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14 dezembro 2022

Reconstrução da República, universalismo e anti-identitarismo

RECONSTRUÇÃO DA REPÚBLICA COMO TAREFA NECESSARIAMENTE UNIVERSALISTA E ANTI-IDENTITÁRIA[1]

 

A feliz e necessária derrota eleitoral do fascista, no dia 30 de novembro de 2022, muito mais que permitirá, na verdade obrigará o Brasil e os brasileiros a reconstruírem o país a partir de 1º de janeiro de 2023, desde as instituições até os hábitos de convívio. Será um caminho longo, difícil e demorado; o fascismo e os fascistas destruíram muito do país, permanecendo sua capacidade de atrapalhar o país, como se vê nos distúrbios no Norte e no Centro-Oeste do país, na violência em Brasília, na violência disseminada e relegitimada, na ressurgida baderna militar etc.

Mas há um aspecto que está escapando a todos, ou, pelo menos, à maioria.

A reconstrução necessária ao Brasil é em termos de República, de republicanismo: cidadania, valores compartilhados, isonomia (igualdade perante a lei), serviços públicos de qualidade. Todos esses aspectos são universais.

O fascista tornou-se governante com base no ódio e no projeto de destruir o país, mas também no particularismo e no facciosismo.

Assim, para que o país seja reconstruído, para que a sociedade e o Estado brasileiro recuperem-se da destruição sistemática sofrida nos últimos quatro anos, serão necessárias políticas e práticas universalistas.

Pois bem: as práticas e as políticas universalistas são práticas republicanas e dirigem-se a todos (ainda que, às vezes, concentrem-se em determinados grupos específicos). Essas práticas são universalistas e, por definição, são contra os particularismos e os facciosismos.

O republicanismo necessário à reconstrução do país repele, portanto, a política identitária. Repito: o necessário republicanismo repele a política identitária. Não adianta dizer que existe política identitária “do bem” (que seria, supostamente, a política identitária da esquerda) contra a política identitária “do mal” (a da direita): a política identitária por si só já é daninha, ruim e do mal. A política identitária é exclusivista, facciosista, particularista; ela baseia-se na afirmação de um grupo particular contra todos os outros; ela baseia-se no ressentimento social e político. Não é nenhum acaso que a política identitária recuse terminantemente o republicanismo e, por extensão, o universalismo.

A necessária reconstrução social e institucional interna do Brasil, bem como a necessária reconstrução da atuação internacional do Brasil, exigem a visão de conjunto; mas a política identitária rejeita (ou melhor, despreza) a visão de conjunto.

Aceito sem dificuldade que muitos grupos identitários apóiam a saída do fascista: isso é uma questão fática. Entretanto, tenhamos claro: os grupos identitários que se opuseram ao fascista opuseram-se a ele não porque esses grupos apoiam o republicanismo ou universalismo, mas apenas porque o identitarismo do fascista opõe-se ao identitarismo desses grupos. Em outras palavras, os identitários de esquerda opõem-se aos identitários de direita apenas porque só sabem locomover-se no âmbito de seus particularismos e seus facciosismos, não porque defendam o republicanismo e o universalismo.

Repito novamente: a reconstrução do Brasil exige, como deveria ser evidente, uma perspectiva universalista (seja em termos nacionais, seja em termos internacionais), mas a política identitária rejeita esse necessário universalismo.

Por que eu faço essas observações? Porque eu tenho certeza de que a partir de 1º de janeiro de 2023 o facciosismo identitário (de esquerda) dirá que quem é contra esse facciosismo é “retrógrado” ou contra o “progresso” – como se o verdadeiro progresso aceitasse o facciosismo ou como se os identitários valorizassem de verdade o progresso.

 



[1] Este texto é uma versão levemente alterada de uma postagem feita em 6 de dezembro de 2022, em minha conta pessoal do Facebook. Disponível em: https://www.facebook.com/gblacerda1977/posts/pfbid0gat4SevMeX2r6sDGSMc7uCNfyiSWq4zAGv1zFvTgTJHipjzyVzErq8viuCznYXz6l; acesso em: 14.12.2022.

26 outubro 2022

A bandeira nacional republicana não é fascista

Em face da presente situação social e política por que atravessa o Brasil - e, na verdade, bem vistas as coisas, o Ocidente de modo geral -, consideramos que não podemos omitir-nos; assim, elaboramos uma declaração, convertida em abaixo-assinado.

O abaixo-assinado está disponível aqui: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657.

*   *   *

A bandeira nacional republicana não é fascista

Os abaixo-assinados – quer sejam positivistas, quer não sejam positivistas; reconhecendo e respeitando os valores e princípios subjacentes aos símbolos nacionais brasileiros, em particular a bandeira nacional republicana; reconhecendo a dramática situação política, social, intelectual e econômica vivida pelo Brasil no ano de 2022; considerando a apropriação cada vez mais reiterada dos símbolos nacionais por grupos sociais e políticos particularistas, violentos e intolerantes – têm a dizer o seguinte.

1. Os valores da bandeira nacional

A bandeira republicana brasileira foi instituída como símbolo nacional em 19 de novembro de 1889, quatro dias após a Proclamação da República, em 15 de novembro de 1889. Ela foi elaborada por Raimundo Teixeira Mendes a partir das indicações precisas do fundador da Sociologia, do Positivismo e da Religião da Humanidade, Augusto Comte.

Símbolo nacional maior por excelência, ela une de maneira simples, elegante e harmônica o desenvolvimento histórico e a continuidade social, ao manter o fundo verde e amarelo da bandeira monárquica e ao inserir a esfera estrelada azul e a divisa política “Ordem e Progresso”, próprias à evolução republicana do país. Assim, essa bandeira segue a inspiração de “preservar melhorando”, de acordo com as leis da sociologia dinâmica descobertas por Augusto Comte.

A frase “Ordem e Progresso” representa o ideal de unir indissoluvelmente duas perspectivas políticas até então opostas, o respeito à ordem e a necessidade de progresso. Separadas, cada uma dessas perspectivas torna-se antagônica em relação à outra, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância.

Em particular, o respeito à ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado que se submete ao seu comandante. Nada disso é liberdade ou cidadania, mas autoritarismo, militarismo e submissão abjeta.

2. A política positiva

A bandeira nacional republicana, bem como a divisa “Ordem e Progresso”, inspiram-se e representam os conceitos da política positiva; estes, por sua vez, podem ser sumariados como seguem:

-        subordinação da política à moral: subordinação da política aos princípios e valores maiores da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à Humanidade; subordinação das perspectivas específicas e particulares às concepções gerais e mais amplas; primado da publicidade e da racionalidade na vida coletiva, em particular nas ações com resultados públicos; afirmação dos deveres sociais, em particular responsabilizando claramente os fortes, os poderosos e os ricos por suas ações e omissões;

-        separação entre os poderes Temporal e Espiritual: rejeição de todo e qualquer clericalismo (teológico, metafísico e científico); rejeição do uso do Estado para promoção ou repressão de crenças, exceto no caso em que elas estimulem e/ou provoquem a violência; rejeição da eleição ou da indicação de sacerdotes para cargos públicos; defesa das liberdades de pensamento, de expressão e de associação;

-        pacifismo: rejeição de toda e qualquer violência na política (seja do Estado contra os cidadãos, seja dos cidadãos entre si), em particular na forma das agressões de policiais contra cidadãos; rejeição da atuação de militares e policiais na política; possibilidade de manifestar livremente as idéias e as concepções pessoais sem correr nenhum risco (físico e/ou profissional) por isso;

-        relativismo: prática da tolerância para com as diferentes crenças e religiões; respeito e proteção às comunidades indígenas; condenação de toda prática violenta na vida social.

