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26 novembro 2025

Deyvid Antônio: Súmula das ciências para o Comte maduro

As anotações abaixo foram postadas em 17 de Frederico de 171 (21.11.2025) pelo jovem pensador católico Deyvid Antônio, em sua conta pessoal no Facebook.

Essas anotações apresentam uma notável síntese de alguns dos principais aspectos da filosofia das ciências de Augusto Comte (1798-1857), em sua fase madura, isto é, em sua fase religiosa, posterior a 1846.

Tal síntese é notável devido a dois motivos: 

(1) sua extrema qualidade, que une o conhecimento dos argumentos com o respeito ao pensamento de Augusto Comte.

(2) O fato de que Deyvid Antônio é um publicista católico tradicionalista, segundo a orientação de Olavo de Carvalho. A bem da verdade, quem acompanha as publicações de Deyvid logo percebe a variedade de seus interesses - além do catolicismo e do Positivismo, também bramanismo, budismo, islamismo, filosofia ocidental moderna e contemporânea, bem como inúmeros outros temas, e tudo isso sendo ao mesmo tempo estudante de... Engenharia! Isso tudo evidencia que a adesão de alguém a uma determinada filosofia não implica nem a ignorância de correntes filosóficas e políticas rivais, nem, principalmente, a repetição de erros e preconceitos a seu respeito. Em outras palavras, Deyvid demonstra com grande espontaneidade a mais escrupulosa honestidade intelectual.

Essa honestidade moral e esse cuidado filosófico põem Deyvid muito, muito à frente da imensa maioria da produção acadêmica, bem como da quase totalidade da militância político-intelectual, seja brasileira, seja estrangeira, quer ela trate do Positivismo, quer não.

É em virtude dos motivos acima - que, como se pode perceber com facilidade, são distintos entre si, embora o primeiro dependa do segundo - que decidimos reproduzir aqui esse belo texto.

Por fim, vale notar que essa honestidade intelectual de Deyvid, estimulada por uma simpatia generalizada pelo ser humano, estimula em nós uma simpatia recíproca por ele. Isso demonstra e comprova uma das mais importantes, e mais difíceis, lições de Augusto Comte: a solução dos problemas humanos passa necessariamente pela inteligência (ou seja, pelas idéias, pela filosofia), mas reside antes de tudo na simpatia, ou seja, no amor.

As anotações originais estão disponíveis aquihttps://www.facebook.com/photo?fbid=849088594754198&set=a.124491960547202. 

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Súmula da filosofia das ciências do Augusto Comte maduro

 Deyvid Antônio

É um equívoco profundo – embora persistente – reduzir Auguste Comte à figura de um simples “cientificista”, sobretudo quando esse termo é associado a empirismo ingênuo, intelectualismo absoluto, materialismo reducionista ou defesa de tecnocracias. Alguns chegam até a afirmar que Comte teria fundado uma suposta “religião da ciência”, fazendo do pai do positivismo o símbolo máximo do ideal cientificista. A Filosofia Positiva comtiana é mais ampla, mais complexa e metodologicamente mais sofisticada do que as correntes posteriores do positivismo científico (como o Positivismo Lógico), com as quais frequentemente é confundida. A desmontagem desse mito exige reconstituir o núcleo do pensamento de Comte, que se articula em torno de uma concepção holística de ciência, sociedade e moral.

O primeiro ponto decisivo é a rejeição comtiana tanto do absolutismo quanto do empirismo puro. O espírito positivo, essencialmente relativo, recusa qualquer pretensão de explicar as causas íntimas dos fenômenos ou os fins últimos do universo; orienta-se apenas pelo estabelecimento de leis invariáveis de sucessão e de similitude, convertendo a pergunta “por quê?” na investigação do “como”. Essa postura, porém, está longe de reduzir-se ao mero acúmulo empírico de fatos: Comte denuncia explicitamente o empirismo como uma prática estéril e incoerente, insistindo que toda observação é guiada por teorias prévias e que o conhecimento real consiste sobretudo em construções teóricas, exigindo uma oscilação permanente entre abstração e experiência.

