26 outubro 2019

Gazeta do Povo: "Conservadores brasileiros rumo ao desastre"

O artigo abaixo foi publicado em 24.10.2019 no jornal curitibano Gazeta do Povo. A versão eletrônica do texto está disponível aqui.

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Os conservadores brasileiros rumo ao desastre

Os conservadores brasileiros estão à deriva: eu fiz essa observação em 1º de abril de 2018 e, desde então, os problemas apenas se acentuaram. Na verdade, a deriva diminuiu, mas a direção seguida pelos conservadores nacionais não poderia ser pior e mais desastrosa. Senão, vejamos.

Antes de mais nada, o conservadorismo não é necessariamente contra o “progresso”, embora seja ambíguo a respeito. O que o conservador deseja é o respeito às tradições e as mudanças temperadas pela cautela; as mudanças devem ser graduais, para que seus efeitos positivos e negativos sejam avaliados e, conforme for, sejam feitas alterações institucionais. As tradições, nesse sentido, são vistas como o fruto da sabedoria acumulada ao longo dos séculos: modificá-las é possível, mas não necessariamente desejável.

Ora, essa concepção de conservadorismo é inglesa, refletindo sem dúvida o desejo de manter o status quo, particularmente a vitória dos barões feudais sobre a monarquia centralizada, na forma do parlamentarismo, em 1688. Essa vitória foi em si mesma uma alteração profunda (não por acaso foi chamada de “Revolução Gloriosa”) e pôs termo a um século de crises políticas e sociais, em um país cuja história foi marcada por golpes, guerras civis, guerras externas, colonialismo etc., conforme Shakespeare exemplifica à farta para o período entre o final da Idade Média e o início da Idade Moderna.

O que importa notar do que se vê acima é que o conservadorismo britânico não é estranho às mudanças sociopolíticas, embora seja-lhe arisco. A Inglaterra modificou-se – e bastante – desde 1688, com a inclusão política de inúmeros grupos que não participavam da vida política na época da ascensão de Guilherme III: os trabalhadores, as mulheres, os católicos (!); um gigantesco império ultramarino foi criado, mantido e desfeito nesses mais de 300 anos. Aliás, chega a ser notável o fato de que mesmo o conservadorismo britânico não se opôs, nem desmontou, a estrutura do Welfare State criada após 1945, a despeito da virulenta retórica ultraliberal de M. Tatcher. Ao mesmo tempo, assim como pautas “esquerdistas” foram incorporadas à agenda política britânica, um traço aristocrático difundiu-se pela sociedade: o respeito às diferenças filosóficas, religiosas e intelectuais, bem como o respeito às divergências políticas, consubstanciado na fórmula “agree to disagree”. Juntamente com a desconfiança em relação às mudanças (em particular as planejadas), os conservadores mantêm uma desconfiança a respeito das posturas “ideológicas”.

O conservadorismo brasileiro, claro, não tem obrigação nenhuma de ser como o britânico; mas, no presente caso, o que poderia ser a manifestação da autonomia nacional prenuncia uma situação terrível, um verdadeiro desastre. Comparando o atual conservadorismo brasileiro – que, aliás, ocupa o poder em nível nacional – com o conservadorismo britânico, o que se evidencia é que o único traço comum é a valorização das “tradições”; fora isso, os conservadores brasileiros são intensamente “ideológicos”, fazem questão de realizar uma “revolução” sociopolítica (à direita), não se preocupam em preservar legados, não percebem a história brasileira como o esforço coletivo das gerações precedentes para o benefício coletivo – e, acima de tudo, são intolerantes e consideram que discordar deles é sinal de má-fé ou de problemas mentais.

Em meados de outubro ocorreu em São Paulo a versão brasileira da CPAC (Conservative Political Action Conference), de origem estadunidense. Ao contrário dos conservadores britânicos, os estadunidenses inspiram os brasileiros nesses péssimos traços indicados acima. Talvez devido ao peso que a teologia tem nos Estados Unidos, talvez como reflexo do ranço racista existente lá, o fato é que os conservadores brasileiros reunidos na CPAC – aliás, por que os conservadores brasileiros mantiveram o título em inglês, se estamos no Brasil? – esforçaram-se para espelhar a virulência que os conservadores estadunidenses apresentam atualmente. Três ministros de Estado fizeram questão de participar do evento organizado ostensivamente pelo terceiro filho do atual Presidente da República; esses ministros foram bastante ambíguos em suas atuações, revelando qualquer coisa menos respeito ao bem público, ao republicanismo, quando se valeram de suas posições institucionais como ministros de Estado – agentes responsáveis pelo bem comum de todo o país – mas manifestaram-se como integrantes e defensores de uma parcela específica da população brasileira. Em outras palavras, esses ministros foram literalmente partidários; ou, considerando que eles valorizam a teologia cristã, eles foram especialmente sectários.