3. Os fascistas contra o Positivismo

Desde pelo menos 2019, grupos fascistas e de extrema-direita têm manifestado a pretensão de tomar exclusivamente para si, de maneira sectária, a bandeira nacional republicana, incluindo aí o “Ordem e Progresso”. Diversas manifestações desses mesmos grupos evidenciam, entretanto, não somente que eles afastam-se dos ideais expressos na bandeira nacional republicana e no “Ordem e Progresso” como, ainda mais, são opostos e desprezam esses valores.

Assim, por exemplo, o mote do atual governo federal, que resume o programa fascista, é “Brasil acima de tudo e deus acima de todos”. Essa única frase rejeita ao mesmo tempo os princípios (1) da subordinação de todas as pátrias aos supremos interesses da Humanidade e (2) da separação dos poderes Temporal e Espiritual; inversamente, ela (1) estabelece como parâmetro de conduta o nacionalismo mais estreito e (2) estabelece a imposição oficial de doutrina teológica. Se isso não bastasse, o verso “Brasil acima de tudo” não por acaso retoma a frase empregada pelo regime nazista, “Alemanha acima de tudo” (Deutschland über alles).

Da mesma forma, não podemos esquecer as reiteradas manifestações de profundo ódio e preconceito político desses grupos contra o Positivismo, com o que mais uma vez evidenciam que desprezam os valores da bandeira nacional e o “Ordem e Progresso”:

-        “Os positivistas são lixo que necessitam ser expurgados” (Carlos Bolsonaro, 8/3/2020)

-        “Os positivistas são o pior câncer do Brasil” (Carla Zambelli, 5/7/2020)

-        “Enquanto a gente não resolver o positivismo, a gente não consegue desmontar o comunismo, socialismo, a esquerda no Brasil” (Abraham Weintraub, 27/6/2022).

4. Declaração final

Os valores, os ideais, as concepções subjacentes à totalidade da bandeira nacional republicana, incluindo aí a divisa “Ordem e Progresso”, condensam os melhores e mais altos princípios da política moderna. Todos esses princípios são profundamente estranhos à filosofia e à prática do fascismo. Mais do que isso: como se sabe, o fascismo baseia-se no estímulo sistemático e no uso político da violência; na militarização e na “policialização” da sociedade; na imposição de crenças pelo Estado e na busca de supressão das crenças não oficiais; no nacionalismo extremado, na xenofobia, na intolerância.

É em virtude de todos esses motivos que afirmamos sem medo de errar:

A BANDEIRA NACIONAL REPUBLICANA NÃO É FASCISTA!

06 setembro 2022

O verdadeiro antifascismo exige a autocrítica da esquerda

Eu sou antifascista; quem conhece-me sabe disso. Sou a favor da fraternidade e da liberdade, da harmonia e da paz, do desenvolvimento e do progresso. Enfim, sou um positivista.

O que eu escreverei, entretanto, desagradará muita gente.

O fascista e seus acólitos conspurcam, há muito tempo, os símbolos nacionais, a começar pela Bandeira Nacional e seguindo para o Hino Nacional (embora, evidentemente, por felicidade eles desconheçam outros símbolos).

Há gente autodenominada "progressista", gente de "esquerda" que, há algum tempo, tem denunciado essa conspurcação.

Mas a verdade é que a esquerda - os marxistas e outros grupos - tradicionalmente cuspiu nos símbolos nacionais: seriam "burgueses", "imperialistas", "alienantes". Da mesma forma, figuras heróicas, pacifistas, a favor da cooperação nacional e internacional, republicanas foram desprezadas e vilipendiadas em nome da "consciência crítica", da "consciência de classe" etc.: Tiradentes, José Bonifácio, Benjamin Constant, Cândido Rondon. Mas também dos símbolos internacionais: Danton, Jefferson, Toussaint Louverture. Atualmente, o reacionarismo identitário de esquerda inclui aí Colombo, James Cook... até mesmo Churchill!

No lugar dos símbolos nacionais, essas esquerdas sempre apresentaram a efígie de Che Guevara, de Lênin, de Stálin; a foice e o martelo, a Internacional Socialista, a luta de classes.

Desde criança leio, ouço e vejo manifestações reiteradas nesse sentido de políticos e de intelectuais de esquerda, sempre "progressistas". Com frequência ouço e leio que devemos ser "críticos" e que, por isso, "não precisamos de heróis" - com isso querendo dizer que as grandes personalidades da nossa história, aquelas que se dedicaram intensamente ao nosso país e à Humanidade, não merecem respeito nem consideração... mas isso apenas para que, logo em seguida, sejam apontados "heróis" "críticos", que diametralmente negam os valores do bem comum, da fraternidade, da liberdade: não o bem comum, mas o particularismo de classe.

(Quando criança, nos anos 1980, fazer a bandeira nacional na aula de artes era visto como brega, tolo, sem criatividade... talvez até fosse sem criatividade, mas, no final das contas, qual o problema? Na ausência de criatividade, um símbolo que une todos os brasileiros não é um bom exercício?)

Assim, não é à toa que os fascistas conseguem ao mesmo tempo afirmarem-se como "conservadores", "antiprogressistas" e também "patriotas". Se os "progressistas" são particularistas, destruidores e antinacionais, os fascistas têm todo o espaço do mundo para rejeitarem esse "progresso" (que é ao mesmo tempo falso e hipócrita) e serem conservadores (ou, ainda mais: para serem reacionários), mantendo o caráter destruidor e o particularismo (mas o particularismo nacionalista).

O combate ao fascismo no Brasil exige que essa esquerda faça uma autocrítica conscienciosa, profunda e urgente. Se hoje os símbolos nacionais são tomados pelos fascistas, isso implica, sim, culpa da esquerda. O particularismo nacional é afirmado em negação ao particularismo de classe na exata medida em que o particularismo de classe despreza os valores universais que abrangem também os valores nacionais.

No Brasil, mas também na Europa (a começar pela França), o Positivismo sempre foi alvo prioritário dos "progressistas" de esquerda e pelos reacionários de direita - e pelos mesmos motivos. Os positivistas somos a favor da fraternidade, da liberdade, da dignidade, da responsabilidade social, dos deveres, do "viver às claras" - e do pacifismo. Por isso mesmo, somos contra os particularismos de classe, de país, de "raça" e de sexo; somos contra a violência. A esquerda habitualmente foi contra o Positivismo porque somos contra o violento particularismo de classe; a direita é contra o Positivismo porque somos contra o violento particularismo nacionalista. (
Não foi à toa que, no Brasil, o ocaso do Positivismo, no final dos anos 1920, conduziu aos violentos particularismo de classe, de "raça" e de país nos anos 1930-1940.)

Em suma: n
ão é possível ser antifascista e fingir que setores importantes da esquerda não foram antinacionais, que não desprezaram os símbolos nacionais - mesmo e principalmente quando os símbolos nacionais afirmavam a fraternidade, a cooperação, a harmonia, a dignidade. Se isso não ocorrer, de nada adiantará derrotar eleitoralmente o fascismo no ano do bicentenário do Brasil.

25 fevereiro 2021

Correio da Manhã: em 1964, "Militares invadem o Clube Positivista"

Na noite de 10 de abril de 1964, a sede do Clube Positivista, na Cinelândia (Zona Sul do Rio de Janeiro), foi invadida por militares em busca de material "subversivo". Essa invasão ocorreu em altas horas (quase meia-noite) por policiais que portavam metralhadoras e que arrombaram a porta do Clube e confiscaram arquivos e documentos variados.

