Mostrando postagens com marcador serviço público. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador serviço público. Mostrar todas as postagens

02 junho 2021

A contra-reforma administrativa como ausência de projeto nacional de nossas péssimas elites

O texto abaixo é um manifesto em favor de uma alteração profunda na sensibilidade, na mentalidade e nos comportamentos das elites brasileiras, no sentido de que voltem a preocupar-se com o conjunto da população e também com o desenvolvimento nacional. O que se tem visto nas últimas quatro décadas é a abdicação total de um projeto de desenvolvimento, querendo com isso que nossos problemas sociais magicamente desapareçam - isso, claro, quando as nossas elites têm, de fato, alguma preocupação com a população. Mas sem desenvolvimento nacional não teremos solução para os problemas sociais; isso não deveria nunca ter sido esquecido ou negado e, portanto, é urgente que as elites abandonem o ultraliberalismo especulativo e voltem a investir em projetos de desenvolvimento real.

Uma versão resumida do texto abaixo foi publicada na grande imprensa, em fevereiro de 2021; ela pode ser lida na postagem "Contra alguns mitos da 'reforma administrativa'".

*   *   *

A contra-reforma administrativa como ausência de projeto nacional de nossas péssimas elites


A tragédia global e nacional que caracterizou o ano de 2020 deveria reverter-se em várias lições para o conjunto da sociedade, pelo menos no Brasil; entretanto, o início de 2021 já dá sinais de que nós, brasileiros, teimamos em não querer aprender com nossos erros e com nossas tragédias. A retomada, mais uma vez, da proposta de “reforma administrativa” é exemplar nesse sentido[1].

A “reforma administrativa” prevê a alteração radical de diversos dispositivos que regram a estrutura do Estado brasileiro, em particular no que se refere à contratação e à manutenção de servidores. O principal advogado dessa “reforma” é o Ministro da Economia, Paulo Guedes: ultraliberal[2], em inúmeras ocasiões ele já demonstrou desprezar os servidores públicos (considerados por ele como “parasitas”), querer reduzir o Estado ao mínimo dos mínimos (de preferência mantendo apenas a Casa da Moeda, o Banco Central e, claro, as Forças Armadas – todo o “resto” sendo julgado desnecessário e envenenador da “iniciativa privada”) e não ter nenhum problema em conjugar seu “liberalismo” com o autoritarismo (não é por acaso que ele estima Pinochet). Para Guedes, os mesmos servidores públicos que desenvolvem vacinas contra o coronavírus 2, que estão na linha de frente do combate à pandemia, que mantêm a ordem pública, que em condições dificílimas lecionam à distância no ensino virtual; enfim, para Guedes, todos esses servidores públicos não são vistos como constituindo uma infraestrutura pública indispensável à manutenção mínima de uma ordem social que entenda os brasileiros como cidadãos, mas são apenas e tão-somente gastos que devem ser reduzidos, quando não extintos, sem maiores preocupações além de “não nos endividarmos”. Esse ultraeconomicismo de Paulo Guedes – que, no final das contas, é apenas um economicismo simplista e rasteiro, totalmente antissociológico e anticívico – é tão acentuado que ele considera a atividade política (os debates públicos, as trocas de idéias, as disputas (pacíficas!) entre grupos organizados) como impedimentos sistemáticos à produção econômica; mesmo em termos de economia, para ele os verdadeiros agentes são apenas os patrões: os sindicatos, nesse sentido, não são órgãos importantes de representação de interesses legítimos, mas a institucionalização do corporativismo mais grosseiro e do combate ao lucro privado, além de serem mais uma forma de a “política” atravancar a “economia”; não por acaso, Paulo Guedes sonha em proibir os sindicatos de servidores públicos e em demitir os servidores sindicalizados!

Os valores profundos que orientam Paulo Guedes deveriam bastar para convencer qualquer cidadão honesto e sensato de que a reforma administrativa deve ser entendida com extrema cautela, especialmente quando se afirma que ela buscará maior eficiência administrativa. Na verdade, há muito tempo já virou um chavão dizer-se que os problemas do serviço público são de “gestão”: “choque de gestão”, “fazer mais com menos”, “apertar o cinto” – essas e outras frases feitas inundam periodicamente as páginas de jornais e os discursos políticos, em particular durante campanhas eleitorais. A imprecisão e a vagueza dessas expressões, somadas à impressão de modernidade que elas sugerem, garantem parte do seu sucesso; a busca de “criticidade”, o uso sistemático de sofismas e vários exemplos (ainda que dispersos e descontextualizados) completam o quadro.

Comparando os trabalhadores públicos e privados

Como dissemos no início do artigo, o ano de 2020 deveria dar-nos inúmeras lições a respeito, tanto negativas quanto positivas; mas, no fundo, o governo Bolsonaro, desde o seu início, também tem sido pródigo em importantes lições para o encaminhamento da “reforma administrativa”. Senão, vejamos.

