Mostrando postagens com marcador Filosofia das Ciências. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Filosofia das Ciências. Mostrar todas as postagens

30 janeiro 2024

Sobre inter, multi e transdisciplinaridade - parte 1

No dia 2 de Homero de 170 (30.1.2024) realizamos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua nona conferência (dedicada ao regime público).

No sermão abordamos os temas da inter, da multi e da transdisciplinaridade.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://acesse.dev/E6kXX) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://acesse.one/2ZifK). O sermão iniciou-se aos 36 min 07 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral encontram-se reproduzidas abaixo.

*    *    *


Sobre inter, multi e transdisciplinaridade 

-        Alguns temas que há várias décadas têm sido enfatizados são o da inter, multi e transdisciplinaridade

o   Basicamente esses temas são próprios a ambientes científicos, ou melhor, acadêmicos; nesse sentido, eles apresentam um aspecto cientificista e até academicista, quando se vinculam a questões puramente ou majoritariamente intelectualistas

o   Entretanto, esses temas em si são importantes e, quando se desvinculam do aspecto intelectualista, eles passam a evidenciar grandes aplicações

-        No ambiente acadêmico, a palavra “positivismo”, por motivos torpes, é sinônima de “unidisciplinaridade estrita”, ou seja, de aversão à inter, à multi e à transdisciplinaridade

o   Entretanto, essa concepção é puramente preconceituosa e originada da má-fé de adversários, que buscam um bode expiatório fácil: nesse caso, é a má-fé “habitual”

o   Por outro lado, há pensadores e correntes de pensamento que, desejando afirmar a inter, a multi e a transdisciplinaridade, adotam o sofisma do espantalho e usam uma contraposição forçada ao Positivismo apenas com o objetivo de dizerem que eles, os adversários, são os únicos e verdadeiros promotores da visão não unidisciplinar

§  Mas, com freqüência, os dois casos acima (má-fé; transdisciplinares do espantalho) raramente ultrapassam os limites do cientificismo e, ainda mais, do academicismo

o   O Positivismo de verdade, isto é, a Religião da Humanidade não somente tem muito a dizer a respeito desses conceitos como, além disso, ela afirma e baseia-se na multi e na transdisciplinaridade!

-        Consideremos, então, conceitos básicos de cada uma dessas possibilidades

o   Vale notar que não procuraremos ser exaustivos a respeito; o que nos interessa é considerar conceitos úteis para as nossas presentes reflexões

o   O conceito fundamental é o da especialização, da “disciplinaridade”

o   Em oposição parcial e crescente à disciplinaridade, temos o seguinte:

§  Interdisciplinaridade: é a reunião de duas áreas do conhecimento (por ex., a neuroquímica), para o estudo de questões abstratas ou concretas

§  Multidisciplinaridade: é a reunião de várias áreas do conhecimento para o estudo de alguma situação concreta

§  Transdisciplinaridade: é a aplicação de critérios extracientíficos às concepções científicas – geralmente concepções de cunho social-moral

-        Algumas características das categorias acima e que são notáveis, para os nossos propósitos:

o   Conceitos cientificistas, ou, de modo geral, academicistas (na medida em que muitas vezes abrangem também ramos das belas-artes);

o   Baseiam-se na existência das disciplinas acadêmicas (nas “disciplinaridades);

o   Forte presença de um racionalismo que lida relativamente mal com a filosofia e as questões morais e que, em virtude disso, no âmbito da transdisciplinaridade, muitas vezes descamba para o misticismo (e, portanto, até para o irracionalismo);

o   Freqüentes confusões entre o que é abstrato e o que é concreto

§  Freqüentes renovações de propostas de “leis concretas”

o   De qualquer maneira, da inter para a transdisciplinaridade, há uma progressiva rejeição do materialismo e do reducionismo

o   Além disso, quando se pratica a inter, a multi e a transdisciplinaridade, costuma-se haver afirmações de “elaborações superiores”, “sínteses amplas” etc.

§  Entretanto, essas afirmações são meras expressões de desejos e de intenções, sem maiores conseqüências

§  Podemos, e mesmo devemos, suspeitar que a ausência de “maiores conseqüências” deve-se não à impossibilidade ou à dificuldade de realizarem-se tais “maiores conseqüências”, mas, sim, ao secreto desejo de não realizar tais sínteses amplas

§  Em outras palavras, o que se deseja é manter-se no âmbito da especialização e da disciplinaridade, além de não se submter a parâmetros superiores e reguladores (morais e religiosos)

·         Daí, aliás, um dos motivos secretos por que o Positivismo é mal visto na academia

-        Passemos então a tratar dessas questões à luz do Positivismo; comecemos por aspectos estáticos, de caráter filosófico-científico:

o   Antes de mais nada, o Positivismo afirma com todas as letras a importância da visão de conjunto; na verdade, ele constituiu-se desde o início como a afirmação da visão de conjunto sobre a realidade humana, em termos sócio-históricos, filosóficos e morais

o   A afirmação da visão de conjunto é o princípio fundamental que permite e justifica a inter, a multi e a transdisciplinaridade

o   Na verdade, Augusto Comte sempre disse para quem quisesse ouvir (e ler) que o Positivismo surgiu como uma filosofia derivada da e aplicada às ciências – ou seja, o Positivismo é desde à partida uma transdisciplinaridade

§  Essa transdisciplinaridade caracteriza-se desde o início não apenas porque o Positivismo é uma filosofia, mas também porque ele aplica claramente – e cada vez mais claramentecritérios morais em suas concepções e ações

