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11 junho 2024

Síntese subjetiva e relativa como quarto estado

No dia 23 de São Paulo de 170 (11.6.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos uma questão central para o Positivismo e para todos os seres humanos: a noção de positividade filosófica, superior à mera positividade científica, como um quarto estado da lei dos três estados.

Antes do sermão comentamos alguns livros:

- Ascensão e reinado dos mamíferos, de Steve Brusatte

- A esquerda não é woke, de Susan Neiman

 A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/ArsP0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/hmfvr).

A leitura comentada começou aos 48 min 05 s; o sermão começou a 1h 09 min 43 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas (e atualizadas) abaixo.

*   *   *

A síntese subjetiva como quarto estado

(23.São Paulo.170/11.6.2024) 

1.      A prédica de hoje trata de um assunto que é da maior importância para o Positivismo, isto é, para a Religião da Humanidade e, por extensão, para o ser humano, para o bem-estar público e para a felicidade individual

1.1.   Trata-se da incorporação da síntese subjetiva na lei dos três estados, ou melhor, da atualização da lei dos três estados em face da síntese subjetiva

1.2.   Essa atualização é importante porque corrige uma ambigüidade daninha presente desde o início da lei dos três estados

2.      Antes de passarmos à parte mais substantiva deste sermão, podemos responder a uma pequena dúvida que, por vezes, apresenta-se aos leitores de Augusto Comte (incluindo, evidentemente, os positivistas)

2.1.   A dúvida é a seguinte: devemos dizer “estados” ou “estágios”?

2.2.   A formulação de Augusto Comte é bem clara: ele usa “état”, ou seja, “estado”: é a “loi des trois états

2.3.   Mas se na formulação ele usa “estado”, em seus escritos ele não se apega a essa palavra, usando alternadamente “estado”, “estágio”, “fase”, “modo” etc.

2.3.1.     Os positivistas, da mesma forma, adotam essas várias palavras

2.4.   Para além da palavra consagrada no enunciado, o que evidentemente importava para Augusto Comte, conforme depreendemos de seus escritos, é que cada um dos estados descritos na lei dos três estados (1) representa um modo distinto de conceber e interpretar a realidade, (2) que segue uma determinada seqüência lógica e histórica em seu desenvolvimento

2.5.   Assim, na prática, podemos dizer que o enunciado deve ser feito com “estados” (por motivos de respeito e de uniformidade), mas que ao longo das exposições e das reflexões podemos usar sem maiores dificuldades as outras palavras

3.      A lei dos três estados a que nos referimos é a lei intelectual dos três estados

3.1.   Ela foi primeiramente enunciada em 1822, no texto, ou livro, chamado “Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”

3.1.1.     Esse livro era chamado por Augusto Comte também de “opúsculo fundamental”

3.1.2.     Além disso, é popularmente conhecido apenas como “Reorganizar a sociedade”

3.1.3.     Ele teve uma reedição aumentada em 1824, em que Augusto Comte chamou-o – prematuramente, como ele mesmo depois reconheceu – de “Sistema depolítica positiva

3.2.   Ao apresentar a lei dos três estados, inserindo-a em uma reflexão histórica mais ampla, o “Reorganizar a sociedade” tem o mérito e a glória de ao mesmo tempo fundar a Sociologia e o Positivismo

3.3.   O enunciado dessa lei mudou com o passar do tempo, refletindo mudanças, ou melhor, a evolução das concepções de nosso mestre

3.4.   O enunciado final, “canônico”, é o que aparece no corpo da Filosofia Primeira, conforme publicado no Catecismo positivista:

3.4.1.     “Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”

3.4.2.     Vale lembrar que essa é a sétima lei do total de 15 leis da Filosofia Primeira; ela integra o segundo grupo de leis, “essencialmente subjetivo”, na sua segunda série, que compreende as leis dinâmicas do entendimento

3.4.3.     Essa segunda série apresenta as três leis dos três estados (intelectuais, afetivos e práticos)

3.5.   As idéias da lei intelectual dos três estados são bem claras:

3.5.1.     Toda concepção humana passa por três fases, ou seja, três modos de entender o mundo

3.5.2.     Esses três modos são, sucessivamente, o fictício, o abstrato e o positivo

3.5.2.1.           Insistamos: os modos são três, são sucessivos, são os indicados acima e desenvolvem-se nessa ordem

3.5.3.     A velocidade da passagem de um modo de conceber a realidade para outro varia de acordo com a generalidade objetiva de cada concepção, o que também equivale a dizer: conforme a generalidade subjetiva e o grau de complicação das concepções

4.      Pois bem: a ambigüidade que mais ou menos sempre se apresentou consiste, precisamente, no fato de que o estado positivo apresentava dois sentidos diferentes

4.1.   Esses dois sentidos são: (1) positivo como “científico” e (2) positivo como “filosófico”

4.2.   O sentido “científico” foi o que primeiro apresentou-se a Augusto Comte, refletindo o desenvolvimento das ciências; ele opõe-se de maneira bastante clara à teologia e à metafísica

4.3.   O sentido “filosófico”, nas primeiras formulações, não estava muito evidente – o que, é importante enfatizar, não significa que não se apresentasse de maneira nenhuma –, mas, à medida que nosso mestre desenvolveu sua obra, a importância da síntese filosófica foi evidenciando-se cada vez mais