Em primeiro lugar, não se pode dizer que o Estado brasileiro é “grande demais”; na verdade, seja em termos de quantidade de servidores públicos, seja em termos de gastos com pessoal, o Brasil está longe de ser “grande”. O tamanho do Estado tem que ser medido pela quantidade e pela qualidade de serviços públicos prestados: ora, por qualquer parâmetro, o que se percebe é que a estrutura pública disponível para os serviços públicos é insuficiente para as necessidades nacionais (cf. IPEA, s/d; CARDOSO JR., 2011; LASSANCE, 2017; PIRES, LOTTA & OLIVEIRA, 2018). Os serviços mais evidentes já o ilustram: professores, médicos, enfermeiros, peritos previdenciários etc., sua quantidade está longe de ser suficiente. Os problemas suscitados pela pandemia de covid-19 estão escancarando essa insuficiência brutal.

Mas as necessidades públicas supridas pelos servidores públicos não são todas, nem necessariamente, de entrega imediata: basta pensarmos nas pesquisas científicas feitas nos laboratórios nacionais, que buscam desde vacinas totalmente nacionais contra o coronavírus até técnicas mais baratas e eficientes de produção de álcool 70%; ou, então, as pesquisas de longo prazo e a fundo perdido feitas pela Petrobrás para a extração do petróleo na camada pré-sal; ou as pesquisas feitas pela Embraer para o desenvolvimento de uma indústria aeronáutica nacional de ponta: esses são apenas alguns exemplos banalizados e que deveriam ser levados mais a sério.

Os exemplos acima deveriam lembrar-nos de que as necessidades sociais brasileiras não são pequenas, não são de curto prazo nem são estritamente econômicas; inversamente, isso lembra (ou deveria lembrar) que o Estado brasileiro não pode ser entendido meramente como o “regulador neutro do ambiente de negócios”; como representante prático e realizador concreto do “interesse nacional”, o Estado tem a obrigação de realizar mudanças necessárias na sociedade (em conformidade com a opinião pública, claro está) e também a de orientar em grandes linhas a atividade econômica. Entretanto, desde a crise da dívida na década de 1980, progressivamente o Estado brasileiro abdicou de sua função de orientar os rumos do país: a abertura econômica indiscriminada e, em particular, a abertura financeira são a expressão disso. Os resultados dessa progressiva omissão pública nos rumos do país não poderiam ser piores: a progressiva desindustrialização nacional, a reversão da economia brasileira à condição de exportador de commodities para os países mais industrializados (agora, em particular, para a China), a diminuição brutal dos empregos de qualidade e a multiplicação de trabalhos cada vez piores (cf. BENJAMIN, 2015)... embora em si mesma tenha sido chocante a afirmação de Paulo Guedes de que o auxílio emergencial contra a pandemia “revelou 38 milhões de miseráveis antes ocultos” (cf. CHAIB & URIBE, 2020), o fato é que a omissão estatal após os anos 1980 é plenamente compatível com a ignorância desses 38 milhões de subcidadãos.

Os servidores públicos, portanto, têm um papel central na realização de algo que está meio fora de moda, mas que deveria voltar aos debates públicos: um “projeto de país”. É claro que a centralidade dos servidores no projeto nacional deve ser entendido tanto como a descrição de um fato quanto o enunciado de um juízo de valor, ou seja, os próprios servidores públicos têm que se compenetrar de sua importância para o país e adotar essa relevância como um verdadeiro guia ético para suas condutas profissionais.

Passamos, então, à estabilidade dos servidores: simplesmente não se deveria pô-la em questão. A perseguição político-ideológica, realizada com freqüência de maneira raivosa, levada a cabo pelo governo Bolsonaro (a bem da verdade, como é de conhecimento público, realizada em inúmeras vezes pelo próprio Presidente da República!) é a própria justificativa para a existência da estabilidade. Não se trata de um “privilégio” do funcionalismo público, que se erige em casta, contra a instabilidade do setor privado, mas a garantia de que os servidores públicos exercerão um serviço profissional e, ainda mais, que eles não estarão sujeitos aos humores dos governantes do momento. Desde 2019 assistimos no Brasil à demissão de Ricardo Galvão do cargo de Presidente do INPE (Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais), à exoneração de José Olímpio Augusto Morelli da chefia do Centro de Operações Aéreas do Ibama (Instituto Brasileiro do Meio Ambiente) e a muitas outras situações semelhantes apenas porque, no primeiro caso, o servidor divergiu publicamente de afirmações do Presidente da República e de seu entorno palaciano e, no segundo caso, porque o servidor cumpriu o seu dever e multou o Presidente, então mero Deputado Federal, por pescar em área proibida (em 2012): esses são apenas dois exemplos entre muitos que ocorrem também em níveis inferiores e com menor visibilidade, em que os servidores têm sido punidos porque os governantes em exercício não gostam deles e que só não perderam os respectivos empregos porque são concursados e gozam de estabilidade[3]. (Eu mesmo, se não fosse a estabilidade funcional, estaria correndo o risco de demissão, apenas por manifestar minha opinião neste artigo.) Por fim, convém lembrarmos o desejo – anticonstitucional, diga-se de passagem – expresso pelo Ministro da Economia de demitir todos os servidores públicos que sejam sindicalizados. (Referindo-se a outro ambiente e a outra época, o historiador Richard Evans (2017) mostrou que o partido nazista expandiu-se no setor público alemão e dizimou os outros partidos políticos, em particular o comunista e o social-democrata, entre outras medidas, ao demitir sumariamente todos os filiados a qualquer outro partido.) A estabilidade dos servidores públicos, portanto, não é um luxo: é a garantia mínima de que eles poderão trabalhar para o bem comum sem sofrerem pressões ilegítimas e imorais.

