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11 junho 2024

Síntese subjetiva e relativa como quarto estado

No dia 23 de São Paulo de 170 (11.6.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua undécima conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos uma questão central para o Positivismo e para todos os seres humanos: a noção de positividade filosófica, superior à mera positividade científica, como um quarto estado da lei dos três estados.

Antes do sermão comentamos alguns livros:

- Ascensão e reinado dos mamíferos, de Steve Brusatte

- A esquerda não é woke, de Susan Neiman

 A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/ArsP0) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/hmfvr).

A leitura comentada começou aos 48 min 05 s; o sermão começou a 1h 09 min 43 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas (e atualizadas) abaixo.

*   *   *

A síntese subjetiva como quarto estado

(23.São Paulo.170/11.6.2024) 

1.      A prédica de hoje trata de um assunto que é da maior importância para o Positivismo, isto é, para a Religião da Humanidade e, por extensão, para o ser humano, para o bem-estar público e para a felicidade individual

1.1.   Trata-se da incorporação da síntese subjetiva na lei dos três estados, ou melhor, da atualização da lei dos três estados em face da síntese subjetiva

1.2.   Essa atualização é importante porque corrige uma ambigüidade daninha presente desde o início da lei dos três estados

2.      Antes de passarmos à parte mais substantiva deste sermão, podemos responder a uma pequena dúvida que, por vezes, apresenta-se aos leitores de Augusto Comte (incluindo, evidentemente, os positivistas)

2.1.   A dúvida é a seguinte: devemos dizer “estados” ou “estágios”?

2.2.   A formulação de Augusto Comte é bem clara: ele usa “état”, ou seja, “estado”: é a “loi des trois états

2.3.   Mas se na formulação ele usa “estado”, em seus escritos ele não se apega a essa palavra, usando alternadamente “estado”, “estágio”, “fase”, “modo” etc.

2.3.1.     Os positivistas, da mesma forma, adotam essas várias palavras

2.4.   Para além da palavra consagrada no enunciado, o que evidentemente importava para Augusto Comte, conforme depreendemos de seus escritos, é que cada um dos estados descritos na lei dos três estados (1) representa um modo distinto de conceber e interpretar a realidade, (2) que segue uma determinada seqüência lógica e histórica em seu desenvolvimento

2.5.   Assim, na prática, podemos dizer que o enunciado deve ser feito com “estados” (por motivos de respeito e de uniformidade), mas que ao longo das exposições e das reflexões podemos usar sem maiores dificuldades as outras palavras

3.      A lei dos três estados a que nos referimos é a lei intelectual dos três estados

3.1.   Ela foi primeiramente enunciada em 1822, no texto, ou livro, chamado “Plano dos trabalhos científicos necessários para reorganizar a sociedade”

3.1.1.     Esse livro era chamado por Augusto Comte também de “opúsculo fundamental”

3.1.2.     Além disso, é popularmente conhecido apenas como “Reorganizar a sociedade”

3.1.3.     Ele teve uma reedição aumentada em 1824, em que Augusto Comte chamou-o – prematuramente, como ele mesmo depois reconheceu – de “Sistema depolítica positiva

3.2.   Ao apresentar a lei dos três estados, inserindo-a em uma reflexão histórica mais ampla, o “Reorganizar a sociedade” tem o mérito e a glória de ao mesmo tempo fundar a Sociologia e o Positivismo

3.3.   O enunciado dessa lei mudou com o passar do tempo, refletindo mudanças, ou melhor, a evolução das concepções de nosso mestre

3.4.   O enunciado final, “canônico”, é o que aparece no corpo da Filosofia Primeira, conforme publicado no Catecismo positivista:

3.4.1.     “Cada entendimento oferece a sucessão dos três estados, fictício, abstrato e positivo, em relação às nossas concepções quaisquer, mas com uma velocidade proporcional à generalidade dos fenômenos correspondentes”

