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19 dezembro 2023

Progresso versus cinismo

No dia 17 de Bichat de 169 (19.12.2023) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência (dedicada ao conjunto do regime positivo).

No sermão abordamos a oposição entre a esperança vinculada ao progresso e o cinismo atual, buscando responder a uma questão ao mesmo tempo moral, intelectual, sociológica e histórica: como é que se passou da nobre e elevada esperança no aperfeiçoamento humano, vigente no século XIX, para o cinismo atual?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/W1qy7) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/6rird). O sermão começou em 1h.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

*   *   *


Progresso versus cinismo  

-        Hoje em dia, no início do século XXI, quando lemos Augusto Comte e os demais positivistas que escreviam no século XIX e início do século XX, dois aspectos surgem com grande clareza:

o   Por um lado, uma grande esperança no ser humano, no aperfeiçoamento das condições da humanidade (materiais, físicas, intelectuais e morais); essa esperança era sintetizada na noção de “progresso”

o   Por outro lado, seguindo o espírito da nossa época, quase instintivamente temos a impressão de que essa esperança mantida no século XIX era “ingênua”, da mesma forma que consideramos que seria mais “correta” uma perspectiva mais ressabiada, ou melhor, mais cínica

o   Entretanto, não há motivo nenhum para seguirmos o atual espírito da época e considerarmos que a esperança e o progresso do século XIX são ingênuos e, daí, desprezíveis

-        A respeito da esperança e do progresso afirmados pela Religião da Humanidade:

o   Afirmam a afetividade humana, o altruísmo, a possibilidade e a necessidade de conhecimento científico da realidade e do ser humano;

§  Afirmam esses conhecimentos a partir do relativismo e do historicismo, valorizando sempre a subjetividade humana

o   Também estabelecem um critério geral de moralidade (o estímulo ao altruísmo e a compressão do egoísmo), que ultrapassa o individualismo egoístico próprio às teologias e às suas metafísicas derivadas e que afirma a noção de dever acima da de direito

o   Afirmam que a paz, a fraternidade, o altruísmo, a colaboração surgem necessariamente da evolução histórica

§  Esses traços, de qualquer maneira, correspondem a tendências gerais, comportando variações e flutuações ao longo do tempo

§  Assim, não há motivo para supor que essas variações e flutuações correspondam à negação do progresso

o   Como observava Augusto Comte, o progresso é mais subjetivo que a ordem (ou seja, é mais diretamente relativa à realidade humana) e abarca aperfeiçoamentos em diversos âmbitos: material, físico, intelectual e, acima de tudo, moral

-        É importante considerarmos o que aconteceu nesse período, isto é, entre meados do século XIX e este início do século XXI:

o   Em termos afetivos, houve o seguinte:

§  Antes de mais nada, houve a fundação da Religião da Humanidade entre o final da década de 1840 e meados da de 1850, sistematizando tendências amplas e gerais da humanidade e fortalecendo laços fraternos e altruístas entre povos, classes e grupos variados sobre bases reais

§  O desenvolvimento simultâneo de perspectivas internacionalistas e particularistas, às vezes com sobreposição, às vezes com distanciamento entre elas:

·         O internacionalismo é a afirmação de perspectivas internacionais, de concórdia entre nações (às vezes, equivocadamente, de fim das nações)

·         Os particularismos assumiram formas variadas:

o   Os nacionalismos, às vezes xenofóbicos, mas inicialmente como movimentos de afirmação das nações contra os grandes impérios coloniais,

o   A perspectiva de classe, especialmente do proletariado, contra a burguesia e contra o capital

§  Por vezes o particularismo de classe manifestou-se contra as nações, mas muitas vezes ele foi a favor de nações proletárias

§  Em todo caso, com gigantesca freqüência, o particularismo proletário serviu de apoio, mesmo de desculpa, para movimentos de independência nacional

o   Houve formas especialmente mesquinhas e agressivas de particularismos sobre outras bases, como no caso dos racismos antissemita e de vários outros

·         Citamos aqui os particularismos negativos porque eles tiveram uma terrível importância durante 30 anos no século XX

o   Indiretamente, esses particularismos negativos serviram para evidenciar que eles, na medida em que são particularismos, não servem para fundar sociabilidades maiores, que são as sociabilidades próprias à sociedade pacífica e industrial

o   Em termos intelectuais, podemos indicar o seguinte:

