Apresentamos abaixo diversas citações de Raimundo Teixeira Mendes (1855-1927, vice-Diretor da Igreja Positivista do Brasil e autor da bandeira nacional republicana), extraídas de um belo opúsculo publicado em 1899, mas reunindo publicações feitas originalmente em um jornal diário em 1881. Esse opúsculo intitula-se “Calendário positivista – precedido de indicações sumárias sobre a teoria positiva do calendário”.
Mundo e homem, objetivo e subjetivo, cientificidade e
moralidade
Seja qual for o problema que solicite a nossa atenção,
podemos dispor em duas categorias o conjunto dos dados imprescindíveis à sua
completa solução: de um lado, a série de considerações fornecidas pelo mundo;
de outro lado, a soma de exigências resultantes dos interesses humanos. É isto
que se exprime em linguagem filosófica, dizendo que todo problema tem condições
objetivas, – referentes ao mundo,
– e condições subjetivas – referentes ao homem. Por
exemplo, quando se projeta uma estrada de ferro, não basta examinar as
condições do terreno, os lucros pecuniários etc.; cumpre saber sobretudo se a
sua realização não importa a ruína da população a cujo cargo estava antes o
transporte das mercadorias. E, ao formular a solução, é imprescindível indicar
os meios de prevenir semelhante cataclismo, sob pena de ser uma solução
incompleta, cientificamente, e iníqua sob o ponto de vista social e moral.
p. 5-6
Subjetividade e moralidade da existência humana
É para o homem que o homem trabalha; e para o homem devem
convergir todos os esforços humanos; fora deste círculo, tudo é imoralidade e anarquia,
seja qual for o pretexto e o título com que o decorem.
Ora, o predomínio do ponto da vista humano significa a
satisfação dos interesses coletivos, o bem estar de todos, e não as
conveniências de um individuo, de uma cidade ou de uma nação. Toda a concepção
da ordem social que não se mostrar compatível com a felicidade de todos os
homens, seja qual for a sua condição e o seu grau de civilização, é um sistema
imperfeito, incapaz de satisfazer ás inteligências e aos corações bem formados.
p. 6-7
Unidade e síntese humanas
possíveis apenas com o amor e o altruísmo
Ora, é claro que os órgãos do egoísmo não podem ser
escolhidos como devendo dominar para se alcançar que todos os homens tenham o
mesmo sentimento; se cada um cuida de si, é forçoso que haja desunião e
contenda. Só resta escolher para sentimento dominante o altruísmo, isto é, os órgãos
menos intensos, para conseguir que os atos convirjam. Somos assim conduzidos a
esta conclusão fatal: a vida social é impossível sem o predomínio do amor,
isto é, da dedicação. E será isso possível? Seguramente que sim: – tal foi o
resultado de toda a grandiosa
elaboração de Augusto Comte. Com efeito, a satisfação dos instintos altruístas
não exige o aniquilamento dos instintos egoístas; pelo contrario, a eficácia
social dos sentimentos humanos se altera igualmente quando eles se tornam demasiado
subtis ou demasiado grosseiros, na frase do nobre Pensador. A expansão
altruísta é impossível sem uma certa dose de egoísmo: para amar é preciso
viver. Somente, de acordo
com uma profunda observação do fervoroso S. Paulo, o destino superior dos órgãos
inferiores os enobrece e exalta. O ascetismo é condenado pela Religião da
Humanidade, por tornar-nos incapazes de servir a outrem, isto é, de amar;
porque melhor ama quem, melhor serve.
Tomemos um exemplo que esclareça o que porventura houver de
obscuro nas considerações precedentes. Examinemos um operário em hora de
trabalho. A
vida social exige dele uma série de operações que constituem
o sou ofício, e de cujo produto não tem o menor quinhão: trabalha realmente
para outrem. No entanto, ó fácil de ver nele em jogo todos os instintos. O instinto
conservador tem a justa satisfação, visto como a vida lhe é assegurada pelo salário,
e demais ele tem de velar incessantemente para não ser vítima dos perigos que
salteiam a pratica industrial. Os instintos construtor e destruidor funcionam
simultaneamente, porque é da natureza da industria separar e reunir materiais.
O orgulho encontra uma válvula no domínio da matéria bruta, pelo menos. A vaidade
compraz-se na apreciação de seus companheiros. Isto pelo que respeita aos órgãos
egoístas; vejamos os altruístas. A veneração se desenvolve na consideração de
seus chefes e na lembrança dos grandes inventores. A bondade expande-se no
trato dos aprendizes, na recordação dos filhos por quem trabalha, e na
contemplação da posteridade, que virá a gozar dos seus labores e sacrifícios. O
apego finalmente se exercita no culto de seus companheiros e até de seus
instrumentos de oficina. Tome-se qualquer função social, e encontrar-se-ão todos
os órgãos cerebrais em jogo.