3.4.2.     Vale lembrar que essa é a sétima lei do total de 15 leis da Filosofia Primeira; ela integra o segundo grupo de leis, “essencialmente subjetivo”, na sua segunda série, que compreende as leis dinâmicas do entendimento

3.4.3.     Essa segunda série apresenta as três leis dos três estados (intelectuais, afetivos e práticos)

3.5.   As idéias da lei intelectual dos três estados são bem claras:

3.5.1.     Toda concepção humana passa por três fases, ou seja, três modos de entender o mundo

3.5.2.     Esses três modos são, sucessivamente, o fictício, o abstrato e o positivo

3.5.2.1.           Insistamos: os modos são três, são sucessivos, são os indicados acima e desenvolvem-se nessa ordem

3.5.3.     A velocidade da passagem de um modo de conceber a realidade para outro varia de acordo com a generalidade objetiva de cada concepção, o que também equivale a dizer: conforme a generalidade subjetiva e o grau de complicação das concepções

4.      Pois bem: a ambigüidade que mais ou menos sempre se apresentou consiste, precisamente, no fato de que o estado positivo apresentava dois sentidos diferentes

4.1.   Esses dois sentidos são: (1) positivo como “científico” e (2) positivo como “filosófico”

4.2.   O sentido “científico” foi o que primeiro apresentou-se a Augusto Comte, refletindo o desenvolvimento das ciências; ele opõe-se de maneira bastante clara à teologia e à metafísica

4.3.   O sentido “filosófico”, nas primeiras formulações, não estava muito evidente – o que, é importante enfatizar, não significa que não se apresentasse de maneira nenhuma –, mas, à medida que nosso mestre desenvolveu sua obra, a importância da síntese filosófica foi evidenciando-se cada vez mais

4.4.   Assim, nas formulações iniciais – ou seja, nos opúsculos de juventude (como o “Reorganizar a sociedade”, de 1822-1824) e ao longo dos cinco primeiros volumes da Filosofia positiva (de um total de seis) (1830-1841) –, Augusto Comte afirmava ao mesmo tempo, a importância da cientificidade (usando, para isso, a lei dos três estados como apoio) e a necessidade de concepções gerais, sintéticas e francamente relativas

4.4.1.     A necessidade das concepções gerais, sintéticas e relativas era afirmada em conjunto com a cientificidade, mas ela não era plena e conscientemente integrada à lei dos três estados, que se limitava assim, em seu enunciado, ao positivo como cientificidade

4.5.   Conforme nosso mestre disse em carta ao dr. Audiffrent de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), apenas a partir do último volume da Filosofia positiva (1842) é que o enunciado, ou melhor, que o sentido pura ou predominantemente científico na lei dos três estados mudou

4.6.   O relacionamento com Clotilde permitiu que Augusto Comte mudasse claramente o sentido, assumindo então que a positividade não pode ser apenas a cientificidade, mas deve ser, ainda mais, o aspecto sintético, subjetivo e relativo

4.7.   A Religião da Humanidade, proposta no Discurso sobre o conjunto do Positivismo (1848), fundada plenamente na Política positiva (1851-1854) e aprofundada na Síntese subjetiva (1856) consagrou definitivamente o sentido pleno da positividade, isto é, como síntese filosófica, relativa e subjetiva

5.      Pois bem: o ano de 1857 foi dedicado por Augusto Comte para reflexão e amadurecimento filosófico, preparando-se para a redação dos volumes seguintes da Síntese subjetiva

5.1.   No âmbito dessas reflexões, em conversas epistolares com seus discípulos, Augusto Comte apresentava e desenvolvia suas novas concepções

5.2.   Na já mencionada carta ao dr. Audiffrent, de 15 de Homero de 69 (12 de fevereiro de 1857), nosso mestre formaliza a concepção de positividade presente na lei intelectual dos três estados, desdobrando-a em uma lei dos quatro estados

5.2.1.     A positividade, assim, assume duas fases sucessivas: uma preparatória, a científica, e a outra verdadeiramente definitiva, a filosófica