É notável que essa invasão tenha ocorrido menos de dez dias após o golpe militar, em 1º de abril de 1964; considerando que havia alguns militares de alta patente no Clube Positivista (seu presidente era o Vice-Almirante Alfredo de Morais Filho), a única conclusão possível é que essa invasão foi ordenada por militares fascistas e antinacionalistas - entre os quais se incluíam golpistas contumazes, como Olympio Mourão Filho e Góes Monteiro (este último faleceu em 1956, mas era conhecido seu ódio pelo Positivismo e pelos militares positivistas).

Também é digno de nota que o Vice-Almirante Morais condenou a invasão como sendo um ato de violência pura e arbritrária e que, no final das contas, seria inútil, pois exercer-se-ia contra as crenças íntimas das pessoas (no caso, contra o Positivismo e a Religião da Humanidade); tal violência seria em si inútil contra crenças e, ainda mais, teria como um efeito possível o reforço das crenças ameaçadas.

Essa invasão foi noticiada no dia 12 de abril de 1964 no jornal Correio da Manhã (ed. B21.786, caderno 1, p. 12). Tivemos acesso a ela por meio do portal da Biblioteca Nacional, que digitalizou esse periódico no projeto "Hemeroteca Digital Brasileira". O original da notícia pode ser consultado aqui.

Abaixo reproduzimos a página do jornal com a notícia em questão.


Fonte: http://memoria.bn.br/DocReader/Hotpage/HotpageBN.aspx?bib=089842_07&pagfis=59224&url=http%3A%2F%2Fmemoria.bn.br%2Fdocreader&fbclid=IwAR3gJ42QukGZ26hxJ9DSZoNa9SRQN9WTHgtoMCdE3dHfO4INNaGg8kxxMOc#

31 outubro 2020

Mensagem enviada a Federico Finchelstein sobre Augusto Comte

Federico Finchelstein é um historiador argentino, radicado nos EUA, que teve um livro recém-publicado no Brasil, Uma breve história das mentiras fascistas (Belo Horizonte, ed. Vestígio, 2020).

O livro é interessante e corresponde a uma necessidade urgente - conhecer e entender como o fascismo mente, quais são as mentiras que ele difunde, quais são os efeitos sociais e políticos disso.

Exatamente devido a essa importância foi que percebi, com tristeza e alarme uma observação casual, mas profundamente errada e mesmo venenosa, em que o autor em poucas palavras repete mitos e desinformações sobre Augusto Comte. Assim, enviei-lhe a mensagem abaixo; a importância do combate a esses mitos leva-me a publicar a mensagem enviada.

*   *   *

Caro Prof. Federico:

Meu nome é Gustavo Biscaia de Lacerda; sou Doutor em Sociologia Política, Sociólogo da Universidade Federal do Paraná e especialista em história das idéias. Como você é argentino, creio que posso escrever em português sem o receio de não ser entendido.

Como cidadão brasileiro, a política recente de meu país tem sido fonte de grande apreensão desde 2018, sendo muito maior e pior neste ano de 2020, com a pandemia de covid-19, as queimadas criminosas na Amazônia e no Pantanal e vários outros crimes e loucuras cometidos pelo fascista Bolsonaro. Por esses motivos, comprei com grande interesse a edição brasileira de seu livro A Brief History of Fascist Lies, recém-lançado no país.

O seu livro é muito interessante e cumpre um importante papel político neste momento. Uma passagem dele, todavia, chamou-me a atenção, pois está totalmente errada, o que diminui um pouco o brilho de seu livro; a passagem em questão afirma que Augusto Comte (1) seria um autor “antidemocrático” e “anti-individualista” e (2) que desejaria uma “verdade absoluta na política”; além disso, ao relacioná-lo a Joseph de Maistre, você (3) sugere que Comte seria um autor reacionário e, portanto, claramente dá a entender que ele seria um ancestral dos fascistas. (Isso está no cap. 2, p. 43, da edição brasileira.)

No que se refere a Comte, é com tristeza que noto que suas afirmações são equivocadas do início ao fim, não tanto nas expressões empregadas, mas no sentido que você empresta a elas; o problema, portanto, é semântico.

Sobre o “anti-individualismo”: esse mito, que cumpre funções de desinformação, tem origem em uma tradição intelectual radicalmente individualista e anticoletivista, que entende qualquer consideração “social”, radical e necessariamente, como sendo anti-indivíduo. Essa tradição tem origem pelo menos na Inglaterra do século XIX, com ninguém menos que Stuart Mill, e seguiu no século XX com ultraliberais como Hayek e (em uma tradição particularmente estadunidense) Ayn Rand.

Comte era contra o individualismo, mas não contra os indivíduos e as individualidades; em outras palavras, ele era contrário ao egoísmo erigido em norma político-social e em parâmetro de análise sociológica. Ao contrário de tradições sociológicas “holísticas”, em Comte a afirmação da primazia lógica e histórica da sociedade sobre o indivíduo não implica a negação da realidade política e moral do indivíduo; muito ao contrário, essa primazia permite situar social e historicamente cada indivíduo e, ao mesmo tempo, estabelece parâmetros morais para as atividades desses mesmos indivíduos. (Como eu disse antes, aqui se trata de um problema semântico.)

A “antidemocracia” de Comte refere-se ao caráter metafísico da “democracia” e da “soberania popular”, que sempre foram afirmadas como maneiras de negar a soberania divina dos reis, transferindo o capricho arbitrário dos reis para o capricho arbitrário dos “povos” (que, por sua vez, são representados pelos “líderes”). Na crítica filosófico-política que Comte faz à democracia não há nada que se refira às liberdades individuais, às liberdades de pensamento e de expressão, às garantias constitucionais de proteção aos indivíduos etc. Evidentemente, para Comte a democracia não é o regime das liberdades; em vez de falar em “democracia”, ele fala em “República”. (Como eu observei antes, trata-se aqui, mais uma vez, de um problema semântico.)

No que se refere ao desejo de uma “verdade absoluta na política”, eu fico sem saber de onde ela pode ser surgido. Comte era um autor que desde o início de sua carreira afirmava, com todas as letras, que “o único absoluto é que só existe o relativo”; a negação do absolutismo filosófico e a afirmação do relativismo foi uma das maiores constantes da carreira de Comte, ampliando-se cada vez mais à medida que o tempo passava. A referida rejeição da “democracia”, por exemplo, baseava-se exatamente nisso: tanto a “soberania divina dos reis” quanto a “soberania dos povos” eram absolutas - e, por isso mesmo, arbitrárias, caprichosas e sem o menor controle racional e/ou social -, devendo ser substituídas pelo relativismo do regime republicano, com liberdades públicas dirigidas ao bem comum. Aliás, enquanto no caso do “anti-invididualismo” e do “antidemocratismo” de Comte o problema é de manipulação semântica, no caso de uma “política absoluta” o problema é de outra ordem: trata-se da projeção aos inimigos dos defeitos próprios, isto é, os inimigos de Comte projetam nele os seus próprios desejos de uma “política absoluta”... é triste perceber que esse procedimento seja inadvertidamente adotado em um livro que combate as manipulações fascistas.

Por fim, a aproximação de Comte a De Maistre é um procedimento velho, que escamoteia totalmente a igual proximidade de Comte com Diderot, Condorcet, com os republicanos franceses de 1848, com sua oposição a Napoleão III etc.

Se tiver tempo e interesse, há vários livros que tratam dessas questões em profundidade. Há um antigo, de Jean Lacroix, La Sociologie d’Auguste Comte, assim como um mais recente, de Laurent Fedi, Comte.