Também se afirma que os servidores públicos “ganham muito”, com o juízo implícito de que tais “grandes salários” seriam ultrajantes. O ultraje não está tanto no “ganhar muito”, mas na comparação com o setor privado, cujos trabalhadores supostamente ganhariam bem menos. O problema é que essa comparação é extremamente superficial, tomando-se uma simples média aritmética dos gastos do setor público com alguma média do setor privado; assim, comparam-se duas coisas que, aparentemente, seriam homogêneas, quando, na verdade, elas não são homogêneas (cf. IPEA, s/d; ROSSI & BUONO, 2020). Vale notar que essa comparação baseia-se nas concepções, implícitas ou explícitas, de que o setor privado corresponde ao “mercado”, que os salários pagos pelo “mercado” são mais verdadeiros e que, por isso, os salários pagos no setor privado são mais “justos”. Ora, isso está longe de ser verdade, em particular porque a noção de salário justo é o que está na base da proposta do salário mínimo – e todos sabemos que o salário mínimo oficial no Brasil é violentamente baixo e que uma quantidade descomunal de brasileiros não recebe nem esse salário mínimo oficial (são muitíssimos mais que os 38 milhões de invisíveis do dr. Paulo Guedes).

Se as médias comparadas entre o setor público e o privado não são homogêneas, é importante então as entender de maneira heterogênea. Tanto em um setor quanto no outro, quem está no início de carreira recebe bem menos que quem está no final da carreira; da mesma forma, quem exerce cargo de chefia recebe mais que quem está nas posições mais humildes. O setor público, por um lado, divide-se em três ou quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e o Ministério Público) e em três níveis federativos (nacional ou federal, estadual e municipal). Todos os estudos sérios sobre o setor público indicam que a quantidade de servidores aumenta quando passamos do nível federal para o nível municipal, mas que os salários pagos diminuem nessa mesma direção. Além disso, o poder Judiciário e o Ministério Público têm salários muito maiores que os do poder Legislativo e estes, por sua vez, são maiores que os do poder Executivo. O poder Executivo, por sua vez, especialmente no âmbito federal, é bastante heterogêneo: as Forças Armadas, os diplomatas, os servidores da Receita Federal e mais algumas carreiras são regiamente pagas. Também vale lembrar que algumas áreas são necessariamente grandes, especialmente aquelas que lidam diretamente com a população: educação, saúde, previdência e assistência social, segurança pública; além disso, há setores que são intrinsecamente caros e custosos, como as áreas de infraestrutura e as de pesquisa: tudo isso entra na conta do poder Executivo.

Aqui é importante notar que o setor público tem uma dinâmica específica: a estabilidade no emprego permite que as carreiras desenvolvam-se de maneira efetiva, isto é, que haja de fato carreiras profissionais, caracterizadas pela ascensão profissional; tal ascensão ocorre a partir de cursos que são feitos pelos servidores. É claro que o egoísmo pessoal tem aqui seu papel: os servidores buscam subir na carreira porque isso se converte em salários maiores – e é bom que seja assim. Do ponto de vista da utilidade pública, isso significa que os servidores públicos podem de fato especializar-se e ampliarem suas habilidades profissionais; mas, de uma perspectiva meramente contábil e fiscalista, a maior qualificação dos servidores públicos é vista apenas como correspondendo a mais gastos públicos! Quando se fala em supersalários no setor público – e, o mais das vezes, a “reforma administrativa” é defendida como sendo o instrumento necessário para combaterem-se os “supersalários” – não é por acaso que eles ocorrem apenas no poder Judiciário, no Ministério Público e na cúpula do poder Executivo federal; ainda assim, a “reforma administrativa” terá efeito apenas no Executivo civil federal, sendo completamente silenciosa a respeito das Forças Armadas e dos outros três poderes[4].

