Vejo algumas pessoas qualificarem de
“ ‘brasileiros’ ” quem critica o governo. Para
esclarecer e evidenciar o problema: de acordo com essas pessoas, quem critica o
governo é “brasileiro” e não brasileiro, ou seja, é um brasileiro entre aspas.
Em outras palavras, os “verdadeiros” brasileiros não criticam o governo e
apenas os falsos (mentirosos, hipócritas, vendidos, traidores, quintas-colunas)
brasileiros é que criticam o governo.
Se o caráter fascista do atual
governo - amplamente divulgado e documentado - já não fosse um problema sério e
enorme, devo admitir que é motivo de muito maior preocupação o fascismo da
sociedade civil. Ao contrário do fascismo governamental, o fascismo “social”
continuará existindo após a queda do atual governo; assim, seus efeitos
sociais, políticos, econômicos, culturais durarão muito, muito, muito mais.
O fascismo social no caso que
indiquei acima ocorre porque põe em questão o civismo de quem tem a ousadia de
criticar o governo; mais uma vez, isso é o mesmo que dizer que um verdadeiro
cidadão, um cidadão “do bem”, um cidadão correto é somente aquele que não
critica o governo.
De acordo com esse raciocínio,
aqueles que criticam o governo não são bons cidadãos; na verdade, no fundo, nem
são cidadãos de verdade. Assim, se não são cidadãos, não merecem respeito, nem
apoio, nem a defesa que as leis devem proporcionar... se duvidar, não merecem
nem mesmo viver no país. Pôr em dúvida o civismo de quem critica o governo é o
começo da odiosa mentalidade do “Brasil, ame-o ou deixe-o”.
É fácil ver que e como o fascismo
distorce seriamente o civismo, que ele confunde propositalmente com a adulação
ao poder e com o ufanismo incondicional.
Mas se o fascismo perverte o
civismo, o que seria o civismo normal, o civismo saudável?
De maneira bastante simples, é a
valorização ativa e passiva das tradições nacionais, o respeito às leis, a
atividade convergente. Para o que nos interessa, o civismo também inclui de
maneira central a tolerância e o respeito à diversidade de opiniões. Aliás, não
por acaso, o jurista nazista Carl Schmitt dizia que a política é a oposição
entre os amigos e os inimigos: os inimigos são os adversários que, na guerra,
devem ser eliminados, isto é, devem ser mortos. Uma política republicana, pacífica
e pacifista considera que as pessoas de quem discordamos e que têm propostas
sociais e políticas diferentes das nossas são somente isso - são “adversários”,
mas nunca “inimigos”. Na República,
todos são cidadãos e não se pode nunca falar em “nós contra eles”.
Vale a pena notar que no fundo é
quase uma redundância falar em “civismo republicano”. “Civismo” refere-se à
vida na “cidade”, mais ou menos como a “política” é a atividade desenvolvida na
“polis”. Ora, como felizmente não vivemos na monarquia, mas na república (muito
devido à excelente ação dos positivistas - que, não por acaso, é vista com ódio
pela família Bolsonaro), todas as pessoas maiores de idade são cidadãs, todas
as pessoas maiores de idade têm o direito de participar da vida política. E um
dos fundamentos da vida política na república é justamente a trinca de
liberdades - de pensamento, de expressão e de associação.
A tríplice liberdade equivale à
liberdade de discordar - seja dos outros cidadãos, seja especialmente do
governo.
Na República, quando um cidadão discorda do governo e critica
esse governo, a sua lealdade ao país, o seu respeito às leis, o seu civismo não é posto em dúvida. Mas, quando
alguém afirma que algum crítico do governo não é um verdadeiro brasileiro, ou
que é um brasileiro entre aspas, esse alguém está deturpando o civismo e está
sendo, por definição, um fascista.