§  Antes de mais nada, houve a fundação da Religião da Humanidade, sistematizando o conhecimento humano e permitindo e realizando a regularização e a moralização desses conhecimentos (ciência, filosofia, religião, arte, atividades práticas) em bases reais, humanas e relativas

§  Apesar desse importante acontecimento, a ciência continuou com seu impulso absoluto, indiferente à sua destinação humana

§  Ao mesmo tempo, tendências metafísicas particularistas ganharam espaço:

·         A psicanálise de Freud baseou-se no misticismo e na metafísica alemãs para tentar explicar a subjetividade humana, mas, além dos danos mentais causados em si pela metafísica, as noções de pansexualismo e de inconsciente estimularam, como estimulam, a desconfiança no ser humano

·         O marxismo, com suas infinitas correntes propositalmente “críticas”, estimulou (como estimula) o ódio entre as classes e os países e, daí, considera que tudo o que não é “proletário” é vil, enganador, mentiroso; além disso, a equívoca noção de “materialismo histórico” nega a realidade da moralidade

o   O marxismo é ambíguo a respeito da natureza humana: genericamente o ser humano é bom, mas só após a revolução comunista essa bondade manifestar-se-á

o   As desconfianças, o padrão crítico, o grande esquema histórico baseado na luta de classes: isso e muito mais serve de exemplo permanente para outros movimentos metafísicos e críticos, como o identitarismo negro de origem estadunidense e, ainda mais, o identitarismo feminista

·         Concepções irracionalistas, por vezes mais próximas da poesia e do misticismo que da ciência e da filosofia (como Nietzsche), além de concepções anticientíficas (como as de Bergson e de Max Weber) rejeitaram a possibilidade de estudos científicos do ser humano e de filosofias gerais (e relativistas e humanas) sobre a realidade

o   Muitas dessas concepções irracionalistas (incluindo aí nacionalismos e preconceitos de raça), não por acaso, nega(va)m a paz e estimula(va)m a violência e/ou o culto à violência

o   Em termos práticos, tivemos o seguinte:

§  Além dos amplos, gerais e consistentes esforços dos positivistas em todo o Ocidente em favor da paz, da concórdia, da fraternidade internacional e interna aos países, houve inúmeros movimentos pacifistas, internacionalistas, pela regularização das relações industriais etc.

·         Podemos incluir aí alguns grupos anarquistas, vários movimentos socialistas e mesmo alguns movimentos teológicos sensíveis às condições de vida dos trabalhadores e das sociedades modernas

·         Os nacionalismos de independência, de modo geral, também atuaram no sentido de melhorar as condições de vida, ao afirmarem o respeito às particularidades culturais locais

§  Ocorreu também a difusão do republicanismo, ou seja, da perspectiva humana e meritocrática na política, incluindo aí o estabelecimento da separação entre igreja e Estado

§  Uma prática internacional baseada na diplomacia de segredos (Bismarck) e da corrida colonial de prestígio

§  Afirmação de certos hábitos mentais e práticos burguesocráticos

o   Em suma: ao longo do século XIX tivemos grandes e importantes desenvolvimentos da Humanidade, ou seja, na direção da positividade, ao mesmo tempo que tendências metafísicas, críticas e destruidoras mantiveram seus ímpetos

o   O grande período de clivagem é a I Guerra Mundial (1914-1919), ou melhor, a II Guerra dos 30 Anos (1914-1945)

 

Os trechos abaixo, destacados em caixas, foram omitidos em linhas gerais na exposição oral da prédica, pois alongariam demais essa exposição oral; ainda assim, são observações úteis para a presente reflexão e, portanto, mantêm-se nestas anotações.

§  A II Guerra dos 30 Anos é composta por três fases: I Grande Guerra (1914-1919), Período de Paz Armada (1919-1939) e II Grande Guerra (1939-1945)

§  Para o que nos interessa, os períodos mais importantes são o da I Grande Guerra, que matou gerações de positivistas, e o Período da Paz Armada, que estimulou e deu livre curso às piores tendências negativas anteriores a 1914 (nacionalismo xenofóbico, irracionalismo, culto à violência, preconceitos de raça etc.)

