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01 junho 2024

Fenômenos MAIS modificáveis são MENOS irresistíveis

Fenômenos mais modificáveis são menos irresistíveis

O trecho abaixo é notável em sua importância epistemológica e em sua aplicação pedagógica. Comentando as críticas sofridas pelas teorias de Gall e Spurtzheim sobre o cérebro e seu funcionamento, Augusto Comte nota que uma delas em particular, conquanto errada em si mesma, permitiu lançar luz sobre questões importantes – daí a conveniência de examinar tal crítica. Essa crítica afirma que a noção de leis naturais (e, mais particularmente, a noção de que os fenômenos cerebrais seguem, também, leis naturais) impede a liberdade humana e torna a educação irrelevante ou inútil.

Para responder a essa crítica, Augusto Comte observa que os fenômenos mais complicados (e mais específicos) são os mais modificáveis e, inversamente, que os mais simples (e mais gerais) são os menos modificáveis. Além disso, o fundador da Sociologia nota que o aumento da complicação e da especificidade implica um acréscimo contínuo de novas leis naturais específicas, cada qual com suas próprias variações: esse acúmulo paulatino de novas variações acarreta nos fenômenos mais complicados maiores graus de variação, ou, nos termos abaixo, menores graus de irresistibilidade, sem que isso acarrete, de qualquer maneira, a negação da noção de leis naturais próprias a cada fenômeno. No que se refere à educação, a menor irresistibilidade juntamente com as leis naturais específicas resultam em que há grande espaço para a educação, o que não significa, todavia, que leis e instituições possam, por si sós, pura e simplesmente fazer o que quiser com o ser humano, da mesma forma que não podem criar gênios.

Em termos epistemológicos, esse trecho é importantíssimo porque esclarece, mais uma vez, o que significa a expressão “maior complicação, maior modificabilidade”. Do ponto de vista pedagógico – mas também da política prática –, esse trecho é importantíssimo porque assenta que o ser humano não é infinitamente maleável nem que é maleável conforme vontades arbitrárias e caprichosas[1].

De modo geral o trecho é autoexplicativo. Convém notar, entretanto, que Augusto Comte critica a “ideologia francesa” e a “psicologia germânica”: no primeiro caso, a referência é à “Ideologia” e aos ideólogos, que se constituíram nos intelectuais franceses de maior nomeada após o Iluminismo e a Revolução Francesa; Comte considera em particular as obras de Étienne de Condillac e Claude-Adrien Helvétius. No que se refere à “psicologia”, eu não sei identificar por ora a quem ele referia-se especificamente. De qualquer maneira, tanto em um caso quanto no outro, para Comte as doutrinas ideológicas e psicológicas eram profundamente metafísicas, afirmando concepções degradadas da teologia, como a noção de “alma”, ou a de “eu” unitário[2]. Em contraposição a tais doutrinas, Augusto Comte elogia o estudo empírico do cérebro, com a busca da determinação tanto das funções cerebrais elementares quanto dos órgãos cerebrais específicos[3] – e, a partir daí, estabelecendo as bases positivas para o estudo e a compreensão da subjetividade do ser humano. Assim, o elogio que Augusto Comte faz à frenologia, a Gall e a Spurtzheim considera as importantes pesquisas empíricas de neuroanatomia e de neurofisiologia, que estabeleceram indiscutivelmente as bases realmente elementares do que se chama nos dias de hoje de “neurociência”; essas pesquisas têm valor por si sós, independentes das aplicações posteriores e/ou de exageros interpretativos, que Augusto Comte criticava ou que deixava de lado[4].

* * *

“Entre as inúmeras objeções que foram sucessivamente levantadas contra essa bela doutrina, considerada sempre unicamente nas suas disposições fundamentais, e continuando a eliminar toda especialização, só uma merece ser assinada aqui, tanto pela sua alta importância, como pela nova luz que a sua inteira resolução fez jorrar sobre o espírito da teoria. Consiste ela na pretensa irresistibilidade que juízes irrefletidos creram dever assim ser atribuída às ações humanas, e que é necessário examinar sumariamente do ponto de vista geral peculiar à filosofia positiva.