O setor privado, como se sabe (ou como deveríamos saber), tem outra dinâmica. Para começo de conversa, ele não investe de verdade na qualificação dos trabalhadores: ele espera que haja trabalhadores qualificados no “mercado” e que possam ser contratados; quando há “qualificação”, elas são tópicas e de curto prazo. As qualificações de longo prazo, exatamente porque são demoradas, não são realizadas pelo setor privado. Aliás, a constante busca da “redução de custos” tem um efeito paradoxal e trágico, na medida em que há trabalhadores superqualificados que, por isso mesmo, não encontram emprego, pois custariam muito! A idéia de lealdade das empresas para com os trabalhadores é algo que inexiste; como há apenas o “mercado” e a competição entre as empresas, os trabalhadores mais velhos e mais qualificados – mais caros – são mandados embora em benefício de trabalhadores mais novos, menos experientes e, claro, mais baratos. (E, seguindo a lógica do dr. Paulo Guedes, de preferência que não sejam sindicalizados.) Nesse sentido, o setor privado ou privatiza a qualificação profissional mais exigente ou, então, alegremente se beneficia dos investimentos feitos no e pelo setor público: não é por acaso que os grandes programas de mestrado e doutorado no país são todos públicos (ou pesadamente financiados pelo setor público).

A lógica do “mercado” é sempre a de achatar os salários. Ora, esse achatamento ocorre na base, para a massa dos trabalhadores; no ápice a tendência é de aumentos sucessivos, especialmente para os presidentes (“CEOs”) e gerentes-gerais das empresas. Nesse caso, não se ouve falar em “supersalários”, isto é, não há o tom de reprovação quando se usa essa expressão para referir-se ao setor público; os cada vez maiores salários da cúpula do setor privado são vistos como motivo de inveja e admiração. Tem-se aí uma situação ambígua, para não dizer paradoxal ou hipócrita: enquanto os “megassalários” da iniciativa privada são apresentados como o ideal de vida para todos os que estão no setor privado, apenas alguns poderão gozar deles, ao mesmo tempo em que a dinâmica salarial do setor privado, como vimos e como se sabe, tende sempre a achatar cada vez mais esses salários.

Infelizmente, o problema é ainda pior do que estamos indicando. A definição da omissão do Estado como projeto nacional a partir dos anos 1980 resultou em que estamos fortemente vinculados aos fluxos internacionais de capital especulativo e em que o país progressivamente se desindustrializa (cf. BENJAMIN, 2015). Esses dois fatos conjugados resultam em que no país temos cada vez menos investimento na economia real, isto é, na economia que gera renda e empregos, e temos cada vez menos empregos, isto é, trabalhos com carteira assinada, salários dignos e benefícios efetivos. A descoberta dos mais de 38 milhões de “invisíveis” pelo dr. Paulo Guedes, em 2020, é exemplar a respeito disso tudo: vinculado ao capital especulativo internacional, ele nunca teve experiência concreta nem com políticas públicas nem, muito menos, com a economia real; por outro lado, a dinâmica de financeirização do capital e de desindustrialização do país resultaram em que um vago setor de “serviços” ampliou-se dramaticamente nas últimas década, não porque tenhamos uma população altamente qualificada prestando serviços de complexidade média a alta, mas porque temos uma população que é pobre, ganha pouco, não consegue empregos e meramente realiza serviços ou “trabalhos”, ou melhor, faz “bicos”: vende água na esquina, trabalha como vendedor na alta estação etc. O grande símbolo disso é o entregador de comida vendida por meio de aplicativos de celulares que vai de bicicleta entregar o produto: recebe uma miséria, não tem estabilidade, não tem benefício social nenhum e tem que usar os próprios recursos (a bicicleta) para o trabalho; é a “uberização” do trabalho erigida como ideal social. Não é que falte engenhosidade, operosidade ou industriosidade à população: o que falta são políticas públicas que gerem emprego de verdade, um projeto de país que se afaste do capital especulativo e uma elite que valorize o país (e não seja nem autoritária nem seja cega para os “invisíveis”.)

O anti-timing da reforma contracionista

Algumas palavras sobre o timing da proposta de reforma administrativa são necessárias. Desde o governo Michel Temer (2015-2018), as “reformas” são apresentadas como fundamentais e imprescindíveis para que o Brasil deslanche em termos econômicos (nada se diz sobre as liberdades públicas, sobre nossos padrões civilizatórios etc. ­– mais deixemos esses temas “menores” de lado); mais do que isso: cada uma das reformas é apresentada para a nação como a verdadeira reforma fundamental, sem a qual o país não tem futuro e com a qual o sucesso será imediato e garantido. Todavia, uma reforma após a outra fracassa completamente em conduzir o país ao desenvolvimento e ao progresso; encerrada uma reforma, a próxima é imediatamente alçada à posição de reforma fundamental, imprescindível e bastante. Essa dinâmica política desmoraliza a noção de “reforma” e, com isso, levanta a suspeita de que seu objetivo não é tornar o Brasil um país melhor, mas apenas desmontar as instituições nacionais, em particular as estabelecidas em 1988. Isso, por si só, já bastaria para levantar-se sérias suspeitas sobre a atual proposta de “reforma administrativa”; os preconceitos políticos, sociais e ideológicos do dr. Paulo Guedes aumentam ainda mais as suspeitas. Todavia, o Brasil – como o mundo, aliás – atravessa a grave crise da pandemia, que será seguida necessariamente por uma recessão ou, talvez, por uma depressão: se há algo que o século XX ensinou é que crises desse tipo não podem ser enfrentadas por políticas contracionistas, que visem a cortar os gastos públicos; sem desperdiçarmos valiosos recursos, os gastos públicos terão que se aumentar ou, pelo menos, manterem-se nos próximos anos. Ora, a “reforma administrativa” claramente tem um objetivo contracionista – o que pode ser coerente com o ultraliberalismo do dr. Paulo Guedes, mas que vai contra a história político-econômica dos últimos 150 anos e vai contra também o interesse nacional brasileiro.