·         A I Guerra apresentou uma dinâmica nova, em que os soldados ficavam meses a fio nas trincheiras, sob a tensão constante dos combates, sujeitos a ataques violentos e muito agressivos

·         Essas tendências, como se sabe, consubstanciaram-se em movimentos sociais como o comunismo (com as Revoluções Russas em 1917), o fascismo (com a Marcha sobre Roma, em 1922), o nazismo (desde 1922, no poder desde 1933) e diversos outros movimentos autoritários (Frente Nacional na França, franquismo na Espanha, Estado Novo em Portugal etc.)

·         Esses movimentos, devido a seus conteúdos, na esteira da violência da I Grande Guerra, puseram em suspeição as liberdades, o ideal de fraternidade etc.

o    O mundo não ficou incólume a isso: no Brasil tivemos a crítica à I República transformando-se em crítica degradante ao republicanismo; houve o elogio mundial ao autoritarismo; o Japão deu livre curso ao seu violento imperialismo no Leste Asiático etc.

·         A II Grande Guerra, além da sua violência própria, deu lugar ao chamado “Holocausto”, com o genocídio praticado em escala e com métodos industriais

-         A II Guerra dos 30 Anos estimulou movimentos irracionalistas, autoritários, genocidas etc.; mas, no final das contas, foi um longo e dolorosíssimo interregno entre aspirações altruístas, fraternas, pacifistas etc.

o    Um pequeno indicador desse caráter de interregno é a constituição da Organização das Nações Unidas logo em seguida ao conflito e cuja fundação foi acertada pelo menos desde o ano anterior ao término da guerra

-         Com o término da II Guerra dos 30 Anos, alguns movimentos positivos voltaram à ação; mas, ao mesmo tempo, elementos críticos também mantiveram seu curso

o    Um pouco do sentimento de esperança vigente antes da II Guerra dos 30 Anos foi recuperado após o conflito: novamente, a fundação da ONU e do sistema ONU é parte disso, assim como outros movimentos que tiveram lugar nas décadas seguintes: o reconhecimento e o repúdio aos crimes do nazismo; o desenvolvimento do Welfare State; o impulso para o desenvolvimento econômico e social; mais importante, a descolonização da África e da Ásia (iniciada em 1947 com a independência da Índia)

o    A Guerra Fria (1947-1991), baseada na disputa entre Estados Unidos e União Soviética, refletindo uma oposição ao mesmo tempo geopolítica e “ideológica”, teve um caráter ambígüo em termos da esperança e do progresso:

§  Por um lado, os países-líderes difundiam a esperança nas próprias perspectivas (limitadas em si mesmas) e degradavam as perspectivas rivais

§  Por outro lado, o aspecto de guerra por procuração entre as superpotências conduziu a uma instabilidade marcada nos países periféricos, que, a partir dos anos 1950, logo se converteu em golpes militares

§  O advento da televisão, da mentalidade “pós-materialista” no Ocidente e de guerras que se tornaram cada vez mais difíceis de serem justificadas (Vietnã para os Estados Unidos, Afeganistão para a União Soviética, mesmo Vietnã para a China) minaram a confiança internacional nas superpotências

o    Alguns outros aspectos podem ser indicados:

§  A reflexão sobre o Holocausto conduziu muitas pessoas a decretarem, pura e simplesmente, que a esperança na Humanidade e que a noção de progresso são ilusões, que devem ser descartadas e substituídas por um severo “realismo” – que, no final das contas e na prática é muito próximo do cinismo

§  Além disso, a partir dos anos 1960 a chamada “contracultura”, que já vinha desde a década anterior, atuou sistematicamente para minar todos os valores do Ocidente, evidenciando o caráter metafísico do seu irracionalismo, do seu amoralismo e da violenta ruptura entre gerações

§  O marxismo manteve sua atuação crítica, por meio de suas inúmeras metamorfoses, pró, anti, cripto ou parassoviéticas, mas todas elas afirmando os aspectos metafísicos dessa filosofia: a luta de classes e a desconfiança social erigida em princípio normativo, a degradação da moral via sua redução a interesses de classes, a rejeição de toda concepção que não seja marxista (ou que não seja da própria seita), o particularismo proletário-marxista – além do culto à violência, presente hipocritamente em Marx e repetido de diversas maneiras em muitas das suas seitas derivadas