Elementos básicos da tradição ocidental foram negados com veemência, até mesmo com raiva: o racionalismo, o empirismo, o naturalismo próprios ao Iluminismo foram considerados desprezíveis pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; aliás, ele também considerou de somenos importância o fim da sociedade de castas realizado pela Revolução Francesa. A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, Damares Alves, deu continuidade à divulgação de boatos, desinformações e fake news, sugerindo que em ambientes não conservadores há o consumo em regra de maconha e a introdução sistemática de crucifixos nas vaginas (!). Mas em um tal festival de disparates semioficiais, o maior veio logo do Ministro da Educação, Abraham Weintraub: ele disse que a esquerda é uma “doença”, aliás similar à sida/aids: ora, as doenças têm que ser exterminadas e, de qualquer modo, elas correspondem à anormalidade dos organismos; no caso específico da sida/aids, é uma doença fatal. Na fala do Ministro da Educação, não há nada de tolerância, de respeito, de “agree to desagree”, mas violência, incitação à agressividade, a sugestão de que quem é não conservador, isto é, quem é de “esquerda”, é doente, ou melhor, é a própria doença.

Fala-se muito na necessidade de constituir-se um partido de “direita” no Brasil, em oposição à “esquerda”; nesse caso, a “direita” é tomada como sinônima de “conservadorismo”. A relação entre “direita” e conservadorismo é algo a ser discutido, mas a proposta em si pode ser bastante interessante e pode vir a satisfazer uma necessidade sociopolítica nacional. Entretanto, esse novo e atual conservadorismo, constituído como está, defendendo idéias como as indicadas há pouco, será desastroso para o país: são idéias retrógradas (não por acaso, identifica-se como “conservador” e participou do CPAC um deputado federal que é descendente de d. Pedro II e que já defendeu na Câmara dos Deputados nada menos que a escravidão no Brasil), são boatos e desinformações, são incitações à violência de cidadãos contra cidadãos. Esse conservadorismo altamente ideológico e raivoso não tem como dar certo; não é mais um conservadorismo à deriva: ele aponta com clareza para o abismo.


Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e Sociólogo da UFPR.

20 outubro 2019

Comemoração do nascimento de Benjamin Constant, o Fundador da República Brasileira

No dia 11 de Descartes de 48 (18 de outubro de 1836) - no dia de Vauvenargues - nascia em Niterói (então capital da província do Rio de Janeiro) Benjamin Constant Botelho de Magalhães. Seu nome foi uma homenagem que seu pai rendeu ao pensador liberal franco-suíço Benjamin Constant (1767-1830), falecido alguns anos antes e que produziu algumas reflexões políticas memoráveis, como a famosa conferência pronunciada no Athenée Royal em 1819, Da liberdade dos modernos comparada à dos antigos.


Benjamin Constant Botelho de Magalhães
Fonte: Wikipédia.

Como muitas pessoas de sua época, Benjamin Constant Botelho de Magalhães ingressou no Exército devido às difíceis condições econômicas de sua família, seguindo a carreira técnica como engenheiro e preferindo, acima de tudo, a docência. Participou da Guerra da Tríplice Aliança (a Guerra do Paraguai, 1865-1870) por um curto período de tempo - 1866-1867 -, voltando à Corte devido a problemas de saúde. Durante sua presença no campo de batalha redigiu cartas pessoais em que considerava de maneira bastante negativa a condução da guerra e a atuação do futuro Duque de Caxias.

Foi professor de Matemáticas em diversas escolas superiores, como a Escola Politécnica, onde teve inúmeros alunos ilustres, entre os quais os futuros Diretor e vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil, respectivamente Miguel Lemos (1854-1917) e Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927), além do engenheiro e escritor Euclides da Cunha (1866-1909) e do engenheiro militar e indianista Cândido Mariano da Silva Rondon (1865-1958), o "Marechal da Paz".

Chegou a ser tutor dos netos de d. Pedro II. Inteligência brilhante e professor de altíssimas qualidades didáticas, foi aprovado em primeiro em três concursos para o magistério superior; nessas três ocasiões, a despeito de apresentar-se como "sábio", como "cultor das artes e das ciências", como "estadista", o Imperador nomeou para os cargos os candidatos que tinham ficado em segundo lugar, preterindo o mérito docente e intelectual de Benjamin Constant.