Algumas palavras sobre as elites brasileiras

Para concluir, uma palavra sobre as elites brasileiras. Ao longo deste artigo fizemos diversas referências ao fato de que o Brasil não tem um verdadeiro projeto nacional desde a década de 1980; a partir dessa época, definiu-se que o país deveria integrar-se ao resto do mundo, por um lado saindo do isolamento político em que se encontrava devido ao autoritarismo militar, por outro lado vinculando-se aos fluxos econômicos internacionais, cada vez maiores. A expressão “projeto nacional” e as decisões que orientaram o país na direção da abertura político-econômica tornam-se vagas e muito abstratas – metafísicas, na verdade – quando não se considera que o conjunto da população e, em particular, as elites têm que encampar esses projetos, formulando-os com clareza e implementando políticas públicas de acordo – políticas que devem ser mais ou menos coerentes e que devem ser concebidas em termos de décadas, não somente de anos ou meses. A abertura política dos anos 1980-1990 foi exitosa; já a abertura econômica, como indicamos, foi bem mais problemática, em particular porque ela consistiu na abertura unilateral e mais ou menos sem critérios da nossa economia: as nossas elites apostaram no automatismo do “mercado” para resolver os problemas sociais e econômicos, desvalorizando o Estado no processo; a reação à valorização do Estado em termos econômico-sociais, isto é, em termos de “projeto nacional”, era no sentido de equivaler essa valorização ao autoritarismo, ao totalitarismo e, de qualquer maneira, à ineficiência e ao desperdício.

A inabilidade política e, por isso mesmo, a inabilidade econômica de Dilma Rousseff em um ambiente política cada vez mais polarizado – em que tiveram grande (ir)responsabilidade tanto o PT quanto o PSDB – permitiu a ascensão política e social do ultraliberalismo irresponsável e, no fundo, intelectualmente alienado do dr. Paulo Guedes; ao mesmo tempo, o desgaste institucional permitiu a ascensão de mais um político supostamente outsider com propostas violentamente anti-establishment – Bolsonaro. Provavelmente porque ambos eram rejeitados pelo establishment social-democrata dos irmãos-inimigos PT-PSDB, mas também porque um precisava do outro, logo Paulo Guedes e Bolsonaro passaram a apoiar-se; como se sabe pelo notório exemplo chileno, as compatibilidades mútuas eram maiores do que a mera necessidade que um tinha do outro e do fato de que ambos eram underdogs: o ultraliberalismo de Guedes é compatível e mesmo precisa do autoritarismo repressivo e persecutório de Bolsonaro, enquanto este, por seu turno, fica bastante à vontade com o capitalismo especulativo e socialmente irresponsável de Guedes, desde que sua família, seu entorno palaciano e seus apoios militares e paramilitares sejam satisfeitos.

A ausência de um verdadeiro projeto nacional desde os anos 1990 já indicava uma séria falha das elites brasileiras; mas era possível argumentar, com tranqüilidade, que havia preocupações verdadeiras com o país. É bem verdade que o PSDB era bem mais criticável a esse respeito que o PT; mas, por outro lado, não somente o exclusivismo próprio ao PT (e a Lula em particular), derivado do seu messianismo católico-comunista, dificultou ou impediu a correção intelectual e moral das nossas elites a esse respeito, como o PT, quando esteve no poder, não fez muito para alterar a situação. Assim, o vazio de um projeto nacional das nossas elites manteve-se. Em 2018, o que era uma falha tornou-se um buraco, ou melhor, uma retrogradação profunda em nossos valores, com a aliança entre o ultraliberalismo e o autoritarismo delirante – aliança que se viu vitoriosa. Essa vitória, claro está, não ocorreu por acaso e nem no vazio; em particular, ela deu-se porque as elites brasileiras apoiaram a aliança retrógrada. Se em 2018 e 2019 as elites brasileiras decidiram pular no abismo, ou no esgoto, em 2020 o que se evidenciou foi o completo desprezo dessas elites pela população: o apoio meio cerrado, meio explícito às inúmeras tentativas de golpe de Estado pelo próprio Presidente da República, à afirmada necessidade de um novo “AI-5” conforme expresso pelo dr. Paulo Guedes, pelos filhos do Presidente da República, por políticos da “base de apoio” e pelos ministros militares; da mesma forma, a rejeição de muitos e muitos presidentes de grandes empresas das medidas mais elementares de prevenção à pandemia de covid-19, bem como o apoio às sandices do Presidente da República – tudo isso revela o quanto nossas elites estão moralmente podres, o quanto estão muito abaixo das necessidades do Brasil[5]. Em qualquer momento, são as elites que comandam um país – em termos políticos e econômicos, não há dúvida, mas também sociais, intelectuais e morais. As atuais elites decidiram que o ultraliberalismo econômico, o autoritarismo repressivo e persecutório, o desprezo pela vida e pela verdade são “aceitáveis”[6]: talvez em outras épocas e outros lugares essa combinação ao mesmo tempo explosiva e degradante fosse aceitável, mas no Brasil após 1988 definitivamente ela não é.