-         O fim da Guerra Fria deu novo alento à noção de progresso, mas sua vinculação à metafísica triunfalista do liberalismo dos EUA, somada à crítica metafísica marxista, conduziu a um novo descrédito da noção de progresso e da esperança

-         Nas últimas duas décadas, duas correntes metafísicas têm tido grande sucesso, ambas contrárias à esperança e ao progresso:

o    A metafísica mística do tradicionalismo, altamente retrógrada e vigente, por exemplo, no Leste Europeu e na Rússia

o    A metafísica irracionalista, agressiva e particularista do identitarismo, que se difunde a partir dos Estados Unidos e, graças ao servilismo intelectual próprio às “elites” intelectuais brasileiras, tem tido grande sucesso em nosso país

 

-        A maior parte deste relato foi uma exposição histórica de como a bela idéia do progresso atuou no século XIX e no começo do século XX, mas viu-se combatida e combalida no século XX, com uma seqüência no século XXI

o   Os problemas enfrentados por essa concepção ligam-se, então, a movimentos autoritários, violentos, (ir)racionalistas do começo do século XX, bem como ao impulso irracionalista e crítico de intelectuais, a maior parte dos quais são academicistas

o   Aqui é necessário afirmar com clareza: os hábitos academicistas estimulam a criticidade antiprogressista e antiesperançosa como virtude moral e intelectual, como suposta marca de superioridade intelectual

§  Essa criticidade pode ser vista na metafísica dos marxistas e também na metafísica dos místicos

-        Entretanto, ninguém – ninguém! – vive sem esperança, ao mesmo tempo em que todos – todos! – alimentam noções de progresso

o   A esperança e o progresso são alimentados por todos mesmo que só de maneira implícita, muitas vezes sem que reconheçam (mesmo para si próprios) essas concepções

o   Todos afirmamos a esperança porque todos precisamos considerar que as coisas vão melhorar; assim, essa é uma questão de saúde mental

o   A noção de que as coisas vão melhorar implica, necessariamente, a noção de progresso, isto é, de desenvolvimento e de aperfeiçoamento material, físico, intelectual e moral

o   Só é possível haver progresso a partir das leis naturais, do relativismo, do subjetivismo, do historicismo próprios à Religião da Humanidade

§  Assim, só é possível haver esperança verdadeira nos quadros do Positivismo

-        No século XIX Augusto Comte reconhecia a validade moral, intelectual e mesmo artística das utopias

o   Na verdade, Augusto Comte afirmava mesmo que as utopias são um gênero literário moderno!

o   Nas últimas décadas – talvez desde os anos 1970 – em vez de utopias o que temos são as chamadas “distopias”

o   As “distopias” são idealizações invertidas, em que não se apresentam quadros da boa sociedade, mas das más sociedades

o   As distopias são produzidas por estúdios de cinema e TV que querem ganhar muito dinheiro com a degradação humana e são consumidas avidamente pelo Ocidente e, daí, pelo resto do mundo

§  Deveria ser evidente – mas a indústria cultural finge que não é – que as distopias alimentam o cinismo, a desconfiança, o isolamento, o egoísmo, o irracionalismo, o imoralismo

o   Assim, é necessário – com urgência e convicção – deixarmos de lado as degradantes "distopias", que no final servem apenas para a “indústria cultural capitalista”, e retomarmos as utopias

o   A retomada das utopias vincula-se intimamente à retomada das noções de esperança e de progresso

§  A retomada dessas noções fará bem para a saúde mental de cada um de nós; dará uma destinação social e altruísta clara para cada um nós; permitirá que os urgentes problemas sociais que vivemos sejam solucionados (ou, pelo menos, encaminhados)

12 junho 2023

Entendendo a relevância atual da metafísica político-moral

No dia 13 de São Paulo de 169 (2.6.2023) redigi um pequeno texto em que apresento uma interpretação positiva da política contemporânea. 