4.4.   Assim, nas formulações iniciais – ou seja, nos opúsculos de juventude (como o “Reorganizar a sociedade”, de 1822-1824) e ao longo dos cinco primeiros volumes da Filosofia positiva (de um total de seis) (1830-1841) –, Augusto Comte afirmava ao mesmo tempo, a importância da cientificidade (usando, para isso, a lei dos três estados como apoio) e a necessidade de concepções gerais, sintéticas e francamente relativas

4.4.1.     A necessidade das concepções gerais, sintéticas e relativas era afirmada em conjunto com a cientificidade, mas ela não era plena e conscientemente integrada à lei dos três estados, que se limitava assim, em seu enunciado, ao positivo como cientificidade

4.5.   Conforme nosso mestre disse em carta ao dr. Audiffrent de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), apenas a partir do último volume da Filosofia positiva (1842) é que o enunciado, ou melhor, que o sentido pura ou predominantemente científico na lei dos três estados mudou

4.6.   O relacionamento com Clotilde permitiu que Augusto Comte mudasse claramente o sentido, assumindo então que a positividade não pode ser apenas a cientificidade, mas deve ser, ainda mais, o aspecto sintético, subjetivo e relativo

4.7.   A Religião da Humanidade, proposta no Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), fundada plenamente na Política positiva (1851-1854) e aprofundada na Síntese subjetiva (1856) consagrou definitivamente o sentido pleno da positividade, isto é, como síntese filosófica, relativa e subjetiva

5.      Pois bem: o ano de 1857 foi dedicado por Augusto Comte para reflexão e amadurecimento filosófico, preparando-se para a redação dos volumes seguintes da Síntese subjetiva

5.1.   No âmbito dessas reflexões, em conversas epistolares com seus discípulos, Augusto Comte apresentava e desenvolvia suas novas concepções

5.2.   Na já mencionada carta ao dr. Audiffrent, de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), nosso mestre formaliza a concepção de positividade presente na lei intelectual dos três estados, desdobrando-a em uma lei dos quatro estados

5.2.1.     A positividade, assim, assume duas fases sucessivas: uma preparatória, a científica, e a outra verdadeiramente definitiva, a filosófica

5.2.2.     Além do aspecto filosófico, explicitamente ao mesmo tempo sintético, relativo e subjetivo, Augusto Comte indica que a verdadeira positividade exige que a utilidade seja claramente acrescida à realidade das concepções

5.2.2.1.           A mera realidade pode resultar – e, como sabemos, com freqüência resulta – no absolutismo científico

5.2.2.2.           Por outro lado, o pleno e conseqüente emprego da utilidade resulta em que é possível, e necessário, que criemos concepções que sejam fictícias mas úteis

5.2.2.2.1.                O critério da realidade não é final, mas não pode ser desprezado; assim, as ficções positivas, sem se limitarem à realidade, não podem negar as concepções reais

5.2.2.2.2.                Evidentemente, a subjetividade tem um largo papel aí, seja na forma da imaginação artística, seja na incorporação do fetichismo à positividade

5.2.2.2.3.                Isso tudo resulta em que, por um lado, as utopias positivas podem ser desenvolvidas com plena positividade e que, por outro lado, mesmo as concepções científicas abrem-se plenamente para enunciados simpáticos, isto é, ao mesmo tempo altruístas e artísticos

5.3.   Ao distinguir a positividade científica (que é preparatória e, portanto, provisória) da positividade plena, que é filosófica, nosso mestre também distingue a verdadeira positividade do mero cientificismo (e, por extensão, também do academicismo)

5.4.   Eis como Augusto Comte caracteriza cada um dos quatro estados:

5.4.1.      Teológico: provisório

5.4.2.      Metafísico: transitório

5.4.3.      Científico: preparatório

5.4.4.      Positivo (filosófico): definitivo

5.5.   Comentário estritamente pessoal: no fundo, podemos talvez considerar que o novo enunciado estabelece uma leis dos “dois estados”, indicando a gigantesca transição do absolutismo para o relativismo

5.5.1.     Ou, quem sabe, considerando a transição do absolutismo para o relativismo, uma outra lei dos três estados: fetichismo, teologia/metafísica, positividade

5.6.   Comentário feito pelo nosso amigo Hernani na tarde de hoje (23.São Paulo.170/11.6.2024), a título de auxílio para esta prédica:

“A caracterização intelectual da síntese subjetiva foi feita por Augusto Comte em suas últimas reflexões tomando por base dois pares de conceitos. A síntese positiva é (1) demonstrável e discutível e (2) relativa e subjetiva. Ora, com base apenas nessa dupla caracterização torna-se fácil justificar a lei dos três estados com o acréscimo de uma quarta fase, bastando decompor o estado metafísico em seus dois pólos opostos (o espiritualismo e o materialismo). Basta realizar a seguinte operação: ao teologismo corresponderia uma síntese a um tempo subjetiva e absoluta, donde seu caráter a um tempo indemonstrável e indiscutível.

Em seguida, à primeira expressão da metafísica, isto é, à metafísica espiritualista corresponderia uma tentativa de síntese objetiva e absoluta, donde seu caráter indemonstrável porém discutível.

Ao segundo e último estágio metafísico, isto é, ao cientificismo materialista, corresponde uma tentativa de síntese objetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável porém ainda indiscutível.