Outro aspecto central do sistema comtiano é seu caráter sintético e , já citado, holístico, que recusa qualquer redução mecanicista. A positividade não se confunde com a ciência empírica isolada: enquanto a ciência é analítica, a positividade é uma síntese da totalidade humana, envolvendo inteligência, sentimentos e prática. Essa síntese é institucionalizada na célebre classificação das ciências, que organiza os saberes segundo uma hierarquia de complexidade crescente – Matemática, Astronomia, Física, Química, Biologia, Sociologia – culminando na Moral como a ciência final. Esta arquitetura hierárquica tem função explícita de combater o materialismo reducionista, pois impede que fenômenos superiores sejam subordinados a fenômenos inferiores, preservando a autonomia relativa das ordens biológica, social e moral.

Contra qualquer interpretação intelectualista ou cientificista, Comte afirma o primado do sentimento sobre a inteligência. No período maduro, influenciado por Clotilde de Vaux, ele sustenta que o impulso decisivo da ação humana emerge sempre do sentimento, enquanto a inteligência funciona apenas como órgão regulador. Essa inflexão culmina na Religião da Humanidade, cujo fim último é o aperfeiçoamento moral por meio do fortalecimento dos instintos altruístas e da contenção dos instintos egoístas, articulando uma ética da unidade afetiva e social que está longe de qualquer reducionismo científico.

Também é equivocada a associação entre Comte e tecnocracia. O positivismo comtiano estabelece, como princípio político fundamental, a separação rigorosa entre o Poder Temporal – responsável pela ação prática e governamental – e o Poder Espiritual – encarregado da teoria, da educação e do conselho. Comte insiste que filósofos, cientistas e artistas devem constituir um sacerdócio positivo desprovido de mando e de riqueza, cuja função é aconselhar, e não governar. Essa separação visa a garantir a liberdade de crítica e evitar qualquer forma de teocracia laica ou “pedantocracia”, sua expressão para o governo dos sábios, considerado por ele um desvio grave da ordem positiva. A ciência, portanto, não deve governar: deve iluminar a ação prática, preservando sua autoridade exclusivamente moral e intelectual.

Por fim, Comte distingue-se do cientificismo ao reconhecer o valor histórico e pedagógico da Teologia e da Metafísica. Longe de descartá-las como saberes destituídos de sentido, ele as compreende como fases necessárias do desenvolvimento do espírito humano, responsáveis por fornecer a estrutura teórica indispensável para organizar os fatos em épocas em que a observação ainda não podia gerar teoria. Muitas obras teológicas e metafísicas, segundo Comte, conservariam seu valor se fossem “traduzidas” ao espírito positivo.

Referências:

Epítome da vida e dos escritos de Augusto Comte – Joseph Lonchampt

Teoria Política Positivista – Gustavo Biscaia de Lacerda

30 janeiro 2024

Sobre inter, multi e transdisciplinaridade - parte 1

No dia 2 de Homero de 170 (30.1.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos os temas da inter, da multi e da transdisciplinaridade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/E6kXX) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/2ZifK). O sermão iniciou-se aos 36 min 07 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

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Sobre inter, multi e transdisciplinaridade 

-        Alguns temas que há várias décadas têm sido enfatizados são o da inter, multi e transdisciplinaridade

o   Basicamente esses temas são próprios a ambientes científicos, ou melhor, acadêmicos; nesse sentido, eles apresentam um aspecto cientificista e até academicista, quando se vinculam a questões puramente ou majoritariamente intelectualistas

o   Entretanto, esses temas em si são importantes e, quando se desvinculam do aspecto intelectualista, eles passam a evidenciar grandes aplicações

-        No ambiente acadêmico, a palavra “positivismo”, por motivos torpes, é sinônima de “unidisciplinaridade estrita”, ou seja, de aversão à inter, à multi e à transdisciplinaridade

o   Entretanto, essa concepção é puramente preconceituosa e originada da má-fé de adversários, que buscam um bode expiatório fácil: nesse caso, é a má-fé “habitual”

o   Por outro lado, há pensadores e correntes de pensamento que, desejando afirmar a inter, a multi e a transdisciplinaridade, adotam o sofisma do espantalho e usam uma contraposição forçada ao Positivismo apenas com o objetivo de dizerem que eles, os adversários, são os únicos e verdadeiros promotores da visão não unidisciplinar

§  Mas, com freqüência, os dois casos acima (má-fé; transdisciplinares do espantalho) raramente ultrapassam os limites do cientificismo e, ainda mais, do academicismo

o   O Positivismo de verdade, isto é, a Religião da Humanidade não somente tem muito a dizer a respeito desses conceitos como, além disso, ela afirma e baseia-se na multi e na transdisciplinaridade!