§  A visão de conjunto filosófica sobre as ciências serviu tanto como uma reflexão geral sobre as ciências quanto como uma base para a criação de uma nova ciência, a Sociologia

·         A Sociologia foi criada como ciência autônoma, com a delimitação de seus métodos, seus objetos, suas aplicações, seus limites, suas relações com as demais ciências – tudo isso a partir do exame de conjunto das demais ciências, da realidade humana em termos históricos e da realidade em termos “gerais”

·         A criação da Sociologia consistiu também na sistematização da visão de conjunto e da aplicação da perspectiva filosófica, sócio-histórica e moral aplicada ao conjunto das ciências inferiores

·         Ao mesmo tempo em que Augusto Comte criou a Sociologia, ele criou a História das Ciências, entendida não como o simples relato das atividades científicas, mas como a compreensão dos fatores que conduzem ao desenvolvimento das ciências

o   Em outras palavras, a História das Ciências criada por Augusto Comte é uma “história” porque se trata de uma história sociológica das ciências

o   Com o desenvolvimento do Positivismo, isto é, com o seu amadurecimento, a “visão de conjunto” passou também a implicar necessariamente as noções de “subjetividade”

§  O Positivismo aplica pelo menos duas noções de subjetividade, ambas plenas de conseqüências:

·         A primeira é a subjetividade social, que afirma as concepções próprias e a realidade específica do ser humano, em contraposição ao mundo externo e, daí, às ciências inferiores

·         A segunda é a subjetividade individual

§  As duas subjetividades acima englobam os sentimentos e as idéias

·         Há também o âmbito da imaginação, que está no escopo das belas-artes

·         Enquanto as subjetividades indicadas acima têm um papel estruturador do ser humano, a imaginação (na medida em que se vincula às artes) assume uma característica mais subordinada

o   A subordinação da imaginação deve-se à necessidade mais pronunciada de sua regulação, para que não se desvirtue e não descambe para o irracional, o imoral, o puramente fantástico, o alucinado etc.

o   A visão de conjunto amadurecida, ao constituir a Religião da Humanidade, também passou a abarcar mais claramente as noções de “sínteses”

§  As sínteses são concepções gerais que afirmam e estabelecem princípios gerais de entendimento e avaliação da realidade

§  Como sabemos, as sínteses podem ser objetivas ou subjetivas, absolutas ou relativas; na verdade, as sínteses só podem ser subjetivas e relativas, mas podem pretender-se absolutas e objetivas ou subjetivas

-        Vale a pena insistirmos em algumas características das disciplinas criadas por Augusto Comte:

o   O fundador da Religião da Humanidade criou pelo menos duas, talvez três, disciplinas científicas, todas elas tomando necessariamente como base a visão de conjunto:

§  As disciplinas criadas foram (1) a Sociologia, (2) a Moral e (3) a História das Ciências

§  A criação dessas disciplinas com base na visão de conjunto deu-se contrariamente à tendência da fundação de todas as outras ciências, em particular em termos acadêmicos:

·         A tendência academicista consiste na rejeição da visão de conjunto e, inversamente, com enorme freqüência na afirmação do reducionismo (ou materialismo)

-        Ao fundar a Sociologia e, depois, a Moral, Augusto Comte constituiu e concluiu a escala enciclopédica; essa escala afirma a existência de sete ciências abstratas fundamentais, cujos objetos e cujos tipos de abstração são irredutíveis uns aos outros:

o   O que a escala enciclopédica faz, portanto, é insistir na existência de fenômenos abstratos irredutíveis uns aos outros

§  Augusto Comte definia uma ciência como um conjunto de investigações abstratas sobre um determinado âmbito da realidade

§  Isso significa que, sob uma denominação científica geral (e no singular) podem agrupar-se inúmeras ciências mais específicas

·         Dois exemplos com valores intelectuais heterogêneos: a Matemática engloba três ciências específicas (Aritmética, Geometria e Mecânica); a Sociologia, conforme é ordinariamente praticada nas academias brasileiras, engloba a Sociologia específica, a Antropologia e a Ciência Política

o   Ora, a escala enciclopédica, portanto, não nega a possibilidade de intere multidisciplinaridade:

§  A interdisciplinaridade dá-se de maneira evidente nas “franjas” de transição entre as ciências justapostas

§  A multidisciplinaridade, por seu turno, não se dá no âmbito das ciências fundamentais, ou, nos precisos termos da Religião da Humanidade, no âmbito da Filosofia Segunda (as ciências fundamentais)

·         A multidisciplinaridade ocorre na Filosofia Terceira, isto é, na aplicação prática das ciências fundamentais, que é o que se chama geralmente de “tecnologia”

o   A transdisciplinaridade no âmbito da Religião da Humanidade é afirmada com ainda mais clareza, estabelecida como parâmetro necessário de entendimento da realidade e como princípio epistemológico – e, evidentemente, também como princípio moral

§  Exatamente porque considera a visão de conjunto sobre a realidade humana; exatamente porque se dirige ao conjunto da existência humana é que a versão amadurecida do Positivismo é uma “religião” – necessariamente a Religião da Humanidade

§  No âmbito acadêmico, quem afirma a multi e mesmo a transdisciplinaridade mas rejeita a Religião da Humanidade, fá-lo devido a alguns motivos não muito bons e não necessariamente excludentes entre si:

·         Ignorância da obra de Augusto Comte

·         Ciúme da obra de Augusto Comte

·         Incoerência filosófica e/ou moral – que pode incluir como subtipos:

o   Apego à teologia e/ou aos hábitos críticos

o   Aceitação da teoria metafísica dos dois domínios (intelectual-científico e “espiritual”-teológico) – que é profundamente irracional e incoerente

-        Os comentários feitos até agora foram de caráter estático (científicas, filosóficas e morais); passemos a algumas reflexões dinâmicas (históricas e filosóficas)

o   A visão de conjunto de modo geral faz parte das reflexões humanas; na verdade, todos os seres humanos buscam ter uma visão de conjunto sobre o mundo e sobre o ser humano, incluindo os elementos dessa realidade e os princípios que a regem

§  Como sabemos, essas concepções gerais sobre o homem e o mundo constituem as sínteses e as regulações gerais da vida, baseadas nas sínteses, constituem as religiões

-        Como a busca de concepções gerais integra a natureza humana, é natural que todas as sociedades desenvolvam suas elaborações, isto é, suas sínteses

o   O fetichismo elabora espontaneamente uma síntese, ao atribuir à realidade externa as mesmas características que os seres humanos percebem em si mesmos

o   Mas é nas teocracias antigas que se tem uma regulação geral e sintética da existência humana, elaborada e mantida pelo sacerdócio

§  Essa regulação é característica do politeísmo e, em virtude de seu caráter estático, esse politeísmo é conservador

§  Embora seja uma forma errada, pois invertida, de entender a questão, com fins didáticos podemos dizer que a unidade sacerdotal teocrática era inerentemente “transdisciplinar”

§  O politeísmo conservador baseia-se na ascendência (ou dominação) dos sacerdotes sobre os guerreiros; quando os guerreiros afinal obtêm o poder, a unidade mantida pelo sacerdócio afinal se rompe e, a partir daí, surgem efetivamente aquilo que chamamos atualmente de “disciplinas”

o   No Ocidente, a seqüência seguida na emancipação do jugo sacerdotal teocrático – ou, de maneira equivalente, a seqüência na fragmentação da unidade teocrática – foi a seguinte: as artes; a filosofia; a ciência

§  A indústria sempre teve uma existência à parte, embora, é claro, dependente tanto da regulação social teocrática quanto dos conhecimentos elaborados, conservados e difundidos pelo sacerdócio

o   A seqüência de emancipação arte-filosofia-ciência é ilustrada exemplarmente na evolução grega e indicada no calendário positivisa concreto por Homero, Aristóteles e Arquimedes

o   A emancipação de cada uma dessas atividades permitiu, evidentemente, o seu livre desenvolvimento

§  Uma forma alternativa de dizê-lo é o seguinte: o livre desenvolvimento das produções intelectuais humanas exigiu o rompimento dos parâmetros gerais de regulação, tanto os intelectuais quanto os morais

§  Os parâmetros intelectuais incluíam a visão de conjunto; os parâmetros morais incluíam as preocupações sociais

o   O rompimento dos padrões teocráticos deu livre curso aos ramos intelectuais, conduzindo então, progressivamente, à especialização dos conhecimentos – o que, no jargão atual, consiste na “disciplinarização” dos conhecimentos

o   A dominação romana, ao estabelecer o desenvolvimento prático, subordinou as elaborações gregas às necessidades morais e práticas, ou seja, restabeleceu um pouco os parâmetros morais e sociais

§  Em outras palavras, a dominação romana impôs uma visão de conjunto às elaborações gregas

o   A partir da sociabilidade romana, por fim a Idade Média desenvolveu a moralidade, cultivando diretamente os sentimentos (ainda que a partir de uma síntese fictícia, absoluta e egoísta; que se concentrasse na pureza e não no altruísmo; que tivesse que ser auxiliada pelo elemento cavalheiresco da feudalidade)

§  Da mesma forma, a partir de uma síntese fictícia, absoluta e egoísta, a Idade Média também impôs uma visão de conjunto à existência humana

o   O desenvolvimento básico da inteligência (Grécia), da atividade prática (Roma) e dos sentimentos (Idade Média) realizou-se sob o patrocínio da teologia, nas formas do politeísmo progressista e do monoteísmo católico; a partir de então a teologia encontrou-se esgotada, sendo necessário o desenvolvimento direto do dogma positivo com o objetivo de elaborar-se uma síntese relativa e subjetiva

§  A elaboração do dogma positivo baseou-se em um novo rompimento dos parâmetros sintéticos, agora do monoteísmo

§  Enquanto auxiliou o desenvolvimento humano, ou seja, enquanto a síntese monoteica não se deparou com concepções francamente contrárias a si, ela teve um caráter progressista; entretanto, à medida que o dogma positivo ampliou-se e avançou, ficou cada vez mais claro que a síntese monoteísta é incompatível com a realidade, o relativismo e o subjetivismo dos conhecimentos – daí que a teologia tornou-se cada vez mais e progressivamente retrógrada e reacionária

o   O dogma positivo constituiu-se na forma do desenvolvimento de novas áreas das ciências preexistentes e na criação de novas ciências

§  Como Augusto Comte notava, um dos mais importantes traços desse movimento foi a introdução de perspectivas dinâmicas às investigações reais, em contraposição ao caráter estático das pesquisas antigas

§  Além disso, cada vez mais o relativismo das investigações evidenciou-se, abandonando-se a metafísica do “por quê?” em favor da positividade do “como?”

o   O desenvolvimento do dogma positivo foi, em si mesmo, algo necessário e bom, mas teve algumas características inescapáveis que, a longo prazo, tornaram-se negativas:

§  A progressiva especialização, no sentido de progressiva rejeição da visão de conjunto, entendida como algo inerentemente bom

§  A concepção de que a visão de conjunto – àquela altura entendida como sinônimo de aplicação da síntese monoteísta – seria algo necessariamente negativo (repressivo e/ou místico), portanto a ser evitado e/ou combatido

§  O necessário reducionismo (ou materialismo) de cada ciência que progressivamente se afirmava, em relação às concepções superiores a si

·         O academicismo aprofunda os vícios indicados acima

§  É a partir de e contra a “disciplinarização”, a especialização e o reducionismo próprios ao desenvolvimento do dogma científico que se pode falar, então, em “inter”, “multi” e “transdisciplinaridade”

·         É por isso que temos insistido em que a inter, a multi e a transdisciplinaridade são propostas carregadas de cientificismo e, ainda mais, freqüentes vezes, de academicismo

o   Essa marcha, como se sabe, abrangeu a Matemática, a Astronomia, a Física, a Química e a Biologia

§  A Biologia é a última das ciências inferiores, ou a primeira das ciências superiores: em todo caso, ela estabelece a transição entre o mundo externo (o mundo) e o mundo interno (o ser humano)

§  Enquanto as ciências inferiores, da Matemática à Química, adotam perspectivas de detalhe, a Biologia inverte a perspectiva, exigindo visões de conjunto: em outras palavras, ela é a primeira ciência que exige a retomada da visão de conjunto

·         Isso, todavia, não evita necessariamente os vícios próprios à ciência, como a “disciplinaridade” e, ainda mais, o reducionismo em relação à Sociologia e à Moral

o   A Sociologia aprofunda a exigência da visão de conjunto; na verdade, ela exige a visão de conjunto estática (na solidariedade) e, ainda mais, a dinâmica (na continuidade)

§  Como vimos, a Sociologia constituiu-se – mas que esteja bem claro: apenas e exclusivamente com Augusto Comte, não com outros autores! – como sendo ao mesmo tempo “transdisciplinar” e respeitando a dignidade das ciências inferiores!

o   A criação da ciência da Moral completa a escala enciclopédica e, assim, conclui e aperfeiçoa a síntese positiva, relativa e subjetiva

§  Ao mesmo tempo, a Moral consolida e amplia os parâmetros intelectuais, sociais e morais instituídos pela Sociologia

o   Os vícios intelectuais, morais e institucionais próprios às ciências conduziram Augusto Comte a perceber que seria necessário afirmar com clareza ainda maior a visão de conjunto, ou melhor, a unidade do ser humano

§  A afirmação da unidade do ser humano, todavia, não poderia dar-se com a negação da dignidade de cada uma das ciências fundamentais

§  Ao afirmar e aprofundar o espírito positivo, isto é, as suas características de relativismo e de subjetivismo, então, Augusto Comte reconheceu que é necessário distinguir duas formas, ou melhor, duas etapas sucessivas do espírito positivo: uma etapa analítica, disciplinarizada, e outra sintética, filosófica

·         Enquanto a primeira etapa permite a disciplinaridade, a interdisciplinaridade e, até certo ponto, a multidisciplinaridade, a segunda etapa é a única que pode ser chamada de transdisciplinar

§  Entretanto, é importante notar que a síntese positiva é superior à chamada transdisciplinaridade

·         O verdadeiro espírito positivo só se dá com a sua forma filosófica, pois é esta que estabelece, ou restabelece, a síntese positiva e, daí, a unidade humana

§  Uma forma ao mesmo tempo simples e bela de estabelecer a síntese positiva e a unidade humana é por meio da afirmação de que, na verdade, só existe uma ciência, a ciência do ser humano – ou melhor, só existe a ciência da Humanidade

-        Esta exposição está bastante longa, mas não é exaustiva; desde já posso indicar que deixei de lado, mas que não poderei desenvolver agora, pelo menos alguns temas que foram citados:

o   A falsa esperança das chamadas “ciências concretas”, que, no fundo, é o que fundamenta muitas das propostas de multidisciplinaridade

o   A relação entre a síntese subjetiva e as ciências abstratas, ou, dito de outra forma, a relação entre as perspectivas analíticas abstratas e a síntese concreta

o   Além disso, embora eu não tenha citado ao longo desta exposição, vale notar que a Trindade Positiva integra os elementos próprios à síntese positiva e que, nesse sentido (bem pobre, aliás), ela integraria uma transdisciplinaridade positivista

o   Da mesma forma, a Religião da Humanidade pode e deve ser entendida como um conjunto de indicações, sugestões, orientações e prescrições visando a regular e a lidar com os problemas afetivos, intelectuais e práticos da inter, da multi e, principalmente, da transdisciplinaridade

-        Em suma:

o   As propostas de inter, multi e transdisciplinaridade surgem a partir das especializações científicas e, ainda mais, das especializações acadêmicas

§  Essas propostas muitas vezes são generosas e corretas, ainda que apresentem limitações e sejam também muitas vezes eivadas de incoerências

§  Em última análise, o que fundamenta as propostas de inter, multi e transdisciplinaridade é a afirmação cada vez mais ampla da visão de conjunto e a busca de uma síntese humana – que, todavia, na prática são negadas pelos próprios cultores da inter, da multi e da transdisciplinaridade

o   O Positivismo é uma filosofia que claramente, desde o início, com todas as letras constituiu-se a partir da visão de conjunto; a partir disso ele elaborou uma filosofia histórica das ciências e, ao mesmo tempo, criou a Sociologia