E por fim, o quarto e último estado do entendimento, a síntese positiva, esta define-se como subjetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável e discutível.

Repare que o caráter contraditório das duas sínteses metafísicas fica aí plenamente manifesto, assim como o contraste entre essas duas sínteses em comparação com o caráter orgânico das sínteses teológica e positiva”.

5.6.1.     A sugestão do Hernani é que o antigo critério de positividade – que, no final das contas, é o cientificismo – seja incorporado à metafísica (que, assim, desdobra-se em duas fases), deixando a positividade propriamente dita para a síntese subjetiva e relativa

5.7.   Mais algumas observações de nosso amigo Hernani, agora feitas durante a prédica:

“Em sua primeira fase, mais objetiva, Augusto Comte havia formulado a lei dos três estados a partir das produções exteriores da Humanidade. Ela é então uma apresentação eminentemente histórica e empírica. A teologia, a metafísica e a ciência são aí oferecidas como sinais empíricos reveladores dessa passagem íntima.

Na segunda de suas fases, progressivamente subjetiva, a formulação de Augusto Comte enuncia a mesma lei considerando antes o caráter interno de cada estado, ou seja, o caráter lógico inerente de cada um deles. Então se tratou de revelar o caráter fictício das construções da teologia, o caráter abstrato das especulações metafísicas e o caráter positivo das leis da ciência.

A morte privou Augusto Comte de uma terceira formulação da lei da evolução intelectual, na qual o conjunto do Positivismo já pudesse ser apresentado como livre dos últimos vestígios do cientificismo, o que já havia ocorrido a partir do quarto volume da Política positiva, de 1854, com a teoria subjetiva dos números, com a incorporação do fetichismo etc.

É curioso ver como o resumo de Harriett Martineau[1] foi elogiado por Augusto Comte, dentre outras virtudes, pelo fato de ela haver excluído daí o artigo escrito por Augusto Comte, em 1832, intitulado Memória sobre a hipótese cosmogônica de Laplace[2], adiantando-se assim à exclusão de um assunto que ainda estava presente no Sistema de filosofia positiva e que o Positivismo viria a considerar como mais uma especulação da metafísica cientificista”.

5.8.   A carta de 12 de fevereiro foi aprofundada em uma outra, de 27 de Aristóteles de 69 (24 de março de 1857)

6.      As cartas de A. Comte ao dr. Audiffrent foram publicadas pelo próprio dr. Audiffrent em 1880, no livro O Positivismo dos últimos tempos (LePositivisme des derniers temps) – embora tenham sido apenas trechos dessas epístolas

6.1.   Teixeira Mendes traduziu e publicou esses trechos em 1898 (As últimas concepções de Augusto Comte) e novamente em 1900 (O ano sem par)

6.2.   Finalmente, em 1990, Paulo Carneiro, dando seguimento e concluindo o principal de organização e publicação da correspondência de Augusto Comte, publicou-as na íntegra, no volume VIII da correspondência e das confissões anuais de nosso mestre (esse volume em particular contou com o auxílio de Angèle Kremer-Marietti)

7.      Eis os trechos da bela e importante carta de fevereiro de 1857 que o dr. Audiffrent publicou em 1880[3]:

“A respeito da principal parte de vossa memorável carta, devo sobretudo esboçar a sistematização direta das reflexões gerais que precedentemente vos indiquei sobre a emancipação científica especialmente instituída, conforme o caso mais decisivo, ainda que sob um modo espontaneamente latente no volume que vós reledes agora. É necessário perceber diretamente tal emancipação como o complemento normal da evolução fundamental que caracteriza a lei dos três estados. O último estado deve ser, a esse respeito, decomposto em seus dois modos sucessivos, um científico, o outro filosófico, respectivamente analítico e sintético. É somente ao segundo que pertence a qualificação de definitivo, inicialmente aplicado confusamente ao seu conjunto. No fundo, a ciência propriamente dita é tão preliminar quanto a teologia e a metafísica e deve ser finalmente tanto quanto [elas] eliminada pela religião universal, em relação à qual esses três preâmbulos são um o provisório, o outro, transitório, e o último, preparatório. Eu ouso mesmo recusar às ciências o atributo de plena positividade, que não consiste somente na realidade das especulações, mas em sua combinação contínua com a utilidade, sempre referida ao Grande Ser e desde então não podendo nunca ser dignamente apreciada senão conforme a síntese total, vale dizer, subjetiva e relativa. Na construção final, o início teológico da preparação humana não tem menos eficácia que seu término científico. Se este fornece os materiais exteriores, a outra esboça as disposições interiores, ao compensar a imaginaridade[4] pela generalidade, cuja ausência interdiz toda verdadeira racionalidade teórica.

Sob um aspecto mais sistemático, a primeira vida [teológica] é sobretudo distinguida no indivíduo, como na espécie, pela vã pesquisa contínua de uma síntese essencialmente objetiva, ao passo que a segunda [a positividade] constrói e desenvolve a síntese puramente subjetiva, de que a outra forneceu espontaneamente os materiais necessários. Mesmo quando a ciência já sentiu a inanidade das causas e fez gradualmente prevalecer as leis, ela aspira tanto quanto a teologia e a metafísica à objetividade completa, sonhando com a universalidade de explicação exterior segundo uma única lei, não menos absoluta que os deuses e as entidades seguindo a utopia acadêmica. A esse respeito, eu devo ingenuamente estender uma palavra de minha última circular que prolonga esse reproche até a mim mesmo, a respeito da minha obra fundamental [o Sistema de filosofia positiva], em que, não fosse senão a esse título, a posteridade não veria, como eu pude já o dizer nobremente, senão uma construção de estréia, um trabalho de primeira vida, não tendendo para a segunda senão no tomo final, todos os outros permanecendo mais ou menos submetidos ao prestígio científico de que somente o estado plenamente religioso libertou-me”.