Desde cedo perfilhou o Positivismo e a Religião da Humanidade; em suas cartas escritas na frente paraguaia, Benjamin Constant refere-se ao Positivismo como sendo "a minha religião". A modernidade, a clareza, o altruísmo, o republicanismo pregados pelo Positivismo, somados ao caráter honesto e reto de Benjamin Constant levaram a ser altamente respeitado por seus alunos da Escola Militar. Além disso, perfilhava com o Positivismo o combate à escravidão, o que tornava toda sua atuação intelectual motivo de respeito e também de interesse político.

Docência, abolicionismo e republicanismo

Os sacrifícios que os soldados brasileiros fizeram durante a Guerra da Tríplice Aliança foram desprezados pelos governantes após 1870; ao mesmo tempo, o republicanismo e o abolicionismo tornaram-se temas da pauta pública a partir daquela data. O desrespeito do governo ao Exército configurava-se de diversas maneiras: a existência paralela da Guarda Nacional, de caráter civil e miliciano, embora de muito mais prestígio; a vedação à participação política franca dos militares, embora os oficiais fossem constantemente chamados a ocupar cargos públicos; os baixos salários, a falta de preparo e o baixíssimo prestígio do Exército.

Na década de 1880 houve sérios problemas políticos entre os civis e alguns militares que externavam opiniões políticas, no que foi chamado de "Questão Militar". O baixo prestígio geral de que a tropa gozava uniu-a corporativamente e levou os militares paulatinamente a oporem-se ao governo, senão à própria monarquia.

Em 1887 as duas grandes partes do Exército - os "troupiers", a gente sem formação teórica mas habituados à vida militar, e os "doutores", os militares formados nas escolas superiores - criaram em conjunto o Clube Militar, por meio da associação e da amizade pessoal dos dois grandes líderes de cada uma dessas partes: Deodoro da Fonseca, Presidente do Clube, e Benjamin Constant, vice-Presidente da associação. O Clube Militar tornou-se o órgão político do Exército; uma de suas primeiras medidas foi negar o apoio ao escravagismo da monarquia, ao recusar-se a caçar os escravos fugidos.

O papel de liderança intelectual, moral e política levou Benjamin Constant a tornar-se líder do movimento republicano, em especial pondo-se à frente dos cadetes da Escola Militar que ansiavam, justamente, um líder da modernidade, do esclarecimento, do republicanismo, da abolição da escravatura.

Assim, se na manhã de 15 de novembro de 1889 foi Deodoro da Fonseca quem fez a proclamação da República, foi Benjamin Constant quem articulou o movimento, quem convenceu Deodoro, quem evitou a violência.

Deposta a monarquia, Benjamin Constant integrou o governo provisório na pasta da Guerra (novembro de 1889 a março de 1890) e, em seguida, na recém-criada pasta da Instrução Pública (março de 1890 a janeiro de 1891).

Foi um dos principais responsáveis pela separação entre igreja e Estado no Brasil - estabelecida pelo Decreto n. 119-A, de 7 de janeiro de 1890 - e também pela nossa atual bandeira nacional (de autoria de Teixeira Mendes, com arte de Décio Villares) - estabelecida no dia 19 de novembro de 1889.

Morto em 22 de Moisés de 103 (22 de janeiro de 1891), recebeu o título de "Fundador da República Brasileira" pela Constituição de 24 de fevereiro de 1891. Como foi Diretor do Instituto de Meninos Cegos, essa instituição recebeu em 1891 o nome de Instituto Benjamin Constant. Além disso, a casa em que morava no bairro carioca de Santa Tereza virou o Museu Casa de Benjamin Constant. Em 1926 foi inaugurado na Praça da República um monumento em homenagem a Benjamin Constant, de autoria dos artistas positivistas Décio Villares e Eduardo de Sá.


Inauguração do monumento a Benjamin Constant na Praça da República, em 1926.
Fonte original: revista O Malho. Reproduzido de Inventário de Monumentos do Rio de Janeiro (http://inventariodosmonumentosrj.com.br/?iMENU=catalogo&iiCOD=66&iMONU=Benjamim%20Constant).


Importância histórica e legado de Benjamin Constant

Logo após sua morte, Raimundo Teixeira Mendes publicou uma alentada biografia em dois volumes, intitulada Benjamin Constant: esboço de uma apreciação sintetica da vida e da obra do fundador da República Brazileira (disponível aqui) - biografia que, aliás, permanece como a maior e melhor obra sobre a vida de Benjamin Constant até hoje

Observava Teixeira Mendes que Benjamin Constant não era um positivista completo nem seguia sempre as orientações de Augusto Comte, nem mesmo demonstrava a energia necessária em todos os momentos; mas, a despeito desses defeitos, ele mostrou-se à altura das necessidades do momento, em particular em 1889, além de sempre se ter afirmado positivista e adepto da Religião da Humanidade.