Eu mesmo tenho inúmeros livros sobre essas questões, como pode ver aqui; também é possível ler a versão original da minha tese de doutorado (PhD thesis) aqui.

Saúde e Fraternidade,

Dr. Gustavo Biscaia de Lacerda.

14 julho 2020

Insight Inteligência: "Brasil vive crise moral"

A revista Insight Inteligência - que se dedica a (in)formar a opinião pública por meio de artigos com debates políticos mais profundos que o habitual dos jornais diários, mas sem os formalismos acadêmicos - publicou em seu número 89 um artigo de nossa autoria sobre a crise política e moral que vive o nosso país há alguns anos.

O texto pode ser lido aqui. Já a versão completa da revista, com o nosso texto diagramado em formato PDF, pode ser lido aqui.

A versão original do texto, com algumas pequenas diferenças de estilo em relação ao publicado na revista, está reproduzida abaixo. 


*   *   *


Mais que crise política, o Brasil vive uma crise moral[i]

 

A sã política é filha da moral e da razão
(José Bonifácio)

Agir por afeição e pensar para agir
O amor por princípio e a ordem por base; o progresso por fim
(Augusto Comte)


Fonte: https://insightinteligencia.com.br/mais-que-crise-politica-o-brasil-vive-uma-crise-moral/

O Brasil atravessa uma crise político-moral

 

Já virou um triste mas correto senso comum dizer que o Brasil atravessa desde há vários anos uma crise política; essa crise, como facilmente se percebe, é também moral, no sentido de que a própria atividade política encontra-se profundamente desmoralizada. Essa desmoralização, por sua vez, também se deve a motivos de caráter moral, em particular a percepção, certa ou errada mas com certeza generalizada, de que os políticos profissionais costumeiramente não falam a verdade; de que eles não buscam o bem comum em suas atividades cotidianas; de que são corruptos e corruptores: assim, a percepção é que os políticos são mentirosos, mesquinhos e corruptos. Por extensão, os partidos políticos e as instituições republicanas (aí incluídos os membros do poder Judiciário) são vistas não como a serviço dos cidadãos e do país, mas dos próprios políticos. Tudo isso conduz a uma forte crise de legitimidade, ou seja, da adesão subjetiva dos cidadãos à ordem política vigente[ii].

Realismo ou moralismo?

 

Muitas das críticas político-morais feitas contra o nosso sistema político são mais ou menos ingênuas e por vezes equivocadas, ao passo que outras são bastante densas e certeiras. Muitos analistas políticos costumam chamar pejorativamente as críticas morais de “moralistas”, com isso querendo reduzi-las todas a concepções ingênuas, altamente abstratas e desvinculadas da realidade; o moralismo, nesse sentido, seria uma visão “idealista”, que despreza as negociações e as disputas de interesses e que pretende que todos os políticos sejam como que vestais[iii]. Os analistas que denunciam o moralismo adotariam, por sua vez, uma concepção “realista”, que aceita que a política é uma constante disputa entre grupos de interesses e indivíduos que desejam repartir entre si o mando, as riquezas e o status resultante do poder político.

Deveria ser claro que não se pode nem desprezar as críticas de caráter moral como sendo simples moralismo, nem querer que a prática política seja a atividade de indivíduos sempre modelares. Os autoproclamados “realistas” não raro são cínicos que reduzem a política ao enfrentamento de grupos opostos; no limite, para eles a política é uma forma disfarçada de guerra[iv]. Já os apodados de “idealistas” muitas vezes rejeitam de maneira efetivamente ingênua e tola as necessárias negociações e transações (inclusive os processos de convencimento) que devem sempre ocorrer para que os assuntos públicos sejam levados a cabo.

Para o ser humano agir, a realidade sempre tem que ser idealizada: isso quer dizer que temos que ter noções gerais mais ou menos ideais guiando-nos em nossas condutas, indicando o que é certo e o que é errado, da mesma forma que o que pode e o que não pode ser feito, assim como quais os principais grupos sociais que atuam e porquê. Nesses termos, idealidade e realidade andam de mãos dadas, em que por um lado reconhece-se a legitimidade das negociações e da atividade própria aos políticos e, por outro lado, proclamam-se com clareza os princípios e os valores que estruturam, limitam e norteiam a ordem política. Como dizia o grande fundador da pátria brasileira, José Bonifácio: “a sã política é filha da moral e da razão”.

Aprofundando o entendimento da “moral”

 

As observações acima são apenas uma introdução para discutirmos a profundidade da crise moral que atravessamos. Na verdade, após superarmos a tola dicotomia entre realismo e moralismo, temos que aprofundar o entendimento do que seria a “moral”. O melhor caminho para isso – e não por acaso, diga-se de passagem – é o indicado pelo Positivismo, ou seja, pelas longas elaborações de Augusto Comte.

Para Comte, a Moral é a ciência suprema, aquela que resume todas as ciências abstratas anteriores[v], que se caracteriza pela identidade entre sujeito e objeto e pelo menor grau de abstração em seus estudos, que realiza naturalmente a transição entre o conhecimento abstrato (científico) e a atividade prática (das artes práticas) e que, assim, que estabelece os parâmetros de conduta coletiva e individual. Todos esses atributos da Moral – que de maneira muito, muito imperfeita poderíamos chamar de “Psicologia” e de “Pedagogia” – baseiam-se na própria natureza humana, isto é, na constituição cerebral do ser humano. O homem é um ser que age buscando a satisfação de seus instintos, sendo que a inteligência atua aí para esclarecer o mundo, o próprio homem e os meios possíveis para tal satisfação. Ocorre que a respeito dos “instintos” não se deve ter uma concepção rasa, como as que identificam os instintos com a fome e os impulsos sexuais; isto é, sem dúvida que a fome e o impulso sexual integram o quadro de instintos, mas não são os únicos nem os principais. O que importa notar é que, além do egoísmo – que Augusto Comte identificou como composto pelos instintos nutritivo, sexual, materno, destrutivo, construtivo, orgulho e vaidade –, o ser humano possui o altruísmo – composto pelo apego, pela veneração e pela bondade. Não há dúvida de que o egoísmo é mais forte que o altruísmo; entretanto, essa maior força não equivale à inexistência do altruísmo – como, aliás, os “realistas” e os cínicos costumam afirmar – nem equivale a que o egoísmo seja sempre dominante com a mesma intensidade.

O que importa notar é que o ser humano – da mesma forma que os animais superiores, como o cachorro, o cavalo, a vaca e até o gato – é naturalmente altruísta e que desde sempre esse altruísmo atua. Mais do que isso: à medida que o ser humano desenvolveu-se historicamente, o altruísmo tornou-se mais ativo e, portanto, mais forte. Se nos proverbiais tempos pré-históricos o ser humano mantinha-se em pequenos grupos familiares para comer, reproduzir-se e proteger-se, à medida que as associações sociais aumentaram os traços de nossa natureza que submetem e disciplinam o egoísmo tornaram-se cada vez mais intensos: a própria noção de “disciplina” exige a subordinação do indivíduo a uma ordem externa (objetiva e subjetiva), da mesma forma que todo aperfeiçoamento requer que um indivíduo ou um grupo reconheça suas próprias limitações e suas próprias imperfeições e, assim, submeta-se a outrem. A noção de “Humanidade” desenvolveu-se gradativamente, superando as limitações familiares e pátrias; com isso, a veneração cedeu lugar primeiro para o apego e estes dois, por sua vez, abriram espaço para a bondade universal.