Na verdade, esse texto foi redigido como uma pequena apresentação dos esforços realizados pelo Apostolado Positivista da Itália, que tem à sua frente nosso querido amigo, o Apóstolo Sebastiano Fontanari. Mas, para que essa apresentação não se limitasse ao mero elogio, pareceu-me melhor fazer uma pequena reflexão sobre as sociedades contemporâneas, resultando nessa interpretação em que indico o porquê de a metafísica ter tanta importância atualmente.

Tão logo Sebastiano verta para o italiano esse texto, ele será publicado neste blogue.

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O século XIX foi um período em que muitas utopias surgiram e, portanto, foi um período de esperanças. Surgiram utopias positivas – por definição, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade –, assim como utopias metafísicas – a democracia rousseauniana revigorada, o marxismo, o anarquismo e tantas outras –; surgiram até mesmo utopias teológicas, na forma dos projetos retrógrados românticos. Ao mesmo tempo em que a teologia seguiu um caminho descendente, a positividade seguiu sua marcha ascendente, com a difusão do Positivismo no conjunto do Ocidente e mesmo além dele.

O século XX, por outro lado, pode ser dividido em duas grandes partes. A primeira delas caracterizou-se pelos estertores do regime católico-feudal: a II Guerra dos 30 Anos, ou seja, o tumultuado período que vai de 1914 a 1945 no fundo caracterizou-se pela mobilização, com enorme violência, das derradeiras forças militares próprias ao feudalismo; não é à toa que o mundo que surgiu após 1945 fosse “moderno”, isto é, em que já não se percebessem mais os hábitos herdados do mundo feudal.

Todavia, a II Guerra dos 30 Anos não pôs um fim apenas ao mundo feudal; ela também sacrificou a maior parte do movimento positivista que se desenvolvia, ramificava e frutificava no Ocidente. Tal sacrifício ocorreu principalmente durante a fase inicial dessa guerra, no período que se chama habitualmente de “I Guerra Mundial”, tanto pela morte dos positivistas e pela destruição das igrejas e dos clubes positivistas (durante o período 1914-1919) quanto pela disseminação de um espírito fortemente metafísico, em particular em suas vertentes niilista, comunista e nacionalista (após 1919). Dessa forma, após 1945 o mundo já era “moderno” – mas não era, como ainda não é, positivo; derrotada a teologia de origem feudal, dizimada a positividade, a metafísica surgiu vitoriosa, em meio à disputa de duas grandes metafísicas: o comunismo soviético e a democracia liberal estadunidense.

Ambas as utopias metafísicas que se enfrentaram na segunda parte do século XX consistem em sistematizações de concepções opostas, confusas e parciais sobre a natureza humana, seja coletiva, seja individual; além disso, essas duas metafísicas são materialistas e democráticas, isto é, ambas apelam para a vontade todo-poderosa e voluntariosa do “povo”. Acuada pelo comunismo, a dupla metafísica democrático-liberal respeitou as liberdades individuais e procurou prover condições mínimas de existência para o proletariado dentro dos países centrais (negando esses fatores nos países periféricos); por seu turno, o comunismo limita ou rejeita as liberdades individuais, impõe uma doutrina oficial de Estado em nome da liberdade material coletiva e obriga as populações a ele submetidas a graves provações materiais e morais (tanto no antigo país-mãe do comunismo como em todos os demais países comunistas): assim, enquanto as repressões comunistas acabaram resultando na falência dessa metafísica, uma situação conjuntural – a pressão comunista – permitiu ao proletariado ocidental liberdades e elevação do padrão de vida. A falência comunista encerrou a Guerra Fria e, assim, a metafísica democrático-liberal deixou de sofrer o constrangimento externo que a moderava e evitava seus maiores desregramentos. Durante a Guerra Fria, as metafísicas mantiveram seu caráter belicista; acima de tudo, a chamada doutrina da “destruição mútua assegurada” (mutual assured destruction – MAD) impediu o conflito direto entre as duas potências-líderes dos blocos metafísicos: por outro lado, felizmente a Europa Ocidental pôde afinal deixar de lado os hábitos militaristas, em particular na forma dos nacionalismos estreitos, e assumiu a paz como ideal civilizacional, em vez de ser mera interrupção de conflitos.