Só uma profunda ignorância do verdadeiro espírito da filosofia natural poderia fazer confundir, em princípio, a subordinação de acontecimentos quaisquer a leis invariáveis, com a irresistível consumação necessária deles. No conjunto do mundo real, orgânico ou inorgânico, é evidente, como já o estabeleci, que os fenômenos das diversas ordens são tanto menos modificáveis, e determinam tendências tanto mais irresistíveis, quanto mais simples e mais gerais são ao mesmo tempo eles. Sob este aspecto, os atos da gravidade, por serem relativos à mais geral e a mais simples de todas as leis naturais, são os únicos que possamos conceber como plenamente e necessariamente irresistíveis, pois que não podem jamais ser inteiramente suspensos; eles se fazem sempre sentir, de uma maneira qualquer, já por um movimento, já por uma pressão. Mas a medida que os fenômenos se complicam, a sua produção exigindo o concurso indispensável de um número sempre crescente de influências distintas e independentes, eles se tornam, só por isso, cada vez mais modificáveis, ou, em outros termos, a sua consumação se faz cada vez menos irresistível. Isso resulta das combinações cada vez mais variadas que comportam as diversas condições necessárias, cada uma das quais continua todavia a ser isoladamente sujeita às suas leis fundamentais, sem as quais a concepção geral da natureza ficaria nesse estado arbitrário e desordenado que a filosofia teológica é diretamente destinada a representar. É assim que os fenômenos físicos, e sobretudo os fenômenos químicos, comportam modificações continuamente mais profundas, e apresentam, por conseqüência, uma irresistibilidade sempre menor, como tive o cuidado de explicá-lo. Notamos igualmente que, em virtude da sua complicação e da sua especialidade superiores, os fenômenos fisiológicos são os mais modificáveis e os menos irresistíveis de todos, conquanto sempre submetidos, na sua consumação, a leis naturais invariáveis. Por uma conseqüência evidente da mesma noção filosófica, é claro que os fenômenos da vida animal, em razão da sua menor indispensabilidade e da sua inevitável intermitência, devem realmente ser encarados como mais modificáveis e menos irresistíveis ainda do que os da vida orgânica propriamente dita. Enfim, os fenômenos intelectuais e morais, que, pela sua natureza, são a um tempo mais complicados e mais especiais do que todos os outros fenômenos precedentes, devem evidentemente comportar mais importantes modificações e manifestar, portanto, uma irresistibilidade muito menor. Mas por isso cada uma das numerosas influências elementares que concorrem para eles não cessa de obedecer, no seu exercício espontâneo, a leis rigorosamente invariáveis, apesar do mais das vezes desconhecidas até ao presente. É o que Gall e Spurtzheim verificaram diretamente no caso atual, da maneira menos indubitável, por uma luminosa argumentação. Bastou-lhes, depois de ter lembrado que os atos reais dependem quase sempre da ação combinada de várias faculdades fundamentais, observar, em primeiro lugar, que o exercício pode desenvolver muito cada faculdade qualquer, como a inatividade tende a atrofiá-la; e, em segundo lugar, que as faculdade intelectuais diretamente destinada, pela sua natureza, a modificar a conduta geral do animal segundo as exigências variáveis da situação dele, podem alterar muito a influência prática de todas as outras faculdades. Em virtude desse pulo princípio, não pode haver verdadeira irresistibilidade, e por conseqüência irresponsabilidade necessária, conforme as indicações gerais da razão pública, senão nos casos de mania propriamente dita. Nestes a preponderância exagerada de uma faculdade determinada, proveniente da inflamação ou da hipertrofia do órgão correspondente, reduza de alguma sorte o organismo ao estado de simplicidade e de fatalidade da natureza inerte. É pois bem vãmente, e com leviandade bem superficial, que se acusou a fisiologia cerebral de menosprezar a alta influência da educação, e da legislação que constitui o prolongamento necessário desta, porque fixou judiciosamente os verdadeiros limites gerais de ambas. Por haver negado, contra a ideologia francesa, a possibilidade de converter, à vontade, mediante instituições convenientes, todo os homens em outros tantos Sócrates, Homeros, ou Arquimedes, e, contra a psicologia germânica, o império absoluto, muito mais absurdo ainda, que a energia do eu exerceria para transformar, ao seu sabor, a sua natureza moral, a doutrina frenológica foi representada como radicalmente destrutiva de toda liberdade razoável, e de todo aperfeiçoamento do homem por meio de uma educação bem concebida e sabiamente dirigida! É todavia evidente, só pela definição geral da educação, que essa incontestável perfectibilidade supõe necessariamente a existência fundamental de predisposições convenientes, e, demais, que cada uma delas é submetida a leis determinadas. Sem estas não se poderia conceber que se tornasse possível exercer sobre o conjunto das nossas disposições influência alguma verdadeiramente sistemática. De sorte que é precisamente, pelo contrário, à fisiologia cerebral que pertence exclusivamente a posição racional do problema filosófico da educação. Enfim, segundo uma última consideração mais especial, essa fisiologia erige em princípio incontestável que os homens são, de ordinário, essencialmente medíocres, tanto para o bem como para o mal, na sua dupla natureza afetiva e intelectual. Isto é, a fisiologia cerebral mostra que, afastando um pequeníssimo número de organizações excepcionais, cada um deles possui, em grau pouco pronunciado, todos os instintos, todos os sentimentos, e todas as aptidões elementares, sem que a maioria das vezes faculdade alguma seja, em si mesma, altamente preponderante. É portanto claro que o mais vasto campo acha-se assim diretamente aberto à educação para modificar, quase em todos os sentidos, organismos tão flexíveis; embora, quanto ao grau, o seu desenvolvimento deva sempre ficar nesse estado pouco assinalada que basta plenamente para a boa harmonia social, como o explicarei mais tarde”.

(Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, p. 808-813, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 14-17; itálicos de Teixeira Mendes. Esse trecho pode ser lido no original aqui: https://archive.org/details/bub_gb_i-cx5K6kWVMC/page/807/mode/2up?view=theater.)



[1] Uma aplicação política imediata dessas reflexões pedagógicas é no sentido de pôr por terra a noção pós-moderna e identitária, ao mesmo tempo vulgar, falsa e errada, tão comum nos dias atuais, segundo a qual “tudo é social”, no sentido de que tudo seria “socialmente construído”, ou seja, de que tudo seria passível de manipulação (e destruição) intencional e caprichosa.

[2] Mesmo hoje, essa noção metafísica continua exercendo profunda influência entre inúmeros pensadores, em virtude de sua filiação com a teologia. As doutrinas psicológicas, especialmente as de origem alemã (a psicanálise à frente), também são profundamente metafísicas, embora com freqüência devido a outros motivos.

[3] A noção de que o cérebro na verdade é um aparelho e não um órgão unitário, era bastante clara para Comte, a partir das pesquisas precisamente de Gall e Spurtzheim.

[4] Entre as aplicações posteriores e/ou os exageros que A. Comte criticava ou deixava de lado estão a “craniometria”, a busca (e a suposta determinação) do “órgão do roubo”, do “órgão do assassinato” etc. (Cf. Augusto Comte, Sistema de filosofia positiva, v. 3, lição 45, p. 797-798, apud Raimundo Teixeira Mendes, O ano sem par, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1900, p. 9, nota de rodapé. Disponível na postagem “Instintos e genética não são fatalidades” (https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2024/05/instintos-e-genetica-nao-sao-fatalidades.html).)