§  A compreensão de que as ciências abstratas fundamentais devem ter suas dignidades respeitadas mas que, ao mesmo tempo, elas são insuficientes para a síntese e a unidade humanas levou Augusto Comte a dividir a etapa intelectual do espírito positivo em duas novas fases sucessivas: uma analítica, mais cientificista, e outra sintética, de caráter necessariamente filosófico

§  É claro que a etapa sintético-filosófica é superior à etapa analítico-cientificista

o   O aprofundamento progressivo da visão de conjunto e o evidenciamento dos seus aspectos morais conduziram Augusto Comte a criar a ciência da Moral e, entendendo a importância e a necessidade da síntese positiva e da unidade humana, a criar a Religião da Humanidade, epítome de todas essas exigências

06 setembro 2023

Celebração de Sofia Bliaux; celebração de José Bonifácio

No dia 24 de Gutenberg de 169 (5.9.2023) realizamos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista; em particular, prosseguimos a "Oitava conferência", dedicada à filosofia das ciências superiores (as chamadas "ciências humanas", isto é, a Sociologia e a Moral).

Na parte do sermão comemoramos o aniversário da transformação de Augusto Comte (ocorrido justamente no dia 5 de setembro) e a Independência do Brasil (no dia 7 de setembro). Para isso, celebramos respectivamente as memórias de Sofia Bliaux e de José Bonifácio.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://l1nq.com/hJvkX) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/lyjK3). A celebração de Sofia Bliaxu pode ser vista a partir de 43' 50"; a celebração de José Bonifácio pode ser vista a partir de 1h 20' 16".

*   *   *

 

Transformação de Augusto Comte, celebração de Sofia Bliaux[1] 

-        O dia 24 de Gutenberg (5 de setembro) é a data em que ocorreu a desastrosa transformação de Augusto Comte, há 166 anos

o   A transformação de Augusto Comte foi “desastrosa” porque tirou da vida objetiva o fundador do Positivismo, que, embora já tivesse escrito o principal de sua obra, tinha ainda previstos muitos livros que desenvolveriam aspectos importantes da Religião da Humanidade

o   Mas como sabemos, embora triste por si só, a transformação encerra a vida objetiva útil e inicia plenamente a vida subjetiva de todos nós

§  O nascimento deve ser sempre valorizado, mas é na transformação que podemos avaliar a atividade realmente desenvolvida pelos indivíduos e, daí, podemos avaliar se foram altruístas ou egoístas, construtivos ou destruidores etc.

§  Em outras palavras, enquanto o nascimento constitui apenas uma promessa – certamente, sempre uma bela e fundamental promessa, mas, ainda assim, apenas uma promessa –, é na transformação que avaliamos a vida e, portanto, que celebramos efetivamente a vida de cada um

o   Assim, a data da transformação é realmente para ser celebrada

-        Ao mesmo tempo, é a data da celebração de Sofia Bliaux

o   No calendário da Igreja Positivista do Brasil, no dia 19.1 celebramos o nascimento de Augusto Comte e a memória de sua mãe, Rosália Boyer; no dia 8.10, celebramos a festa de Comte e Clotilde

o   Assim, considerando a importância de Sofia para a vida de Augusto Comte e também a instituição dos seus “três anjos”, no dia 5.9 celebramos Sofia

-        Sofia Bliaux nasceu em 18.9.1804, na pequena comuna de Oissy, no Somme (Norte da França)

§  Assim, ela era seis anos mais nova que Augusto Comte e 11 anos mais velha que Clotilde

o   Quando criança mudou-se com os pais para Paris, onde levava uma vida pobre, tendo que trabalhar desde cedo, sempre com humildade e devotamento

o   A obediência e o devotamento aos patrões era tanta que solicitou aos patrões a permissão para casar-se (no que foi atendida); seu marido, Martinho Thomas, era entregador de uma farmácia próxima à rua Monsieur-le-Prince; foi usando esse serviço (para receber poções e cremes de beleza) que Carolina Massin travou contato com Martinho Thomas e, a partir disso, soube das dificuldades crescentes de Sofia, que cuidava sozinha de uma casa grande com crianças que cresciam

o   Após muitas insistências de Carolina Massin, Sofia afinal passou ao serviço de Augusto Comte em 1841 (um ano antes de Carolina abandonar definitivamente o lar conjugal); na verdade, na época Sofia entrou ao serviço de Carolina e não propriamente ao de nosso mestre

o   Logo Sofia percebeu, por um lado, que Carolina era uma péssima esposa e que não dava paz de espírito a nosso mestre; por outro lado, ela percebeu que Augusto Comte era uma pessoa simples, de existência modesta, mas cuja atividade era intensa e que era inteiramente dedicada à renovação moral, intelectual e social e que, por isso, precisava de apoio material

§  A partir disso, a partir de uma humildade simples, confrontando a grandeza moral de Augusto Comte com sua própria existência modesta, ela entendeu que poderia e deveria dedicar-se a auxiliá-lo o máximo que pudesse

o   Em 1842, quando Carolina Massin abandonou o lar pela última vez, Sofia permaneceu na rua Monsieur-le-Prince; mas, devido à vinculação inicial de Sofia com Carolina Massin, e devido à péssima experiência que tivera com sua ex-esposa, Augusto Comte desconfiava profundamente dela