A ciência da Moral de Augusto Comte apresenta inúmeras outras características; mas, além do caráter inato do altruísmo e do seu desenvolvimento histórico, uma das mais importantes descobertas do fundador da Religião da Humanidade foi que é apenas o altruísmo que é capaz de disciplinar moralmente um indivíduo, ao oferecer um princípio interno capaz de orientar os vários instintos. O egoísmo, em contraposição, caso deseje tornar-se o guia geral, fica sempre em uma constante disputa entre os seus vários instintos, sem que nenhum consiga obter a ascendência sobre os demais: em outras palavras, a harmonia mental e a conduta regrada surgem apenas quando o altruísmo disciplina e orienta o egoísmo.

Considerando essa relação entre egoísmo e altruísmo, Augusto Comte definiu-a como sendo própria aos sentimentos (evidenciando, assim, as maiores importância e dignidade do altruísmo em relação ao egoísmo). Os sentimentos são a base, são a origem das ações humanas; ao mesmo tempo, os sentimentos são os objetivos de nossas ações; em outras palavras, agimos movidos pelos sentimentos com vistas à satisfação dos sentimentos. A inteligência, como indicamos antes, ocupa um papel secundário, ainda que da maior importância, nessa economia moral: é a inteligência que explica o mundo e o homem e, portanto, permite que a realidade faça sentido; além disso, a inteligência esclarece quais são os meios possíveis (eventualmente os mais adequados) à consecução dos nossos objetivos[vi]. Essa dinâmica foi sintetizada por Augusto Comte da seguinte maneira: “agir por afeição e pensar para agir”.

É claro que, embora a inteligência tenha um papel instrumental na economia humana, ela não é inerte, ou seja, ela é ativa e funciona com relativa autonomia. Isso resulta em dois problemas sucessivos para a inteligência: por um lado, ela pode buscar soluções para problemas propostos pelo altruísmo ou pelo egoísmo; como vimos, é necessário que ela sirva o altruísmo; por outro lado, a inteligência atua e obtém resultados, que podem ser utilizados pelo altruísmo ou pelo egoísmo[vii]. Dito de outra maneira: não apenas os fins que buscamos têm sempre que ser altruístas, como as possíveis soluções para esses objetivos têm sempre que ser altruístas[viii]. Com isso fica evidente que o altruísmo tem que ser continuamente afirmado e estimulado, a fim de poder sempre orientar e disciplinar a inteligência; os meios para esse estímulo do altruísmo Augusto Comte compendiou na parte do culto da Religião da Humanidade (mas de que não trataremos aqui)[ix].

Política brasileira: falta de altruísmo nos objetivos e nas soluções

 

As considerações que fizemos até agora serviram para evidenciar que qualquer descrição realista da política tem que incorporar, necessariamente, os aspectos morais dessa atividade, seja porque a legitimação do sistema político envolve aspectos morais, seja porque qualquer ação humana é moralmente orientada e justificada. Assim, por um lado abandonamos as críticas que afirmam que as considerações morais são mero “moralismo” e, por outro lado, evidenciamos que a análise científica da política exige uma extensa análise científica da própria moral (que, por sua vez, tem que ser moralmente orientada). Tudo isso se fundamenta no Positivismo, ou melhor, na Religião da Humanidade.

Podemos abordar o tema que nos interessa, que é o fato de que a presente crise política brasileira é também, ou melhor, é antes de mais nada uma crise moral.

No cotidiano da política as concepções normativas dos vários grupos sociais entram em choque entre si, da mesma forma que seus interesses econômicos, políticos, culturais etc.; com freqüência valores e interesses sobrepõem-se, resultando daí muito da riqueza da atividade política. Vale também notar que a política envolve disputas e negociações para que políticas públicas sejam implementadas e a tomada de decisões e a implementação das políticas públicas envolvem beneficiar alguns grupos e algumas práticas em detrimento de outros, escolhendo-se alguns caminhos de preferência a outros; assim, embora as negociações ocorram o tempo todo, elas visam a converter-se, em algum momento, em decisões concretas.

Os grupos que se confrontam nas arenas políticas têm que concordar com alguns princípios elementares – pelo menos têm que aceitar que as instituições existentes são minimamente aceitáveis e capazes de processar as demandas sociopolíticas. Por certo que em alguns momentos as instituições são vistas como incapazes de processarem as demandas sociais ou, além disso, são de fato incapazes de tal processamento; nesses momentos, por diversos meios – alguns pacíficos, outros nem tanto – as instituições mudam, regimes políticos alteram-se e assim por diante. Em todo caso, o que queremos indicar é que no dia-a-dia da política mesmo grupos que se opõem de maneira frontal têm que concordar com as regras do jogo; além disso, é sabido que discordâncias morais e intelectuais profundas não são nem nunca foram impeditivas de acordos práticos a respeito de determinadas questões – o que é uma outra forma de dizer que as conversas e as negociações ocorrem continuamente e que, se não o respeito mútuo, pelo menos a tolerância e o convívio civilizado são bases da atividade política.

No Brasil deixaram de existir esses diversos acordos tácitos e explícitos que permitem a convivência de grupos opostos. A crítica moral ao sistema político brasileiro sempre houve, tanto da parte da “direita” – como na famosa União Democrática Nacional (UDN, 1946-1967), cuja reiterada crítica moral tornou o “udenismo” sinônimo de “moralismo” – quanto da parte da “esquerda” – fosse durante o regime militar (1964-1985), realizado pelas oposições, fosse da parte do Partido dos Trabalhadores, que sistematicamente rejeitou em nome de princípios morais todas as grandes mudanças políticas brasileiras entre 1982 (quando foi fundado o partido) e 2002 (quando afinal foi eleito para a Presidência da República). Ocorre que, devido a fatores sociais profundos, na década de 2010 o descontentamento social com a política no Brasil tornou-se mais profundo e mais radical e ultrapassando em muito a mera perda de legitimidade do sistema político (como se tal perda fosse pouca coisa!). Não faz sentido historiar os acontecimentos que resultaram em tal quadro; o ano de 2013 geralmente é indicado como deflagrador de amplas insatisfações populares, mas é claro que as “jornadas de junho” tiveram causas que as antecederam e acontecimentos posteriores e concomitantes aumentaram ainda mais a radicalização.

A perda da legitimidade do sistema político é um problema de perda de confiança; é uma questão moral, mas bem vistas as coisas a “moral” implicada nele é bastante rasteira, na medida em que os sentimentos e as ideias não estão em jogo: os sentimentos e as idéias de fundo permanecem, o que se perde é a crença de que o sistema pode, de alguma forma, corresponder aos sentimentos e às idéias, bem como os satisfazer.

O problema vivido atualmente no Brasil consiste no aprofundamento radical dessa crise de legitimidade; os sentimentos e as idéias de fundo anteriores perderam-se ou corromperam-se, sendo cada vez mais substituídas por outras coisas muito ruins e muito piores: em vez de termos amor, temos ódio; em vez de termos altruísmo, temos egoísmo; em vez de termos bondade, temos mesquinhez. As interpretações racionais e racionalizadoras seguem de maneira quase automática tais sentimentos duros, agressivos e destrutivos.

Essa alteração profunda não ocorreu no vazio; ela foi realizada de maneira intencional por vários grupos e indivíduos que a desejam conscientemente. Na verdade, ela corresponde à infeliz reunião de políticos anti-intelectualistas mas extremamente violentos e promotores da violência como política de Estado com intelectuais que, em nome de interpretações bastante específicas do catolicismo, promovem o culto ao ódio, à intolerância e ao desrespeito. Injunções político-partidárias muito específicas criaram o ambiente específico para que frutificasse politicamente a união de violentos políticos anti-intelectuais com intelectuais imorais. Como se sabe, apoiam essa coligação empresários e capitalistas que buscam meios de sistematicamente se furtarem às suas responsabilidades sociais, da mesma forma que líderes religiosos que buscam apenas explorar a pobreza, a ignorância e a boa-fé popular.