Os desvios próprios à metafísica democrático-liberal conduziu, mal, o mundo após 1989-1991, primeiro na forma do triunfalismo do ultraliberalismo e, depois, na forma do militarismo estadunidense, que conjugava (como conjuga) a metafísica democrática com a concepção protestante do excepcionalismo norte-americano. Absolutista, a metafísica democrático-liberal (agravada pelo excepcionalismo protestante dos EUA) é incapaz de reconhecer as várias concepções de mundo e de, com relativismo, lidar com elas; em particular, essa metafísica é incapaz de reconhecer que a harmonia social exige não apenas liberdades individuais, mas também, e antes, o bem-estar coletivo, que inclui aspectos morais e intelectuais e não somente materiais. Em outras palavras, a metafísica da vontade do povo é incapaz de perceber que (1) a vontade curva-se ante as leis naturais e (2) que o povo estadunidense não corresponde aos povos dos demais países do mundo. Daí a incapacidade de os Estados Unidos constituírem, por meio de sua liderança, uma ordem internacional estável e progressista; daí a superficialidade da implantação da “democracia” ao redor do mundo – embora, como se saiba, muitos países regridam a concepções cripto-teológicas, ainda que profundamente marcadas pela metafísica da vontade popular, com os “tradicionalismos”, o comunismo e, de modo geral, os nacionalismos xenofóbicos renovados.

Tal angustioso cenário é contraposto, por outro lado, pela feliz constatação de que o ser humano, em meio às variações históricas de sua realidade, obedece afinal de contas a leis naturais – e que tais leis indicam o rumo a tomar: paz universal, relativismo, noção de Humanidade, com o abandono decisivo dos hábitos militares, das concepções absolutas e das noções sociais estreitas. A positividade – na forma da simpatia, da síntese e da sinergia, com a prevalência da continuidade sobre a solidariedade humana – prevalecerá, revelando-se como a única solução para esses problemas; mas podemos – e, portanto, devemos – acelerar na medida do possível, na medida das nossas forças, essa transição, ao difundirmos a positividade sistematizada[1].

Assim, é com muita alegria, muita satisfação e, principalmente, com muita esperança que apresento e dou as boas-vindas ao Apostolado Positivista da Itália, em particular na figura de seu Diretor, o Apóstolo Sebastiano. Sua dedicação ao Positivismo, à difusão da positividade já rende frutos, retomando a tradição positivista européia, cerca de um século após seu abrupto fim em decorrência da I Guerra Mundial.

Salut et Fraternité – ou, na versão em português: Saúde e Fraternidade!



[1] Comentário do meu amigo Hernani Gomes da Costa: sem a ação sistemática do Positivismo, o resultado da política mundial e nos vários países será a manutenção da terrível e cansativa oscilação entre o progresso anárquico e a ordem retrógrada.

29 março 2023

Comentários sobre a metafísica

No dia 3 de Arquimedes de 169 (28.3.2023) fizemos nossa prédica positiva. Na ocasião demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista (no caso, à sua sexta conferência, dedicada ao conjunto do dogma); em seguida, fizemos nosso sermão sobre o conceito de metafísica.

Antes da leitura comentada, lembramos que no dia 29 de março celebramos o aniversário de nascimento de David Carneiro, um dos maiores positivistas do Paraná e do Brasil (nascido em 1904). Além disso, lamentamos profundamente a violência ocorrida em 27 de março de 2023 em uma escola de São Paulo, em que a Professora Elizabeth Tenreiro foi brutalmente assassinada por um pré-adolescente profundamente perturbado.

As anotações sobre a metafísica que nos serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo. A prédica está disponível nos portais Apostolado Positivista (aqui: l1nk.dev/eVa7i) e Positivismo (aqui: l1nq.com/M1Xml); a exposição sobre a metafísica pode ser vista a partir de 1h 12".



