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21 fevereiro 2024

Será que o relativismo impede convicções profundas?

No dia 23 de Homero de 170 (20.2.2024) realizamos nossa prédica, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista e começando a décima conferência, dedicada ao regime privado.

No sermão buscamos responder à seguinte questão: "será que o relativismo impede convicções profundas?".

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (Youtube.com/ThePositivism) e Igreja Positivista Virtual (Facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual). O sermão começou em 1h 00 min 00 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


O relativismo impede convicções profundas? 

-        A pergunta do título na verdade supõe uma afirmação prévia: “o relativismo impede convicções profundas”

o   Por outro lado, essa afirmação supõe duas meias “constatações” populares – na verdade, dois preconceitos – no sentido de que (1) o relativismo liga-se, propicia, estimula convicções frágeis e de que, inversamente, (2) as convicções profundas ligam-se apenas ao absolutismo

o   Há uma série de outros pressupostos aí; esses pressupostos são literalmente pressupostos, isto é, são subjacentes aos raciocínios explícitos

§  Por exemplo: o preconceito pressuposto segundo o qual o relativismo implica, ou significa, um estado de dúvida sistemática e, assim, de flutuação das idéias e das convicções

o   Ao tratarmos do relativismo e das “convicções”, o que está em questão não são apenas aspectos intelectuais, de entendimento do mundo (a partir do relativismo), mas também questões práticas, vinculadas ao caráter e às atividades efetivamente realizadas por todos e cada um

o   Por outro lado, da nossa parte o que está implícito nos comentários acima é que, para o Positivismo, o relativismo não impede convicções profundas – na verdade, bem ao contrário, ele estimula e exige tais convicções

-        Para tratarmos do tema, vejamos cada um dos termos principais que estamos considerando, “relativismo” e “convicções”

-        Comecemos com as “convicções”, pois, para os nossos propósitos, elas são um tema mais rapidamente tratável

o   Podemos entender as convicções como sendo crenças íntimas que mantemos e que nos orientam para determinadas direções práticas

o   Assim, nesse sentido, as convicções são as idéias que sustentam os comportamentos práticos

-        “Relativismo”: o relativismo é a perspectiva segundo a qual o ser humano constitui-se por meio das relações e, assim, tudo o que o ser humano conhece baseia-se nas relações que ele estabelece com o ambiente

o   Em outras palavras, a realidade humana é relacional

§  O caráter relacional do ser humano significa então duas coisas: (1) que o ser humano vive em relação com o ambiente e (2) que, portanto, o ser humano só consegue conhecer aquilo com que mantém relações

o   O relativismo rejeita as concepções segundas as quais (1) existem realidades existentes por si sós e (2) são possíveis conhecimentos daquilo que existe por si só

§  Em outras palavras, o relativismo rejeita o absolutismo

o   O absolutismo que consideramos aqui é o absolutismo filosófico, ou seja, a concepção não relativista ou anti-relativista; mas, como o absolutismo filosófico vincula-se à teologia, é perfeitamente possível entendê-lo no limite como se estendendo também ao absolutismo político

§  Augusto Comte lembrava que concepções indiscutíveis vinculam-se a ordens não criticáveis

o   Em relação aos nossos conhecimentos, o aspecto relacional do relativismo implica, por um lado, que as nossas concepções dependem do ambiente em que vivemos; por outro lado, implica também que as nossas concepções modificam-se de acordo com o tempo e com o espaço

§  As relações que percebemos e que fundamentam o nosso conhecimento são as de coexistência e de sucessão; ou seja, são as relações que ocorrem ou que se estabelecem entre dois ou mais fenômenos simultânea ou sucessivamente

§  Um aspecto fundamental nessa concepção é que, sem nunca negar a atividade interna própria ao cérebro, o interior subordina-se ao exterior, assim como os fenômenos mais nobres subordinam-se aos mais grosseiros

·         Isso significa que há e deve haver uma troca constante entre a objetividade e a subjetividade

o   Essa troca varia conforme o fenômeno considerado e também conforme a operação intelectual envolvida

o   Como se sabe e como veremos, o excesso ou a falta de objetividade ou de subjetividade, dependendo da operação intelectual envolvida, pode prejudicar seriamente as concepções resultantes