Em tal quadro os sentimentos estão profundamente alterados e, como dissemos, chegam a estar pervertidos: por um lado há o culto à mesquinhez individual e coletiva, disfarçado sob um manto que conspurca a idéia de “bem comum”; mas, por outro lado, o que permite essa conspurcação é que o altruísmo, a bondade, a generosidade – em uma palavra, o amor – foram substituídos não pela mesquinhez e pelo egoísmo, mas pelo ódio. De fato, o intelectual imoral que exerce a tarefa de legitimar a aberração política que atualmente ocorre no Brasil já disse diversas vezes que o ódio é um sentimento tanto quanto o amor e que, portanto, ele é tão legítimo quanto o amor para motivar as ações humanas. Daí se segue naturalmente o culto à morte, a dicotomização da política, o desrespeito e a intolerância a todos aqueles de quem discordam. A paranóia é mais um traço dessa política degenerada; não há dúvida de que ela é um traço específico de vários importantes líderes dessa onda política, mas é bastante claro que ela também se constitui em uma característica própria ao movimento como um todo: afinal, a política, ou melhor, a República e a cidadania pressupõem uma confiança generalizada, mesmo que abstrata, e essa mesma confiança generalizada é negada sistematicamente pelos cultores do ódio e da violência.

Se o ódio é o sentimento de base e a violência a prática política justificada, do ponto de vista intelectual essa política nutre-se das teorias da conspiração. É fácil ver como as teorias da conspiração vinculam-se ao ódio e à violência: elas também se baseiam na desconfiança sistemática, na falta de respeito pelos outros, na exclusão dos “inimigos” e na autoexclusão dos “eleitos”. A inteligência, aí, não cumpre o papel de esclarecer, mas apenas o de justificar – sempre a posteriori – as idéias derivadas do sentimento de ódio e da prática da violência sistemática.

Em termos coletivos, esses vários traços convergem para uma postura destrutiva e destruidora, que abomina o diálogo e a tolerância; também constitui um grupo que se torna cada vez mais coeso, ao isolar-se progressivamente do resto da sociedade – a quem, aliás, trata na base da pancada (ou do tiro) – e ao realizar um culto à personalidade. A paranóia, as teorias da conspiração e o autoisolamento produzem outro resultado mental: a lavagem cerebral.

O conjunto disso tudo traduz-se na constituição de grupos fanáticos, autoritários, violentos, agressivos, intolerantes – e lamentavelmente extremamente ativos. A experiência histórica já deu nome para esse tipo de movimento: fascismo. O repertório das atividades práticas fascistas também já é conhecido e é constituído não apenas pelo que vimos indicando até o momento, mas também de outras táticas reiteradas, como o emprego sistemático da desinformação, o uso proposital e perversamente ambígüo das palavras e a atribuição aos seus adversários (sempre entendidos como “inimigos” a serem abatidos) de práticas e maus sentimentos que, todavia, correspondem às práticas e sentimentos dos próprios fascistas. Esse conjunto evidencia, afetivamente, que subjazem a ele não apenas os sentimentos egoísticos, mas principalmente o desejo de destruir tudo aquilo de que os fascistas discordam ou que lhes desagradam: é a consagração do ódio e do medo. Do ponto de vista intelectual, as táticas adotadas pelo fascismo visam a causar confusão sistemática entre a população e, mais do que isso, a corromper a confiança básica para qualquer sociedade, seja entre cidadãos e governo, seja dos cidadãos entre si: é a consagração da desconfiança. A noção de uma realidade objetiva, externa às vontades individuais e coletivas, é combatida de maneira direta e indireta, seja por meio da sua negação clara, seja por meio da confusão e da desconfiança. Assim, o Estado torna-se uma instituição basicamente repressiva e as únicas coisas de que se pode ter certeza (além do medo e do ódio) são as decisões tomadas em cada momento pelo líder.

O Brasil vive esse triste quadro há cerca de dois anos; os grupos sociais que se baseiam e que apóiam tais concepções organizam-se há muito tempo – começaram justamente nos meios de comunicação, empregando a violência retórica a título de    “verdade” – e obtiveram um inaudito sucesso político nas eleições presidenciais de 2018, em parte devido ao fracasso retumbante da esquerda, em parte devido à inépcia política e moral da centro-direita, em parte devido à exitosa manipulação das idéias e dos valores da população brasileira. Em meados de 2020, quando escrevo estas páginas, o estado de coisas descrito acima aprofunda-se mais e mais, com grupos de fanáticos manifestando-se cada vez mais, manipulando as instituições públicas, realizando lavagem cerebral em seus membros e seus simpatizantes – e, talvez o mais importante, ocupando espaços públicos (como na constituição de “acampamentos de resistência” na Esplanada dos Ministérios em Brasília)[x].

Pode-se com legitimidade obtemperar que grupos fascistas constituem a exceção e não a regra do ambiente sociopolítico brasileiro e que, assim, não faria muito sentido afirmar a sua importância política. De fato, esses grupos são realmente minoritários; entretanto, há pelo menos dois fortes motivos para que não se os considere desimportantes. Em primeiro lugar, indicamos antes que esses grupos são extremamente ativos e mobilizados; em vez de diminuírem em tamanho e em quantidade, o movimento que se vê é o de eles aumentarem em quantidade de membros, em quantidade de grupos e em organização interna (sem contar a lavagem cerebral, que ocorre continuamente). Associado a isso está o fato de que, embora tenham um violento discurso antissistêmico, tais grupos obtiveram o poder em 2018 e o atual Presidente da República não disfarça sua vivíssima simpatia para com eles. À medida que o tempo passa, a instabilidade do atual governo federal aumenta, o que aos olhos dos ativistas parece justificar suas atividades e, portanto, torna-os mais aguerridos: não se pode desprezar, nunca, a importância política que grupos minoritários e marginais, mas extremamente aguerridos, podem ter.

Em segundo lugar, embora os grupos paramilitares sejam minoritários em relação à totalidade da população brasileira e sejam evidentemente radicais, ou ultrarradicais, em seus posicionamentos sociopolíticos, o fato é que eles legitimam a sensibilidade, o discurso e a prática da violência, do ódio e da intolerância, abrindo espaço para que grupos menos extremos que eles, mas defensores de comportamentos assemelhados, organizem-se, manifestem-se e obtenham poder. Na verdade, o caráter exemplar dos extremistas para os não-extremistas não é uma simples possibilidade, mas uma realidade efetiva, como se pode constatar no comportamento reacionário de inúmeros grandes empresários brasileiros que apóiam tais grupos e combatem com palavras, dinheiro e humilhações de seus empregados a dignidade indígena, a qualidade de vida dos trabalhadores, a proteção ao meio ambiente, as liberdades de consciência, expressão e organização (com a evidente exceção das suas próprias “consciências”, expressão e organizações) – e, durante a presente pandemia de covid-19, o trabalho quase compulsório de todos os que não são doentes e/ou idosos, em franca oposição às recomendações de todas as organizações médicas do mundo inteiro[xi]. Em outras palavras, a mera existência de tais grupos extremistas abre espaço para que seus valores e suas idéias ganhem espaço na sociedade, passando a estar disponíveis no repertório sociopolítico nacional; nesse sentido, mesmo pessoas que poderíamos em outros contextos julgar sensatas, razoáveis, dotadas de boa vontade, podem deixar-se seduzir pelo fascismo, mesmo e principalmente quando suas idéias e valores não são apresentadas com clareza como sendo fascistas.