13 dezembro 2023

Napoleão avaliado pelo Positivismo

No dia 10 de Bichat de 169 (12.12.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua nona conferência (dedicada ao conjunto do regime).

No sermão abordamos a avaliação feita por Augusto Comte sobre Napoleão Bonaparte, considerando o lançamento, no final de novembro de 2023, do filme homônimo dirigido por Ridley Scott.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (https://l1nq.com/pDP30) e Igreja Positivista Virtual (https://acesse.one/BHE41). Infelizmente, devido a problemas técnicos causados pela empresa NET-Claro, o sinal de internet pifou por volta de 28 min 57 s, interrompendo a transmissão no canal Positivismo. Como a empresa Meta-Facebook decidiu tirar do ar as transmissões após o prazo de 30 dias, a fim de manter a memória dessa prédica baixamos o respectivo vídeo do canal Igreja Positivista Virtual e carregamo-lo no canal Positivismo.

O sermão começa aos 51 min.

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.

*   *   *


Napoleão à luz do Positivismo
 

-        No final de novembro de 2023 estreou o filme Napoleão, dirigido por Ridley Scott e interpretado por Joaquim Phoenix

o   Ridley Scott já dirigiu grandes filmes históricos, como Cruzada (embora tenha feito algumas tolices, como a ficção espacial Alien e, em menor medida, Blade Runner)

-        O caso de Napoleão é exemplar da situação em que um “grande homem” não é a mesma coisa que alguém a ser celebrado e/ou valorizado

o   Outro caso, mais contemporâneo para nós, é o de Hitler

-        Aliás, o caso de Napoleão é interessante porque permite de uma única vez desfazer três mitos:

o   O mito de que existiria a chamada “história positivista” e que ela consistiria no “culto aos grandes homens”

§  A história positivista é, acima de tudo, uma sociologia que se desenvolve ao longo do tempo, ao mesmo tempo em termos intelectuais, políticos e morais

·         Mas, ao mesmo tempo, Augusto Comte tinha clareza de que muitas vezes os “acidentes históricos” são determinantes (assassinato de Júlio César; morte de Hoche e ascensão de Napoleão)

§  O culto aos grandes homens realmente existe no Positivismo, mas ele tem um caráter cultual, de valorização das ações construtivas dos seres humanos, e não propriamente intelectual, de explicação sociológica

o   O mito de que basta ser um “grande homem”, ou melhor, um “homem famoso”, ou um líder com grande poder, para que esse homem/líder mereça ser celebrado, no âmbito do culto público

o   O mito de que Napoleão, em particular, merece ser valorizado e/ou celebrado

§  Nesse sentido, é notável que muitas pessoas, que se dizem “críticas” reclamem que o filme em questão não seja elogioso e/ou um retrato mais fiel do tirano retrógrado

§  Na verdade, há gente que se diz “plural”, “aberta” e/ou “democrata” mas que consegue ao mesmo tempo criticar o militarismo no Brasil e, contraditoriamente, elogiar Napoleão como um “grande líder”!

-        No âmbito do Positivismo, além dos aspectos indicados acima, Napoleão integra várias outras reflexões:

o   Por um lado, ele integra plenamente a reflexão sobre a Revolução Francesa e, assim, a filosofia da história proposta por Augusto Comte – em particular, em termos de traição, degradação e corrupção dos altos, esperançosos e fraternos ideais e das práticas revolucionárias

§  Na edição da editora Akal (Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012[1]), a avaliação de Napoleão por Augusto Comte estende-se pelo menos da página 1021 até a página 1034 e encontra-se presente na lição n. 57 do Sistema de filosofia positiva, dedicada principalmente ao exame sociológico da Revolução Francesa

o   Por outro lado, o culto retrógrado e militarista a Napoleão é substituído pelo culto republicano a Joana d’Arc

-        Dito isso, algumas datas mínimas, para termos clareza do que tratamos:

o   Nascimento em 1769, na Córsega (então recém-incorporada à França)

o   1789: início da Revolução Francesa

o   1792: início do governo da Convenção Nacional

o   1793: generalato, no comando do Exército da Itália

o   1794: proclamação da República, após a execução de Luís XVI

o   1798: campanha do Egito

o   1799: golpe civil-militar, com o estabelecimento do Consulado; torna-se o “Primeiro Cônsul”

o   1802: restabelecimento da escravidão no império francês, em particular no Haiti

o   1804: coroado “imperador dos franceses”

o   1812: derrota na campanha da Rússia

o   1813-1814: derrota perante a Sexta Coligação; invasão da França e ocupação de Paris; exílio em Elba (na costa da Itália)

o   1814: entronização de Luís XVIII

o   1815: retorno no período dos Cem Dias; derrota em Waterloo e exílio em Santa Helena (no meio do Atlântico Sul)

o   1816: retorno de Luís XVIII

o   Morte em 1821, no exílio, aos 51 anos

-        Quando a Revolução Francesa estava em seus momentos finais, a ditadura militar era cada vez mais o desfecho previsível e mesmo necessário

o   A ditadura militar tornou-se cada vez mais inevitável, na medida em que as guerras revolucionárias afastavam-se da defesa contra invasões externas, levavam os exércitos para solos e costumes estrangeiros, afastavam-nos dos assuntos internos, vinculavam-se menos com o patriotismo geral, identificavam-se mais com os líderes militares, deixavam de subordinar-se ao poder civil; por fim, as agitações metafísicas pareciam requerer, para sua compressão, a atuação militar

o   Lázaro Hoche (1768-1797) era o grande general que se divisava como provável líder progressista dessa ditadura militar, mas sua morte prematura deu lugar ao imerecido Napoleão

o   Eis o trecho em que Augusto Comte avalia o advento de Napoleão, no curso da Revolução Francesa:

