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24 dezembro 2022

Live AOP: Fernanda Alcântara - "Harriet Martineau e Augusto Comte"

No dia 21 de dezembro tivemos mais uma Live AOP, desta feita com a participação da Profª Drª Fernanda H. C. Alcântara, da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus de Governador Valadares). Em uma agradável conversa que durou quase duas horas, a palestra tratou de Harriet Martineau e de suas relações com Augusto Comte. A Profª Fernanda tem-se dedicado, nos últimos vários anos, a estudar, resgatar e traduzir a obra de Harriet Martineau (ou "Miss Martineau", como sempre foi respeitosamente referida nos círculos positivistas).

O vídeo dessa Live AOP pode ser visto no canal Positivismo, aqui: l1nq.com/Martineau.

Harriet Martineau foi uma pensadora, socióloga, etnóloga e divulgadora da ciência que atuou na Inglaterra de meados do século XIX. No que se refere a Augusto Comte e ao Positivismo, Miss Martineau fez em 1851-1852 a famosa condensação do Sistema de filosofia positiva de Augusto Comte, publicado originalmente entre 1830 e 1842, em seis volumes; na versão condensada, essa obra ficou com três volumes (ou até dois, dependendo da edição), sob o título "A filosofia positiva de Augusto Comte". O trabalho foi tão bem feito que Augusto Comte - que em sua correspondência com Miss Martineau tratava-a por "minha colega" - passou a recomendar a leitura não do seu próprio original, mas da versão condensada!

Em virtude desse trabalho importantíssimo e descumunal, Miss Martineau tornou-se uma das mais importantes divulgadoras do Positivismo na Inglaterra. Embora tenha participado desse relevante serviço após John Stuart Mill, as pesquisas da Profª Fernanda levam a crer que Miss Martineau atingiu um público bem maior, seja junto ao comum do povo, seja junto aos eruditos e pesquisadores.

(Algumas observações bibliográficas, teóricas e históricas: o Sistema de filosofia positiva foi originalmente intitulado Curso de filosofia positiva; mas, a partir de 1848 (no Discurso sobre o conjunto do Positivismo), Augusto Comte estabeleceu que essa obra deveria ser indicada e renomeada como Sistema de filosofia positiva. A obra original era em francês; a condensação de Miss Martineau foi feita em inglês; Comte recomendava a leitura tanto da versão em inglês quanto, é claro, a em francês. Por fim, a condensação não é um resumo: trata-se de uma nova obra, que aborda de maneira mais direta os mais importantes assuntos tratados na obra original.)

Esse trabalho descomunal pode ser consultado, lido e baixado no portal Internet Archive

- volume 1: aqui

- volume 2: aqui




18 novembro 2022

Crítica à República e desistência de uma utopia libertária, inclusiva e progressista

A República foi proclamada em 1899, tendo amplo apoio popular e de intelectuais. Nos anos seguintes à proclamação, muitos desses intelectuais republicanos passaram a desiludir-se com o novo regime político, pois esperavam mudanças sociais, políticas, econômicas imediatas. As mudanças sociais, como sabemos, são lentas por si sós; a implantação da República teve suas próprias dificuldades e, por fim, de fato muitas mudanças necessárias e desejadas acabaram não sendo implantadas.

A partir de então, esses intelectuais desiludidos passaram a criticar os limites, as falhas e as promessas não cumpridas da República.

O problema é que nessas críticas esses intelectuais - antigos entusiastas do republicanismo - passaram a abandonar moral, intelectual e politicamente a República. Ou seja, em vez de persistirem no projeto, em vez de cobrarem a realização das promessas e das necessidades sociais, eles passaram a deixá-lo de lado. Nessa toada associaram-se aos críticos novos intelectuais, que, por sua vez, tinham cada vez menos compromisso com o republicanismo e, em particular, com a defesa das liberdades.

Assim, esse abandono do projeto republicano, da parte dos intelectuais antigos entusiastas da República (e mesmo da parte de alguns novos intelectuais), teve pelo três ou quatro resultados, não necessariamente mutuamente excludentes:

(1) abriram espaço para a irresponsabilidade social, política e econômica das elites brasileiras;

(2) abriram espaço para a posterior rejeição da República, que acabou realizando-se na forma da Revolução de 1930, e, em particular, para os autoritarismos "puros" e/ou os autoritarismos que tendiam para os totalitarismos, próprios ao Brasil entre 1935 e 1945;

(3) permitiram que a memória da monarquia - tão corretamente criticada nas décadas de 1870 e 1880 (escravidão, castas, degradação do trabalho, filhotismo, igreja oficial, centralização autoritária, imperialismo internacional etc.) - fosse reabilitada, como se os inúmeros e profundos defeitos morais, intelectuais, sociais e políticos da monarquia nunca tivessem ocorrido e como se república não tivesse sido de fato um progresso necessário, com ou sem promessas não cumpridas;

(4) a transmutação, explícita ou implícita, de alguns desses intelectuais republicanos em defensores da monarquia;

(5) uma combinação variada desses aspectos todos.

Ora, bem vistas as coisas, a desistência do projeto republicano da parte desses intelectuais foi um enorme erro. Até então e desde o século XVIII, na história do Brasil o republicanismo era um ideal em si mesmo, uma concepção densa a concentrar, estimular e orientar os esforços morais, intelectuais, políticos, sociais - em outras palavras, o republicanismo era própria e verdadeiramente uma utopia.

Desde então, o Brasil ficou órfão dessa utopia. A muito custo, o republicanismo foi substituído pela "democracia"; mas, como se sabe, tal substituição foi demorada; mas, como não se sabe, a democracia é um substituto muito, muito imperfeito e inadequado para o republicanismo, na medida em que ela (a democracia) é o governo do povo, o que pode ser entendido como "massas", quer sejam as massas que nunca erram ("a voz do povo é a voz de deus", como poderia ser subscrito por Rousseau), quer sejam as massas de indivíduos justapostos (como pode ser subscrito pelos liberais). Quando se estuda a "democracia" de um ponto de vista da teoria política, levando em consideração o republicanismo, torna-se bastante evidente que ela, a democracia, só se torna um regime de liberdades com conteúdo social quando na verdade ela é apenas um nome que corporifica de fato e no fundo a República.

