjetiva decrescente (e uma generalidade objetiva crescente), ao
passar do sacerdócio, para as mulheres, para o patriciado, para o proletariado
o
De modo geral, o âmbito objetivo é complementar ao subjetivo: a Moral é a ciência
subjetivamente mais ampla, assim como objetivamente é a mais restrita
o
Nas classificações positivistas, cada um dos termos tem que ser valorizado e
respeitado por si só; ainda assim, os
termos que se apresentam como subjetivamente mais gerais são os mais importantes
e mais nobres: a Moral, o sacerdócio, a religião, o amor
o
Os elementos que são objetivamente mais gerais
são menos nobres, mas são importantes por si sós e têm uma influência (donde
uma importância) maior
o
Principalmente em relação aos elementos menos valorizados há uma série de compensações,
geralmente de caráter moral (e, portanto, de valorização social),
freqüentemente com conseqüências políticas
§ Por
exemplo, o proletariado é o objeto principal da política positiva, é o conjunto
da população e também é o fiscal da política
§ Outro
exemplo: o sacerdócio é subjetivamente o mais importante, mas a política e a
economia cabem ativamente ao patriciado e passivamente ao proletariado
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A outra lei da filosofia primeira – a lei do
intermediário – tem um papel complementar na teoria das hierarquias; ela
estabelece que os intermediários ligam os pólos entre si e, portanto, os
intermediários compartilham características com esses pólos
o
No âmbito do Positivismo, o exemplo mais
clássico de intermediário é a metafísica, que, conforme o enunciado da lei
intelectual dos três estados, compartilha características da teologia e da
positividade: absolutismo por um lado, maior preocupação com a realidade, por
outro lado
-
Há algumas "classificações", no âmbito do
Positivismo, que não seguem a lei da hierarquia
o
Essas classificações o mais das vezes têm origem
histórica e seus conteúdos podem – e devem – ser explicados teoricamente
§ Não
são propriamente “classificações”: tratam-se mais de seqüências, mas, vale notar, não são seqüências hierárquicas
§ Exemplos
dessas classificações (ou seqüências): as três leis dos três estados; a
tríplice transição ocidental
o
Uma primeira interpretação (estritamente
pessoal) para a diferença entre essas seqüências histórico-filosófico-morais e
as classificações propriamente ditas é que, nessas seqüências históricas, há
uma intensidade moral associada aos últimos termos que é menor que a intensidade
dos últimos termos de classificações propriamente hierárquicas
§ Por
exemplo: na lei intelectual dos três estados, é claro que a positividade é mais
valorizada que a teologia; mas essa valorização não me parece tão intensa
quanto a valorização da Moral como ciência sagrada ou do sacerdócio na
classificação social
§ Uma
sugestão de justificativa para essas diferentes intensidades: ao tratar das
seqüências históricas, Augusto Comte considera que os termos antigos já
pertencem ao passado e não há tanta necessidade de enfatizar, ou salvaguardar,
ou valorizar os termos mais recentes (a teologia é passado, pertence aos
museus); nas hierarquias atuais, todos os termos são contemporâneos e, aí,
cumpre distinguir cuidadosamente a importância relativa de cada um (a
Matemática é nossa contemporânea tanto quanto a Moral)
o
Mas uma segunda diferenciação – esta devida ao
meu amigo Hernani Gomes da Costa – entre as seqüências históricas e as
classificações positivistas propriamente ditas é esta: as classificações (as
hierarquias) podem e devem ser percorridas com legitimidade de um lado para o
outro (com diferentes conseqüências, claro está), ao passo que as seqüências
histórico-moral-filosóficas admitem apenas um sentido em sua marcha
§ Assim,
como observa Augusto Comte, é igualmente válido (mas, novamente, com diferentes
conseqüências) passar-se do amor para a fé quanto da fé para o amor; da Matemática
à Moral quanto da Moral à Matemática; do sacerdócio ao proletariado quanto do
proletariado ao sacerdócio; da política à religião quanto da religião à política
§ Mas,