8.      Eis o trecho da carta de março de 1857, também publicada pelo dr. Audiffrent em 1880[5]:

“O MESTRE – Vejo que apreciastes agora o meu novo volume [Síntese subjetiva], de maneira a utilizá-lo mais do que ninguém. A sua reação geral sobre a vossa final emancipação científica me é sobretudo preciosa, como garantindo a integridade das vossas disposições sintéticas e a sua eficácia religiosa. Sentistes dignamente que a ciência, longe de constituir o estado positivo, limita-se a fornecer-lhe, após a teologia e a metafísica, uma última preparação necessária que, como as outras duas, tem tanto seus inconvenientes como suas vantagens, e torna-se profundamente nociva prolongando-se fora de medida. Para caracterizar a positividade das nossas concepções, é preciso sempre que a sua realidade se combine com a sua utilidade, a qual não é verdadeiramente suscetível de ser julgada senão religiosamente, em virtude da relação de cada parte com o conjunto. Sente-se que a ciência seria menos apta do que a teologia para constituir um estado fixo, pois que o entendimento não poderia nunca tomar para uma verdadeira residência uma simples escala, unicamente apropriada para subir ou descer entre o mundo e o homem, quando as nossas necessidades o exigem, e de modo algum capaz de fornecer-nos um domicílio permanente. É tempo que os verdadeiros teoristas se libertem, a tal respeito, de uma dominação degradante, a fim de poderem dignamente instalar as grandes noções religiosas contra as quais a ciência será em breve insurgida com mais animosidade do que a teologia e a metafísica, porque ela aspira mais a perpetuar o interregno espiritual”

9.      Em suma:

9.1.   A verdadeira positividade é filosófica, relativa e subjetiva

9.1.1.     A verdadeira positividade não se confunde com o cientificismo – aliás, não se confunde nem com a mera ciência

9.1.2.     O que distingue a verdadeira positividade da ciência e do cientificismo são suas vistas gerais, o reconhecimento de que a inteligência é um atributo humano (embora, claro, não exclusivamente nosso) que está e deve estar a serviço do ser humano – portanto, também a utilidade do conhecimento deve limitar e orientar a aplicação da inteligência

9.2.   Essa distinção tem importância evidente para nós, positivistas, mas, como tudo o mais na Religião da Humanidade, tem importância para todos os seres humanos: tratam-se de concepções importantes para a Humanidade em geral e para cada sociedade e indivíduo em particular

9.2.1.     A correção e a justiça das concepções de Augusto Comte – incluindo a retificação formal da lei dos três estados, no sentido de recusar à mera ciência o caráter de positividade – é atestada pelas mais diferentes manifestações filosóficas e políticas feitas desde antes de Augusto Comte, passando por críticos e comentadores de sua época e chegando aos nossos dias

9.2.1.1.           Não apenas comentadores do Positivismo, mas filósofos que refletem em geral afirmam e exigem a ultrapassagem do cientificismo em favor de concepções mais amplas

9.2.1.2.           O Positivismo afirma tais concepções mais amplas com todas as letras mais ou menos desde sempre:

9.2.1.2.1.                A exigência das visões de conjunto, da síntese filosófica, subjetiva e relativa sempre esteve presente

9.2.1.2.2.                A Religião da Humanidade formaliza essa ultrapassagem

9.2.1.2.3.                Por fim, a incorporação formal (mas também substantiva) dessa ultrapassagem na lei dos três estados ocorreu em 1857




[1] Referência à condensação do Sistema de filosofia positiva feito por Harriet Martineau em 1855, em dois volumes, sob o título “A política positiva de Augusto Comte” (The Positive Philosophy of Auguste Comte). O v. 1 pode ser consultado aqui: https://archive.org/details/positivephilosop0000comt/page/n3/mode/2up.

[2] Referência ao documento Premier memóire sur la cosmogonie positive (“Primeira memória sobre a cosmogonia positiva”), conhecido popularmente como Memóire sur la cosmogonie de Laplace (“Memória sobre a cosmogonia de Laplace”), publicado em 1835 por Augusto Comte.

[3] A tradução é minha, a partir da correspondência de Augusto Comte organizada e publicada por Paulo Carneiro e Angèle Kremer-Marietti em 1990.

[4] Augusto Comte usa no original “imaginarité”, no sentido de “imaginação”; essa palavra foi empregada no original para ecoar, ou rimar, tanto “généralité” (generalidade) quanto “rationalité” (racionalidade). Usamos o neologismo “imaginariedade” a partir da palavra “imaginário”, a fim de seguir a rima de Augusto Comte.

[5] A tradução é de Teixeira Mendes, presente em As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898, p. 286).

14 maio 2024

Sobre a liberdade absoluta de consciência

No dia 23 de César de 170 (14.5.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos a crítica de Augusto Comte ao dogma da consciência ilimitada de consciência.