-        Consideremos, então, conceitos básicos de cada uma dessas possibilidades

o   Vale notar que não procuraremos ser exaustivos a respeito; o que nos interessa é considerar conceitos úteis para as nossas presentes reflexões

o   O conceito fundamental é o da especialização, da “disciplinaridade”

o   Em oposição parcial e crescente à disciplinaridade, temos o seguinte:

§  Interdisciplinaridade: é a reunião de duas áreas do conhecimento (por ex., a neuroquímica), para o estudo de questões abstratas ou concretas

§  Multidisciplinaridade: é a reunião de várias áreas do conhecimento para o estudo de alguma situação concreta

§  Transdisciplinaridade: é a aplicação de critérios extracientíficos às concepções científicas – geralmente concepções de cunho social-moral

-        Algumas características das categorias acima e que são notáveis, para os nossos propósitos:

o   Conceitos cientificistas, ou, de modo geral, academicistas (na medida em que muitas vezes abrangem também ramos das belas-artes);

o   Baseiam-se na existência das disciplinas acadêmicas (nas “disciplinaridades);

o   Forte presença de um racionalismo que lida relativamente mal com a filosofia e as questões morais e que, em virtude disso, no âmbito da transdisciplinaridade, muitas vezes descamba para o misticismo (e, portanto, até para o irracionalismo);

o   Freqüentes confusões entre o que é abstrato e o que é concreto

§  Freqüentes renovações de propostas de “leis concretas”

o   De qualquer maneira, da inter para a transdisciplinaridade, há uma progressiva rejeição do materialismo e do reducionismo

o   Além disso, quando se pratica a inter, a multi e a transdisciplinaridade, costuma-se haver afirmações de “elaborações superiores”, “sínteses amplas” etc.

§  Entretanto, essas afirmações são meras expressões de desejos e de intenções, sem maiores conseqüências

§  Podemos, e mesmo devemos, suspeitar que a ausência de “maiores conseqüências” deve-se não à impossibilidade ou à dificuldade de realizarem-se tais “maiores conseqüências”, mas, sim, ao secreto desejo de não realizar tais sínteses amplas

§  Em outras palavras, o que se deseja é manter-se no âmbito da especialização e da disciplinaridade, além de não se submter a parâmetros superiores e reguladores (morais e religiosos)

·         Daí, aliás, um dos motivos secretos por que o Positivismo é mal visto na academia

-        Passemos então a tratar dessas questões à luz do Positivismo; comecemos por aspectos estáticos, de caráter filosófico-científico:

o   Antes de mais nada, o Positivismo afirma com todas as letras a importância da visão de conjunto; na verdade, ele constituiu-se desde o início como a afirmação da visão de conjunto sobre a realidade humana, em termos sócio-históricos, filosóficos e morais

o   A afirmação da visão de conjunto é o princípio fundamental que permite e justifica a inter, a multi e a transdisciplinaridade

o   Na verdade, Augusto Comte sempre disse para quem quisesse ouvir (e ler) que o Positivismo surgiu como uma filosofia derivada da e aplicada às ciências – ou seja, o Positivismo é desde à partida uma transdisciplinaridade

§  Essa transdisciplinaridade caracteriza-se desde o início não apenas porque o Positivismo é uma filosofia, mas também porque ele aplica claramente – e cada vez mais claramentecritérios morais em suas concepções e ações

§  A visão de conjunto filosófica sobre as ciências serviu tanto como uma reflexão geral sobre as ciências quanto como uma base para a criação de uma nova ciência, a Sociologia

·         A Sociologia foi criada como ciência autônoma, com a delimitação de seus métodos, seus objetos, suas aplicações, seus limites, suas relações com as demais ciências – tudo isso a partir do exame de conjunto das demais ciências, da realidade humana em termos históricos e da realidade em termos “gerais”