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Comentários sobre a metafísica

 

-        A metafísica é um conceito bastante curioso em relação ao Positivismo: ele é secundário em termos intelectuais e políticos, mas, devido a uma série de fatores, acabou ganhando destaque

o   Uma indicação indireta mas eficiente dessa estranha relevância do conceito de metafísica: no meu blogue, o artigo “O Positivismo e o conceito de metafísica” corresponde a 7% das visitas (27.800/393.300), ocupando o primeiro lugar em artigos consultados; o segundo artigo mais lido (“Homem-Aranha positivista”) corresponde a cerca de 3,5% das visitas, ou seja, metade do primeiro lugar[1]

-        A metafísica tem certa relevância atual devido aos seguintes motivos:

o   Da parte do Positivismo: caráter metafísico da política contemporânea (individualismo, igualitarismo, academicismo, irracionalismo, militarismo, permanência do absoluto)

o   Da parte de fatores externos I: recuperação academicista de uma área chamada “metafísica” (ou “ontologia”)

o   Da parte de fatores externos II: confusão intencional entre as expressões “elaborações filosóficas abstratas” e “metafísica”

§  Essa confusão resulta em que a “metafísica” é entendida como sinônima de “filosofia”, de “especulações abstratas”, de “concepções de mundo”, de “moral”, de “epistemologia”

§  Exemplo clássico dessa confusão intencional: o título e o conteúdo de um livro famoso, As bases metafísicas da ciência moderna, de Edwin Burtt (de 1924, com edição brasileira de 1983)

o   Da parte de fatores externos III: crítica do Círculo de Viena à metafísica

§  Aparecem (ou reaparecem) aí o “problema da delimitação” e o “problema do empirismo”

-        Devido ao item anterior, antes de avançar para a exposição sobre o que o Positivismo entende por “metafísica”, é necessário deixar muito claro que, para o Positivismo, valem as seguintes concepções:

o   A filosofia é uma reflexão geral sobre a realidade humana, com caráter sintético

o   A Moral é tanto uma ciência quanto uma prática quanto uma “ética

o   A partir da historicidade humana, todas as concepções positivas têm base empírica; ainda que com freqüência sejam abstratas e passíveis de deduções, nossas concepções não são apriorísticas nem arbitrárias nem “voluntaristas”

-        Para o Positivismo, a metafísica é um conceito secundário, subordinado à teologia e mesmo à positividade:

o   Como sugeriu o equívoco sociólogo inglês Anthony Giddens, o conceito positivista de “metafísica” é metodológico e não substantivo: ele consiste em uma forma de entender (ou interpretar) a realidade

o   A metafísica consiste de modo geral na degradação da teologia, ocupando sempre um papel de transição entre alguma teologia e outro estado intelectual, seja uma outra teologia, seja a positividade

o   A metafísica, portanto, é tanto um elo (de maneira ampla: entre teologia e positividade) quanto teologia degradada

o   Sendo um elo, a metafísica compartilha características dos extremos cuja ligação realiza

§  Na passagem da teologia para a positividade, dependendo do caso em questão, a metafísica compartilha, por um lado, ou mais as abstrações fictícias e irracionais da teologia ou, por outro lado, mais o esforço racionalizante e empírico da positividade

§  Em certo sentido, portanto, é possível entender a metafísica como a secularização da teologia (mas secularização bastante equívoca)

o   Sendo teologia degradada:

§  A metafísica mantém o caráter absoluto da teologia, buscando entender o mundo por meio dos “porquês”, mas atribuindo as explicações, ou melhor, as vontades às puras abstrações, que passam a atuar como se tivessem vontade humana

§  Além disso, a metafísica assume um forte caráter crítico, destrutivo, dissolvente: seu objetivo é destruir, é degradar

§  A combinação das duas características acima – o absoluto e a criticidade sistemática – resultam que é possível verificarmos até mesmo a metafísica científica (ou, inversamente, a ciência metafísica), na forma do academicismo, do cientificismo e dos vícios opostos do materialismo e do espiritualismo

-        A metafísica adota as abstrações personificadas para explicar o mundo: no âmbito da Sociologia, exemplos fáceis são o “mercado” (ou “a mão invisível”), o “capitalismo”, o “patriarcado”

o   Como a metafísica emprega as abstrações, o que fica evidente é que ela surge a partir do desenvolvimento sistemático da abstração; em outras palavras, como o fetichismo é concreto, a metafísica é “pós-fetichista” e, portanto, surge propriamente a partir da teologia

o   A metafísica também pode ser entendida como a desregulação, ou a atividade desregulada, das abstrações, que perdem cada vez mais as relações com a realidade empírica