Desde os anos 1930, essa desistência do republicanismo da parte dos intelectuais antigos republicanos é estudada na academia como "crítica à república" e/ou como "crítica ao liberalismo", não como desistência do republicanismo. Em outras palavras, o enfoque básico nesses estudos é o da crítica social e, curiosamente, de um forte mas implícito "evolucionismo", em que nada do que veio antes dos "estudiosos contemporâneos" presta (e, em particular, nada do que veio antes da "democracia", presta); com isso, a história política, social e intelectual está sempre, perpetuamente, recomeçando. Aliás, como já indicamos, além desse curioso evolucionismo anti-histórico, tabula rasa, uma outra consequência dessa perspectiva é a revalorização da monarquia - em que se passa água sanitária sobre todos os sérios, inúmeros e profundos problemas da monarquia e em que esta passa a ser vista como um modelo de virtudes intelectuais, morais, sociais, políticas e econômicas.

Um representante perfeito dessa mentalidade tabula rasa é o famoso (mas, como é fácil de perceber, exageradamente celebrado) sociólogo Florestan Fernandes; antes dele, o historiador Sérgio Buarque de Hollanda fez a mesma coisa (Sérgio Buarque tem o grave defeito adicional de repetir o preconceito anti-ibérico, ou antiportuguês, que considera que só os anglossaxões prestam e que os ibéricos são burros, preguiçosos, autoritários etc.).

Uma outra maneira de entender a perspectiva academicista básica para estudo dos intelectuais antigos republicanos é a seguinte: desiste-se do republicanismo e desiste-se da utopia republicana; mas, mais importante que isso, também se desiste de entender a desilusão dos intelectuais antigos republicanos como uma etapa de aprendizado intelectual, moral e político, em termos coletivos e históricos da realidade brasileira. Ou seja, desiste-se de entender que a desilusão desses intelectuais era correta e compreensível em um certo sentido; mas que eles erraram profundamente em passar da desilusão para a desistência do projeto republicano e, daí, que eles erraram em deixar o Brasil órfão da utopia republicana e de seu denso conteúdo social e libertário. (De passagem: na França e em Portugal não se cometeu esse erro; não por acaso, o republicanismo nesses países tem um conteúdo denso, ou seja, é uma utopia atual, verdadeira, pulsante.)

Em suma: lamentavelmente, apesar de si mesmos, os intelectuais antigos republicanos erraram - e nós insistimos em não aprender com esse erro.

Uma última observação. Muitos intelectuais antigos republicanos desiludiram-se com a república e acabaram desistindo do projeto republicano; essa perspectiva - a desilução-com-desistência - é a perspectiva-padrão das análises academicistas atuais: é o que argumentei até agora. Se a atuação dos intelectuais desiludidos-desistentes oferece a perspectiva atualmente celebrada e vista como correta, o resultado é que aqueles intelectuais que persistiram no republicanismo, que persistiram valorizando a República e sua utopia, passam a ser vistos como intelectuais alienados, tolos, idealistas, desconectados da realidade - ou, ainda pior, como defensores implícitos ou explícitos da exclusão social, do elitismo, das oligarquias etc. Ora, como os positivistas foram alguns, se não verdadeiramente os únicos, intelectuais organizados e públicos a defender a República e o republicanismo, naturalmente recaem sobre eles todos esses adjetivos negativos que acabamos de enumerar. Aí se evidencia um dos motivos do ridículo com que os academicistas gostam de apresentar os positivistas: não tem nada a ver com as propostas e os comportamentos efetivos dos positivistas, mas com preconceito, com recusa de aprender com a história e com a recusa em persistir em projetos sociais, libertários, inclusivos e progressistas.

15 novembro 2022

Propostas políticas e sociais do Positivismo em face do trabalhismo

No ano de 2022, em duas ocasiões (4 de abril e 10 de novembro) tive a honra de ser convidado por militantes do Partido Democrático Trabalhista (PDT) para apresentar alguns dos princípios e das propostas sociopolíticas do Positivismo, tendo especialmente em vista a influência que eles exerceram sobre o trabalhismo no Brasil. Na primeira oportunidade fui convidado pelo gaúcho Luciano B. Zini; na segunda ocasião, pelo cearense Samuelson Xavier: a ambos, o meu agradecimento!

Em ambas as ocasiões as conversas subsequentes duraram várias horas, abordando os mais variados temas, inclusive aspectos da história política e social brasileira, como a influência do Positivismo no Rio Grande do Sul e também sobre os militares. Assim, foram ocasiões excelentes para o esclarecimento e a correção de mitos há muito difundidos. Da mesma forma, essas conversas sugeriram-me novos temas para reflexão e pesquisa.

Reproduzo abaixo o roteiro das minhas exposições.

*   *   * 

Roteiro:

o   Apresentação pessoal

o   Definição apofática

o   “Ordem e Progresso”

o   Primado da sociedade, ação individual

o   Propostas políticas

o   Propostas sócio-econômicas

 

-        Apresentação pessoal

o   Sociólogo da UFPR

o   Doutor em Sociologia Política (UFSC)

o   Positivista ortodoxo

o   Dono dos canais Positivismo, Apostolado Positivista e Filosofia Social e Positivismo

-        Definições apofáticas

o   Que é o Positivismo?