por outro lado, não faz sentido e não é correto passar-se – por exemplo, no
caso da lei intelectual dos três estados – da positividade de volta para
teologia, quando já se passou da teologia e atingiu-se a positividade (ou, dito
de outro modo: não é aceitável nem correto voltar ao absolutismo egoístico quando
já se atingiu o relativismo altruísta)
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Podemos abordar a noção de hierarquia a partir
de uma referência até certo ponto distante do Positivismo, mas que no final é-lhe
complementar: a teoria antropológica elaborada por Louis Dumont
o
O antropólogo francês Louis Dumont, estudando
nos anos 1960 a Índia, propôs definir a lógica social e moral do conceito de
“hierarquia”; não seria a relação politicista e igualitarista de mando e obediência,
mas de “englobamento de contrários”
o
O “englobamento de contrários” consiste em que
um princípio filosófico, social e/ou moral organiza globalmente o sistema,
incluindo em seu interior, como casos particulares, aqueles princípios que são
diferentes dele
§ Dessa
forma, o englobamento de contrários abarca, abrange, engloba sempre as várias
situações, em que estas são respeitadas em si mas integradas à totalidade por
meio de um princípio maior
§ A
lógica do englobamento dos contrários claramente se manifesta em todo o
Positivismo, desde a fase científica da Filosofia
até (e muito mais em) a fase religiosa da Política
·
É a lógica do englobamento de contrários que
permite que se verifique no Positivismo, sem incoerências ou arbitrariedades, a
perspectiva “caleidoscópica”, proposta por Angèle Kremer-Marietti (novos
desenvolvimentos a partir de novas perspectivas, com os mesmos elementos)
o
No
igualitarismo, por outro lado, não há princípio maior capaz de organizar a
sociedade e de englobar os casos diferentes, desviantes e/ou particulares: no
igualitarismo presume-se que todos os princípios são iguais e que, na melhor
das hipóteses, devem ser justapostos
§ O
igualitarismo recusa-se a reconhecer qualquer princípio organizador e
englobante
§ É
bastante claro que o igualitarismo consiste no “princípio que não é princípio”
que subjaz à política do Ocidente – e, mais do que isso, o igualitarismo é a
consagração da política metafísica (destruidora e negativa por excelência)
§ Não
é por acaso que a política como choque (ou da política segundo o nazista Carl
Schmitt, ou seja, como “relação amigo-inimigo”) é um dos maiores valores atuais
do Ocidente: há apenas disputa seca entre os grupos; esse também é um dos
motivos que consagram o materialismo economicista
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A dificuldade (ou recusa) de conhecer e entender
os sentidos que Augusto Comte dá à “hierarquia” é um sinal poderoso de o quanto
a nossa época é superficial e metafísica
o
A dificuldade (ou, de novo: a recusa) em
entender-se o sentido que Augusto Comte dá à “hierarquia” também indica o
quanto o seu pensamento tem fortes características “não ocidentais”
§ Essa
“não ocidentalidade” do Positivismo não deixa de ser paradoxal, ou pelo menos é
irônica: afinal, foi a partir do estudo profundo da história da Humanidade como
um todo, tomando o Ocidente como objeto principal de reflexão e preocupação,
que se desenvolveram as instituições do Positivismo
§ Na
verdade, não é nem “paradoxal” nem “irônica” essa “não ocidentalidade”: bem ao
contrário, ela comprova a impressionante
profundidade moral, social e filosófica de Augusto Comte, que soube
ultrapassar largamente os preconceitos sociais e intelectuais próprios ao
Ocidente
§ É
importante afirmar a “não ocidentalidade” do Positivismo para deixar de lado
todos os sofismas metafísicos que afirmam que o Positivismo seria
“eurocêntrico”
o
A mera afirmação (1) da harmonia mental e social
e (2) da possibilidade e necessidade de conjugação e superação da ordem e do
progresso, via amor, já indica o quanto Augusto Comte afasta-se das tendências
atuais do Ocidente e de sua aproximação com outras civilizações
o
A “não ocidentalidade” do Positivismo foi
indicada faz algumas décadas por Emmanuel Lazinier, que indicou o caráter “chinês”
do pensamento de Augusto Comte