Por tanto, era sin lugar a dudas imposible que el conjunto de tal situación no condujese enseguida a la instalación espontánea de una verdadera dictadura militar, cuya tendencia, retrógrada o progresiva, por lo demás, a pesar de la influencia natural de una reacción pasajera, tenía que depender en gran medida, y sin ninguna duda más que en ningún otro caso histórico, de la disposición personal de aquel que habría de honrarse de ello, entre tantos ilustres generales que la defensa revolucionaria había suscitado. Debido a una fatalidad eternamente deplorable, esta inevitable supremacía, a la que el gran Hoche parecía estar en un principio tan oportunamente destinado, le cayó en suerte a un hombre casi ajeno a Francia, surgido de una civilización retrasada, y especialmente animado, bajo el secreto impulso de una naturaleza supersticiosa, por una involuntaria admiración hacia la antigua jerarquía social, mientras que la inmensa ambición que le devoraba no se encontraba realmente en armonía, pese a su vasto charlatanismo característico, con ninguna eminente superioridad mental, salvo la relativa a un indiscutible talento para la guerra, mucho más ligado, sobre todo en nuestros días, a la energía moral que a la fuerza intelectual (Filosofia, lição 57, p. 1023)[2]

-        Vários aspectos da avaliação de Napoleão por Augusto Comte:

o   Napoleão não entendeu o espírito da época, preferindo (mesmo que secretamente, ou melhor, hipocritamente) o Antigo Regime e sentindo-se à vontade apenas nele; além disso, mesmo em meio à necessária ditadura militar que teria lugar na França, Napoleão poderia e deveria ter estimulado e orientado melhor os esforços nacionais para a reorganização social, no sentido da positividade, da paz, da fraternidade – como esteve muito claro para líderes que foram grandes chefes militares e grandes estadistas, anteriores a Napoleão, como Cromwell, Richelieu e Frederico II

o   Napoleão foi ativamente militarista, monarquista e traidor dos ideais da Revolução Francesa: ele realizou a “ressurreição oficial do catolicismo”; o “estimulo sem exemplo que então receberam todos os instintos egoístas não dispensou o espírito militar de fundar sua orgia final sobre um recrutamento forçado” (Catecismo, p. 444)[3]

o   A defesa nacional forçada pelas contínuas e generalizadas guerras de conquista provocadas por Napoleão foi o único meio de conjugar a glória nacional francesa com a preservação da memória desse líder degradante:

“La vergonzosa forma de este indispensable derrocamiento ha constituido desde ese momento la única base sobre la que se ha hecho posible establecer, con una especie de éxito pasajero, una aparente solidaridad entre nuestra propia gloria nacional y la memoria individual de aquel que, más nocivo para el conjunto de la humanidad que ningún otro personaje histórico, siempre fue especialmente el más peligroso enemigo de una revolución de la que una extraña aberración ha obligado a veces a proclamarlo el principal representante (Filosofia, lição 57, p. 1028-1029)[4]

o   Napoleão pretendeu criar uma nova dinastia, com a pretendida reconstituição – degradada e servil – do catolicismo oficial, sob a justificativa de conceder estabilidade ao regime

o   É necessário afirmar que o militarismo ativo era o meio empregado para que não se evidenciasse o ridículo da renovada monarquia napoleônica

o   Napoleão corrompeu a moral nacional francesa, estimulando a tirania e oferecendo a Europa de butim como contrapartida à degradação moral

§  O conjunto da política imperial levou a França a oscilar entre duas vergonhas: ou a violência de suas armas ou a traição de seus princípios

§  Ele pôs a França em perigo e estimulou a retrogradação na Europa, ao estimular a criação de coalizões retrógradas contra o imperialismo napoleônico

o   Contra as intenções militaristas, imperialistas, monarquistas e clericalistas de Napoleão, as “invasões imperiais” estimularam os anseios de liberdade e independência nos povos invadidos, o que, indiretamente, de fato favoreceu a difusão dos ideais revolucionários

-        O culto a Napoleão era considerado por Augusto Comte como irracional e imoral; além disso, o seu nacionalismo chauvinista era encarado como desprezível e indigno da França

o   O culto a Napoleão baseava-se no estímulo direto da vaidade nacional francesa, além de um estímulo geral aos vícios próprios a todos os seres humanos

§  Como indicamos antes, o culto a Napoleão exigia o militarismo ativo, a fim de distrair a atenção para o ridículo da coisa

o   No lugar do culto a Napoleão, Augusto Comte afirmava a necessidade de substituição pelo culto a Joana d’Arc, que conduziu a França à vitória final – em particular, garantindo a independência do reino – no final da Guerra dos Cem Anos (1337-1453)

§  Como indicamos antes, o culto positivista a Joana d’Arc, realizado pelo menos até a I Guerra Mundial, era plenamente republicano e secular

§  A afirmação pública do culto a Joana d’Arc em substituição ao de Napoleão foi feita por Augusto Comte na conclusão de um de seus cursos de história da Humanidade, sendo efusivamente aplaudido

o   Adicionalmente, vale notar que Augusto Comte, ao começar a projetar o culto público e o calendário positivista concreto em 1847, considerou que o último dia do ano deveria ser consagrado à reprovação pública de alguns tipos

§  Considerações posteriores indicaram que um tal tipo de prática pública seria antipositiva e contrária ao altruísmo, ao estimular o ódio e, no final das contas, ao também celebrar personagens que devem ser desprezadas

§  De qualquer maneira, Augusto Comte considerou inicialmente três nomes, depois reduzidos para dois: o imperador Juliano, o apóstata; Felipe II (depois excluído dessa consagração às avessas) – e, acima de todos, Napoleão

-        É perfeitamente válida a aproximação da figura de Napoleão da de Hitler

o   Aspectos de aproximação:

§  Ambos foram militaristas e imperialistas

§  Ambos ansiaram dominar toda a Europa

§  Ambos foram, portanto, profunda e violentamente retrógrados

o   Aspectos de distanciamento:

§  O projeto hitleriano envolvia necessariamente o genocídio racista dos judeus e de outros grupos sociais; além disso, as ações de Hitler resultaram na destruição e posterior divisão da Alemanha: os alemães não se esquecem do segundo elemento e o mundo não perdoa o primeiro elemento

§  Napoleão não destruiu a França; mas é claro que suas ações institucionais permitiram a substituição orgânica do seu império pela monarquia que tinha sido gloriosamente extinta cerca de 20 anos antes

§  Sendo bem franco: é o chauvinismo francês mantém o mito napoleônico – estimulado desde o início pelo próprio Napoleão!