·         Dessa forma, as variações nas concepções não são aleatórias

§  A variabilidade das concepções humanas segue os princípios do método subjetivo:

·         Como já indicamos, o primeiro princípio é o de que, sem negar a atividade interna ao cérebro, o interno submete-se ao externo

·         Em segundo lugar, todos os fenômenos seguem leis naturais

o   As leis naturais são as relações de coexistência ou de sucessão

·         Em terceiro lugar, quando mais nobre for o fenômeno considerado, mais complicado, imperfeito e modificável ele será

o   O relativismo, dessa forma, por definição é “autocrítico” e capaz de reavaliações contínuas de suas perspectivas

§  Todavia, tais reavaliações não significam, nem podem significar, a negação dos fundamentos do relativismo

§  Por certo que tais reavaliações recomendam sempre a prudência e o cuidado: mas prudência e cuidado são muito diferentes de tibieza, moleza e pusilanimidade

·         Há um aspecto de caráter mesmo nas elaborações intelectuais

·         Nesse sentido, as convicções são necessárias não apenas para as atividades práticas, mas também para as próprias elaborações intelectuais

-        Além da concepção verdadeira de relativismo, que é a esposada pelo Positivismo, há (pelo menos) outras duas concepções

o   A concepção de relativismo do Positivismo é verdadeira não porque seja a do Positivismo, mas porque ela reconhece e valoriza a natureza, reconhece e valoriza as relações do ser humano com o ambiente (e, claro, com o próprio ser humano) e, a partir disso, regula essas relações

o   As duas concepções adicionais de relativismo que nos interessam aqui são:

§  O relativismo metodológico próprio à Antropologia

§  O relativismo ultrassubjetivista antipositivo próprio aos pós-modernos

-        Vejamos rapidamente o relativismo metodológico da Antropologia

o   Embora ele aproxime-se um tanto daquele que nos importa aqui, no final das contas é uma outra concepção e não nos interessa de verdade neste momento

o   Essa concepção afirma que cada sociedade tem sua própria visão de mundo, que deve ser respeitada e valorizada por si mesma a fim de podermos estudar sociedades e culturas diferentes das nossas

o   Assim, podemos dizer que esse relativismo consiste, (1) por um lado, em uma suspensão dos juízos da nossa sociedade a respeito das outras sociedades e, (2) por outro lado, na valorização dessas outras sociedades

o   Esse relativismo antropológico tem um aspecto moral importante, no sentido de estimular o respeito e a valorização de outras culturas, em particular combatendo o chamado “etnocentrismo”

o   Mas, por outro lado, esse relativismo tem que ser empregado com cuidado e não pode ser generalizado de um ponto de vista filosófico:

§  Por um lado, é necessário entendê-lo principalmente como um princípio metodológico

§  Por outro lado, a sua aplicação indiscriminada impede que se valorizem efetivamente as várias sociedades e, portanto, impede que se avaliem os diversos traços de cada sociedade

·         A aplicação indiscriminada do relativismo antropológico impede a avaliação das sociedades porque postula, pura e simplesmente, que todas as culturas seriam “equivalentes” entre si, que todas as culturas seriam, então, “iguais” entre si, independentemente de suas concepções, de suas práticas, de seus valores efetivos

·         No limite, o que a aplicação indiscriminada do relativismo antropológico estabelece é a visão de mundo da “colcha de retalhos” cultural

o   Essa visão de mundo da “colcha de retalhos” é própria à obra do antropólogo teuto-americano Franz Boas e, daí, do multiculturalismo propagado e praticado pelos Estados Unidos e pelo Canadá

-        A segunda outra concepção de relativismo que devemos considerar aqui é a do senso comum atual

o   Para o senso comum atual, o “relativismo” é entendido de uma forma que se aproxima do Positivismo em alguns aspectos, mas que difere em aspectos importantes:

§  O “relativismo” do atual senso comum – e é importante enfatizar que se trata do atual senso comum – opõe-se de fato ao absolutismo, mas opõe-se de maneira bastante dura

§  O relativismo do senso comum postula que convicções firmes só existem no âmbito do absolutismo

·         O fundamento dessas convicções firmes absolutas estaria em que somente o indiscutível é firme e sólido

·         Inversamente, as concepções relativistas seriam frouxas ou, ainda, fluidas ou, ainda, “suaves”