5.2.2.     Além do aspecto filosófico, explicitamente ao mesmo tempo sintético, relativo e subjetivo, Augusto Comte indica que a verdadeira positividade exige que a utilidade seja claramente acrescida à realidade das concepções

5.2.2.1.           A mera realidade pode resultar – e, como sabemos, com freqüência resulta – no absolutismo científico

5.2.2.2.           Por outro lado, o pleno e conseqüente emprego da utilidade resulta em que é possível, e necessário, que criemos concepções que sejam fictícias mas úteis

5.2.2.2.1.                O critério da realidade não é final, mas não pode ser desprezado; assim, as ficções positivas, sem se limitarem à realidade, não podem negar as concepções reais

5.2.2.2.2.                Evidentemente, a subjetividade tem um largo papel aí, seja na forma da imaginação artística, seja na incorporação do fetichismo à positividade

5.2.2.2.3.                Isso tudo resulta em que, por um lado, as utopias positivas podem ser desenvolvidas com plena positividade e que, por outro lado, mesmo as concepções científicas abrem-se plenamente para enunciados simpáticos, isto é, ao mesmo tempo altruístas e artísticos

5.3.   Ao distinguir a positividade científica (que é preparatória e, portanto, provisória) da positividade plena, que é filosófica, nosso mestre também distingue a verdadeira positividade do mero cientificismo (e, por extensão, também do academicismo)

5.4.   Eis como Augusto Comte caracteriza cada um dos quatro estados:

5.4.1.      Teológico: provisório

5.4.2.      Metafísico: transitório

5.4.3.      Científico: preparatório

5.4.4.      Positivo (filosófico): definitivo

5.5.   Comentário estritamente pessoal: no fundo, podemos talvez considerar que o novo enunciado estabelece uma leis dos “dois estados”, indicando a gigantesca transição do absolutismo para o relativismo

5.5.1.     Ou, quem sabe, considerando a transição do absolutismo para o relativismo, uma outra lei dos três estados: fetichismo, teologia/metafísica, positividade

5.6.   Comentário feito pelo nosso amigo Hernani na tarde de hoje (23.São Paulo.170/11.6.2024), a título de auxílio para esta prédica:

“A caracterização intelectual da síntese subjetiva foi feita por Augusto Comte em suas últimas reflexões tomando por base dois pares de conceitos. A síntese positiva é (1) demonstrável e discutível e (2) relativa e subjetiva. Ora, com base apenas nessa dupla caracterização torna-se fácil justificar a lei dos três estados com o acréscimo de uma quarta fase, bastando decompor o estado metafísico em seus dois pólos opostos (o espiritualismo e o materialismo). Basta realizar a seguinte operação: ao teologismo corresponderia uma síntese a um tempo subjetiva e absoluta, donde seu caráter a um tempo indemonstrável e indiscutível.

Em seguida, à primeira expressão da metafísica, isto é, à metafísica espiritualista corresponderia uma tentativa de síntese objetiva e absoluta, donde seu caráter indemonstrável porém discutível.

Ao segundo e último estágio metafísico, isto é, ao cientificismo materialista, corresponde uma tentativa de síntese objetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável porém ainda indiscutível.

E por fim, o quarto e último estado do entendimento, a síntese positiva, esta define-se como subjetiva e relativa, donde seu caráter demonstrável e discutível.

Repare que o caráter contraditório das duas sínteses metafísicas fica aí plenamente manifesto, assim como o contraste entre essas duas sínteses em comparação com o caráter orgânico das sínteses teológica e positiva”.

5.6.1.     A sugestão do Hernani é que o antigo critério de positividade – que, no final das contas, é o cientificismo – seja incorporado à metafísica (que, assim, desdobra-se em duas fases), deixando a positividade propriamente dita para a síntese subjetiva e relativa

5.7.   Mais algumas observações de nosso amigo Hernani, agora feitas durante a prédica:

“Em sua primeira fase, mais objetiva, Augusto Comte havia formulado a lei dos três estados a partir das produções exteriores da Humanidade. Ela é então uma apresentação eminentemente histórica e empírica. A teologia, a metafísica e a ciência são aí oferecidas como sinais empíricos reveladores dessa passagem íntima.