§  Apenas com o passar do tempo, e considerando as simpatias de Comte para com os proletários, Augusto Comte foi reconhecendo a sinceridade da devoção de Sofia e tornando-a, bem como ao seu marido, uma companheira habitual em seu lar

o   Quando o amor de Comte por Clotilde irrompeu, logo Sofia percebeu a importância disso para o filósofo e com freqüência atuava como mensageira entre ambos; depois também se tornou confidente de Clotilde

o   Devido à sua triste história, a saúde de Clotilde era frágil; em suas últimas semanas (março de 1846), Sofia foi enfermeira, cuidadora e verdadeira irmã de Clotilde, tendo pernoitado 18 dias na casa de Clotilde, até seu falecimento

§  Após a morte de Clotilde, Sofia reconfortou Augusto Comte e mesmo o afastou de pensamentos de suicídio

o   Em virtude da perseguição acadêmica que Augusto Comte sofria, em 1847 e, ainda mais, em 1848 ele perdeu seus modestos empregos acadêmicos; nesses dois anos, em 1847 e, depois, em 1848, Sofia e seu marido ofereceram suas economias para auxiliar Augusto Comte em suas despesas (que, em sua parte mais importante, eram destinadas à pensão de sua ex-esposa); o primeiro oferecimento foi recusado, mas o segundo nosso mestre viu-se obrigado a aceitar

o   Observa José Longchampt (p. 85) que Sofia converteu-se à Religião da Humanidade: “Foi por estas conversações diárias que Augusto Comte realizou, na única mulher que dele se aproximava, a primeira conversão à Religião da Humanidade”.   

o   Reconhecendo os sacrifícios feitos por Sofia ao longo dos anos, não apenas em termos de salário e de alimentação, mas também em termos de convívio com sua família, em 1848 Augusto Comte convidou Martinho Thomas que fosse morar em seu apartamento com Sofia e seu filho, o que o casal aceitou

§  Esse reconhecimento foi devido não apenas ao devotamento do casal, mas também devido à valorização da domesticidade e mesmo do casamento

§  Dando continuidade à afirmação da domesticidade em sua própria vida, Augusto Comte proclamou Sofia como sua filha em 18.7.1850, na cerimônia de casamento do dr. Segond

§  Mais tarde, a valorização de Sofia atingiu seu máximo com a consagração de ser indicada como um dos seus “três anjos”

o   Após a morte de nosso mestre, Sofia recebeu de Augusto Comte um retrato de Clotilde, bem como lhe foi destinado uma pensão até sua morte, sob responsabilidade dos executores testamenteiros, e o direito de residir no apartamento da rua Monsieur-le-Prince

o   Ela morreu em 5.12.1861; conforme solicitação explícita de nosso mestre em seu Testamento, ela foi enterrada juntamente com Augusto Comte, no “cemitério do Leste” (o Père Lachaise)

§  Em 28.3.1867 Martinho Thomas faleceu; seu filho, Paul Thomas, ficou sob a responsabilidade de José Longchampt e tornou-se também positivista

 

*          *          *

 

Independência do Brasil, celebração de José Bonifácio 

-        Esta exposição baseia-se em importante medida em uma postagem feita em 7.9.2015, chamada justamente “7 de setembro – Independência do Brasil e comemoração de José Bonifácio

o   Além disso, usamos aqui como referência as publicações do Apostolado Positivista do Brasil (como o opúsculo A pátria brasileira, de 1881, e a bela biografia de Benjamin Constant, escrita por Teixeira Mendes em 1891) e o livro de David Carneiro, A vida gloriosa de José Bonifácio de Andrada e Silva e sua atuação na Independência do Brasil (de 1977)

-        O Positivismo celebra a Independência do Brasil e a memória de José Bonifácio porque o Brasil é uma pátria e, portanto, uma das associações humanas fundamentais

o   Como sabemos, os três níveis normais de associações humanas são: a família (baseada nos sentimentos), a pátria (baseada na atividade prática) e a Humanidade (baseada na inteligência)

-        Ao celebrar cada pátria, o Positivismo constitui-se como uma religião cívica

o   Para entendermos o que isso quer dizer, e embora o Positivismo, como regra geral, rejeite as distinções sutis, temos que estabelecer a diferença entre “religião cívica” e “religião civil

o   Essa diferença espelha a diferença entre a teoria política absoluta (teológico-metafísica) e a teoria política relativa (positiva), especialmente no que se refere à divisão entre teoria e prática, ou, o que equivale em termos políticos, a divisão entre a igreja e o Estado

o   A religião cívica celebra valores cívicos, mas faz questão de não se impor sobre os cidadãos nem de usar o apoio estatal para sua difusão: por definição, é a Religião da Humanidade

§  Vale lembrar que o Positivismo, como religião cívica, tem clareza de que as pátrias na sociedade normal serão denominadas de “mátrias”, organizadas em regimes sociocráticos e que isso implica, desde já (na verdade, desde o começo do século XIX), que todas as mátrias baseiem-se na fraternidade e na paz universal e, portanto, também na rejeição da violência, da guerra e do militarismo (e do nacionalismo imperialista e/ou xenofóbico)

o   A religião civil é a religião imposta pelo Estado (ou seja, é obrigatória) e que tem a sua igreja sustentada pelo Estado: são as religiões teológicas e é a proposta da democracia de Rousseau

§  Rousseau, em sua proposta democrática, afirmava com todas as letras que o Estado tem que ter religião oficial, imposta a todos os cidadãos; inversamente, os cidadãos que rejeitassem essa religião oficial seriam presos ou, no limite, expulsos do país

-        No dia 7 de setembro celebramos a Independência do Brasil e, por isso mesmo, comemoramos a figura de José Bonifácio de Andrada e Silva (1763-1838), o grande “Patriarca da Independência”

-        Para realizarmos essa celebração, temos antes que lembrar, ou afirmar, as condições e as exigências da política moderna

o   A política moderna baseia-se na existência de pátrias livres; essas pátrias têm que ser menores do que costumam ser ainda hoje, mas, de qualquer maneira, a liberdade é uma condição fundamental e insuperável

o   O que significa essa “liberdade”?