A necessidade de ligas religiosas e políticas

 

Como dizia Augusto Comte, a natureza do problema indica a natureza da sua solução. O problema vivido atualmente no Brasil é político e moral; assim, são necessárias medidas políticas e morais. Essas medidas devem ser tanto diretivas (educativas) quanto repressivas (jurídico-policiais) e devem ser aplicadas com urgência cada vez maior.

As medidas políticas são as mais diretas e as mais fáceis de serem implementadas; o ordenamento político brasileiro orienta-se claramente em prol das liberdades, do respeito à vida, da tolerância etc.: as autoridades, portanto, devem fazer cumprir as leis e coibir o máximo possível, mas sempre dentro dos limites da lei, todos os comportamentos violentos e de ódio.

Todavia, a repressão é o ambiente em que os fascistas sentem-se mais à vontade; a planta do fascismo só é exterminada quando o conjunto da população afirma com todas as letras, de maneira clara, que o fascismo é inaceitável; aliás, quando o conjunto da população recusa a árvore e também impede que as sementes do fascismo surjam e brotem. Esse trabalho, não há dúvida, é muito mais difícil e de longo prazo – o que não quer dizer, todavia, que ele não possa render frutos de imediato.

A ação pedagógica depende de ligas religiosas e políticas. Os conservadores, que tradicionalmente afirmam a importância dos valores morais, devem reafirmar essa importância, mas ao mesmo tempo devem deixar de lado suas repugnâncias pelo que consideram os exageros do progresso e devem assumir que no Brasil as liberdades, o respeito mútuo, a tolerância são efetivamente tradicionais e, portanto, devem ser valorizadas e respeitadas. As diversas religiões existentes no Brasil – fetíchicas, politeístas, monoteístas, metafísicas e positiva – devem igualmente afirmar, isoladas ou em grupos, que só o amor constrói, que o altruísmo deve prevalecer sobre o egoísmo, que o ódio não pode nunca ser considerado o pilar de nenhuma política nem de nenhuma organização social. Em várias ocasiões as religiões teológicas defenderam valores contrários a esses, em particular algumas religiões monoteístas; entretanto, ao menos nominalmente todas – fetichistas, teológicas, metafísicas, positiva – defendem atualmente o amor, o altruísmo, a tolerância: que o afirmem mais e mais vezes, que repudiem o ódio, o egoísmo, a intolerância[xii].

Em termos políticos, é necessário que os vários partidos e grupos sociais unam-se em favor das liberdades e contra o fascismo. Essa união não precisa ser explícita: basta que tacitamente os grupos deixem de ferir-se uns aos outros e passem a envidar esforços sinérgicos, ou seja, na mesma direção, com o mesmo objetivo. Da mesma forma, os líderes políticos devem agir no sentido de preservar e fortalecer as instituições republicanas, além de adotarem os remédios republicanos para nossos correntes males políticos. Isso equivale em particular a duas séries de medidas: por um lado, os líderes políticos devem deixar de fazer mesquinhos cálculos político-eleitorais e devem passar a mirar no afastamento constitucional do atual Presidente da República, cujo comportamento já se revelou mais do que pródigo em crimes comuns, crimes de responsabilidade, quebras do decoro etc. Por outro lado, os líderes devem abandonar qualquer esperança de substituir o presidencialismo pelo parlamentarismo: tal substituição não resolveria nenhum problema, geraria um desgaste sociopolítico inaceitável para o país atualmente, oneraria o país com uma estrutura inútil (a Presidência de enfeite) e substituiria o governo do fascista pelo governo dos mancomunados.

A chamada sociedade civil pode e deve apoiar os esforços tanto da liga religiosa quanto da liga política. Os chamados “intelectuais”, por fim, têm que se pôr ao lado da sociedade civil e da liga religiosa, de modo a atuar como formadores de opinião; assim, devem abandonar os sempre existentes desejos de assumirem o poder (no lugar dos grupos políticos que a cada momento governam, geralmente na forma de oportunistas propostas parlamentaristas). No quadro atual, os intelectuais não podem furtar-se à obrigação de manifestarem-se publicamente ; atuando como formadores de opinião, os intelectuais devem indicar as possibilidades de ação para os políticos e os efeitos sociais e políticos do fascismo; mas, como formadores de opinião, devem apenas secundar os esforços da liga religiosa, cujo papel é o de reverter a putrefação moral que se estende pelo país.

A substituição do atual governo, fascista, por um outro que não o seja não encerra nossos problemas; ela é uma etapa necessária mas insuficiente. O trabalho pedagógico, da cultura do amor e do respeito, deve ser mais uma vez retomada no país; em particular, ela deve refletir-se politicamente no abandono radical de qualquer discurso e de qualquer prática que oponha brasileiros contra brasileiros, ou “nós” contra “eles”: essa é a verdadeira e profunda origem dos males que nos afligem.






[i] Gustavo Biscaia de Lacerda, sociólogo.

[ii] Este documento deveria ser um pequeno artigo episódico para eventual publicação em jornal diário; entretanto, a natureza do problema e a necessidade de explicar com um mínimo de detalhe a interpretação positiva de nossas dificuldades levou-me a ampliar cada vez mais a redação. Como ficará claro ao longo das páginas seguintes, esta é uma contribuição positivista para os profundos problemas que afligem atualmente o Brasil; embora sejamos suspeitos para falar, até o momento é a única interpretação que considera com a profundidade necessária os vários aspectos essenciais desses problemas.

[iii] Os romanos, que como a respeito de tantos outros aspectos são um dos nossos melhores antepassados políticos, designavam os postulantes aos cargos eletivos como “candidatos”, ou seja, como indivíduos “cândidos”, que trajavam togas talares da cor branca exatamente para indicarem sua pureza moral.

[iv] Vale notar que muitos dos “realistas” com frequência são acadêmicos que – o mais das vezes de maneira secreta – gostariam eles m esmos de exercer o poder.

[v] A Moral foi justamente denominada de “ciência sagrada” por Augusto Comte; ela está no ápice da série enciclopédica, que organiza por generalidade objetiva decrescente e generalidade subjetiva crescente as ciências abstratas mais gerais: Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia e Moral. A Moral é a ciência mais complexa e a mais nobre; por isso mesmo foi a última a constituir-se, pois exigia que o entendimento do mundo e do ser humano ocorresse antes. O conhecimento teórico, abstrato, da Moral conduz imediatamente à atividade prática, concreta, que lhe é própria e que consiste na orientação de cada indivíduo em sua vida, considerando o caráter social do ser humano.

[vi] A partir disso se evidencia que a descrição da realidade do mundo não se opõe, nem pode opor-se, à idealização desse mesmo mundo. Da mesma forma, isso também evidencia que a busca do conhecimento real tem que se aliar, ou melhor, tem que se submeter à busca do conhecimento útil.

[vii] Augusto Comte considerava pelo menos mais um problema relativo à inteligência, que é a sua busca incessante de ela mesma querer ser o princípio regulador e coordenador da economia moral em vez de submeter-se aos sentimentos (altruístas). Essa questão, importante por si só, refere-se mais à autonomia da inteligência e tem uma aplicação mais direta entre os “intelectuais”; como a presente reflexão tem um caráter político, esse problema não nos interessa tanto agora.