§  Uma forma bastante reveladora de entender essa dicotomia – e trata-se aqui, de fato, de uma dicotomia, ou seja, de uma divisão entre duas concepções opostas – é considerar que quem tem convicções firmes seria “dogmático”, no sentido de que seria duro, incapaz de discutir idéias, pouco ou nada afeito à reflexão “crítica”, ao autoexame, à reavaliação das próprias concepções etc.

o   Reiterando, então: o que está subjacente é que a firmeza de concepções é própria ao absolutismo e que o relativismo implica uma certa debilidade

§  Essa debilidade do relativismo deve-se a que, nessa concepção, não há “verdade”, mas apenas situações momentânea e fugidiamente estáveis ou acordos parciais e/ou contextuais, na forma de “jogos”, “convenções”, “construções sociais” etc.; além disso, rejeitam-se as noções universalistas e generalistas, em favor de concepções particularistas

·         Dizendo de outra forma: trata-se de um ultrassubjetivismo, que, além disso, rejeita a noção de objetividade

o   Essa forma de entender o relativismo vincula-se às concepções do chamado “segundo Wittgenstein” que, a partir dele, influenciou (e influencia) gerações de filósofos e teóricos

§  As reflexões do “segundo Wittgenstein”[1], expostas no livro póstumo Investigações filosóficas (1953), por um lado rejeitavam a busca da verdade e, por outro lado, propunham para a filosofia a tarefa de ser “terapêutica”

§  Há nessas reflexões um viés antimetafísico, antiessencialista e antiabsolutista (o que sem dúvida as aproxima do Positivismo); mas, como decorrência disso e da rejeição da verdade, há também a concepção de que toda e qualquer verdade é sempre, necessária e profundamente contextual

o   Essas concepções foram reafirmadas ao longo do século XX por diferentes pensadores, especialmente os de origem (ou de vinculação) anglossaxônica e próximos às chamadas “filosofia da linguagem” e “filosofia analítica”

§  Os pensadores pós-modernos são herdeiros diretos dessas concepções

§  Essas concepções são tão intensas que mesmo pensadores que não são “pós-modernos”, como Ernst Gellner[2], acabaram aceitando-as, especialmente no que se refere à definição atual de “relativismo”

-        A concepção atual de relativismo apresenta, portanto, alguns elementos importantes (o antiabsolutismo, por exemplo), ao mesmo tempo em que apresenta traços profundamente problemáticos (como a rejeição de qualquer busca da verdade e a correlata concepção de que a verdade é meramente um acordo instável e temporário entre grupos e indivíduos que estão perpetuamente em disputa)

o   Dessa forma, essa concepção atual de relativismo realmente se distancia bastante das convicções profundas; na verdade, ela sugere e estimula uma atitude meio superficial em relação à vida

o   Inversamente, essa concepção atual de relativismo estimula a concepção de que as convicções profundas são próprias (apenas) a perspectivas absolutistas

§  O resultado, portanto, é que apenas os teológicos (e, por extensão implícita, os fanáticos) são verdadeiramente convictos de suas idéias; os relativistas são superficiais, banais, frágeis e, daí, meio covardes

-        É necessário retornarmos ao Positivismo e à questão do título deste sermão: será que o nosso relativismo estimula convicções fracas?

o   Respondendo de mais clara e direta: não, o nosso relativismo não estimula convicções fracas; ao contrário, ele estimula convicções firmes

§  É claro que “convicções firmes” não equivalem a “convicções fanáticas” – nem equivale às variações que o atual senso comum vincula ao fanatismo: ausência de “autocrítica”, ausência de “senso crítico”, “dogmatismo”, “dureza de concepções” etc.

o   Como e por quê o nosso relativismo estimula convicções firmes?