§  O Positivismo é:

1)      “Positivismo” significa, para mim, a obra de Augusto Comte

2)      Uma religião secular, uma filosofia histórica, relativista e objetiva-subjetiva, uma prática humanista, pacifista, tolerante, universalista e includente

a.       É um sistema de educação universal

3)      “Real, útil, certo, preciso, relativo, orgânico, simpático”

4)      Uma religião que afirma, regula e estimula o altruísmo inato (que, por sua vez, orienta e limita o egoísmo também inato)

5)      Uma política humanista, altruísta, racional, histórica, sensível à opinião pública e baseada em evidências e nas liberdades

6)      Uma afirmação da realidade humana e dos valores humanos

7)      Uma afirmação da historicidade humana e, portanto, do relativismo

§  O Positivismo não é:

1)      Não é ateísmo

2)      Não é uma “teologia científica” (Religião da Humanidade)

3)      Não é um cientificismo nem um academicismo

a.       Não é reducionista (ele afirma a dignidade de cada ciência e, em particular, do ser humano e das Ciências Humanas)

4)      Não é um “naturalismo” (não reduz as Ciências Humanas às Ciências Naturais)

a.       Não é a favor da oposição “explicação” versus “compreensão”

5)      Não é um “empiricismo”

6)      Não é ideológico

a.       Não é uma ideologia burguesa

7)      Não é militarista

8)      Não é uma afirmação do Estado totalitário nem da sociedade sufocante anti-indivíduo

9)      Não é otimismo ingênuo (“pensamento positivo”)

10)  Não é nem idealista nem materialista

11)  Não é fatalista nem nega a liberdade humana

-        “Ordem e Progresso”

o   França posterior à Revolução Francesa

§  Busca de uma nova organização social e de novos princípios legitimadores, adequados a uma sociedade industrial e com a ciência

§  Oscilação entre a “ordem” (retrógrados, teológicos, absolutistas) e o “progresso” (revolucionários, metafísicos, absolutistas)

§  Necessidade de conciliação e superação entre a ordem e o progresso:

·         Sociologia da ordem: fundada por José de Maistre

·         Sociologia do progresso: fundada por Condorcet

·         Contribuição de Augusto Comte: conjugação entre a ordem e o progresso (além do desenvolvimento da reflexão sobre as ciências, sobre o que é a cientificidade, sobre os métodos e o objeto da Sociologia, sobre a aplicabilidade da Sociologia etc.)

§  Busca de um novo poder espiritual: necessidade e oportunidade de fundação de uma ciência relativa à sociedade:

·         necessidade de entender o que ocorria na Europa após a Revolução Francesa e de solucionar os problemas sociais e políticos

·         disponibilidade de meios intelectuais para isso (o desenvolvimento do método científico e a conseqüente maturidade intelectual para a criação da Sociologia)

-        Primado da sociedade, ação individual:

o   A fundação da Sociologia evidencia que o ser humano é antes e acima de tudo um ser social e histórico

o   Como a Sociologia parte do conjunto para as partes, não existem “indivíduos”, apenas seres humanos em sociedades

§  Antepor a análise dos indivíduos à das sociedades resulta em considerar os seres humanos como animais, não como seres humanos

§  As “células sociais”, isto é, as menores unidades de análise sociológica são as famílias

o   Apesar disso, a sociedade possui agentes: são os indivíduos

§  Os “indivíduos” criticados por A. Comte são as elaborações próprias ao individualismo (que rejeita a sociedade e a vida coletiva, em uma busca da satisfação estritamente pessoal), que surgiram na Idade Média teológica e reafirmaram-se na Idade Moderna com a metafísica

o   “Consagrar para regular”: indivíduo buscando a satisfação pelo altruísmo

§  A consagração dos indivíduos é necessária não somente porque são eles que concretamente agem como também porque é necessário afirmar a responsabilização social das condutas e das decisões individuais

-        Propostas políticas:

o   Governo

§  Conjugação dos princípios de Aristóteles e de Hobbes:

·         Aristóteles: “a sociedade consiste na divisão do trabalho e na convergência dos esforços”

·         Hobbes: todo governo baseia-se na força

§  “Não existe sociedade sem governo”

·         Afirmação das vistas de conjunto da sociedade

·         Preocupação em como se maneja o poder, não com quem o ocupa

·         Dois pólos sociopolíticos: Estado e sociedade civil

§  Poderes:

·         Temporal: manutenção da ordem civil (âmbito de aplicação das ciências inferiores)

·         Espiritual: opiniões e crenças (âmbito de atuação das ciências superiores)

o   Em termos gerais:

§  pacifismo, antimilitarismo, rejeição normal da violência

§  política humanista, altruísta, racional, histórica, sensível à opinião pública e baseada em evidências e nas liberdades

§  afirmação de deveres de todos para com todos

§  meritocracia com justiça social

§  afirmação da sociedade civil

o   Governo:

§  republicanismo

§  separação dos dois poderes (“laicidade do Estado”)

§  desenvolvimento econômico e social

-        Propostas sócio-econômicas:

o   A teologia e a metafísica são incapazes de abarcar a realidade material da sociedade; portanto, são incapazes de solucionar seus problemas

o   A propriedade enquanto tal sempre existe (privada ou coletiva)

o   Manutenção e aumento dos tipos de capital

§  material, intelectual e moral

§  responsabilidade pessoal pela gestão dos recursos

§  “O capital é social em sua origem e deve sê-lo em sua destinação”

o   Formas de transmissão do capital: guerra: conquista; paz: dádiva, troca, herança

o   Emancipação paulatina dos trabalhadores (e das mulheres): escravos na Antigüidade, servos na Idade Média, trabalhadores livres na modernidade

o   Necessidade de concurso entre o patriciado e o proletariado

§  Riqueza: força concentrada; trabalho: força dispersa

§  Caráter instrumental da luta de classes

o   Justiça social:

§  incorporação social do proletariado

§  “funcionalismo público”

§  conjugação entre liberdades políticas e econômicas e atuação do governo (crítica ao liberalismo econômico)

§  caráter social da riqueza

§  responsabilidades individuais e coletivas

·         noção de deveres: relações mútuas devidas entre indivíduos e grupos entre si


15 novembro 2021

Diário de Caratinga - entrevista sobre Positivismo e República

O jornal Diário de Caratinga, do interior de Minas Gerais, fez uma entrevista por escrito comigo sobre o Positivismo e a República, para ser publicado em sua edição de final de semana, de 13 e 14 de novembro de 2021. Realizada pelo jornalista José Horta da Silva, essa longa entrevista foi publicada na íntegra; eu reproduzo-a abaixo.