·         Inversamente, o genocídio praticado por Hitler, o seu sistemático antissemitismo, a destruição total que ele causou à Alemanha e a reação universal contra o nazismo tornaram (não por acaso e com justiça) inaceitável qualquer menção a ele

o   Por certo que Augusto Comte viveu quase um século antes de Hitler; mas podemos sugerir o seguinte:

§  Sem desculpar nada das ações de Hitler, o fato é que ele consistiu claramente em um “ponto fora da curva” e, portanto, apresenta um caráter excepcional

§   Napoleão, por outro lado, atuou inserido no processo histórico da Revolução Francesa; podendo liderar esse processo, ele conscientemente escolheu trair e corromper os ideais desse processo

·         Assim, Napoleão não foi um “ponto fora da curva”, mas ele escolheu levar a curva para a direção errada



[1] Vale notar que essa edição é bastante ambígüa. Por um lado, é uma tradução bem feita, do francês para o espanhol, de muitos capítulos do Sistema de filosofia positiva, em particular as lições 46 a 57, ou seja, os volumes 4, 5 e metade do 6. Injustificadamente o organizador decidiu deixar de lado as lições 58 a 60, que concluem a referida obra. Todos esses capítulos – do 46 ao 60 – correspondem à fundação da Sociologia de Augusto Comte, errada mas propositalmente chamada de “Física Social”. Por fim, o tradutor – Juán R. Goberna Falque – redigiu uma longa introdução, bem como inseriu muitas notas explicativas; refletindo a ofensiva ambigüidade do emprego da expressão “Física Social”, tanto a introdução quanto muitas das notas são aviltantes e desmerecem profundamente, a partir do mais banal cientificismo academicista, a obra de Augusto Comte. Em suma, resta apenas a tradução (incompleta) da primeira Sociologia de Augusto Comte.

[2] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.

[3] Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1934.

[4] Augusto Comte, Física social, Madrid, Akal, 2012.

11 abril 2022

Condições e exigências próprias ao sacerdócio positivo

As anotações abaixo correspondem à transcrição de algumas passagens do Catecismo positivista, belíssima obra de divulgação da Religião da Humanidade escrita por Augusto Comte em 1852, voltada às mulheres e aos proletários. 

Essas anotações abordam algumas disposições sobre o sacerdócio positivo: suas funções sociais, sua estrutura, sua base material; implicitamente (mas às vezes de maneira bastante explícita) também seus requisitos morais.

Essas anotações são úteis, ou melhor, são importantes devido a diversos motivos. Por um lado, elas orientam todos aqueles interessados em exercer o belo e exigente ofício de sacerdote da Humanidade; por outro lado, elas indicam os requisitos exigidos de qualquer sacerdote que seja digno desse título e dessa posição, independentemente de se tais sacerdotes são positivos, metafísicos ou teológicos (é claro que as exigências feitas ao sacerdócio positivo são muito superiores, muito mais dignas e muito mais adequadas à realidade humana que aquelas feitas aos sacerdotes "apositivos").

Por fim, vale notar outro aspecto, menos evidente, ou melhor, à primeira vista menos valorizado nos dias atuais, que combinam a decadência da teologia com o cinismo próprio à metafísica. Muitos anos atrás eu ouvi de um professor que as prescrições de Augusto Comte, como as indicadas abaixo, tinham um "ar de século XIX", com isso querendo dizer que eram prescrições exageradas, descabidas e sem sentido... seriam detalhamentos irrealizáveis e irrelevantes. 

Pois bem, o que subjaz a esse gênero de crítica é a concepção de que a indeterminação geral das idéias seria superior à clareza expositiva, que a vagueza seria superior ao exame empírico cuidadoso sócio-histórico e à dedução rigorosa das conseqüências morais, intelectuais, sociais e institucionais dos elementos básicos. Vale notar que esse tipo de crítica provém dos liberais - não por acaso, era justamente um liberal o professor que fez a crítica que comento -; para os liberais, a intuição correta da importância da experiência histórica limita-se e encerra-se na afirmação, vaga, de que a história corresponde a uma espécie de tribunal de longo prazo e que, assim, o que herdamos hoje do passado basta para o futuro... seria uma historicidade pela metade e, no fundo, abortada, estéril. 

De acordo com essa forma de pensar - que, aliás, é amplamente compartilhada com os irracionalistas e os metafísicos pós-modernos -, projetos racionais para a sociedade são sem sentido (embora o ser humano possa e deva empregar a inteligência para entender e projetar a sua existência); as únicas instituições válidas seriam aquelas que reproduzem ou continuam automática e irrefletidamente o que o passado legou, ou, então, o que de maneira confusa, caótica e aos trancos e barrancos o futuro elaborar: em suma, vale qualquer coisa, exceto o que for elaborado racional e conscientemente. Ou seja: a teologia e a metafísica podem continuar exercendo suas influências sociais, por mais impróprias que sejam para a sociedade pacífica, industrial, relativa, humana e positiva - mas a própria positividade é ciosamente proibida de exercer suas influências. Essa crítica, portanto, é uma censura parcial e hipócrita, quando não cínica, cujos efeitos desejados são os piores possíveis. 