Além disso, fizemos nossas exortações habituais e lembramos algumas datas importantes:

1) Sejam altruístas: o altruísmo não tem limites e tudo pode e deve ser objeto do altruísmo. O desastre ambiental que está tendo curso no Rio Grande do Sul exige, em particular, que todos sejam altruístas neste momento. No dia 8 de maio fizemos um apelo altruísta em favor do Rio Grande do Sulhttps://acesse.dev/Uhtbm.

2) Façam orações: as orações positivistas, que são formas ativas de meditação, devem ser feitas três vezes por dia (ao acordarmos, antes de dormirmos e no meio dia); além disso, as orações positivistas não são interessadas nem interesseiras, mas são formas de reconhecimento de dívidas de gratidão: dessa forma, elas são exercícios de altruísmo.

3) Façam o Pix da Positividade, contribuindo para a Igreja Positivista Virtual. A nossa chave pix é esta: ApostoladoPositivista@gmail.com.

4) No dia 11 de maio celebrou-se o aniversário da fundação da Igreja Positivista do Brasil, ocorrido em 1881.

5) No dia 12 de maio celebrou-se o Dia das Mães: embora seja uma data comercialista, bem ou mal ela celebra uma importante função social, uma fonte e um símbolo eterno de amor, carinho e dedicação. Embora a anarquia moderna, na forma da metafísica feminista, despreze o ideal da maternidade, a moral positiva estabelece como símbolo da Humanidade uma mulher que é também mãe.

6) No dia 13 de maio celebrou-se a abolição da escravidão no Brasil, ocorrida em 1888. Essa data celebra o fim do desprezível cativeiro dos brasileiros originários da África e, com isso, também celebra a união dos três principais grupos que constituem o Brasil (os portugueses, os índios e os africanos). A Igreja Positivista do Brasil também estabeleceu essa data para celebrar a memória do líder republicano, proclamador da independência do Haiti, o ex-escravo Toussaint Louverture.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/X3Pnb) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/5YrQa). O sermão começou aos 45 min 40 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


Sobre a liberdade absoluta de consciência 

-        Há um tema importante ao Positivismo que, por vezes, como infelizmente acontece também com outros temas, há incompreensões e interpretações equivocadas: a “liberdade ilimitada de consciência” é um deles

o   Augusto Comte tratou desse tema desde o início de sua carreira – por exemplo, no “Sumária apreciação do conjunto do passado moderno” (de 1820) e no “Considerações sobre o poder espiritual” (de 1826) há referências diretas e explícitas a ele

o    Augusto Comte usava a expressão “liberdade ilimitada de consciência”; mas como essa expressão pode gerar confusão, eu prefiro usar às vezes “liberdade absoluta de consciência” – pois, além de evitar confusões desnecessárias, essa fórmula descreve mais acuradamente o problema

§  Em todo caso, a leitura direta das observações de Augusto Comte basta para esclarecer a expressão e evitar qualquer confusão a respeito

-        O tema da “liberdade absoluta de consciência” envolve aspectos morais, intelectuais, políticos e históricos de maneira muito direta; ele tem conseqüências (ou reflexões) muito importantes no Positivismo

o   Neste sermão, adotaremos inicialmente uma exposição histórica para, a partir dela, tratarmos filosoficamente do tema

-        A primeira observação que temos que fazer é a seguinte: todo ser humano tem capacidade de reflexão autônoma e procura entender o mundo ao seu redor; isso é um esforço que se faz para cada um localizar-se no mundo, entender como é que as coisas funcionam e, a partir disso, agir

o   Assim, cada um de nós e todos temos liberdade de pensamento, que também podemos chamar de “autonomia” (alguns sociólogos contemporâneos chamam-na de “agência”)

o   É claro que ao longo do tempo e conforme as sociedades varia essa autonomia individual: algumas sociedades são mais restritivas, outras menos

o   Mas a autonomia individual não é uma questão puramente individual, no sentido de que não se trata apenas da “liberdade de consciência”, que é algo que com freqüência é reduzido à oposição simples e binária entre “indivíduo” e “sociedade”

§  A concepção individualista entende que cada ser humano existe por si só no universo, que se torna adulto sozinho, que suas idéias e seus valores são os mesmos em qualquer parte do mundo – e, coroando essas tolices, o individualismo entende que o indivíduo está sempre ameaçado por agrupamentos de outros indivíduos (sejam eles meras coalizões passageiras, sejam eles a temível “sociedade”)

o   Na verdade, em outras palavras, é necessário adotarmos uma perspectiva sociológica – que, aliás, é a que o Positivismo adota

§  Adotar uma perspectiva individual (e individualista) para entender essa questão produz apenas concepções irracionais e imorais, ou seja, não se entende a questão, surgem problemas insolúveis e suas conseqüências sociais e políticas são desastrosas (e injustas)

-        Adotando-se a correta perspectiva sociológica, temos que ter muito em mente que ninguém nasce sabendo nada e acreditando em nada; só conhecemos e acreditamos em coisas porque aprendemos ao longo do tempo, ou seja, com a sociedade

o   Além disso, no processo de aprender está sempre implícita – às vezes, implícita demais – a confiança nos demais e, em particular, naqueles que nos ensinam e transmitem conhecimentos e valores

o   Da mesma forma, seja porque nossas concepções quaisquer seguem aquelas que aprendemos de outrem (e, novamente, entra aí a confiança), seja porque precisamos de estabilidade nas concepções, o fato é que é necessário que haja interpretações e concepções socialmente estabelecidas, compartilhadas e estáveis