§  Antes de mais nada: viver a vida exige tanto regras claras e estáveis quanto firmeza de propósitos

·         A firmeza de propósitos é uma qualidade por si só (é um atributo prático), mas é evidente que regras claras e estáveis facilitam essa firmeza

o   Já afirmamos várias vezes nesta exposição de diferentes maneiras, mas convém reafirmar mais uma vez: a “firmeza de propósito” (e as regras claras e estáveis) não equivale à incapacidade de cada um reavaliar o próprio comportamento, as próprias concepções etc.; em outras palavras, a firmeza de propósito (e as regras claras e estáveis) não implica necessariamente concepções absolutas

§  A firmeza de propósitos é necessária simplesmente porque a vida impõe dificuldades e obstáculos que, para serem enfrentados, exigem persistência (ou seja, manutenção do comportamento adotado e/ou necessário ao longo do tempo)

·         A multiplicidade de caminhos possíveis a serem adotados na vida (bons ou ruins, certos ou errados etc.), por seu turno, também requer regras claras e estáveis para a firmeza de propósitos

o   Devemos perceber que o verdadeiro relativismo rejeita apenas as concepções absolutas, mas não impede (nem haveria por que impedir) a busca de verdades

§  Como vimos antes, a variabilidade das verdades não implica que elas sejam aleatórias, na medida em que elas vinculam o interior ao exterior por meio das relações de coexistência e sucessão (ou seja, das leis naturais)

o   Também devemos ter clareza a respeito das relações entre inteligência e atividade prática:

§  A inteligência esclarece o mundo a fim de orientar a atividade prática: isso significa que, por mais importante que sejam as nossas concepções sobre o mundo, tais concepções são importantes acima de tudo como um meio, isto é, como um instrumento para que possamos agir no mundo

·         A utilidade desse instrumento vincula-se à adequação ao mundo, exatamente nos parâmetros das leis naturais, e não como acordos ultrassubjetivos, frágeis e locais entre pessoas que não se levam muito a sério

§  Na medida em que a inteligência é um instrumento a serviço da atividade prática, ela deve subordinar-se à atividade prática

·         Evidentemente, isso não significa que a subordinação da inteligência à atividade prática equivalha à degradação da inteligência

·         Isso significa, sim, que, sendo a operação da inteligência e seus possíveis objetivos muito grandes e variáveis, eles devem pautar-se e orientar-se pelos parâmetros da atividade prática, a fim de que não se descaminhem

·         A concepção da inteligência como subordinada à atividade prática e como orientada por ela corresponde à visão positiva da inteligência – e, por extensão, do relativismo

§  Nesse sentido, é necessário termos clareza de que os objetivos propostos pelos pós-modernos, por R. Rorty e pelo segundo Wittgenstein para a inteligência correspondem ao descaminho da inteligência, à sua perda de rumo

-        Em suma:

o   O verdadeiro relativismo não apenas permite como exige convicções profundas:

§  As convicções profundas próprias ao relativismo não equivalem à ausência de autocrítica, à incapacidade de reavaliar o próprio comportamento, ao dogmatismo etc.

§  As convicções profundas são estimuladas pelo relativismo, na medida em que enfrentar a vida exige esforços contínuos e esclarecidos pelo conhecimento da realidade

§  Essa forma de entender o relativismo, as convicções profundas e suas relações corresponde à concepção positiva disso tudo; o que nega tais concepções constitui perspectivas metafísicas, críticas, destrutivas e prejudiciais ao ser humano

o   O atual relativismo nega não apenas as concepções absolutas como quaisquer concepções da verdade

§  O atual relativismo afirma que não existe nenhum tipo de verdade, apenas acordos parciais, temporários, frágeis, particularistas e ultrassubjetivos

·         Essa concepção baseia-se – pelo menos em sua versão do século XX – nas idéias do segundo Wittgenstein (das Investigações filosóficas), serve de fundamento para os pós-modernos e é exemplificada pelo estadunidense Richard Rorty

§  Para o atual relativismo, a filosofia – e, por extensão, a inteligência – não tem nenhuma utilidade maior além de sacramentar e mais ou menos permitir conversas superficiais entre grupos específicos de seres humanos

·         O objetivo de tais conversas é apenas dar satisfação momentânea às ansiedades dos seres humanos

§  A filosofia (e, daí, a inteligência) é portanto superficial, banal e mais ou menos inútil; as convicções daí decorrentes são frágeis

·         É inevitável chegar à conclusão de que o atual relativismo constitui um descaminho dos objetivos da inteligência e que, portanto, ele corresponde a uma concepção metafísica da inteligência, da existência humana e das suas relações com a atividade prática

§  É claro que, apesar de sua superficialidade, de sua banalidade e de sua fragilidade, esse atual relativismo apresenta por outro lado uma capacidade intensa de criticar como sendo “acrítico”, “dogmático”, “essencialista” etc. tudo aquilo que não padece dos seus próprios defeitos