*   *   *

 

Funções do sacerdócio:

o   “Eis aí de onde procede este segundo axioma: Nenhuma sociedade se pode desenvolver e conservar sem um sacerdócio qualquer. Semelhantemente indispensável a todos para a educação e para o conselho, só este poder teórico é capaz de consagrar os governantes e de proteger os governados. Ele constitui o moderador normal da vida pública, como a mulher [é] o [moderador normal] da vida privada; conquanto estas duas existências exijam aliás o concurso contínuo da influência moral com o poder intelectual. Podeis resumir o conjunto das atribuições sociais do sacerdócio qualificando-o de Juiz, segundo a expressão bíblica; porquanto seu tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador se efetua sempre julgando, isto é, mediante uma apreciação respeitada” (9ª Conferência (Conjunto do regime); p. 296-297[1])

o   “A MULHER. Meus antigos hábitos católicos inclinam-me, meu pai, a condensar todas as atribuições essenciais do poder Espiritual na direção sistemática da educação universal, onde sua competência exclusiva é incontestável.

O SACERDOTE. Tal é, com efeito, minha filha, o ofício fundamental do sacerdócio, que, quando cumpre dignamente este principal dever, adquire necessariamente uma grande influência sobre o conjunto da vida humana. Suas outras funções sociais constituem apenas a continuação natural ou o complemente indispensável deste destino característico. A prédica torna-se em primeiro lugar um prolongamento necessário desse ofício fundamental, a fim de recordar convenientemente os princípios da harmonia universal, que a atividade especial nos arrasta amiúde a desprezar. É também em virtude daquela base que o poder espiritual adquire sua aptidão para consagrar as funções e os órgãos, em nome de uma doutrina unanimemente considerada como devendo regular sempre a existência humana. Sobre o mesmo fundamento assenta a influência consultiva do sacerdócio acerca de todos os atos importantes da vida real, privada ou pública, em que cada qual sente amiúde a necessidade de recorrer livremente aos conselhos esclarecidos e benévolos dos sábios que dirigirão sua iniciação sistemática. Enfim, a educação permite que o sacerdócio se torne, por um comum assentimento, o regulador normal dos conflitos práticos, por causa da igual confiança que naturalmente inspira aos superiores e inferiores” (9ª Conferência (Conjunto do regime); p. 298-300)

Plena maturidade requerida:

o   “O sacerdócio positivo exige, ainda mais do que o sacerdócio teológico, uma inteira madureza, sobretudo em virtude de sua imensa preparação enciclopédica. Eis aí porque estabeleci a idade de quarenta e dois anos para a ordenação dos padres da Humanidade, pois é então que finaliza todo o desenvolvimento corpóreo e cerebral e termina, ao mesmo tempo, a primeira vida social” (Prefácio; p. 17-18)

Graus do sacerdócio:

o   “[...] Os diversos modos ou graus do sacerdócio positivo, classificados na ordem de sua plenitude crescente. Este grande ministério exige um raro concurso das qualidades morais, tanto ativas como afetivas, com os talentos intelectuais, estéticos e científicos. Se, pois, estes forem os únicos salientes, seus possuidores, após uma cultura conveniente, terão de permanecer, talvez para sempre, simples pensionistas do poder Espiritual, sem aspirarem nunca a ser nele incorporados. Em tais casos, felizmente excepcionais, o maior gênio poético ou filosófico não pode dispensar de ternura e de energia um funcionário que deve estar habitualmente animado de simpatias íntimas e destinado amiúde a lutas difíceis. Este sacerdócio incompleto permite o digno cultivo de todos os verdadeiros talentos, sem comprometer nenhum serviço social.

Quanto ao sacerdócio completo, ele exige, em primeiro lugar, um grau preparatório, que o aspirante não transporá se, apesar de sua vocação proclamada, não passar com bastante êxito pelo noviciado conveniente. Vencida essa prova decisiva, obtém ele, aos trinta e cinco anos, o sacerdócio direto e definitivo, mas exercendo-o durante sete anos no grau secundário, que caracteriza o vigário ou suplente. Depois de ter dignamente preenchido todas as fases de nosso ensino enciclopédico, e mesmo esboçado as outras funções sacerdotais, ele eleva-se, aos quarenta e dois anos, ao grau principal, tornando-se de modo irrevogável um sacerdote propriamente dito. Tais são as quatro classes teóricas que respectivamente celebram as festas hebdomadárias do undécimo mês” (5ª Conferência (Culto público); p. 162-164)

o   “Nosso sacerdócio compõe-se, em geral, de três ordens sucessivas: os aspirantes, admitidos aos vinte e oito anos; os vigários ou suplentes, aos trinta e cinco; os sacerdotes propriamente ditos, aos quarenta e dois.

Conquanto os primeiros, cujo número é naturalmente ilimitado, sejam já considerados como dotados de uma verdadeira vocação sacerdotal, eles não pertencem ainda ao poder Espiritual, do qual não exercem nenhuma função. Por isso sua livre desistência de toda herança é puramente provisória e do mesmo modo seu ordenado, que fixamos em três mil francos. Sem residência sacerdotal, eles são contudo regularmente vigiados em seus trabalhos e costumes.