§  Significa a possibilidade de decidir com autonomia os rumos a tomar, sem imposições externas e de acordo com os parâmetros específicos de cada país

§  Assim, ao mesmo tempo em que cada pátria deve poder decidir o que deseja fazer, sua conduta deve caracterizar-se pelo respeito a todas as outras nações, no que se refere à sua dignidade e às suas condições de existência, e ao desenvolvimento de ações pacíficas e coordenadas com vistas à melhoria material e moral de todas.

o   Em outras palavras, a política moderna não pode ser definida pela “soberania”, entendendo-se a soberania como a consideração de que cada país é o juiz único e último de suas ações, em desrespeito e desconsideração aos demais países

o   Ao mesmo tempo, a necessária interdependência política, material e moral não pode ser entendida e usada como desculpa para intromissões e invasões de uns países sobre os outros.

o   Em termos internos, cada país deve buscar a integração social, a redução e o fim da miséria, o combate e o fim das discriminações sociais, o desenvolvimento técnico, científico e moral etc.

o   No caso do Brasil do início do século XIX, José Bonifácio tinha clareza desses objetivos e dessas condições; foi por isso que tratou de organizar as condições propícias para a independência do Brasil – e que, sendo a eminência parda por detrás do então Príncipe Regente, obteve de fato a independência nacional no 7 de setembro de 1822.

-        Ao falarmos da Independência do Brasil, celebramos José Bonifácio: mas por que ele?

o   O príncipe regente Pedro de Alcântara – depois chamado no Brasil de “(dom) Pedro I” –, embora tenha sido necessariamente o executor concreto da independência, não era uma pessoa preparada politicamente em termos intelectuais, morais e práticos

§  Apesar disso, considerando a situação política, social e institucional do Brasil na época, somente d. Pedro poderia realizar o “grito do Ipiranga”

§  Evidentemente, a falta geral de condições morais, intelectuais e práticas de Pedro de Alcântara não significava que ele não tivesse sentimentos de simpatia pela população brasileira, que não tivesse preconceitos de casta, que soubesse reconhecer o valor da pessoa e dos conselhos de José Bonifácio

o   Por outro lado, quem tinha o preparo e a estatura moral, intelectual e prática era o conselheiro de Pedro de Alcântara, José Bonifácio

§  José Bonifácio, além de ser um homem com a preparação própria e a atividade prática do Iluminismo, tinha o enorme fator de ser brasileiro

§  A primeira carreira de José Bonifácio desenvolveu-se totalmente na Europa, com suas longas viagens de estudos e de pesquisas (em que se revelou um grande pesquisador) e, depois, com sua atuação na burocracia pública portuguesa (em que ocupou simultaneamente inúmeros cargos importantes)

§  A atuação propriamente política de José Bonifácio ocorreu quando ele já era idoso (com cerca de 60 anos de idade) e voltara ao Brasil buscando aproveitar sua aposentadoria

-        A independência do Brasil era uma necessidade na época e, de qualquer maneira, seria uma necessidade política do país

o   Na época era uma necessidade porque, com o término das Guerras Napoleônicas, a permanência da monarquia no Brasil não tinha mais sua justificativa inicial (evitar a submissão à tirania militar de Napoleão)

§  Devemos lembrar que a família real e a corte portuguesa fugiram em 1808 para o Brasil, transformando a antiga colônia em sede do império

§  Depois, em 1815, o Brasil tornou-se membro equivalente do império, que passou a ser o Reino Unido de Portugal, Brasil e Algarves

o   Além disso, havia os exemplos americanos dos Estados Unidos (1776), do Haiti (1798) e da América hispânica (décadas de 1800 a 1820)

§  Desde o fim do período colonial o Brasil já contava com uma sociedade ativa, organizada, conhecedora dos seus interesses, com projetos nacionais cada vez mais claros e disposta a realizar a independência para isso

§  A independência nacional era vista sempre como acompanhada da república

§  A vinda da família real em 1808 deu um fortíssimo impulso à vida política, social e intelectual do país, reforçando as condições para a autonomia e/ou a independência nacional

o   Ao mesmo tempo em que o Brasil desenvolvia-se, as Cortes Gerais de Lisboa, reunidas após a Revolução Liberal do Porto, de 1820, apesar de afirmarem-se “liberais”, queriam retrogradar a situação do Brasil para a condição colonial, o que implicaria necessariamente uma violenta opressão sobre o país

§  A Revolução Liberal do Porto e as Cortes Gerais de Lisboa (criadas após a revolução do Porto) seguiram o impulso da Revolução Francesa mas adotaram o modelo inglês, em que a crítica ao Antigo Regime assumiu a forma da aberração político-intelectual que é a chamada “monarquia constitucional”

§  De maneira bastante representativa desse movimento foi a exigência das Cortes Gerais de retorno de d. João VI a Portugal, mantendo Pedro de Alcântara no Brasil como Príncipe Regente

§  A regressão do Brasil à condição de colônia seria opressiva por si só, como a conjuntura própria à Inconfidência Mineira deixava claro; mas, em face do desenvolvimento político, econômico e social do Brasil ocorrido desde o século XVIII e fortemente estimulado pela vinda da família real em 1808, a imposição do status colonial ao Brasil implicaria, necessariamente, redobradas opressões e violências