§  Essa necessidade vale para toda e qualquer sociedade; isso não tem nada a ver com “autoritarismo”, “intolerância” e/ou “falta de progresso”

o   De qualquer maneira, uma das conseqüências dessa necessidade de concepções compartilhadas é a constituição do poder Espiritual

§  O poder Espiritual tem funções ao mesmo tempo sociais e políticas, filosóficas e didáticas, além de funções morais: em outras palavras, ele é o responsável por elaborar, sistematizar e transmitir idéias e valores

§  A importância da separação entre os dois poderes (o Temporal e o Espiritual) fica bastante evidente aí: se há união entre os dois poderes, as idéias e os valores serão impostos ao público com o peso da lei

o   De um modo geral, podemos dizer que quanto maior a confiança do público no poder Espiritual, maior a liberdade de que goza esse público; ou, dito de outra maneira, quanto mais frágil o poder Espiritual absoluto, mais ele tenderá a buscar o apoio do poder Temporal para ser imposto

§  Como observava Augusto Comte, as crenças absolutas tendem a procurar governos autoritários

-        As crenças teológicas (em particular as monoteístas) são ao mesmo tempo absolutas e fictícias, de tal sorte que elas não são passíveis de comprovação e lidam muito mal com a discussão – embora, por outro lado, de maneira contraditória, na medida em que não são passíveis de comprovação, elas estimulam muito as discussões, que não têm fim

o   Essas características intelectuais da teologia (monoteísta) por si só exigem a constituição de um poder Espiritual organizado, para regular e disciplinar as crenças

-        Durante a Idade Média, as crenças teológicas foram reguladas pela igreja católica, que, por sua vez, gozava de ampla confiança

o   A igreja regulava as concepções, estabelecendo as linhas gerais do que era ou não aceitável

o   Devido às características de ficção e de absolutismo da crença teológica, nos séculos iniciais da igreja houve muitas disputas filosóficas; embora muitas concepções afirmadas baseassem-se no bom senso, na medida em que atrapalhavam a racionalidade do dogma (e o dogma cristão é profunda e necessariamente irracional e confuso), elas foram proscritas – eram as heresias

o   Também há que se notar que os próprios doutores da igreja com freqüência percebiam as dificuldades intelectuais e morais do próprio dogma; por isso, essas dificuldades tinham que ser atenuadas ou simplesmente postas de lado, em particular quando se tratava das aplicações práticas

§  Assim, tinha lugar a “sabedoria prática” de muitos sacerdotes, muitas vezes dos próprios papas

o   Mas, estabelecidas as diretrizes gerais do dogma, ou seja, identificadas e suprimidas as heresias, estabeleceu-se um amplo terreno para discussão e especulação

§  É nesse sentido que Santo Agostinho (354-430) propôs esta bela frase: “No essencial, a unidade; na dúvida, a liberdade; em tudo, a caridade”

o   O governo espiritual da igreja dava-se, então, por meio da educação; as interpretações individuais subordinavam-se à interpretação da igreja

§  Nesse sentido também devia ser entendido a fórmula “Extra ecclesiam nulla salus” (“fora da igreja não há salvação”)

o   Por fim, vale notar que o governo espiritual da igreja dava-se também pelo princípio – mais ou menos implícito, mais ou menos explícito – da infalibilidade papal

-        A decadência da ordem católico-feudal conduziu à desmoralização progressiva das concepções teológicas

o   Essa desmoralização foi estimulada por diversos motivos: relativismo intelectual, moral e prático derivado das cruzadas; reintrodução no Ocidente, por intermédio dos árabes, da cultura grego-romana; desenvolvimento das ciências

o   Tudo isso conduziu a uma emancipação mental cada vez mais acentuada

§  A emancipação mental significa deixar de acreditar na divindade e/ou de raciocinar em termos sobrenaturais e extra-humanos

o   A liberdade mental evidentemente aumentou muito nesse sentido

§  Vale notar que apenas a partir daí – da sua decadência – a igreja católica constituiu de verdade o tribunal do santo ofício, isto é, a inquisição

-        O processo de destruição do governo espiritual da igreja foi espontâneo nos primeiros dois séculos da idade moderna, ou seja, nos séculos XIV e XV; a partir do século XVI, ele tornou-se sistemático

o   O processo espontâneo correspondeu diretamente à emancipação mental, ou seja, o ser humano tendeu cada vez mais à “secularização”, à “laicização” mental

o   O processo sistemático assumiu um caráter propriamente destruidor, em que a emancipação tornou-se secundária em relação à destruição

§  Isso fica evidente no protestantismo, cuja preocupação é ser anticatólico em vez de emancipar mentalmente os seres humanos; a liberdade por ele promovido é claramente anárquica

-        Nos dois trechos abaixo Augusto Comte resume esse processo:

o   Citação de “Sumária apreciação do conjunto do passado moderno”[1]:

“Preparada, ou, para melhor dizer, reclamada como indispensável, por esse estado de coisas, a revolução francesa explodiu, e tomou, desde a sua origem, uma falsa direção, havendo destruído a realeza. Não tardou, entretanto, esta última a reconstituir-se, porque, sendo, em França, a cabeça e o coração do antigo sistema, só com ele pode extinguir-se, assim como um sistema não pode ser extinto senão quando outro já existe completamente formado e pronto para substituí-lo.