De nossa parte, queremos enfatizar que a atuação de Benjamin Constant era positiva e seguia o Positivismo em alguns aspectos centrais, que servem de exemplo até - e mesmo principalmente - nos dias de hoje:

1) afirmava a decadência social do militarismo;

2) afirmava a liberdade de pensamento e de expressão;

3) afirmava a preeminência social, intelectual e moral do pacifismo;

4) afirmava a necessidade da cultura afetiva juntamente com o conhecimento científico e a atividade produtiva.

Em outras palavras, embora devido às suas necessidades materiais fosse um militar de carreira, Benjamin Constant não era militarista e, entendendo o sentido histórico da civilização ocidental, compreendia que o pacifismo e as liberdades de pensamento e de expressão constituem os traços permanentes de nossas sociedades. 

Nesse sentido, por exemplo, propunha a doutrina do soldado-cidadão, em que o soldado deveria antes de mais nada ser um cidadão, um membro produtivo, pacífico e respeitador das leis - ao contrário do que, duas décadas depois, Olavo Bilac proporia, afirmando que os cidadãos deveriam ser soldados. Não é à toa que o ensino de Benjamin Constant tenha sido, depois, ao longo do século XX, combatido ativamente por militares que se revelariam fascistas, golpistas e autoritários - militares como Góes Monteiro, Eurico Gaspar Dutra, Olympio Mourão Filho, Cordeiro de Farias (entre muitos outros), vinculados à "Liga da Defesa Nacional", à revista A Defesa Nacional e, acima de tudo, às missões militares alemãs e francesas.

11 outubro 2019

Luís Lagarrigue: "Sinais sociolátricos"

A imagem abaixo foi recentemente encontrada na Casa de Augusto Comte (Maison d'Auguste Comte), em Paris, e compõe-se de fotos do positivista ortodoxo chileno Luís Lagarrigue (1864-1949) fazendo sinais sociolátricos com as mãos.




A série de imagens tem o título "Sinais sociolátricos". O texto que segue diz o seguinte:
[SINAIS SOCIOLÁTRICOS] Espontaneamente formados com o auxílio das mãos por diferentes povos, ao longo das épocas e utilizado para o culto positivista pelo sr. Luís LAGARRIGUE, no Círculo Proletário Sociocrático de SANTIAGO do CHILE.
No sentido anti-horário, as legendas dos sinais indicados dizem o seguinte:
N. 1 - Abstinência
N. 2 - Castidade
N. 3 - Relaxamento (a tradução literal é "abandono")
N. 4 - Paz
N. 5 - Trabalho
N. 6 - Submissão
N. 7 - Moléstia
N. 8 - Apego
N. 9 - Veneração
N. 10 - Bondade
As imagens centrais têm por legenda a fórmula sagrada do Positivismo: "O amor por princípio e ordem por base; o progresso por fim".

08 outubro 2019

Redes sociais, infantilização, críticas e "haters"

As redes sociais têm muitos aspectos positivos, mas, infelizmente, nos últimos anos são os aspectos negativos que, merecidamente, têm recebido destaque.

Um desses aspectos negativos é a infantilização que ela realiza.

A infantilização não é apenas tornar diretamente as pessoas mais infantis; ela também consiste em tornar os adultos menos responsáveis, isto é, menos adultos. No final, os dois processos encontram-se ao tornarem as pessoas mais bobocas e bem menos à altura das necessidades sociais e individuais.

Pois bem: um dos traços da infantilização como menos maturidade, da infantilização como tornar as pessoas menos adultas, é o uso da expressão "hater" ("odiador") para designar qualquer pessoa que faz críticas a outra(s).

Evidentemente, entre as pessoas que fazem críticas há sempre quem manifeste ódio a pessoas, grupos, idéias, práticas; mas daí a usar de maneira sistemática o hater para referência a toda e qualquer crítica é equivalente a exigir que todo comentário seja sempre de elogio.

Da mesma forma, isso ignora que, embora não seja nada ideal, na vida há muitos casos, situações, idéias que devem, sim, ser objeto de ódio ou, pelo menos, de forte repulsa (o nazismo é um exemplo fácil disso).

Não dá. A vida não é um programa de auditório nem é um concurso de popularidade. Fazer críticas não é ser hater; mas, inversamente, exigir que toda crítica seja sempre a manifestação de um hater é o sinal mais claro de infantilização.