[1] A expressão ao “segundo Wittgenstein” refere-se à segunda grande parte da carreira desse pensador, desenvolvida a partir da década de 1930 e voltada à chamada “filosofia da linguagem comum”. Tendo vivido entre 1889 e 1951, a primeira grande parte da sua carreira desenvolveu-se até os anos 1920 e dedicou-se à filosofia da matemática, à filosofia da lógica e a investigações que consideravam a linguagem como um tipo de lógica (e vice-versa). A grande obra da primeira fase de Wittgenstein é o Tratado lógico-filosófico (1921); como indicamos acima, a grande obra da segunda fase é o livro póstumo Investigações filosóficas (1953).

[2] A referência que fazemos aqui a Ernst Gellner (1925-1995) deve-se a que ele, sendo um defensor do racionalismo de origem iluminista e um crítico tanto do absolutismo (teológico) quando do laxismo filosófico, moral e prático do pós-modernismo, não elaborou nenhuma concepção de relativismo que fosse além das difundidas pelos pós-modernos a partir de Wittgenstein. De modo mais específico, expondo suas concepções, Gellner participou do evento “O relativismo enquanto visão de mundo”, que ocorreu em 1993 e que teve seus anais publicados em 1994 sob o título Banco Nacional de Idéias – O relativismo enquanto visão de mundo e organizado por Antônio Cícero e Waly Salomão; da mesma forma, Gellner expôs essas suas concepções no volume Pós-modernismo, razão e religião (Lisboa, Instituto Piaget, 1994). Assim, a referência a Gellner é feita a título de exemplo da adesão generalizada à concepção vulgar de relativismo, mesmo da parte de pensadores que são, ou seriam, críticos dessa concepção vulgar.

28 junho 2020

Ainda o relativismo histórico, o anti-racismo e as memórias históricas


Em postagem anterior, intitulada “Relativismo histórico, anti-racismo e memórias históricas”, indiquei vários motivos que justificam a preservação de estátuas comemorativas de personagens como Winston Churchill (no mundo inteiro) e a manutenção do nome de Woodrow Wilson na Escola de Relações Internacionais da Universidade Princeton (nos Estados Unidos). Embora essa postagem tenha sido extensa e tenha coberto uma ampla gama de temas, uma nova reflexão levou-me a perceber que eu não havia esgotado o tema e que há, portanto, outros aspectos que merecem ser apresentados. De maneira específica, quero comentar pelo menos mais dois aspectos: (1) o caráter metafísico e (2) o antiprogressivismo do combate às memórias históricas; o segundo aspecto é uma decorrência do primeiro, embora ambos sejam em si mesmos distintos um do outro.

No Positivismo, na Religião da Humanidade, o que se opõe ao “relativo” é o “absoluto”. O absoluto é a forma de encarar a realidade, o mundo, o ser humano, que pretende que tudo isso seja entendido de uma vez por todas, por todo o sempre; em oposição ao que é “relativo”, o absoluto rejeita relações, vínculos; assim, o absoluto permitiria a compreensão de tudo a partir de algum princípio externo ao que existe e que não dependeria de nada para existir e para permitir o entendimento. De maneira exemplar, a concepção de uma divindade, em particular no monoteísmo, representa(ria) a concepção do absoluto: supostamente o deus monoteísta existe em si e para si, independentemente de quem e do que quer que seja, mas, por outro lado, tudo o que existe, existiu e existirá depende dele e por ele seria explicado. As perguntas finalísticas – “de onde viemos?”, “para onde vamos”, “por que existimos?” – são as questões que dão origem à concepção teológica e suas respostas conduzem ao absoluto.

Ora, como vimos, o absoluto tem sua melhor representação na teologia, em particular no monoteísmo. Como Augusto Comte indicou desde o início de sua carreira, as idéias são históricas e alteram-se ao longo do tempo; essas alterações de cada concepção seguem uma evolução específica, que consiste na passagem da teologia para a sua concepção corrompida, que é a metafísica; da metafísica (que possui um caráter meramente transitório) passa-se à positividade, cuja grande característica é o relativismo. (Não é necessário insistir em que a transição do absolutismo teológico-metafísico para o relativismo positivo é uma verdadeira revolução mental e moral, com um caráter extremamente profundo e, por isso mesmo, de realização complicada.)