·         A criação da Sociologia consistiu também na sistematização da visão de conjunto e da aplicação da perspectiva filosófica, sócio-histórica e moral aplicada ao conjunto das ciências inferiores

·         Ao mesmo tempo em que Augusto Comte criou a Sociologia, ele criou a História das Ciências, entendida não como o simples relato das atividades científicas, mas como a compreensão dos fatores que conduzem ao desenvolvimento das ciências

o   Em outras palavras, a História das Ciências criada por Augusto Comte é uma “história” porque se trata de uma história sociológica das ciências

o   Com o desenvolvimento do Positivismo, isto é, com o seu amadurecimento, a “visão de conjunto” passou também a implicar necessariamente as noções de “subjetividade”

§  O Positivismo aplica pelo menos duas noções de subjetividade, ambas plenas de conseqüências:

·         A primeira é a subjetividade social, que afirma as concepções próprias e a realidade específica do ser humano, em contraposição ao mundo externo e, daí, às ciências inferiores

·         A segunda é a subjetividade individual

§  As duas subjetividades acima englobam os sentimentos e as idéias

·         Há também o âmbito da imaginação, que está no escopo das belas-artes

·         Enquanto as subjetividades indicadas acima têm um papel estruturador do ser humano, a imaginação (na medida em que se vincula às artes) assume uma característica mais subordinada

o   A subordinação da imaginação deve-se à necessidade mais pronunciada de sua regulação, para que não se desvirtue e não descambe para o irracional, o imoral, o puramente fantástico, o alucinado etc.

o   A visão de conjunto amadurecida, ao constituir a Religião da Humanidade, também passou a abarcar mais claramente as noções de “sínteses”

§  As sínteses são concepções gerais que afirmam e estabelecem princípios gerais de entendimento e avaliação da realidade

§  Como sabemos, as sínteses podem ser objetivas ou subjetivas, absolutas ou relativas; na verdade, as sínteses só podem ser subjetivas e relativas, mas podem pretender-se absolutas e objetivas ou subjetivas

-        Vale a pena insistirmos em algumas características das disciplinas criadas por Augusto Comte:

o   O fundador da Religião da Humanidade criou pelo menos duas, talvez três, disciplinas científicas, todas elas tomando necessariamente como base a visão de conjunto:

§  As disciplinas criadas foram (1) a Sociologia, (2) a Moral e (3) a História das Ciências

§  A criação dessas disciplinas com base na visão de conjunto deu-se contrariamente à tendência da fundação de todas as outras ciências, em particular em termos acadêmicos:

·         A tendência academicista consiste na rejeição da visão de conjunto e, inversamente, com enorme freqüência na afirmação do reducionismo (ou materialismo)

-        Ao fundar a Sociologia e, depois, a Moral, Augusto Comte constituiu e concluiu a escala enciclopédica; essa escala afirma a existência de sete ciências abstratas fundamentais, cujos objetos e cujos tipos de abstração são irredutíveis uns aos outros:

o   O que a escala enciclopédica faz, portanto, é insistir na existência de fenômenos abstratos irredutíveis uns aos outros

§  Augusto Comte definia uma ciência como um conjunto de investigações abstratas sobre um determinado âmbito da realidade

§  Isso significa que, sob uma denominação científica geral (e no singular) podem agrupar-se inúmeras ciências mais específicas

·         Dois exemplos com valores intelectuais heterogêneos: a Matemática engloba três ciências específicas (Aritmética, Geometria e Mecânica); a Sociologia, conforme é ordinariamente praticada nas academias brasileiras, engloba a Sociologia específica, a Antropologia e a Ciência Política

o   Ora, a escala enciclopédica, portanto, não nega a possibilidade de intere multidisciplinaridade:

§  A interdisciplinaridade dá-se de maneira evidente nas “franjas” de transição entre as ciências justapostas

§  A multidisciplinaridade, por seu turno, não se dá no âmbito das ciências fundamentais, ou, nos precisos termos da Religião da Humanidade, no âmbito da Filosofia Segunda (as ciências fundamentais)

·         A multidisciplinaridade ocorre na Filosofia Terceira, isto é, na aplicação prática das ciências fundamentais, que é o que se chama geralmente de “tecnologia”

o   A transdisciplinaridade no âmbito da Religião da Humanidade é afirmada com ainda mais clareza, estabelecida como parâmetro necessário de entendimento da realidade e como princípio epistemológico – e, evidentemente, também como princípio moral