A “reforma administrativa” é apenas a mais recente proposta de uma elite que está aquém das necessidades e das possibilidades brasileiras: urgem novas elites e a rejeição dessa soi-disant reforma!

 

Referências bibliográficas

BENJAMIN, César. 2015. Desindustrialização – pode o Brasil sobreviver sem um expressivo setor industrial? Boletim Conjuntura Brasil, Brasília, n. 2, out.

CARDOSO JR., José C. (org.). 2011. Burocracia e ocupação no setor público brasileiro. Série “Diálogos para o desenvolvimento”, n. 5. Rio de Janeiro: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

CHAIB, Júlia & URIBE, Gustavo. 2020. Guedes confirma auxílio emergencial por mais dois meses e criação do Renda Brasil. Folha de S. Paulo, 9.jun.

EVANS, Richard. 2017. A chegada do Terceiro Reich. 3ª ed. São Paulo: Crítica.

HALLAL, Pedro C. 2021. SOS Brazil: Science under Attack. The Lancet, V. 397, n. 10272, Jan. 30. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(21)00141-0/fulltext. Acesso em: 22.jan.2021.

IPEA. s/d. Atlas do Estado brasileiro. Brasília: Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada. Disponível em: https://www.ipea.gov.br/atlasestado/. Acesso em: 4.fev.2021.

LACERDA, Gustavo B. 2020. Lamento por uma burguesia abaixo do mínimo político-moral. Filosofia Social e Positivismo, 7.maio. Disponível em: https://filosofiasocialepositivismo.blogspot.com/2020/05/lamento-por-uma-burguesia-abaixo-do.html. Acesso em: 4.fev.2020.

LASSANCE, Antonio. 2017. O serviço público federal brasileiro e a fábula do ataque das formigas gigantes. Texto para Discussão n. 2287. Brasília: Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada.

LYNCH, Christian E. 2020. “Nada de NOVO sob o Sol”: teoria e prática do neoliberalismo brasileiro. Insight Inteligência, Rio de Janeiro, ano 23, n. 91, p. 16-34, out.-dez.

PIRES, Roberto; LOTTA, Gabriela & OLIVEIRA, Vanessa E. (orgs.). 2018. Burocracia e políticas públicas no Brasil: interseções analíticas. Brasília: Instituto Econômico de Pesquisa Aplicada.

ROSSI, Amanda & BUONO, Renata. 2020. Quem ganha mais no serviço público. Piauí, São Paulo, 2.mar. Disponível em: https://piaui.folha.uol.com.br/quem-ganha-mais-no-servico-publico/. Acesso em: 3.fev.2021.

THE LANCET. 2020. COVID-19 in Brazil: “So What?”. V. 395, n. 10235, May 9. Disponível em: https://www.thelancet.com/journals/lancet/article/PIIS0140-6736(20)31095-3/fulltext. Acesso em: 3.fev.2021.



[1] O presente texto destinava-se inicialmente apenas a tratar de maneira rápida da comparação entre os salários do setor público e do privado, considerando-se as consequências acarretadas pelas diferenças de regime jurídico e de carreiras em cada caso. Entretanto, à medida que escrevíamos a extensão do texto aumentou paulatinamente. De qualquer maneira, o seu caráter opinativo manteve-se.

[2] Em recente e interessante artigo publicado na Insight Inteligência, Christian Lynch (2020) diferencia as inúmeras variedades de liberalismo, distinguindo em particular as que enfatizam a liberdade política (“liberais” simplesmente, sem maiores qualificativos) das que enfatizam a liberdade econômica (“neoliberais”). Claro está que, nessa classificação, Paulo Guedes seria um “neoliberal”; mas sua crença pura nas virtudes da liberdade econômica e seu desprezo pela política – que, não por acaso, permitem-no admirar o Chile sob o tacão de Pinochet e dos Chicagoboys (c. 1975-c. 1984) – levam-me a chamá-lo de “ultraliberal”.

[3] Em janeiro de 2021 a revista The Lancet publicou uma carta aberta do pesquisador Pedro Hallal, de Pelotas, em que o autor denuncia a perseguição política que sofreu; ele não perdeu cargo de chefia, mas teve cortados recursos públicos de pesquisas que coordenava. Esse caso não teve o mesmo impacto midiático na imprensa brasileira que os outros dois, mas revela de maneira muito mais clara a ausência de um “projeto de país”.