Os vigários pertencem irrevogavelmente ao sacerdócio, posto que não exerçam ainda senão as funções de ensino e prédica, salvo delegação especial em caso urgente. Além da renúncia definitiva aos bens temporais, sua admissão exige um digno casamento. Eles residem com as suas famílias, porém em separado dos sacerdotes, no presbitério filosófico adjacente a cada templo da Humanidade, paralelamente à escola positiva. A classe que dirige em todas as outras a reação do coração sobre o espírito deve fornecer por sua vez o melhor tipo masculino do surto moral, mediante um pleno desenvolvimento das afeições domésticas, sem as quais o amor universal se torna ilusório. Embora o casamento fique facultativo para os cidadãos ordinários, ele torna-se obrigatório para os padres, cujo ofício não pode ser dignamente preenchido sem a influência contínua, aliás objetiva ou subjetiva, da mulher sobre o homem. A fim de melhor experimentá-los a esse respeito, a religião positiva impõe já esta condição aos simples vigários. Este segundo grau, que conduz sempre ao terceiro, salvo malogro excepcional, proporciona um ordenado anual de seis mil francos.

Durante os sete anos que o separam do sacerdócio completo, cada vigário professou todos os graus enciclopédicos e exercitou suficientemente seus talentos de prédica. Torna-se então um verdadeiro sacerdote e pode preencher, nas famílias ou nas cidades, o tríplice ofício de conselheiro, de consagrador e de regulador, que socialmente caracteriza o clero positivo. Nesse estado definitivo seu ordenado eleva-se a doze mil francos, além das indenizações pelas suas viagens de inspeção diocesana” (9ª Conferência (Conjunto do regime); p. 320-321)

Condições materiais do sacerdócio:

o   “A MULHER. Sou assim levada, meu pai, a pedir-vos que completeis esta apreciação geral indicando a constituição peculiar ao sacerdócio positivo.

O SACERDOTE. Facilmente sentireis, minha filha, que o destino fundamental de nosso sacerdócio exige, como primeira condição, uma renúncia completa ao domínio temporal e mesmo à simples riqueza. É o compromisso inicial que todo aspirante ao sacerdócio deve contrair solenemente ao receber, aos vinte e oito anos, o sacramento de destinação. Nossos padres não herdam nem de suas famílias, quer para se preservarem dos desvios temporais, quer para deixarem os capitais aos que podem utilizá-los. A classe contemplativa deve ser sempre coletivamente sustentada pela classe ativa; primeiro, mediante os livres subsídios dos crentes, depois por intermédio do tesouro público, quando a fé tornar-se unânime. Ela não deve pois possuir coisa alguma em particular, nem terras, nem casas, nem mesmo rendimentos quaisquer; salvo seu orçamento anual, sempre fixado pelo poder Temporal. As vistas gerais e os sentimentos generosos que devem sempre distinguir o sacerdócio são profundamente incompatíveis com as idéias de detalhe e com as disposições orgulhosas inerentes a todo domínio prático. Para que alguém se limite a aconselhar, é necessário que não possa nunca mandar, nem pela riqueza: de outro modo nossa miserável natureza fica disposta a substituir amiúde a força às demonstrações. Essa condição sacerdotal foi sentida até a mais sublime exageração pelo admirável santo que tentou em vão, no XIII século, regenerar o catolicismo exausto[2]. Prescrevendo, porém, aos seus discípulos uma pobreza absoluta, que eles em breve iludiram, esqueceu ele que os distraía assim do seu ofício pelos cuidados diários de sua existência material” (9ª Conferência (Conjunto do regime), p. 318-319)

Sacerdócio, classes sociais e ensino positivo:

o   “A MULHER. Consenti, meu pai, que vos interrompa um momento, quanto a esta última influência. Como nossa instrução enciclopédica não deve nunca tornar-se obrigatória, os ricos talvez sejam levados, por um tolo orgulho, a não deixar que seus filhos participem desse ensino, e sobretudo suas filhas, embora tenham de renunciar aos sacramentos subseqüentes, e mesmo às recomendações sociais que ele há de proporcionar. Isso posto, a influência pessoal que assinalais ficaria essencialmente reduzida à deferência involuntária que por toda parte obtém o talento e a virtude.

O SACERDOTE. Essa objeção incidente, minha filha, é mais forte do que cuidais; entretanto, afastá-la-eis sem custo. De fato, não será necessário ter freqüentado nossas escolas positivistas para ser admitido a receber nossos sacramentos sociais, e mesmo para ser submetido aos nosso exames públicos, nos quais não se indagará nunca de quem provém a instrução, contanto que esta seja real e suficiente. Apenas, quando ela não dimanar do sacerdócio, nossos padres precisarão empregar mais esforços a fim de colher as informações morais que serão sempre tão indispensáveis como os julgamentos intelectuais.

Apesar dessa plena liberdade de ensino, que aliás aumentará o zelo dos professores, as escolas oficiais não serão nunca abandonadas pelos ricos, a menos que o sacerdócio degenere; porquanto eles não hão de querer que seus filhos fiquem abaixo da instrução popular, da qual entretanto não poderão proporcionar-lhes, mesmo com grandes despesas, um equivalente privado. Com efeito, o sacerdócio há de naturalmente absorver os melhores professores, que sua outras funções afastarão sempre do ensino particular, o qual aliás, como sabeis, lhes será severamente proibido. Os mestres privados recrutar-se-ão , pois, entre os homens incapazes de se tornarem padres ou mesmo vigários; de sorte que suas lições serão habitualmente desconceituadas” (11ª Conferência (Regime público); p. 374-376)



[1] A paginação refere-se à quarta edição do Catecismo positivista da Igreja Positivista do Brasil, de 1936. Para entender minimamente o contexto do livro de cada citação, indiquei a conferência (ou seja, o capítulo) de que a citação foi extraída e também o título (ou seja, o tema) de cada conferência.

[2] Nota de Miguel Lemos (p. 482):

“Refere-se a S. Francisco de Assis (1182-1226).

É oportuno observar aqui que a lei religiosa que obriga o sacerdote positivista a desistir de toda herança só será aplicável rigorosamente no estado normal, ou quando o subsídio positivista garantir plenamente a existência material do novo clero. V. sobre esse assunto o trecho da carta de Augusto Comte ao Dr. Foley, reproduzido por nós em nossa Décima Circular Anual (1890), segundo a cópia que nos foi fornecida pelo Sr. R. Congreve. V. também a nota correspondente a esta em nossa edição francesa deste Catecismo”.