Na segunda de suas fases, progressivamente subjetiva, a formulação de Augusto Comte enuncia a mesma lei considerando antes o caráter interno de cada estado, ou seja, o caráter lógico inerente de cada um deles. Então se tratou de revelar o caráter fictício das construções da teologia, o caráter abstrato das especulações metafísicas e o caráter positivo das leis da ciência.

A morte privou Augusto Comte de uma terceira formulação da lei da evolução intelectual, na qual o conjunto do Positivismo já pudesse ser apresentado como livre dos últimos vestígios do cientificismo, o que já havia ocorrido a partir do quarto volume da Política positiva, de 1854, com a teoria subjetiva dos números, com a incorporação do fetichismo etc.

É curioso ver como o resumo de Harriett Martineau[1] foi elogiado por Augusto Comte, dentre outras virtudes, pelo fato de ela haver excluído daí o artigo escrito por Augusto Comte, em 1832, intitulado Memória sobre a hipótese cosmogônica de Laplace[2], adiantando-se assim à exclusão de um assunto que ainda estava presente no Sistema de filosofia positiva e que o Positivismo viria a considerar como mais uma especulação da metafísica cientificista”.

5.8.   A carta de 12 de fevereiro foi aprofundada em uma outra, de 27 de Aristóteles de 69 (24 de março de 1857)

6.      As cartas de A. Comte ao dr. Audiffrent foram publicadas pelo próprio dr. Audiffrent em 1880, no livro O Positivismo dos últimos tempos (LePositivisme des derniers temps) – embora tenham sido apenas trechos dessas epístolas

6.1.   Teixeira Mendes traduziu e publicou esses trechos em 1898 (As últimas concepções de Augusto Comte) e novamente em 1900 (O ano sem par)

6.2.   Finalmente, em 1990, Paulo Carneiro, dando seguimento e concluindo o principal de organização e publicação da correspondência de Augusto Comte, publicou-as na íntegra, no volume VIII da correspondência e das confissões anuais de nosso mestre (esse volume em particular contou com o auxílio de Angèle Kremer-Marietti)

7.      Eis os trechos da bela e importante carta de fevereiro de 1857 que o dr. Audiffrent publicou em 1880[3]:

“A respeito da principal parte de vossa memorável carta, devo sobretudo esboçar a sistematização direta das reflexões gerais que precedentemente vos indiquei sobre a emancipação científica especialmente instituída, conforme o caso mais decisivo, ainda que sob um modo espontaneamente latente no volume que vós reledes agora. É necessário perceber diretamente tal emancipação como o complemento normal da evolução fundamental que caracteriza a lei dos três estados. O último estado deve ser, a esse respeito, decomposto em seus dois modos sucessivos, um científico, o outro filosófico, respectivamente analítico e sintético. É somente ao segundo que pertence a qualificação de definitivo, inicialmente aplicado confusamente ao seu conjunto. No fundo, a ciência propriamente dita é tão preliminar quanto a teologia e a metafísica e deve ser finalmente tanto quanto [elas] eliminada pela religião universal, em relação à qual esses três preâmbulos são um o provisório, o outro, transitório, e o último, preparatório. Eu ouso mesmo recusar às ciências o atributo de plena positividade, que não consiste somente na realidade das especulações, mas em sua combinação contínua com a utilidade, sempre referida ao Grande Ser e desde então não podendo nunca ser dignamente apreciada senão conforme a síntese total, vale dizer, subjetiva e relativa. Na construção final, o início teológico da preparação humana não tem menos eficácia que seu término científico. Se este fornece os materiais exteriores, a outra esboça as disposições interiores, ao compensar a imaginaridade[4] pela generalidade, cuja ausência interdiz toda verdadeira racionalidade teórica.