*     *     *




O que é Positivismo?

Essa pergunta é simples mas exige uma resposta que pode ser um pouco complexa.

Ele é uma filosofia, uma política e uma religião, ou seja, é um sistema de pensamento que busca explicar o conjunto do mundo e do ser humano e, a partir daí, busca orientar as condutas humanas (individuais e coletivas). O Positivismo baseia-se na realidade e na importância do amor e do altruísmo para orientar a conduta humana; como precisamos conhecer a realidade para satisfazer as nossas necessidades, o conhecimento científico é a base desse conhecimento. Isso tudo é sintetizado na Religião da Humanidade, que é uma religião humanista, secular e laica, que afasta o absoluto e busca a fraternidade universal.

 

Como o Positivismo influenciou a Proclamação da República?

O Positivismo influenciou pelo menos de duas maneiras.

Por um lado, ele criou um forte ambiente progressista, modernizador, secular, laico, que propunha a ultrapassagem dos traços profundamente atrasados da sociedade brasileira do século XIX, como a monarquia e a sua base social, política e econômica, a escravidão.

Por outro lado, o positivista Benjamin Constant Botelho de Magalhães (1836-1891) era professor de matemática na Escola Militar; suas aulas eram consideradas excelentes, por seu estilo e por sua profundidade filosófica. Além disso, o Positivismo afirma que a ciência pela ciência é imoral, ou seja, que a ciência tem que ter uma preocupação, uma orientação social. Tudo isso foi reconhecido por seus alunos (entre os quais estavam, por exemplo, Rondon e Euclides da Cunha) como importante e correto, o que os levou a empolgarem-se politicamente; naquela época, a militância social e política era bastante clara: contra a escravidão e a favor da república.

Aqui é necessário narrar vários fatores daquela época. Após a abolição da escravidão em 1888, as pressões em favor da república cresceram muito, devido a vários motivos. Em parte porque muitos reconheciam que a monarquia sacraliza uma sociedade atrasada, baseada em privilégios de casta, isto é, vinculados ao nascimento, e que deveria ser substituída por uma sociedade de isonomia (igualdade perante a lei), socialmente inclusiva e que valorize o mérito, não o berço. Vinculado a isso está o fato de que a monarquia nunca foi solidamente implantada no Brasil; havia um certo respeito pela figura de d. Pedro II, mas a monarquia em si era vista em termos meramente instrumentais: não havia uma adesão à monarquia como um princípio moral a ser seguido. O fato de a monarquia ter-se baseado durante toda a sua duração na escravidão indicava o quanto ela era retrógrada, assim como a ausência de indústrias no Brasil e a falta de trabalho livre (e da dignidade do trabalho e dos trabalhadores). A princesa Isabel era clericalista e, ainda por cima, era casada com um francês: mesmo quem não era republicano tinha medo do possível terceiro reinado (o possível futuro reinado da princesa Isabel), que viam como retrógrado ou até reacionário. O excessivo centralismo monárquico, em prejuízo das autonomias provinciais (isto é, dos estados), era bastante criticado, como nos casos de São Paulo e, ainda mais, do Rio Grande do Sul. Da mesma forma, os antigos donos de escravos, principalmente da atual região Sudeste (São Paulo em particular) ficaram muito irritados com o fim da escravidão, ou seja, com seus prejuízos econômicos.

Há outros fatores, mas importa também indicar a situação dos militares. Havia também um forte ressentimento dos militares contra a monarquia: soldos baixos, desprestígio político e social, falta de reconhecimento pelos seus esforços na violentíssima Guerra da Tríplice Aliança (“Guerra do Paraguai”). A Guerra da Tríplice Aliança foi uma aventura militar imperialista do Brasil contra o Paraguai e a favor do intervencionismo brasileiro nos países platinos, especialmente no Uruguai. Durante o conflito os soldados brasileiros travaram contato com as repúblicas platinas livres, isto é, repúblicas sem escravidão; isso os impressionou muito, bem como a resistência heróica dos cidadãos livres do Paraguai e as promessas (cumpridas pela metade) de alforria dos soldados brasileiros escravos. Por fim, a guerra acabou com a caçada a Solano López, ordenada pelo próprio d. Pedro II ao Conde d'Eu, consorte da princesa Isabel.

Na década de 1880 os militares quiseram expressar-se politicamente e foram seguidamente reprimidos, na chamada “Questão militar”; em um regime que se baseava no militarismo mas que se proclamava civilista, isso foi fatal.

Enfim: em 1887 foi fundado o Clube Militar, com Deodoro da Fonseca como presidente e Benjamin Constant como vice-presidente; eles eram os dois militares fora do governo que gozavam de maior prestígio, representantes das duas principais alas dos militares, os vinculados à vida na caserna (Deodoro) e os que buscavam fundamentos científicos para sua atuação (Benjamin Constant). Com isso os militares passaram a manifestar-se politicamente de maneira organizada, atuando nas duas principais questões da época, a abolição e a república. Em 1887 eles recusaram-se a caçar os escravos fugitivos; depois disso, a pressão política pela república aumentou cada vez mais e Benjamin Constant tornou-se o foco dessas pressões.

Embora pessoalmente Benjamin Constant não quisesse participar das conspirações, naquela conjuntura ele era realmente o foco das atenções e um líder natural; buscando evitar o caudilhismo, o militarismo na política e a violência, ele aceitou. Com isso, ele convenceu Deodoro a participar da ação e, juntamente com outros líderes militares e civis, planejavam proclamar a república na segunda quinzena de novembro. Entretanto, os acontecimentos precipitaram-se e na madrugada de 15 de novembro houve, afinal, a proclamação.