[4] O mesmo ocorreu na reforma da previdência de 2019 – que, aliás, teve a característica de que os militares foram a única categoria que, então, teve aumento salarial e cuja exclusão da reforma foi a condição política imposta pelas Forças Armadas para apoiarem tanto a própria reforma como continuarem a subscrever o governo Bolsonaro de modo mais amplo.

[5] Já no início de maio de 2020 manifestei publicamente meu lamento e meu desagrado por essas elites retrógradas e insensíveis à sorte da população em uma longa postagem em meu blogue (LACERDA, 2020).

[6] Por motivos evidentes, no presente artigo insistimos apenas nas questões políticas e econômicas; entretanto, o apoio das elites brasileiras a Bolsonaro tem que incluir também o apoio às fake news e à política de “pós-verdade”, o apoio ao desmatamento e às queimadas ilegais, o apoio ao isolamento internacional do país (reduzido à condição de pária em menos de dois anos), a violação sistemática à laicidade do Estado, o apoio a uma nova dizimação dos índios etc. Para usar a linguagem contábil, tão querida por esses ultraliberais autoritárias, o passivo político-social dessas elites aumenta cada vez mais.

14 fevereiro 2021

"Contra alguns mitos da 'reforma administrativa'"

O artigo abaixo foi publicado em 8.2.2020 no jornal Monitor Mercantil; o original pode ser lido aqui.

Da mesma forma, ele foi publicado em 14.2.2021 no jornal Gazeta do Povo; o original pode ser lido aqui

*   *   *

Contra alguns mitos da “reforma administrativa”

A tragédia global e nacional que caracterizou o ano de 2020 deveria reverter-se em lições para a sociedade brasileira; entretanto, o início de 2021 já sinaliza que nós teimamos em não aprender com nossos erros e nossas tragédias. A nova retomada da proposta de “reforma administrativa” é exemplar nesse sentido. Essa “reforma” prevê a alteração radical de diversos dispositivos que regram a estrutura do Estado brasileiro, em particular na contratação e na manutenção de servidores. O principal advogado dessa “reforma” é o Ministro da Economia, Paulo Guedes, defensor de um novo AI-5 e que não esconde desgostar dos servidores públicos – “parasitas” cuja sindicalização deve ser proibida e os sindicalizados, demitidos.

A reforma administrativa pressupõe que o Estado brasileiro é “grande demais”; mas, na verdade, em termos de quantidade de servidores ou de gastos com pessoal, o Brasil está longe de ser “grande”. O tamanho do Estado tem que ser medido pela quantidade e pela qualidade de serviços públicos prestados: mas a estrutura disponível para os serviços públicos é insuficiente para as necessidades nacionais. Os serviços mais evidentes já o ilustram: professores, médicos, enfermeiros, peritos previdenciários etc., sua quantidade está longe de ser suficiente. Os problemas suscitados pela pandemia de covid-19 estão escancarando essa insuficiência.

Os exemplos acima deveriam lembrar-nos de que as necessidades sociais brasileiras não são pequenas, não são de curto prazo nem são estritamente econômicas; inversamente, deveriam lembrar que o Estado brasileiro não pode ser meramente o “regulador neutro do ambiente de negócios”. Como representante prático e realizador concreto do “interesse nacional”, o Estado tem a obrigação de realizar mudanças necessárias na sociedade em conformidade com a opinião pública, além de orientar em grandes linhas a atividade econômica. Entretanto, desde a crise da dívida na década de 1980, progressivamente o Estado brasileiro abdicou dessas funções: a abertura econômica indiscriminada (a financeira em particular) é expressão disso. Assim, os servidores públicos têm um papel central na realização de algo que está meio fora de moda, mas que deveria voltar aos debates públicos: um “projeto de país”.

Passamos, então, à estabilidade dos servidores: simplesmente não se deveria pô-la em questão. A perseguição político-ideológica, realizada com freqüência de maneira raivosa, levada a cabo pelo governo Bolsonaro é a própria justificativa para a existência da estabilidade. Não se trata de um “privilégio” do funcionalismo público, que se erige em casta, contra a instabilidade do setor privado, mas a garantia de que os servidores públicos exercerão um serviço profissional e, ainda mais, que eles não estarão sujeitos aos humores dos governantes do momento.