Sob um aspecto mais sistemático, a primeira vida [teológica] é sobretudo distinguida no indivíduo, como na espécie, pela vã pesquisa contínua de uma síntese essencialmente objetiva, ao passo que a segunda [a positividade] constrói e desenvolve a síntese puramente subjetiva, de que a outra forneceu espontaneamente os materiais necessários. Mesmo quando a ciência já sentiu a inanidade das causas e fez gradualmente prevalecer as leis, ela aspira tanto quanto a teologia e a metafísica à objetividade completa, sonhando com a universalidade de explicação exterior segundo uma única lei, não menos absoluta que os deuses e as entidades seguindo a utopia acadêmica. A esse respeito, eu devo ingenuamente estender uma palavra de minha última circular que prolonga esse reproche até a mim mesmo, a respeito da minha obra fundamental [o Sistema de filosofia positiva], em que, não fosse senão a esse título, a posteridade não veria, como eu pude já o dizer nobremente, senão uma construção de estréia, um trabalho de primeira vida, não tendendo para a segunda senão no tomo final, todos os outros permanecendo mais ou menos submetidos ao prestígio científico de que somente o estado plenamente religioso libertou-me”.

8.      Eis o trecho da carta de março de 1857, também publicada pelo dr. Audiffrent em 1880[5]:

“O MESTRE – Vejo que apreciastes agora o meu novo volume [Síntese subjetiva], de maneira a utilizá-lo mais do que ninguém. A sua reação geral sobre a vossa final emancipação científica me é sobretudo preciosa, como garantindo a integridade das vossas disposições sintéticas e a sua eficácia religiosa. Sentistes dignamente que a ciência, longe de constituir o estado positivo, limita-se a fornecer-lhe, após a teologia e a metafísica, uma última preparação necessária que, como as outras duas, tem tanto seus inconvenientes como suas vantagens, e torna-se profundamente nociva prolongando-se fora de medida. Para caracterizar a positividade das nossas concepções, é preciso sempre que a sua realidade se combine com a sua utilidade, a qual não é verdadeiramente suscetível de ser julgada senão religiosamente, em virtude da relação de cada parte com o conjunto. Sente-se que a ciência seria menos apta do que a teologia para constituir um estado fixo, pois que o entendimento não poderia nunca tomar para uma verdadeira residência uma simples escala, unicamente apropriada para subir ou descer entre o mundo e o homem, quando as nossas necessidades o exigem, e de modo algum capaz de fornecer-nos um domicílio permanente. É tempo que os verdadeiros teoristas se libertem, a tal respeito, de uma dominação degradante, a fim de poderem dignamente instalar as grandes noções religiosas contra as quais a ciência será em breve insurgida com mais animosidade do que a teologia e a metafísica, porque ela aspira mais a perpetuar o interregno espiritual”

9.      Em suma:

9.1.   A verdadeira positividade é filosófica, relativa e subjetiva

9.1.1.     A verdadeira positividade não se confunde com o cientificismo – aliás, não se confunde nem com a mera ciência

9.1.2.     O que distingue a verdadeira positividade da ciência e do cientificismo são suas vistas gerais, o reconhecimento de que a inteligência é um atributo humano (embora, claro, não exclusivamente nosso) que está e deve estar a serviço do ser humano – portanto, também a utilidade do conhecimento deve limitar e orientar a aplicação da inteligência

9.2.   Essa distinção tem importância evidente para nós, positivistas, mas, como tudo o mais na Religião da Humanidade, tem importância para todos os seres humanos: tratam-se de concepções importantes para a Humanidade em geral e para cada sociedade e indivíduo em particular

9.2.1.     A correção e a justiça das concepções de Augusto Comte – incluindo a retificação formal da lei dos três estados, no sentido de recusar à mera ciência o caráter de positividade – é atestada pelas mais diferentes manifestações filosóficas e políticas feitas desde antes de Augusto Comte, passando por críticos e comentadores de sua época e chegando aos nossos dias

9.2.1.1.           Não apenas comentadores do Positivismo, mas filósofos que refletem em geral afirmam e exigem a ultrapassagem do cientificismo em favor de concepções mais amplas