Essas várias críticas são importantes também porque atualmente há uma expressiva mas estranha revalorização da monarquia e, em particular, de d. Pedro II. Essa revalorização é bastante romântica e deixa de lado todos os problemas criados e mantidos pela monarquia (e pelo próprio d. Pedro II).

 

Ainda sobre a questão da influência do Positivismo na Proclamação da República, muito se fala do lema “O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim”. Porque 'amor' ficou fora da bandeira nacional?

Essa é uma boa questão.

A atual bandeira nacional foi tornada oficial em 19 de novembro de 1889, ou seja, apenas quatro dias após a proclamação. O esboço é da autoria de Raimundo Teixeira Mendes (fundador e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil) e a sua pintura ficou a cargo do também positivista Décio Villares, importante pintor e escultor da I República.

A frase central do Positivismo é um pouco diferente da que você indicou; é assim: “O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim”. Essa é a fórmula religiosa mais importante do Positivismo; já o “Ordem e Progresso” corresponde a uma fórmula política, que indica os anseios de todos os cidadãos por ordem e progresso, isto é, por uma ordem que propicie o progresso e um progresso que respeite a ordem (é claro que, nesse sentido, a “ordem” não pode ser estática). Tanto a fórmula “O amor por princípio...” quanto o “Ordem e Progresso” foram propostas desde o início por Augusto Comte, fundador do Positivismo, em suas obras; o que Teixeira Mendes fez foi seguir as indicações de Comte para a bandeira do Brasil, em que há a permanência da sociedade brasileira (com o fundo verde e o losango amarelo, que já estavam na bandeira do império) e também a evolução nacional (com a esfera azul e a faixa branca com o “Ordem e Progresso” em letras verdes).

Em outras palavras, na bandeira o “amor” não ficou de fora, pois o “Ordem e Progresso” é um programa político e não religioso.

Dito isso, eu tenho que admitir que vejo com grande simpatia as propostas de incluir o “amor” na bandeira nacional. O único erro de tais propostas é considerar que Teixeira Mendes teria “errado”, teria “alterado” as propostas originais de Comte ao deixar lado – querendo com isso dar-se a impressão de que Teixeira Mendes teria desprezado – o “amor”.

 

Hoje é muito comentada a questão o Estado Laico, mas o Positivismo já tratava dessa separação do Estado com a Religião. Poderia nos explicar?

Um dos princípios políticos mais elementares do Positivismo é a separação entre o poder Temporal e o poder Espiritual, isto é, entre o governo e todos aqueles que emitem opiniões. Isso significa que o Estado não pode ter religião oficial, ou seja, não é aceitável que o Estado imponha alguma doutrina sobre o conjunto da sociedade. Se pensarmos na situação do império brasileiro, o catolicismo era a religião oficial do Estado: havia uma limitada tolerância, em que os protestantismos eram aceitos (em grande parte devido à imigração de alemãoes e suíços para o Rio de Janeiro e para a atual região Sul) e também os positivistas; mas as religiões de origem africana, o espiritismo e muitas outras eram simplesmente proibidas e tratadas com base em prisões e espancamentos. (Os templos não católicos eram permitidos, desde que suas fachadas não exibissem o aspecto de templo.) Além disso, só eram aceitos como cidadãos brasileiros quem professasse o catolicismo. Algo muito parecido ocorre ainda hoje na Inglaterra: como a religião oficial de Estado lá é o anglicanismo (e a rainha é a chefe da igreja), somente anglicanos podem ser primeiros-ministros.

A separação entre os dois poderes também implica, inversamente, que nenhuma doutrina pode valer-se do Estado para sua promoção, para seu financiamento. Isso significa que é inaceitável que as igrejas (como instituições e como prédios físicos) usem o Estado para financiarem-se; ou seja, os impostos não podem ser empregados na promoção das doutrinas. Isso vale tanto para as teologias quanto para as doutrinas metafísicas quanto para as doutrinas científicas.

A separação entre igreja e Estado foi uma das primeiras medidas adotadas pela República, dois meses após a proclamação, por meio do Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890. A proposta inicial era de Demétrio Ribeiro (positivista gaúcho) e previa a separação entre igreja e Estado, o fim do catolicismo como religião oficial, as liberdades de consciência, expressão e organização, a instituição dos registros civis de nascimento, casamento e morte e a manutenção dos salários dos sacerdotes católicos que até então eram pagos pelo Estado. O texto que finalmente foi aprovado é da lavra de Rui Barbosa e, além dos dispositivos iniciais, apresenta um forte caráter anticlericalista (isto é, contrário às igrejas, em particular a católica) – anticlericalismo que era ausente do projeto positivista.

Vale notar que a separação entre igreja e Estado, com as liberdades civis, era pedida fazia muitos anos por muitos grupos políticos e que, após 1890, não houve nenhuma reação popular contra ela. A igreja católica reclamou da perda dos seus privilégios, mas, anos depois, reconheceu que a laicidade do Estado deu-lhe a liberdade para reorganizar-se; a partir de 1916, com a proposta de “neocristandade” de Sebastião Leme uma nova ofensiva sobre o Estado teve início e foi coroada de êxito em 1931, quando esse cardeal intimou Getúlio Vargas, na inauguração do Cristo Redentor, a apoiar a igreja para que Vargas tivesse apoio político (a Revolução de 1930 ocorrera um pouco antes e Getúlio Vargas precisava muito de apoio).

 

Algumas correntes filosóficas costumam marcar um determinado período. E hoje, ainda podemos notar traços do Positivismo no mundo?