Também se afirma que os servidores públicos “ganham muito”, com o juízo implícito de que tais “grandes salários” seriam ultrajantes. O ultraje não está no “ganhar muito”, mas na comparação com o setor privado, cujos trabalhadores supostamente ganhariam bem menos. O problema é que essa comparação é superficial, tomando-se uma simples média aritmética dos gastos do setor público com alguma média do setor privado; comparam-se duas coisas que seriam homogêneas, quando, na verdade, elas são heterogêneas. Nos dois setores, quem está no início de carreira recebe bem menos que quem está no final; da mesma forma, quem exerce cargo de chefia recebe mais que quem está nas posições mais humildes. O setor público divide-se em três ou quatro poderes (Executivo, Legislativo, Judiciário e Ministério Público) e três níveis federativos (nacional, estadual e municipal): todos os estudos sérios indicam que a quantidade de servidores aumenta quando passamos do nível federal para o nível estadual e daí para o municipal, mas que os salários pagos diminuem nessa mesma direção. Além disso, o Judiciário e o Ministério Público têm salários muito maiores que o Legislativo e estes são maiores que os do Executivo. O poder Executivo, por sua vez, especialmente no âmbito federal, também é bastante heterogêneo: as Forças Armadas, o Itamaraty, a Receita Federal e mais algumas carreiras são regiamente pagas. Também vale lembrar que algumas áreas são sempre grandes – aquelas que lidam diretamente com a população: educação, saúde, previdência e assistência social, segurança pública –; além disso, há setores que são intrinsecamente caros e custosos, como as áreas de infraestrutura e as de pesquisa: tudo isso entra na conta do Executivo. Quando se fala em supersalários no setor público – e a “reforma administrativa” é defendida em parte para combaterem-se os “supersalários” –, eles ocorrem no Judiciário, no Ministério Público e na cúpula do Executivo; ainda assim, a reforma terá efeito apenas no Executivo civil federal, silenciando a respeito das Forças Armadas e dos outros três poderes.

O setor público tem uma dinâmica específica: a estabilidade no emprego permite que as carreiras desenvolvam-se de maneira efetiva, com ascensão profissional, a partir de cursos feitos pelos servidores. É claro que os servidores buscam subir na carreira porque isso se converte em salários maiores; mas, do ponto de vista da utilidade pública, isso significa que os servidores especializam-se e ampliam suas habilidades. Só de uma perspectiva meramente contábil e fiscalista essa maior qualificação é vista como correspondendo a “mais gastos”!

O setor privado tem outra dinâmica. Para começo de conversa, ele não investe de verdade na qualificação, mas espera que haja trabalhadores qualificados no “mercado” que possam ser contratados; quando há “qualificação”, elas são tópicas e de curto prazo. As qualificações de longo prazo, como são demoradas e caras, não são realizadas pelo setor privado. Aliás, a busca da “redução de custos” tem um efeito paradoxal, pois há trabalhadores superqualificados que, por isso mesmo, não encontram emprego, pois custariam muito! A idéia de lealdade das empresas para com os trabalhadores é algo que inexiste; como há apenas o “mercado” e a competição entre as empresas, os trabalhadores mais velhos e mais qualificados – mais caros – são mandados embora em benefício de trabalhadores mais novos, menos experientes e mais baratos (e não sindicalizados.) Assim, o setor privado ou privatiza a qualificação profissional mais exigente ou beneficia-se dos investimentos feitos pelo setor público: não é por acaso que os grandes programas de mestrado e doutorado no país são todos públicos (ou pesadamente financiados pelo setor público).

A ausência de projeto nacional a partir dos anos 1980 resultou em que estamos fortemente vinculados aos fluxos internacionais de capital especulativo e que o país progressivamente se desindustrializa. Daí termos cada vez menos investimento na economia real, que gera renda e empregos, e termos cada vez menos empregos, isto é, trabalhos com carteira assinada, salários dignos e benefícios efetivos. Inversamente, um vago setor de “serviços” ampliou-se dramaticamente nas últimas décadas, não porque tenhamos uma população altamente qualificada prestando serviços de complexidade média a alta, mas porque temos uma população que é pobre, ganha pouco, não consegue empregos e meramente realiza serviços ou “trabalhos”, ou melhor, faz “bicos”. O grande símbolo disso é o entregador de comida vendida por meio de aplicativos de celulares que vai de bicicleta entregar o produto: recebe uma miséria, não tem estabilidade, não tem benefício social nenhum e tem que usar os próprios recursos para o trabalho; é a “uberização” do trabalho erigida em ideal. Não falta engenhosidade, operosidade ou industriosidade à população: o que falta são políticas públicas que gerem emprego de verdade, um projeto de país que se afaste do capital especulativo e uma elite que valorize o país (e não seja nem autoritária nem seja cega para os “invisíveis”.)

A reforma administrativa não resolverá nenhum desses problemas; na verdade, por opção das elites brasileiras, aumentará os existentes e criará outros, ao desestruturar um serviço público importante e qualificado mas insuficiente para as necessidades nacionais. No fundo, essa é uma contra-reforma, ou anti-reforma: carecemos de uma verdadeira reforma, a partir de um projeto nacional efetivo.

 

Gustavo Biscaia de Lacerda é sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política.

05 agosto 2008

Dois erros sobre a doutrina política comtiana: “autoritarismo” e “funcionalismo público”

Vejam o artigo de minha autoria, intitulado "Dois erros sobre a doutrina política comtiana:  'autoritarismo' e 'funcionalismo público'" e publicado na Revista Espaço Acadêmico (Maringá) de agosto de 2008, neste vínculo:

http://www.espacoacademico.com.br/087/87lacerda.htm.