9.2.1.2.           O Positivismo afirma tais concepções mais amplas com todas as letras mais ou menos desde sempre:

9.2.1.2.1.                A exigência das visões de conjunto, da síntese filosófica, subjetiva e relativa sempre esteve presente

9.2.1.2.2.                A Religião da Humanidade formaliza essa ultrapassagem

9.2.1.2.3.                Por fim, a incorporação formal (mas também substantiva) dessa ultrapassagem na lei dos três estados ocorreu em 1857




[1] Referência à condensação do Sistema de filosofia positiva feito por Harriet Martineau em 1855, em dois volumes, sob o título “A política positiva de Augusto Comte” (The Positive Philosophy of Auguste Comte). O v. 1 pode ser consultado aqui: https://archive.org/details/positivephilosop0000comt/page/n3/mode/2up.

[2] Referência ao documento Premier memóire sur la cosmogonie positive (“Primeira memória sobre a cosmogonia positiva”), conhecido popularmente como Memóire sur la cosmogonie de Laplace (“Memória sobre a cosmogonia de Laplace”), publicado em 1835 por Augusto Comte.

[3] A tradução é minha, a partir da correspondência de Augusto Comte organizada e publicada por Paulo Carneiro e Angèle Kremer-Marietti em 1990.

[4] Augusto Comte usa no original “imaginarité”, no sentido de “imaginação”; essa palavra foi empregada no original para ecoar, ou rimar, tanto “généralité” (generalidade) quanto “rationalité” (racionalidade). Usamos o neologismo “imaginariedade” a partir da palavra “imaginário”, a fim de seguir a rima de Augusto Comte.

[5] A tradução é de Teixeira Mendes, presente em As últimas concepções de Augusto Comte (Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1898, p. 286).

25 maio 2022

Curso livre de política positiva: roteiro da 12ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da duodécima sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 24 de maio, transmitida no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=a086aIR_0Po) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=547214340294348). 


Nessa seção, continuei a exposição sobre a Sociologia Dinâmica, concluindo os comentários sobre a lei prática dos três estados, expondo a lei afetiva (ou da sociabilidade) dos três estados e fazendo observações gerais e conclusivas sobre as três leis.


* * *


Súmula

Sociologia Dinâmica III: lei prática dos três estados (concl.); lei afetiva dos três estados

 

Roteiro

-        Lei prática dos três estados (conclusão):

o   A lei prática dos três estados estabelece que a atividade é primeiro militar conquistadora, depois militar defensiva e por fim pacífico-industrial

o   A afirmação plena da paz industrial requer o relativismo e a ciência, bem como a sua disseminação social e geográfica

§  A indústria por si só existe desde sempre

§  O trabalho e os trabalhadores têm que ser valorizados e dignificados

§  O domínio do homem sobre a natureza tem que ocorrer e isso só é plenamente possível por meio da ciência

§  O relativismo também tem que prevalecer, a fim de deixar para trás o absolutismo político e moral, a desvalorização da vida, o estímulo à guerra e à violência

-        Sociologia Dinâmica III: os três estados dos sentimentos: família, pátria, Humanidade

o   A lei dos três estados dos sentimentos refere-se não tanto aos sentimentos em si mesmos, mas aos âmbitos superiores de sociabilidade ou, em outro sentido, de vinculação social e afetiva

§  Há uma correspondência entre os âmbitos da sociabilidade e os sentimentos altruístas: família à veneração; pátria à apego; Humanidade à bondade

§  Além disso, há que se notar que, ao mesmo tempo, os âmbitos de sociabilidade têm diferentes fundamentos no que se refere à natureza humana:

·         Família: vínculos afetivos

·         Pátria: vínculos práticos (economia e política)

·         Humanidade: vínculos intelectuais (religião)

o   A seqüência família, pátria, Humanidade é rigorosamente histórica, embora, como ocorre com as outras leis dos três estados, seja necessário apreendê-la em grandes períodos temporais

§  Vale notar que mesmo em momentos de afirmação das pátrias ocorreram vislumbres da noção de Humanidade