§  Exatamente porque considera a visão de conjunto sobre a realidade humana; exatamente porque se dirige ao conjunto da existência humana é que a versão amadurecida do Positivismo é uma “religião” – necessariamente a Religião da Humanidade

§  No âmbito acadêmico, quem afirma a multi e mesmo a transdisciplinaridade mas rejeita a Religião da Humanidade, fá-lo devido a alguns motivos não muito bons e não necessariamente excludentes entre si:

·         Ignorância da obra de Augusto Comte

·         Ciúme da obra de Augusto Comte

·         Incoerência filosófica e/ou moral – que pode incluir como subtipos:

o   Apego à teologia e/ou aos hábitos críticos

o   Aceitação da teoria metafísica dos dois domínios (intelectual-científico e “espiritual”-teológico) – que é profundamente irracional e incoerente

-        Os comentários feitos até agora foram de caráter estático (científicas, filosóficas e morais); passemos a algumas reflexões dinâmicas (históricas e filosóficas)

o   A visão de conjunto de modo geral faz parte das reflexões humanas; na verdade, todos os seres humanos buscam ter uma visão de conjunto sobre o mundo e sobre o ser humano, incluindo os elementos dessa realidade e os princípios que a regem

§  Como sabemos, essas concepções gerais sobre o homem e o mundo constituem as sínteses e as regulações gerais da vida, baseadas nas sínteses, constituem as religiões

-        Como a busca de concepções gerais integra a natureza humana, é natural que todas as sociedades desenvolvam suas elaborações, isto é, suas sínteses

o   O fetichismo elabora espontaneamente uma síntese, ao atribuir à realidade externa as mesmas características que os seres humanos percebem em si mesmos

o   Mas é nas teocracias antigas que se tem uma regulação geral e sintética da existência humana, elaborada e mantida pelo sacerdócio

§  Essa regulação é característica do politeísmo e, em virtude de seu caráter estático, esse politeísmo é conservador

§  Embora seja uma forma errada, pois invertida, de entender a questão, com fins didáticos podemos dizer que a unidade sacerdotal teocrática era inerentemente “transdisciplinar”

§  O politeísmo conservador baseia-se na ascendência (ou dominação) dos sacerdotes sobre os guerreiros; quando os guerreiros afinal obtêm o poder, a unidade mantida pelo sacerdócio afinal se rompe e, a partir daí, surgem efetivamente aquilo que chamamos atualmente de “disciplinas”

o   No Ocidente, a seqüência seguida na emancipação do jugo sacerdotal teocrático – ou, de maneira equivalente, a seqüência na fragmentação da unidade teocrática – foi a seguinte: as artes; a filosofia; a ciência

§  A indústria sempre teve uma existência à parte, embora, é claro, dependente tanto da regulação social teocrática quanto dos conhecimentos elaborados, conservados e difundidos pelo sacerdócio

o   A seqüência de emancipação arte-filosofia-ciência é ilustrada exemplarmente na evolução grega e indicada no calendário positivisa concreto por Homero, Aristóteles e Arquimedes

o   A emancipação de cada uma dessas atividades permitiu, evidentemente, o seu livre desenvolvimento

§  Uma forma alternativa de dizê-lo é o seguinte: o livre desenvolvimento das produções intelectuais humanas exigiu o rompimento dos parâmetros gerais de regulação, tanto os intelectuais quanto os morais

§  Os parâmetros intelectuais incluíam a visão de conjunto; os parâmetros morais incluíam as preocupações sociais

o   O rompimento dos padrões teocráticos deu livre curso aos ramos intelectuais, conduzindo então, progressivamente, à especialização dos conhecimentos – o que, no jargão atual, consiste na “disciplinarização” dos conhecimentos

o   A dominação romana, ao estabelecer o desenvolvimento prático, subordinou as elaborações gregas às necessidades morais e práticas, ou seja, restabeleceu um pouco os parâmetros morais e sociais