Sim e não. É bem verdade que o período de maior importância do Positivismo no Brasil e no mundo foi entre o final do século XIX e o início do século XX – digamos, entre 1870 e 1914. De lá para cá muitas outras correntes políticas, sociais e filosóficas surgiram, a maior parte delas negando o Positivismo, seja por meio do irracionalismo, seja por meio do culto à violência, seja por meio da busca do absoluto, seja por meio do cientificismo. Além disso, o período que vai da I Guerra ao fim da II Guerra foi muito difícil para o mundo e para a Europa em particular; esse período exterminou as elites sociais européias e no fim marcou a ruína da Europa e do mundo legado pelo século XIX como parâmetros para o mundo. O que surgiu com clareza após a II Guerra foi um mundo realmente diferente, com a hegemonia dos EUA – e da sua superficialidade filosófica – e o conflito da Guerra Fria, seguidos pela descolonização da Ásia e da África e a crítica correta e cada vez maior ao colonialismo ocidental. Embora o Positivismo não seja eurocêntrico, é certo que o declínio da Europa teve um impacto poderoso sobre seus destinos. Em termos intelectuais, o século XX apresentou uma série de correntes que negam o Positivismo: as filosofias do entre-guerras, como os irracionalismos dadaísta e existencialista, o culto à violência próprio aos fascismos, os totalitarismos nazi-soviéticos; depois da II Guerra, ainda o totalitarismo soviético, o liberalismo materialista dos EUA, as críticas “descoloniais”, o pós-modernismo inaugurado em 1968, o neoliberalismo vitorioso a partir da década de 1980 e, mais recentemente, as políticas identitárias antiuniversalistas desde os anos 1990...

Mas, por outro lado, outras tendências políticas, sociais e filosóficas retomam valores claramente positivistas: políticas sociais combinadas com as liberdades, como nos casos do Welfare State e/ou da proclamação presente em nossa Constituição Federal de 1988 que a propriedade privada tem que ter objetivos sociais (concepções que foram resgatadas no Hemisfério Norte depois da crise de 2008 e, no Brasil e no mundo em geral, com a atual pandemia); o pacifismo cada vez mais generalizado; a preocupação cada vez maior com as gerações futuras, na forma do ambientalismo; o respeito à autonomia dos povos indígenas; a busca de vidas humanas plenas de sentido mas seculares, com a afirmação generalizada da importância dos sentimentos na vida humana... mesmo o desenvolvimento de práticas religiosas seculares nos EUA e na Europa vai na direção do Positivismo.

É certo que as tendências positivas indicadas acima têm muitas lacunas e muitas vezes são pouco sistemáticas; mas, no conjunto, elas realizam o que o Positivismo afirma como certo e como o futuro do ser humano. Em outras palavras: as tendências acima indicam que o Positivismo está certo, embora a doutrina positivista em si muitas vezes não seja seguida.

Sobre o legado do Positivismo hoje: há uma importante e crescente atividade positivista no Rio Grande do Sul, na igreja positivista de lá (e que fica em Porto Alegre).

20 janeiro 2021

Dois vídeos franceses sobre Augusto Comte

 Eis dois vídeos franceses sobre Augusto Comte:


1) "O jardim de Augusto Comte" ("Le jardin d'Auguste Comte") - é a apresentação em vídeo de uma pequena montagem feita na Casa de Augusto Comte em Paris; foi uma forma simples, simpática e inteligente de embelezar e aproveitar os espaços disponíveis em um museu histórico que está agora (janeiro de 2021) fechado devido à pandemia de covid-19.

A autora da montagem colocou cortinas com fotos de vegetação e de rios, dando a impressão de que a Casa de Augusto Comte está em um jardim... segundo a artista, essa bela imagem contrasta com o aspecto imponente e "urbano" de Paris, assim como também contrastaria com o Positivismo (embora esta última observação seja totalmente errada: Augusto Comte afirmava a importância da preservação da natureza, o respeito aos animais e a necessidade moral de que os templos da Humanidade sejam ladeados por bosques.)


2) Uma apresentação geral da Capela da Humanidade, em Paris: essa apresentação ocorreu no programa televisivo Télématin de 20 de setembro de 2014; a Capela da Humanidade, por seu turno, foi criada pela Igreja Positivista do Brasil em 1904, sob a supervisão direta de Raimundo Teixeira Mendes, que ficou em Paris durante cerca de dois anos, a fim de comprar e reformar o imóvel.

Os apresentadores do programa Télématin são irônicos ao tratarem do Positivismo e cometem vários erros em sua exposição; da mesma forma, o então Presidente da Casa de Augusto Comte, Jean-François Braunstein, não é propriamente respeitoso com a memória de Comte (ou com a de Clotilde de Vaux). Apesar desses sérios problemas, as imagens são interessantes, especialmente porque, sendo um vídeo, não têm o caráter estático das fotografias.

25 agosto 2020

Portal Bonifácio: "Intérpretes do Brasil – os Positivistas"

Após quase um século de pesado e daninho desprezo político e intelectual da parte dos liberais, dos marxistas e/ou dos católicos, felizmente parece que aos poucos o Positivismo vem sendo recuperado e revalorizado pelas elites políticas e sociais brasileiras preocupadas com os destinos nacionais. Isso é motivo para grande comemoração.

 

O texto abaixo foi publicado em um portal eletrônico de caráter nacional-desenvolvimentista intitulado Bonifácio. O original do artigo encontra-se disponível aqui.

 

O autor do texto, entretanto, a despeito da boa vontade ao escrever o texto acima, cometeu alguns equívocos:

 

(1) o projeto positivista NÃO foi implantado durante o regime militar; na verdade, os militares que tomaram o poder eram influenciados pelo autoritarismo e pelo fascismo e combatiam encarniçadamente o Positivismo;

 

(2) o projeto social positivista levava em consideração a "sociedade industrial", que é a forma de organização social baseada no trabalho livre e na divisão entre trabalhadores e patrões; ela NÃO equivale a "industrialismo" ou ao primado das fábricas;

 

(3) simplesmente não está claro o que significa a afirmação segundo a qual Getúlio Vargas teria ampliado o castilhismo em nível nacional, após 1930; em particular, o Estado Novo foi incluenciado pelos fascistas (Góes Monteiro, Francisco Campos e até laivos de Plínio Salgado) e não pelos positivistas, assim como a queima das bandeiras estaduais foi um ato simbólico representativo de uma política radicalmente antifederalista e anticastilhista.