·         Isso é possível de notar nos gregos e, ainda mais, entre os romanos

§  Considerando o caráter masculino (e bélico) da palavra “pátria”, Augusto Comte sugeria a sua substituição, no estado normal, por “mátria”

o   Uma particularidade da lei afetiva dos três estados é que ela, ao contrário das duas leis anteriores, permite a coexistência dos três estados

§  Essa coexistência evidentemente é compatível com a coexistência dos três instintos altruístas

§  No caso das duas leis anteriores, os estados preliminares têm que ser ultrapassados e convictamente deixados para trás: temos que ultrapassar e rejeitar o absolutismo teológico-metafísico e também o militarismo

§  A coexistência dos três estados afetivos não significa, todavia, mera justaposição: ela implica a subordinação sucessiva dos âmbitos de sociabilidade: as famílias subordinam-se às pátrias (ou mátrias) e estas subordinam-se à Humanidade

-        Há alguns aspectos adicionais que devem ser indicados a respeito das leis dos três estados:

o   Cada uma das leis indica uma tendência importante por si só, mas a reunião e a combinação delas elabora um quadro cada vez mais completo, complexo e específico da realidade histórica humana

o   É fácil perceber que os três estados finais e os três estados iniciais são solidários entre si:

§  O relativismo, a noção de Humanidade e a atividade pacífico-industrial apoiam-se e são condições uns dos outros; inversamente, o mesmo pode ser dito do absolutismo, das sociabilidades inferiores e do militarismo

§  Em outras palavras, essa mútua solidariedade significa que a plena realização do estágio final de cada lei implica e exige a realização do estágio final das outras leis: por exemplo, a noção de Humanidade exige o relativismo e enseja a atividade pacífica

o   As leis dos três estados correspondem a tendências gerais da evolução humana:

§  A idéia de tendência indica que elas são direções gerais, que variam em intensidade e mesmo em direção ao longo do tempo: assim, às vezes elas andam mais rapidamente, às vezes são mais lentas; às vezes vão na direção das leis, às vezes sofrem recuos temporários

§  Augusto Comte usava a imagem das curvas assintóticas, que tendem para uma posição no infinito, mas que nunca chegam plenamente ao limite indicado

§  No limite, todos os povos seguirão voluntariamente as leis dos três estados; mas, em todo caso, diferentes temperamentos e necessidades conduzem a comportamentos diversos à daí a necessidade da pressão coletiva em favor das leis, seja a pressão temporal (política), seja a pressão espiritual (intelectual e moral)

Curso livre de política positiva: vídeo da 12ª sessão

No dia 24 de maio ocorreu a duodécima sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista.

Nessa seção, continuei a exposição sobre a Sociologia Dinâmica, concluindo os comentários sobre a lei prática dos três estados, expondo a lei afetiva (ou da sociabilidade) dos três estados e fazendo observações gerais e conclusivas sobre as três leis.

O vídeo pode ser visto no canal Positivismo (disponível aqui: https://youtu.be/a086aIR_0Po) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=547214340294348). 

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.

18 maio 2022

Curso livre de política positiva: vídeo da 11ª sessão

No dia 17 de maio ocorreu a undécima sessão do Curso livre de política positiva, com transmissão ao vivo no canal do Facebook Apostolado Positivista.

Nessa seção, continuei a exposição sobre a Sociologia Dinâmica, abordando em particular, a lei prática dos três estados. Além disso, também fiz referência à data que Augusto Comte indicava como a fundação da Religião da Humanidade (16.5.1845) e ao nascimento de Luís Lagarrigue (16.5.1864).

O vídeo pode ser visto no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=h-gFTVJE63s) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/watch/live/?ref=watch_permalink&v=2458462924293644). 

A programação completa do Curso pode ser vista aqui.

Curso livre de política positiva: roteiro da 11ª sessão

Reproduzo abaixo o roteiro da undécima sessão do Curso livre de política positiva, ocorrida no dia 17 de maio, transmitida no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=h-gFTVJE63s) ou no próprio canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/373899144707386/). 