O resultado final de todo esse grande abalo foi a abolição dos privilégios, a proclamação do princípio da liberdade ilimitada de consciência e, por fim, o estabelecimento da constituição inglesa outorgada pelo próprio poder real.

A abolição dos privilégios não fez senão completar a ruína do feudalismo e reduzir inteiramente o poder temporal apenas ao do rei.

A proclamação do princípio da liberdade ilimitada de consciência aniquilou completa e irrevogavelmente o poder espiritual[2]”.

o   Citação de “Considerações sobre o poder espiritual”[3]:

“Em todo o curso desse período [séculos XVI a XVIII], que se pode, com todo direito, qualificar de revolucionário, todas as idéias anti-sociais foram agitadas e transformadas em dogmas, a fim de serem empregadas, de maneira contínua, na demolição do sistema católico e feudal, e reunir, contra ele, todas as paixões anárquicas que fermentam no coração humano, e são, nos tempos normais, comprimidas pela preponderância de um regime social completo.

Assim, o dogma da liberdade ilimitada de consciência foi criado, a princípio, para destruir o poder teológico; em seguida, o [dogma] da soberania do povo para derrubar o poder temporal; e, por fim, o [dogma] da igualdade, para dissolver a antiga classificação social, sem falar das idéias secundárias, menos importantes, que constituem a doutrina crítica, dentre as quais cada um procurava demolir uma peça correspondente do antigo sistema político.

[...]

Por uma fatalidade irresistível, os diversos dogmas de que se compõe a doutrina crítica não puderam adquirir toda a energia que lhes era necessária para preencherem completamente seu destino natural, a não ser tomando um caráter absoluto, que os tornou necessariamente hostis, não apenas ao sistema que tinham de destruir, mas relativamente a qualquer sistema social [...]”.

-        A destruição direta da autoridade moral foi necessária: o instrumento intelectual disso foi, justamente, o dogma da liberdade ilimitada de consciência

o   Ao destruir o governo espiritual anteriormente vigente e proclamar a autossuficiência individual, o dogma da liberdade absoluta de consciência estabelece propriamente a anarquia mental, ou seja, a ausência de parâmetros compartilhados e respeitados

§  Na verdade, é pior do que pode parecer à primeira vista, pois esse dogma não apenas estabelece a anarquia mental como postula que a anarquia é o estado normal do ser humano

o   Esse dogma proclama que cada indivíduo é sempre e suficientemente capaz de avaliar qualquer coisa por si só, independentemente de qualquer preparação específica e prévia para isso

o   Em outras palavras, o dogma da consciência ilimitada (ou absoluta) de consciência erige sistematicamente a arrogância em padrão de conduta mental

o   Além de violentamente arrogante e individualista, esse dogma conduz naturalmente à rejeição da confiança mútua: afinal, não há porque os indivíduos confiarem nos demais para afirmarem suas próprias idéias

-        O agente concreto da destruição do antigo poder Espiritual e da afirmação do dogma da liberdade absoluta de consciência foram os protestantismos

o   As supostas inovações de Lutero foram basicamente destruições da autoridade intelectual da igreja; as críticas que ele fez à igreja já tinham sido feitas antes, por outros pensadores seculares ou teológicos, sem compartilharem o caráter destruidor do monge alemão

o   A par do seu caráter destruidor, o protestantismo não afirmou a liberdade de consciência nem a emancipação mental – nem mesmo a liberdade política, como os exemplos de Lutero, Calvino e outros ilustram com clareza

§  Em relação à liberdade política, basta lembrar que Lutero, Calvino e outros foram autoritários, despóticos, tirânicos

o   Ao rejeitar a autoridade da igreja, o protestantismo afirmou o individualismo, a arrogância e a anarquia mental

o   Outra conseqüência da rejeição da autoridade da igreja foi acabar com as interpretações adaptadas à realidade humana, sugeridas pela “sabedoria prática” do clero

§  Em outras palavras, isso consistiu em rejeitar o relativismo prático em favor de um absolutismo teórico (a partir de um literalismo interpetativo da Bíblia)

o   Além disso, ao erigir cada crente em juiz único e autossuficiente para julgar qualquer coisa, o protestantismo substituiu a infalibilidade do papa pela infalibilidade do próprio crente

§  Uma das conseqüências práticas dessas disposições mentais e morais é a multiplicação incessante de seitas protestantes, a olhos vistos mesmo hoje em dia

o   Devemos notar, entretanto, que em termos de apoio a governos despóticos, todavia, alguns protestantes adotaram um comportamento diferente, ao defenderem e constituírem a liberdade espiritual:

§  De modo geral, foram ingleses ou originários da Inglaterra: os niveladores (levellers) de Oliver Cromwell, os quacres, alguns batistas (como Roger Williams, fundador de Rhode Island)

-        Pode parecer que tratar hoje da liberdade absoluta de consciência seja somente uma curiosidade histórica, mas não é

o   Por um lado, a liberdade ilimitada de consciência infelizmente é uma realidade nos dias atuais, seja na permanência fática da anarquia moderna, seja na afirmação da anarquia moderna como um ideal moral e mental (!)