§  Juntamente com a atividade desregulada das abstrações, a metafísica também apresenta um forte caráter verborrágico

o   As características da natureza humana são mais desenvolvidas durante a teologia (como na tríplice transição ocidental, entre Grécia, Roma e Idade Média); entretanto, cabe à positividade a necessária e imperiosa tarefa simultânea de (1) regular e regularizar as relações entre essas características, (2) restabelecer a dignidade das concepções concretas e (3) regular e regularizar o emprego das abstrações

-        Em termos de história ocidental, o duplo movimento moderno, posterior à Idade Média, combinou a degradação metafísica da teologia e a construção positiva; esse duplo movimento resultou na grande crise de 1789 (a Revolução Francesa)

o   Desde então, o Ocidente já não vive mais sob a égide da teologia – apesar em particular da retrogradação desenvolvida e estimulada pelos Estados Unidos – mas os esforços e o impulso da positividade ainda não foram capazes de superar a dinâmica anárquica entre retrogradação e revoluções, bem como também não conseguiram superar o forte impulso metafísico estimulado pelo Ocidente, em particular após a I Guerra Mundial

-        A política contemporânea, portanto, é amplamente metafísica:

o   Não se trata apenas, por exemplo, da nefasta e atual política identitária, cujas características destruidoras, particularistas e irracionalistas são bastante conhecidas

o   A política contemporânea é metafísica devido aos seus valores profundos, às suas concepções e às suas práticas: seja com o identitarismo, seja com o individualismo, seja com a exaltação do egoísmo e da concepção egoístico-negativa da natureza humana, seja com seu radical impulso destruidor, seja com a concepção de que a vida em sociedade é eterno e permanente conflito (“política agonística”)

§  É evidente que a política contemporânea ser metafísica em geral não impede que muitos políticos sejam mais ou menos positivos

§  Mas, por outro lado, convém lembrar que a permanência e o aprofundamento da metafísica estimulam movimentos retrógrados

-        Para concluir estes comentários, duas citações:

o   Há uma piada corrente na internet, baseada em uma frase de Voltaire, que define da seguinte maneira virtualmente positivista a filosofia, a teologia, a metafísica e a ciência:

Filosofia é estar em um quarto escuro procurando um gato preto.

Metafísica é estar em um quarto escuro procurando um gato preto que não está ali.

Teologia é estar em um quarto escuro procurando um gato preto que não está ali, mas gritando “achei!”

Ciência é estar em um quarto escuro procurando um gato preto usando uma lanterna.

-        A música Hier encore (“Ainda ontem”), do cantor francês Charles Aznavour, apresenta os lamentos de um velho que se arrepende profundamente do tempo perdido em sua vida, especialmente em sua juventude: os vícios de que ele arrepende-se, na segunda e na terceira estrofe, parecem-me todos eles decorrentes de uma postura metafísica em face da vida:

 

Ainda Ontem[2]

Charles Aznavour

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Acariciava o tempo e brincava com a vida

Como se brinca com o amor.

E vivia à noite

Sem contar meus dias, que fugiam no tempo,

Fiz tantos projetos que ficaram no ar,

Alimentei tantas esperanças que bateram as asas,

Que continuo perdido, sem saber aonde ir,

Com os olhos procurando o céu, mas com o coração posto na terra.

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Desperdiçava o tempo, acreditando detê-lo

E, para retê-lo, e até ultrapassá-lo,

Só fiz correr e perdi o fôlego.

Ignorando o passado, conjugando no futuro,

Começava qualquer conversa com “Eu”.

E dava minha opinião, que pensava ser a melhor,

Para criticar o mundo com desenvoltura.

 

Ainda ontem eu tinha vinte anos

Mas perdi meu tempo a cometer loucuras

Que não deixam, no fundo, nada de realmente concreto

Além de algumas rugas na testa e medo do tédio.

Pois meus amores morreram antes de existir

Meus amigos partiram e não mais voltarão.

Por culpa minha, criei o vazio à minha volta

E desperdicei a vida e meus anos de juventude.

Do melhor e do pior, descartando o melhor,

Imobilizei meus sorrisos e congelei meu pranto.

Onde estão agora, agora, meus vinte anos?



[1] A medição, mesmo que aproximada, foi feita em 28.3.2023.