§  Vale a pena notar que tanto a instituição da monarquia constitucional quanto o projeto de regressão do Brasil à condição de colônia são exemplares do caráter dissolvente, absolutista e anti-histórico da metafísica

o   De qualquer maneira, considerando a distância entre os dois países, a disparidade de tamanho e as realidades sociais e políticas, a independência do Brasil teria que acontecer cedo ou tarde

-        Sendo d. João VI obrigado a voltar a Portugal e sendo públicas as pretensões das Cortes Gerais a respeito do Brasil, logo percebeu José Bonifácio que seria necessário agir e com grande rapidez

o   A partir daí, ele procurou acercar-se de Pedro de Alcântara, que soube reconhecer o valor do ancião

o   José Bonifácio soube preparar Pedro de Alcântara para a independência; mas, ao mesmo tempo, teve que enfrentar resistências inesperadas, totalmente retrógradas e mesquinhas, como a de Domitila de Castro, a famosa amante de Pedro de Alcântara tornada “Marquesa de Santos”, que apoiava o projeto “recolonial”

o   O episódio do “Dia do Fico” (9.1.1822), em que Pedro de Alcântara rejeitou a ordem de retorno a Portugal, emitido pelas Cortes Gerais, preparou o 7 de Setembro

-        Exemplares das superiores condições morais, intelectuais e práticas de José Bonifácio são as suas propostas para o Brasil

o   José Bonifácio tinha extrema clareza a respeito dos problemas e das condições brasileiras de então

§  Para ele, cumpria integrar o imenso território nacional, assim como permitir e realizar a integração dos três grandes elementos étnicos nacionais, o português, o africano e o indígena

§  A integração social implicava, necessariamente, a abolição da escravidão, a miscigenação e, depois, o estímulo à alfabetização e à indústria

§  Todavia, ao mesmo tempo, percebendo que o país tinha sua economia baseada na escravidão, em um regime que naquele momento não tinha perspectivas para desaparecer, José Bonifácio entendeu que só seria possível manter o Brasil unido por meio da monarquia: afinal de contas, para ele, a escravidão era inimiga da República

§  Em outras palavras, a monarquia foi instituída para garantir (pelo menos por algum tempo) a permanência da escravidão – o que equivale a dizer que a monarquia foi implantada no Brasil como um regime explicitamente escravista e escravocrata

§  A monarquia apresentava algumas vantagens adicionais de caráter momentâneo: por um lado, assegurava a continuidade institucional por meio da manutenção da dinastia reinante; por outro lado, José Bonifácio temia que a república no Brasil seguisse os passos da América espanhola, com a fragmentação política (e territorial)

o   Essas propostas foram expostas com grande beleza pelo pintor positivista Eduardo de Sá, na famosa tela “José Bonifácio, a fundação da pátria brasileira”

-        Também importa notar que, assim como com Tiradentes, a figura de José Bonifácio foi eternizada e celebrizada por nós, positivistas

o   Mas, não por acaso, a historiografia atual despreza essa nossa importância, ainda que aceite os resultados de nossa atuação

o   Esse desprezo da historiografia atual pela importante atuação dos positivistas em favor da memória de José Bonifácio segue o impulso destruidor da metafísica marxista desde a década de 1960 (ainda que a historiografia atual não seja marxista) e revela, no final das contas, uma profunda mesquinhez

-        Considerando que o Positivismo é uma religião cívica e pacifista, importa afirmar com toda as letras: os desfiles militares não representam a República

o   Nesse sentido, nem a proposta cívica de José Bonifácio nem o caráter pacífico-industrial da política moderna aceitam as demonstrações usuais de “civismo”

o   Desde pelo menos o século XIX – portanto bem antes do regime inaugurado em 1964 –, as comemorações do 7 de Setembro resumem-se a paradas militares. Os desfiles de pelotões, tanques e armamentos acabam concentrando nas Forças Armadas as idéias de “civismo” e “patriotismo” e desvirtuando a convergência pacífica dos cidadãos em prol do bem comum – que é o fundamento e o objetivo da política republicana

o   Já em 1881 os positivistas dizíamos exatamente isso, repetindo-o desde então

-        O 7 de Setembro resume-se na imponente máxima de José Bonifácio, segundo quem “A sã política é filha da moral e da razão”

o   A sabedoria política de José Bonifácio pode ser avaliada por esta frase, que resume de maneira brilhante o programa da política moderna: “A sã política é filha da moral e da razão”

o   É devido a concepções como essas que, juntamente com a Independência do Brasil, no dia 7 de setembro comemoramos também a imponente figura do grande santista que foi José Bonifácio

o   Embora não seja de origem positivista, essa máxima evidentemente está totalmente de acordo com os mais elevados princípios morais, intelectuais e políticos propostos pelo Positivismo

§  A concordância com o Positivismo ocorre também porque essa máxima corresponde aos melhores valores da política moderna

 


[1] Estas anotações baseiam-se na Notícia sobre a vida e a obra de Augusto Comte, escrita pelo dr. Robinet (1860), no livro O ano sem par, de Teixeira Mendes (1900), no livro Epítome da vida e dos escritos de Augusto Comte, de José Longchampt (1898), e, principalmente, no artigo “Un des anges d’Auguste Comte – Sophie Thomas”, de Maurice Wolff (Mercure de France, 44 année, tomo CCXLV, n. 842, 15.jul.1933)