Nessa seção, continuei a exposição sobre a Sociologia Dinâmica, abordando em particular, a lei prática dos três estados. Além disso, também fiz referência à data que Augusto Comte indicava como a fundação da Religião da Humanidade (16.5.1845) e ao nascimento de Luís Lagarrigue (16.5.1864).


* * *


Súmula

Sociologia Dinâmica II: a lei dos três estados da atividade: guerra conquistadora, guerra defensiva, paz industrial

 

Roteiro

-        Recordação de datas históricas: aniversário de Luís Lagarrigue (16.5.1864)

-        Recordando alguns elementos da sessão anterior: as leis dos três estados são leis sociológicas, tanto explicativas quanto “compreensivas”

o   A formulação final da lei intelectual dos três estados, afirmando o relativismo, acaba religando de maneira clara o final da carreira de Augusto Comte com o seu início, quando afirmou que “tudo é relativo, eis a única verdade absoluta”

-        Sociologia Dinâmica II: a lei dos três estados da atividade: guerra conquistadora, guerra defensiva, paz industrial

o   A segunda lei dos três estados estipula que as grandes civilizações e, de maneira mais ampla, a Humanidade passa por três etapas em suas atividades práticas: as guerras de conquista, as guerras de defesa e a atividade pacífica e industrial

o   Essa seqüência é ao mesmo tempo lógica e histórica e é ilustrada de maneira particular no Ocidente pela sucessão Grécia, Roma, Idade Média, modernidade:

§  As guerras de conquista estabelecem um território amplo unificado; em seguida, as guerras de defesa protegem externamente o território conquistado, que, internamente, busca a paz; por fim, as relações internacionais deixam de lado as guerras para cederam lugar à paz

§  A história de Roma chega a ser didática no que se refere à passagem das guerras de conquista para as guerras de defesa: essa alteração ocorreu justamente quando a República cedeu lugar ao império; Júlio César foi o grande nome dessa transição (muito mais que Otávio Augusto)

o   A mudança do padrão de comportamento coletivo, da guerra para a paz, implica necessariamente mudanças de valores e de “mentalidades”: a honra cede lugar ao conforto, o trabalho passa a ser valorizado, a vida passa a ser valorizada, a cooperação substituição a disputa

§  A escravidão, o militarismo, a violência, o butim cedem lugar ao trabalho livre, à tolerância, à busca de consenso e de mediação, às trocas e às dádivas

§  Os exércitos cedem lugar à polícia para a manutenção da ordem pública

o   Estritamente nesse esquema, a guerra tem um caráter civilizador

§  Com “caráter civilizador” o que se quer dizer é que, nesse esquema, a guerra desempenha um papel histórico, ao permitir que o ser humano desenvolva-se e caminhe para a paz

§  As guerras de extermínio anteriores (por exemplo, as guerras indígenas) e as guerras de conquista posteriores (por exemplo, o imperialismo europeu) não entram nesse esquema

·         As guerras tribais não têm papel civilizador (o que não significa que não desempenhem nenhum papel cultural e/ou político)

·         As guerras modernas de conquista não colaboram com a paz nem estimulam o desenvolvimento humano, apenas a violência, o egoísmo coletivo e a rapacidade

o   No âmbito estritamente nacional, as guerras apresentam um caráter altruísta e as habilidades próprias à liderança são facilmente perceptíveis

§  Essas duas características tornam ambíguas a guerra, especialmente no período moderno e em comparação com as atividades industriais, em que o caráter altruísta e as habilidades necessárias para o bom cumprimento das responsabilidades industriais são menos evidentes

o   De qualquer maneira, vale em relação às atividades militares e pacíficas a observação geral de Augusto Comte: as concepções impassíveis de comprovação estão sempre próximas das ordens indiscutíveis

§  Ou seja, o absolutismo filosófico está sempre próximo do autoritarismo e da violência e, inversamente, o relativismo está próximo da tolerância e da possibilidade pública de discussão