 

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Intérpretes do Brasil – Positivistas

 

Felipe Maruf Quintas

 

22/08/2020

 

O positivismo no Brasil foi, em grande parte, organizado e difundido pela Sociedade Positivista brasileira, fundada em 5 de setembro de 1878 por Benjamin Constant (1836-1891), Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927). Ela foi um núcleo de pensamento e de organização política influenciado pelo positivismo francês, corrente teórica inaugurada pelo filósofo Augusto Comte, um dos fundadores da sociologia.

 

Segundo o conceituado sociólogo nacionalista Alberto Guerreiro Ramos, os positivistas foram os que “pela primeira vez, entre nós, colocaram com toda clareza o problema da formulação de uma teoria da sociedade brasileira como fundamento da ação política e social” (Ramos, 1957, p. 56). Isto é, o conhecimento científico da realidade social própria do Brasil era a condição basilar para a adequada intervenção política nos rumos do país. 

 

Caso contrário, a ação política limitar-se-ia ao simples empirismo, como teria sido o caso, de acordo com eles, da Inconfidência Mineira, da Revolução Pernambucana de 1817 e da Independência em 1822.

 

Os positivistas valorizaram a memória desses eventos fundadores da nacionalidade e, em particular, resgataram as figuras históricas de Tiradentes e de José Bonifácio, esquecidos durante a Monarquia, colocando-as no panteão dos Pais da Pátria. Propuseram, então, continuar e aprofundar o trabalho histórico de construção do Brasil soberano por eles iniciado, partindo da compreensão científica da realidade brasileira, cujos instrumentos teóricos e metodológicos ainda não teriam sido formulados nos contextos pretéritos em que a Independência havia sido tentada e conseguida.


O caráter analítico sustentaria, assim, o normativo. Os positivistas elaboraram um arrojado projeto de Nação, bastante influente nos anos iniciais da República e que seria aplicado, em essência, no século XX, durante a Era Vargas e o regime militar.

 

A Pátria foi entendida por eles como intermediária entre as famílias, unidade básica da sociedade, e a humanidade, ponto de referência superior da ação política. Tal concepção evitava, assim, o individualismo atomizante próprio da ideia britânica de Estado formulada por Thomas Hobbes e John Locke e, também, o chauvinismo belicista, em tudo contrário à disposição fraterna que os positivistas buscavam estabelecer nas relações internas ao Brasil e externas do nosso País com os demais.

 

Sendo considerada “uma reunião de famílias ligadas pelas mesmas tradições, pelos mesmos interesses, pelas mesmas aspirações” (Teixeira Mendes, 1902, p. 3), a Pátria deveria, então, ser venerada e celebrada em sua história, formadora das possibilidades presentes de construção de um futuro melhor. A ordem, construída pela história e mantida pelo culto aos ancestrais, era a base para o progresso, para o conjunto de melhoramentos aos que a Pátria estaria destinada.

 

Tais possibilidades de melhoria, por sua vez, dependeriam de uma direção intelectual, moral e política, que os positivistas se propunham assumir e colocar em prática por meio do planejamento governamental.

 

A organização nacional proposta pelos positivistas tinha como eixos a República, a centralidade do Poder Executivo, a supressão da hereditariedade dos cargos políticos, a abolição da escravatura sem indenização aos antigos senhores, a separação entre o Estado e a Igreja e as liberdades civis como a de pensamento, de expressão e de culto.

 

O desenvolvimento industrial – entendida a agricultura como a “indústria fundamental” – seria o cerne da estruturação do Brasil projetado pelos positivistas. Segundo eles, o industrialismo seria a base material da moralização da sociedade, ainda mais a brasileira, marcada pelo modelo dissipador do latifúndio escravista voltado ao atendimento prioritário da demanda externa.

 

A indústria elevaria o meio técnico de organização do trabalho, favorecendo uma maior produção e circulação dos bens necessários à elevação do padrão de vida do conjunto da população, bem como uma maior solidariedade social pelo aumento da divisão do trabalho.

 

Defensores da grande propriedade – a mais propícia, segundo eles, para encadear os efeitos positivos da indústria -, os positivistas não deixaram de assinalar a sua função eminentemente social. O capital, surgido do concurso coletivo ao longo de várias gerações, deveria servir ao bem estar das gerações presentes e vindouras. Não seria, portanto, meramente privado, mas um instrumento da sociedade a fim de encaminhar o progresso para todos, devendo ser planejado para essa finalidade.

 

A indústria deveria ser organizada do ponto de vista civil e social, seguindo um planejamento político, não de acordo com o laissez-faire propugnado pelo liberalismo. A ordem industrial não deveria ser guiada por interesses particulares desenfreados, mas pelos interesses de toda sociedade, quer dizer, de toda a Pátria. O desenvolvimento industrial estaria subsumido, assim, à Questão Nacional. Portanto, seria imperativa a incorporação dos trabalhadores, que constituíam a massa de cidadãos, à fruição das melhorias engendradas pela indústria.

 

Ainda que os positivistas enfatizassem a necessidade de uma reforma moral e intelectual dos industriais para conscientizá-los do papel social a que estavam destinados a cumprir, eles não perderam de vista a necessidade de mudanças institucionais.