[viii] O conjunto das observações precedentes também esclarece porque os analistas políticos “realistas” estão errados ao considerarem que a política é apenas a disputa de poder e ao desprezarem o papel da idealização e dos valores morais na vida política. Além de fazerem uma descrição extremamente pobre da atividade política (apesar de dizerem-se “realistas”), eles ou deixam de lado ou ignoram aspectos centrais da natureza humana que têm impacto direto na realidade política, como a busca do bem comum, a própria necessidade de idealizar a realidade para desenvolver atividades, o devotamento pessoal a causas que ultrapassam as motivações egoísticas.

[ix] Vale notar, de qualquer maneira, que a Religião da Humanidade sistematiza as concepções acima e, mais do que tudo, sistematiza o culto, de maneira a estimular cotidianamente o altruísmo, com vistas à regulação da inteligência e da atividade prática.

[x] Em maio de 2020, por exemplo, um grupo denominado de “300 de Brasília” fez um acampamento na Esplanada. Esse grupo – que, apesar do nome, não se constitui por 300 mas por cerca de 50 pessoas – é ao mesmo tempo militantemente “cristão”, agressivo em seu linguajar, defensor da extinção de instituições como o Supremo Tribunal Federal e o Congresso Nacional, defensor do fim da “imprensa tradicional”, defensor de intervenção militar na política e do Ato Institucional n. 5 (de 13.12.1968, o mais violento de todos os AIs), defensor do uso de armas para “proteção”, defensor de uma “ucrainização do Brasil” (ou seja, da ocorrência de uma guerra civil no país, de maneira semelhante ao que ocorre na Ucrânia, após a invasão russa e a tomada violenta da Criméia em 2015). E tudo isso ao mesmo tempo em que dizem que são “não-violentos” e “a favor da vida”. O grau de confusão moral, intelectual e política é evidenciado pelo uso simultâneo de camisetas e de bandeiras enaltecendo a monarquia brasileira e a bandeira nacional republicana!

Aliás, no que se refere à bandeira nacional, esses grupos repetem sem cessar o “Ordem e Progresso”, entendendo por “ordem” um autoritarismo militar, ao mesmo tempo em que desprezam o “Positivismo” e ignoram profundamente que, para Comte e o Positivismo, a “ordem” inclui as liberdades civis e o repúdio à violência.

Por fim, a referência à Ucrânia é reveladora: se há lá uma guerra civil, isso se deve a que grupos pró-russos defendem ou a anexação total do país à Rússia ou a independência de partes do território ucraniano (seguidas, evidentemente, pela anexação “voluntária” à Rússia). A Rússia, nesse caso, não é uma expectadora inocente: baseada em um fascismo místico, pelo menos desde o início do século XXI ela defende a anexação da Ucrânia ao seu território e o combate sistemático ao Ocidente (daí, aliás, o apoio russo à eleição de Donald Trump nos EUA e à saída da Inglaterra da União Européia).

[xi] Reveladora da intensidade da degradação moral desses empresários é a afirmação de que na pandemia não haveria problemas em que morressem umas cinco ou sete mil pessoas, de modo geral idosas; o importante seria que a economia continuasse a funcionar (e, portanto, que todos infectassem-se com o coronavírus-2, até o momento sem vacina disponível contra ele). Em meados de maio, enquanto escrevemos, a taxa de mortes já ultrapassou a marca dos 14 mil mortos – mas é claro que tais empresários não mudaram de opinião: desde que a economia continue funcionando, as mortes podem continuar ocorrendo.

[xii] Como estamos indicando, o Positivismo prega exatamente o contrário do que tais grupos ultraconservadores atribuem-lhe; mas, ainda assim, pessoas de boa vontade, movidas por boas intenções, repetem erros sistemáticos na ânsia de serem “críticos” e de evidenciarem alguma cultura histórica – exemplo disso foi a desastrada e profundamente injusta observação feita pelo rabino Michel Schlesinger, da Congregação Israelita Paulista, em artigo no jornal O Estado de S. Paulo de 9 de maio de 2020, em que atribui ao “Positivismo científico” a motivação e a justificativa para atrocidades sociais variadas (aliás, note-se: atrocidades apenas sugeridas, mas não nomeadas). Logo um rabino, sacerdote de uma religião que tanto preza o conhecimento e que, como poucos povos e culturas, sofreu os efeitos da perseguição e da desinformação!

12 julho 2020

Carla Zambelli usa o Positivismo para tentar cinco segundos de fama


No dia 5.7.2020 a Deputada Federal bolsonarista, de extrema direita, Carla Zambelli realizou um ataque vil e desprezível, completamente despropositado, contra o Positivismo, ou melhor, contra “os positivistas” (o original encontrando-se disponível aqui).

Este ataque é mais um que a extrema direita faz atualmente contra o Positivismo. Ele é mais uma peça de desinformação de um grupo que se fez e mantém-se graças ao uso sistemático da desinformação, da busca sistemática de inimigos e do uso sistemático de teorias da conspiração.

Essa postagem enseja pelo menos duas ordens de reflexões.

Por um lado, a sua falta de propósito específico salta aos olhos. Carla Zambelli é uma pessoa cuja carreira política desde o início está vinculada ao extremismo político, cuja marca mais evidente – além do extremismo, claro está – é a mais intensa ambição... mas é pura ambição, desejo pessoal de fama e poder, completamente destituída de objetivos sociais, de destinação coletiva. Ela - como muitas outras pessoas de seu círculo - personifica a noção de que o "poder corrompe", embora, bem vistas as coisas, talvez o problema não esteja propriamente no poder.

Assim, a postagem sobre os positivistas busca apenas pôr em evidência a deputada, de alguma forma e durante alguns instantes, em meio ao seu público cativo (a extrema direita, conspiratória, agressiva) e no ambiente que lhe é próprio (as redes sociais). Além disso, essa postagem, além disso, é fácil e simples, pois no fundo não se refere a nada (quem seriam esses tais “positivistas”? Qual sua atuação no governo?) e já foi objeto de referências de outros membros do atual governo (em particular de um dos filhos do Presidente da República); mas, com sua generalidade e vagueza, essa postagem consegue satisfazer os adeptos das teorias conspiratórias. Em suma, a deputada tenta empregar o Positivismo para obter cinco segundos de fama.

Por outro lado, essa postagem de Carla Zambelli, feita para pôr-se em evidência em meio à extrema direita, somente repete o que a esquerda (aí incluída a esquerda nas universidades) sempre fez e faz, também de maneira sistemática, contra o Positivismo.

No Brasil, o comportamento em face do Positivismo evidencia o quanto direita e esquerda com frequência são desprezíveis. Mais uma vez: direita e esquerda partidárias, mas também direita e esquerda acadêmicas. E, aliás, o Positivismo é o alvo preferencial não somente no Brasil, como também nos EUA e na Europa.

Deseja-se ver putrefação moral e intelectual? Basta ver-se o comportamento a respeito do Positivismo. Falta de generosidade, falta de respeito, falta de relativismo, falta de conhecimento histórico... esses e inúmeros outros defeitos morais e intelectuais abundam nos comentários da direita e da esquerda sobre o Positivismo. É tanta coisa que chega a ultrapassar o cansaço, alcançando o nojo e até a ânsia de vômito. (O único desagravo não-positivista contra a postagem antipositivista foi uma belíssima nota do Movimento de Resgate Nacional, Morena, que é um grupo de esquerda de inspiração trabalhista e disponível aqui.)

É desesperador. A postagem da deputada dá a exata medida da podridão moral de diversos ambientes políticos e intelectuais nosso país.


Fonte: https://mobile.twitter.com/CarlaZambelli38/status/1279832474432962560