§  Em outras palavras, a dominação romana impôs uma visão de conjunto às elaborações gregas

o   A partir da sociabilidade romana, por fim a Idade Média desenvolveu a moralidade, cultivando diretamente os sentimentos (ainda que a partir de uma síntese fictícia, absoluta e egoísta; que se concentrasse na pureza e não no altruísmo; que tivesse que ser auxiliada pelo elemento cavalheiresco da feudalidade)

§  Da mesma forma, a partir de uma síntese fictícia, absoluta e egoísta, a Idade Média também impôs uma visão de conjunto à existência humana

o   O desenvolvimento básico da inteligência (Grécia), da atividade prática (Roma) e dos sentimentos (Idade Média) realizou-se sob o patrocínio da teologia, nas formas do politeísmo progressista e do monoteísmo católico; a partir de então a teologia encontrou-se esgotada, sendo necessário o desenvolvimento direto do dogma positivo com o objetivo de elaborar-se uma síntese relativa e subjetiva

§  A elaboração do dogma positivo baseou-se em um novo rompimento dos parâmetros sintéticos, agora do monoteísmo

§  Enquanto auxiliou o desenvolvimento humano, ou seja, enquanto a síntese monoteica não se deparou com concepções francamente contrárias a si, ela teve um caráter progressista; entretanto, à medida que o dogma positivo ampliou-se e avançou, ficou cada vez mais claro que a síntese monoteísta é incompatível com a realidade, o relativismo e o subjetivismo dos conhecimentos – daí que a teologia tornou-se cada vez mais e progressivamente retrógrada e reacionária

o   O dogma positivo constituiu-se na forma do desenvolvimento de novas áreas das ciências preexistentes e na criação de novas ciências

§  Como Augusto Comte notava, um dos mais importantes traços desse movimento foi a introdução de perspectivas dinâmicas às investigações reais, em contraposição ao caráter estático das pesquisas antigas

§  Além disso, cada vez mais o relativismo das investigações evidenciou-se, abandonando-se a metafísica do “por quê?” em favor da positividade do “como?”

o   O desenvolvimento do dogma positivo foi, em si mesmo, algo necessário e bom, mas teve algumas características inescapáveis que, a longo prazo, tornaram-se negativas:

§  A progressiva especialização, no sentido de progressiva rejeição da visão de conjunto, entendida como algo inerentemente bom

§  A concepção de que a visão de conjunto – àquela altura entendida como sinônimo de aplicação da síntese monoteísta – seria algo necessariamente negativo (repressivo e/ou místico), portanto a ser evitado e/ou combatido

§  O necessário reducionismo (ou materialismo) de cada ciência que progressivamente se afirmava, em relação às concepções superiores a si

·         O academicismo aprofunda os vícios indicados acima

§  É a partir de e contra a “disciplinarização”, a especialização e o reducionismo próprios ao desenvolvimento do dogma científico que se pode falar, então, em “inter”, “multi” e “transdisciplinaridade”

·         É por isso que temos insistido em que a inter, a multi e a transdisciplinaridade são propostas carregadas de cientificismo e, ainda mais, freqüentes vezes, de academicismo

o   Essa marcha, como se sabe, abrangeu a Matemática, a Astronomia, a Física, a Química e a Biologia

§  A Biologia é a última das ciências inferiores, ou a primeira das ciências superiores: em todo caso, ela estabelece a transição entre o mundo externo (o mundo) e o mundo interno (o ser humano)

§  Enquanto as ciências inferiores, da Matemática à Química, adotam perspectivas de detalhe, a Biologia inverte a perspectiva, exigindo visões de conjunto: em outras palavras, ela é a primeira ciência que exige a retomada da visão de conjunto

·         Isso, todavia, não evita necessariamente os vícios próprios à ciência, como a “disciplinaridade” e, ainda mais, o reducionismo em relação à Sociologia e à Moral

o   A Sociologia aprofunda a exigência da visão de conjunto; na verdade, ela exige a visão de conjunto estática (na solidariedade) e, ainda mais, a dinâmica (na continuidade)

§  Como vimos, a Sociologia constituiu-se – mas que esteja bem claro: apenas e exclusivamente com Augusto Comte, não com outros autores! – como sendo ao mesmo tempo “transdisciplinar” e respeitando a dignidade das ciências inferiores!