Tradução da nota de Miguel Lemos à edição francesa do Catecismo, publicada pela IPB (1891, 2ª ed. 1957; p. 478):

“Augusto Comte fala de São Francisco de Assis (1182-1226). É útil notar aqui que a lei religiosa que obriga os padres a renunciar a toda herança não será aplicável senão no estado normal ou quando o subsídio positivista garantir suficientemente sua existência material. É isso que ensinava Augusto Comte, como se vê no extrato seguinte de uma carta, ainda inédita, que ele endereçou ao Dr. Foley em 17 de Shakespeare de 67 (26 de setembro de 1855): ‘No caso de uma triste eventualidade que vós evitareis, espero, devo aqui prevenir a generosidade demasiadamente irrefletida para a qual vós parecestes-me tender algumas vezes a respeito da herança, sobre o que se poderia impelir-vos mal nesse sentido. Em primeiro lugar, o compromisso normal por essa renúncia não se realiza senão ao receber a ordenação sacerdotal, de que vós estais ainda distante, por mais firme que seja minha segurança de que a obtereis. Sobretudo, é necessário considerar que essa regra é própria ao estado normal e não poderia convir à transição senão quando o subsídio positivista garantir plenamente a existência dos teóricos; de sorte que aceitarei eu mesmo minha parte da herança paterna, por maior que ela jamais fosse’”.

29 junho 2018

Burrice acadêmica e materiais didáticos de Ciência Política


Para ver-se como o sistema de avaliação da produção científica brasileira pode ser profundamente BURRO:

Nos últimos anos eu tive a honra e a felicidade de redigir dois livros didáticos (para a editora Intersaberes):

- um deles, Introdução à Sociologia Política, é um volume enorme, com 412 páginas e o mais completo manual de introdução à Sociologia Política existente em língua portuguesa;

- o outro, Pensamento Social e Político Brasileiro, é um manual de introdução à teoria política elaborada no Brasil, organizando-a em três grandes “famílias” intelectuais (de acordo com a relação que os autores estudados indicam entre o Estado e a sociedade).

Tenho muito orgulho desses livros, não somente porque são realizações intelectuais importantes por si sós, mas porque são livros que sistematizam temas e discussões que, no Brasil, costumam ser muito dispersos. Assim, são convites, portas de entrada e guias para todos os interessados - e por “todos os interessados” quero dizer exatamente isso: público em geral, estudantes de graduação, estudantes de especialização, estudantes de mestrado, estudantes de doutorado, professores, gente de outras áreas.

Pois bem. A avaliação científica no Brasil ocorre sob a coordenação da Capes, que é um órgão vinculado ao MEC. A Capes tem em seu interior inúmeros comitês de área: Medicina tem pelo menos três comitês (devido à quantidade de especializações), as Engenharias têm também pelo menos três comitês e assim por diante.

Gozando de uma necessária e correta autonomia intelectual, cada comitê elabora e aplica os próprios critérios para avaliação da produção científica. Esses critérios referem-se a classificações gerais elaboradas pela Capes para avaliar revistas científicas e também livros. No caso dos livros, a hierarquia vai de L1 (livros ruins) até L4 (livros de excelência).

Entre os vários comitês, há o de Ciência Política e Relações Internacionais. Esse comitê decidiu que os livros didáticos de Ciência Política e Relações Internacionais, bem como os de áreas vinculadas, como Sociologia Política e Pensamento Político Brasileiro, devem todos eles ter notas L1 e L2.

O que isso quer dizer? Quer dizer que, para o comitê da área de Ciência Política e Relações Internacionais que avalia a produção nacional de Ciência Política e Relações Internacionais (e campos relacionados), a produção de material didático não é importante.

Em outras palavras, para o dito comitê, produzir livros que visem a educar a população brasileira, que visem a sistematizar o conhecimento da área (extremamente disperso e fragmentado, diga-se de passagem), que visem a auxiliar o grosso da população a entender um pouco o que é a política brasileira; enfim, produzir livros que tenham uma certa utilidade social mais ampla não é importante nem é relevante. Sendo mais direto: para o dito comitê, produzir livros didáticos é perda de tempo.

Para mim, isso é escandaloso. E, claro, mostra o quanto a avaliação da produção científica pode ser burra - mesmo a avaliação da produção científica daqueles que querem palpitar sobre as políticas públicas, incluindo aí as políticas (alheias) de produção científica.

No exterior (Estados Unidos e Europa), a produção de livros didáticos é imensa - mesmo que sob a forma de “enciclopédias” e de “manuais”: todas as principais editoras (comerciais e universitárias) têm suas próprias enciclopédias e seus manuais das mais diversas áreas do conhecimento.

Um exemplo banal da importância dos livros didáticos de Ciência Política, para além das salas de aula: a utilidade de livros didáticos sobre Sociologia Política, História Política, Idéias Políticas etc. em uma época que se caracteriza pelas fake news está, ou deveria estar, fora de questão.

Por fim, mas não menos importante, convém notar que, supostamente, ninguém deseja que a Sociologia saia do currículo do Ensino Médio nem, por extensão, dos vestibulares. Mas, ainda assim, a produção dos recursos didáticos adequados a esse ensino e que, de qualquer maneira, sistematize a fragmentação e a dispersão das Ciências Sociais - isso é visto como perda de tempo. Não é necessário ter o título de doutor para perceber que há alguma coisa muito errada aí.

Outros comitês de área avaliam a produção de materiais didáticos de outras formas. Felizmente há quem leve a sério a educação, a qualidade dos debates públicos e o futuro do país.