A metafísica, portanto, é absoluta; ela visa a responder de uma vez por todas as questões que considera. Mas, como indicamos, a metafísica também é mera transição entre a teologia e a positividade; essa transição em particular assume a característica de ser “crítica”, isto é, destruidora, corrosiva. Ainda mais: embora compartilhe com a teologia seu caráter absoluto, a metafísica opõe-se à teologia, em particular assumindo-se o título de “progressista” contra o “conservadorismo” imputado à teologia. Em face da metafísica, não há dúvida de que a teologia torna-se realmente conservadora; além disso, quando surge, a metafísica consiste na própria realização do progresso, na medida em que a decomposição da teologia em direção à positividade é a própria marcha do progresso.

O conservadorismo teológico e o progressivismo metafísico são ambos absolutos; eles afirmam seus princípios de uma vez por todas e rejeitando as concepções de vínculos, de relações, de limitações, de contextos. Quando a metafísica passa a atuar sobre e contra a teologia, logo se instala uma dinâmica (os marxistas e os hegelianos diriam uma “dialética”) que opõe a ordem e o progresso, comprometendo tanto a ordem quanto o progresso, em que a ordem torna-se reacionária e o progresso torna-se anárquico. O que está em questão nessa dinâmica, portanto, é o papel concedido à liberdade e, em decorrência disso, a forma como a sociedade organiza-se (se de maneira espontânea, se de maneira forçada; se com princípios compartilhados, se sem tais princípios).

Assim, embora ela inicialmente ela corresponda ao progresso e afirme-se como sendo a representante do progresso, entregue a si mesma a metafísica acaba agindo de tal maneira que combate exatamente aquilo que afirma defender. Entretanto, o problema vai mesmo além da dinâmica suicida entre a ordem retrógrada e o progresso anárquico: fiel ao seu caráter dissolvente, ou, para usar uma palavra que todos conhecem, empregam e mais ou menos entendem, fiel ao seu caráter crítico, a metafísica é incapaz de manter quaisquer instituições, quaisquer conquistas. Em outras palavras, por si mesma a metafísica acaba resultando no fim do mesmo progresso que ela supostamente representa e defende.

Trazendo essas reflexões filosóficas e sociológicas para o caso que consideramos anteriormente – as estátuas e as homenagens a tipos considerados atualmente como racistas –, o resultado é que a falta de relativismo histórico a respeito dessas personagens deve-se antes de mais nada a seu caráter metafísico, crítico, destruidor, absoluto. Deseja-se de uma vez por todas, de maneira radical, ou melhor, de maneira brutal avaliar todas as carreiras desses tipos, baseando-se em parâmetros estritamente atuais e desprezando-se as atuações dessas personagens nos momentos em que viveram e, de modo específico, pelas quais tornaram-se famosas. Não há dúvida de que é motivo do mais profundo pesar, do mais profundo lamento, que Churchill e Wilson – para ficarmos nas duas personagens que estou considerando de maneira particular – tenham sido racistas; esse traço constitui uma nódoa profunda na biografia de cada um: ainda assim, a despeito disso, nenhum dos dois é lembrado, celebrado, cultuado devido ao racismo, mas devido às suas decisivas ações políticas ao longo do século XX – ações aliás francamente progressistas e libertárias. Aparentemente, há bustos e estátuas de outras personagens cujas carreiras consistiram basicamente no comércio de escravos, na manutenção da escravidão: nesse caso, não há atenuantes, não há justificativas plausíveis para a celebração de suas memórias; mas, como argumentamos, são muito diferentes as situações de personagens como Churchill, Wilson e vários outros.

Doravante, quando nos referirmos ao ex-primeiro-ministro britânico e ao ex-presidente estadunidense (e a muitos, muitos outros), teremos que indicar claramente seus lamentáveis racismos, com bem mais que eventuais notas de rodapé: isso, entretanto, é muito diferente de desprezar suas importantes ações devido ao racismo; no final das contas, empregar o racismo como critério único para julgar a inteireza da vida de alguém não deixa de ser uma inesperada e lamentável vitória do próprio racismo sobre a liberdade, a fraternidade e a tolerância.