o   A criação da ciência da Moral completa a escala enciclopédica e, assim, conclui e aperfeiçoa a síntese positiva, relativa e subjetiva

§  Ao mesmo tempo, a Moral consolida e amplia os parâmetros intelectuais, sociais e morais instituídos pela Sociologia

o   Os vícios intelectuais, morais e institucionais próprios às ciências conduziram Augusto Comte a perceber que seria necessário afirmar com clareza ainda maior a visão de conjunto, ou melhor, a unidade do ser humano

§  A afirmação da unidade do ser humano, todavia, não poderia dar-se com a negação da dignidade de cada uma das ciências fundamentais

§  Ao afirmar e aprofundar o espírito positivo, isto é, as suas características de relativismo e de subjetivismo, então, Augusto Comte reconheceu que é necessário distinguir duas formas, ou melhor, duas etapas sucessivas do espírito positivo: uma etapa analítica, disciplinarizada, e outra sintética, filosófica

·         Enquanto a primeira etapa permite a disciplinaridade, a interdisciplinaridade e, até certo ponto, a multidisciplinaridade, a segunda etapa é a única que pode ser chamada de transdisciplinar

§  Entretanto, é importante notar que a síntese positiva é superior à chamada transdisciplinaridade

·         O verdadeiro espírito positivo só se dá com a sua forma filosófica, pois é esta que estabelece, ou restabelece, a síntese positiva e, daí, a unidade humana

§  Uma forma ao mesmo tempo simples e bela de estabelecer a síntese positiva e a unidade humana é por meio da afirmação de que, na verdade, só existe uma ciência, a ciência do ser humano – ou melhor, só existe a ciência da Humanidade

-        Esta exposição está bastante longa, mas não é exaustiva; desde já posso indicar que deixei de lado, mas que não poderei desenvolver agora, pelo menos alguns temas que foram citados:

o   A falsa esperança das chamadas “ciências concretas”, que, no fundo, é o que fundamenta muitas das propostas de multidisciplinaridade

o   A relação entre a síntese subjetiva e as ciências abstratas, ou, dito de outra forma, a relação entre as perspectivas analíticas abstratas e a síntese concreta

o   Além disso, embora eu não tenha citado ao longo desta exposição, vale notar que a Trindade Positiva integra os elementos próprios à síntese positiva e que, nesse sentido (bem pobre, aliás), ela integraria uma transdisciplinaridade positivista

o   Da mesma forma, a Religião da Humanidade pode e deve ser entendida como um conjunto de indicações, sugestões, orientações e prescrições visando a regular e a lidar com os problemas afetivos, intelectuais e práticos da inter, da multi e, principalmente, da transdisciplinaridade

-        Em suma:

o   As propostas de inter, multi e transdisciplinaridade surgem a partir das especializações científicas e, ainda mais, das especializações acadêmicas

§  Essas propostas muitas vezes são generosas e corretas, ainda que apresentem limitações e sejam também muitas vezes eivadas de incoerências

§  Em última análise, o que fundamenta as propostas de inter, multi e transdisciplinaridade é a afirmação cada vez mais ampla da visão de conjunto e a busca de uma síntese humana – que, todavia, na prática são negadas pelos próprios cultores da inter, da multi e da transdisciplinaridade

o   O Positivismo é uma filosofia que claramente, desde o início, com todas as letras constituiu-se a partir da visão de conjunto; a partir disso ele elaborou uma filosofia histórica das ciências e, ao mesmo tempo, criou a Sociologia

§  A compreensão de que as ciências abstratas fundamentais devem ter suas dignidades respeitadas mas que, ao mesmo tempo, elas são insuficientes para a síntese e a unidade humanas levou Augusto Comte a dividir a etapa intelectual do espírito positivo em duas novas fases sucessivas: uma analítica, mais cientificista, e outra sintética, de caráter necessariamente filosófico

§  É claro que a etapa sintético-filosófica é superior à etapa analítico-cientificista

o   O aprofundamento progressivo da visão de conjunto e o evidenciamento dos seus aspectos morais conduziram Augusto Comte a criar a ciência da Moral e, entendendo a importância e a necessidade da síntese positiva e da unidade humana, a criar a Religião da Humanidade, epítome de todas essas exigências