 

Por isso, em 25 de dezembro de 1889, Teixeira Mendes, por intermédio de Benjamin Constant, apresentou ao Governo Provisório da República nascente um ambicioso projeto de reforma legal das condições de trabalho para proteger a “família proletária contra o empirismo industrialista”. Esse plano, elaborado a partir da consulta a cerca de 400 operários, e não a Carta del Lavoro da Itália fascista, foi a base para a legislação trabalhista adotada por Getúlio Vargas.

 

Entre as medidas propostas, constavam o salário mínimo, a jornada de trabalho de 7 horas diárias, a proibição do trabalho infantil, o direito a férias de 15 dias e à folga dominical, a estabilidade no emprego após 7 anos de serviço, a licença remunerada em caso de doença, aposentadoria por idade e por invalidez, pensões às viúvas e órfãos menores de idade.

 

Tais medidas, muito à frente do estágio então presente das forças produtivas brasileiras, foram arquitetadas deliberadamente para impedirem que a industrialização em nosso País se desse nas condições hostis ao trabalhador e sua família, verificadas na maioria dos países que compõem o centro capitalista norte-atlântico. O modelo de desenvolvimento propugnado pelos positivistas era, portanto, de cunho social, dirigido prioritariamente para o bem-estar da sociedade como um todo e não para a acumulação de riqueza nas mãos de poucos capitães de indústria.

 

Os positivistas brasileiros influenciaram significativamente os círculos militares e o movimento republicano, podendo ser considerados, com justiça, patronos da República brasileira.

 

Benjamin Constant teve papel decisivo na Proclamação da República, convencendo o até então monarquista Deodoro da Fonseca a aderir à causa republicana e dirigindo a rebelião militar para que a substituição de regime não desandasse em violência e revanchismo. A criação, em 1890, do Ministério da Instrução Pública, Correios e Telégrafos, voltado a organizar a educação básica no Brasil, atendeu a solicitação de Benjamin Constant, tendo sido desmantelado após o seu falecimento.

 

Teixeira Mendes, por sua vez, é o autor da atual bandeira nacional, tendo sido da sua iniciativa a preservação do traçado básico da bandeira imperial e a inclusão do lema “Ordem e Progresso”, derivado do lema comteano “O Amor por princípio e a Ordem por base; o Progresso por fim”. Foi estabelecida em contraposição à bandeira sugerida por Rui Barbosa, cópia verde-amarela da dos EUA, absolutamente incompatível com a nossa identidade e as nossas tradições.

 

Houve, pois, forte influência positivista no Exército e a participação decisiva de alguns dos seus principais quadros na Proclamação da República e, também, na instauração do Estado laico na primeira Constituição republicana.

 

Todavia, o reformismo social positivista, em grande parte, não obteve efetivação prática em âmbito nacional durante a Primeira República, principalmente a partir dos governos de Prudente de Morais e de Campos Sales, que consolidaram no comando do país a coalizão oligárquica capitaneada pelos cafeicultores paulistas.

 

Ainda assim, e possibilitado pelo federalismo adotado na República, o positivismo foi decisivo, em particular, no plano estadual do Rio Grande do Sul. Os governos do PRR (Partido Republicano Riograndense), liderados por Júlio de Castilhos, Borges de Medeiros e Getúlio Vargas, estabeleceram uma direção fortemente positivista à administração desse estado, formando uma vertente política do positivismo alcunhada de castilhismo. Desse modo, o Rio Grande do Sul, em linha contrária ao do liberalismo oligárquico prevalecente na esfera federal, conheceu avanços substantivos em sua estrutura produtiva, na cobertura dos serviços públicos e na proteção aos trabalhadores. Essa última, inclusive, foi assegurada pela Constituição estadual de 1891, redigida por Castilhos e de elevada inspiração positivista.

 

O positivismo também foi marcante nos governos de Moniz Freire (1892-1896 e 1900-1904) no Espírito Santo, estado onde a Constituição também recebeu forte influência do positivismo; nos governos de Lauro Sodré (1891-1897 e 1917-1921) no Pará; e no governo de João Pinheiro (1906-1910) em Minas Gerais. A capital mineira, Belo Horizonte, havia sido planejada no final do século XIX por um engenheiro positivista, Aarão Reis (1853-1936), cuja contribuição para a economia política brasileira muito influenciou o futuro presidente Getúlio Vargas. Em todos esses estados, a prática do planejamento econômico levou a administrações inovadoras e a uma grande prosperidade material.  Em grande parte, o projeto delineado pela Sociedade Positivista alcançou realização empírica nesses estados.

 

No âmbito nacional, o projeto positivista de industrialização concomitante à formação de um Estado de bem-estar social tipicamente brasileiro somente veio a ser colocado em prática após a Revolução de 1930, que, de certa forma, amplificou o castilhismo em escala nacional. Em maior ou menor grau, os sucessivos governos nacionais até aproximadamente 1980 foram influenciados pelo positivismo, fazendo com que o Brasil se tornasse um dos países de maior crescimento industrial nesse período.

 

Tanto os postulados teóricos quanto as contribuições programáticas do positivismo permanecem atuais no século XXI.

 

A primazia dos interesses nacionais sobre os particulares e a superação dos conflitos e ódios em favor da unidade da Pátria são a base para o êxito de todos. A retomada da industrialização, necessária para incrementar a posição do Brasil e dos seus empresários na ordem internacional multipolar que se delineia, precisa ser compatível com o atendimento das necessidades materiais e espirituais de um contingente de mais de 200 milhões de compatriotas, que constituem a essência e a razão de ser da Nação. Em um país infelizmente marcado pela precariedade das condições de vida da maior parte da população, o desenvolvimento das forças produtivas deve servir à edificação de uma sociedade mais justa e generosa, de modo a solidificar os vínculos de solidariedade nacional, condição fundamental para o Brasil sobreviver e prosperar frente aos desafios desse século.

 

Referências e sugestões de leitura:

 – A Pátria Brasileira – Teixeira Mendes. 1902. Disponível em: http://www.biblio.com.br/conteudo/teixeiramendes/molduraobras.htm