o   Além dos problemas intelectuais, morais e práticos, há ainda concepções que pretendem – erradamente – aproximá-la da ciência

-        Há algumas propostas que afirmam que a ciência moderna baseia-se na liberdade absoluta de consciência

o   Essas propostas, com freqüência e não por acaso, também defendem que a ciência ter-se-ia originado do protestantismo

§  Essas propostas com freqüência são de origem anglossaxônica e/ou protestante; quando não são diretamente anglossaxônicas, são influenciadas fortemente por elas e, de qualquer maneira, são também (ou principalmente) influenciadas pelo protestantismo

o   A ciência exige a confiança mútua, bem como a humildade intelectual; o preceito moral geral do Positivismo, segundo o qual a “submissão é a base do aperfeiçoamento”, é seguida à risca na ciência

§  Na ciência – seja em sua prática cotidiana, seja em suas instituições – também se exige o respeito ao seu caráter coletivo: a sua cumulatividade histórica, a sua cumulatividade teórica, o longo processo de iniciação prática (iniciação científica, graduação, mestrado, doutorado), a opinião compartilhada (bancas de examinação, avaliação por pares)

§  Da mesma forma, e como conseqüência das características acima, não tem lugar na ciência a criticidade corrosiva e sistemática

o   Concepções da ciência que exaltam o individualismo, a criticidade corrosiva, o caráter não cumulativo – concepções, mais uma vez não por acaso, profundamente influenciadas pelo protestantismo – não entendem o que é, como funciona e para que serve a ciência, como nos casos de Karl Popper e Alfred N. Whitehead

o   Um exemplo bastante simples, claro, atual e desastroso de o quanto a ciência repele a liberdade absoluta de consciência são os negacionismos contemporâneos

§  Os antivacinistas atuais, os terraplanistas, os negacionistas do clima e muitos outros: todos eles são pessoas que não conhecem nem entendem a ciência, que no fundo desprezam-na e que, armados apenas de preconceitos (políticos e também teológicos) julgam-se capazes de avaliar todas as questões científicas, mesmo que isso resulte na morte de milhões de concidadãos e de servidores da Humanidade

-        Em suma:

o   A liberdade ilimitada (ou absoluta) de consciência é a pretensão de que cada indivíduo possui condições totais de avaliar tudo e qualquer coisa, independentemente de preparação específica prévia

§  A necessária crítica à liberdade absoluta de consciência não tem nada a ver com a autonomia moral e intelectual de cada um

§  A liberdade absoluta de consciência baseia-se e resulta em graves defeitos morais, a começar pela arrogância e pelo egoísmo, passando pelo absolutismo

§  Em termos sociológicos, a liberdade ilimitada de consciência resulta no que Augusto Comte chamava de “anarquia moderna” (a ausência de parâmetros morais e intelectuais compartilhados e socialmente regulados); essa anarquia vige seja como realidade fática, seja como ideal social e moral

o   O protestantismo de modo geral é o grande promotor dessa atitude

§  O protestantismo reforça a mentalidade absoluta, anti-humana e estritamente individualista; estimula o espírito destruidor; promove a crença da infalibilidade dos crentes: em suma, ele é um dos agentes da anarquia moderna

o   A ciência não se baseia na liberdade absoluta de consciência; bem ao contrário, a ciência exige a humildade intelectual e a confiança mútua

§  Embora, a par da permanência revolucionária e anárquica dos hábitos críticos, o dogma da liberdade ilimitada de consciência infelizmente ainda apresente grande relevância, nos últimos anos ela tem-se reafirmado de maneira desastrosa, como se vê no caso dos chamados “negacionistas”, isto é, de todos aqueles que se julgam capacitados a negar a ciência sem nunca terem estudado nem conhecido de verdade a ciência

·         São os antivacinistas contemporâneos, os negacionistas do clima, os terraplanistas etc. etc.



[1] Augusto Comte, “Segundo opúsculo: abril de 1820 – Sumária apreciação do conjunto do passado moderno”, In: _____. Opúsculos de filosofia social, São Paulo, USP, 1972, p. 26-27.

[2] “Esta proclamação tornou impossível o estabelecimento de qualquer autoridade teológica, quer política, quer simplesmente moral; porque, sendo deixadas as crenças ao arbítrio de cada indivíduo, não poderá haver, talvez, duas profissões de fé completamente uniformes, e a de cada indivíduo poderá mudar da manhã para a tarde, seguindo todas as variações inspiradas pelo estado perpetuamente móvel de suas afeições morais e físicas, bem como pelas circunstâncias sociais, igualmente variáveis, nas quais o mesmo indivíduo se encontrará sucessivamente colocado.

Numa palavra, é claro que a liberdade ilimitada de consciência e a indiferença teológica absoluta significam exatamente o mesmo quanto às conseqüências políticas. Em ambos os casos, as crenças sobrenaturais não podem mais servir de base à moral. É um fato que, longe de dever ocultar-se, não se poderia salientar em demasia por provar a necessidade de constituir-se sobre outros princípios positivos (isto é, deduzidos da observação), a moral, que é a base, ou antes, o laço geral da organização social” (nota de Augusto Comte).

[3] Augusto Comte, “Quinto opúsculo: março de 1826 – Considerações sobre o poder espiritual”, In: _____. Opúsculos de filosofia social, São Paulo, USP, 1972, p. 182.