Este exemplo basta para mostrar como é possível conciliar a
satisfação de todos os instintos egoístas, com o imprescindível domínio dos órgãos
altruístas; e portanto evidencia a possível solução do grande problema humano.
Para assegurá-la basta fazer intervir uma lei biológica, conhecida de todo o
mundo, e vem a ser que o exercício desenvolve a função e o órgão, e a falta de
exercício os atropina. Não ha quem ignore que o meio de fazer qualquer cousa
bem, é exercitar-se em fazê-la sempre que possível for.
p. 8-10
Sem o altruísmo e a moralidade não há solução dos problemas
enfrentados pelo ser humano
Todo
problema, portanto, em que se desprezar o aspecto moral; toda solução que não
puder ser considerada como um meio de subordinar o egoísmo ao altruísmo, é um
problema não resolvido, é uma solução inútil e até prejudicial. Porque não há meio
termo: ou o egoísmo fica subordinado ou subordina.
p. 11
Noção positiva de
progresso I
Hoje liga-se à palavra progresso a
ideia de qualquer
mudança no que existe; e por outro lado é geral a crença de que
tudo quanto atualmente encontramos na
sociedade, pode-se vir a mudar com o correr dos anos.
Esta concepção da instabilidade das instituições humanas e de sua variabilidade
indefinida constitui a mais seria ameaça à ordem publica, e está em flagrante
contradicção com as indicações do método positivo nas ciências inferiores.
p. 12
Noção positiva de progresso
II
Para ele [Augusto Comte] tudo quanto se tinha passado até então, se dera em virtude
de leis naturais; e para descobri-las só havia
um caminho a seguir: – ver como se tinham passados
os fatos registrados pela história. Feito isto, o
conhecimento das leis sociais e morais poderiam
dirigir a intervenção humana no governo do homem,
assim como as leis matemáticas, físicas e químicas a dirigem na construção de
qualquer máquina.
Com estas disposições metódicas, que aprendera no cultivo das
ciências conhecidas até si, desde a matemática até a biologia, Augusto Comte empreendeu o
descobrimento das leis que regem a sociedade e o homem.
Foi então que reconheceu que de fato as
sociedades variavam com o tempo, o que já outros haviam
também reparado antes dele; mas o que ninguém
tinha feito e ele fez foi dizer como é que se
opera semelhante variação. Foi assim que ele construiu a sociologia,
demonstrando que o progresso consiste sempre:
1.° Sob o aspecto intelectual,
em fazer a razão
humana passar por três fases: teológica, metafísica e positiva.
2.° Sob o aspecto
pratico, em fazer a atividade passar pelas três fases de ataque, defesa, e industria ou paz.
3.° Sob o aspecto
moral, em fazer o sentimento passar elas três fases; Família, Pátria e Humanidade.
Em virtude da primeira lei, o homem tende cada vez a tornar-se
mais sintético; em virtude da
segunda
a tornar-se mais sinérgico; em virtude da
terceira
a tornar-se mais simpático. E tudo isso
se
resume neste aforismo único: O homem torna-se
cada
vez mais religioso.
Assim, o positivista crê que a sociedade muda, mas não crê que mude ad
libitum do primeiro que chega; o progresso para
ele tem uma significação precisa.
p. 13-14
Noção positiva de ciência
Vejamos agora a importância que se deve atribuir à ciência,
isto é, qual deve ser a posição da
inteligência no conjunto da vida humana.
Em primeiro lugar observemos que o ascendente científico não
exige que cada homem seja
um
sábio; se assim fosse, o positivismo não passava de
quimera. Existe uma fé científica, como
existem uma fé teológica e
uma fé metafísica: crê-se por
confiança e sem demonstração. Para evidenciá-lo basta
reparar que a maioria do Ocidente acredita
no
movimento da Terra; e no entanto bem pequeno é
o numero dos que estão nos casos de formular hoje
semelhante teoria. Crê-se porque pessoas que se
julgam competentes assim o afirmam.
Isto posto, é fácil de mostrar o caráter anárquico e corruptor
da inteligência isolada. Basta reparar que a construção
de qualquer máquina de guerra exige em nossos
dias talvez maiores esforços intelectuais do que os
instrumentos industriais. No ponto de vista objetivo
o monitor Solimões é mais
apto para revelar a força prodigiosa da ciência moderna do que as faluas que
cruzam a nossa baía. Mas decida cada um por si em qual dos casos
a inteligência teve melhor destino: se construindo um monstro de destruição
numa época que deve aspirar à paz; se construindo um aparelho insignificante
consagrado a estreitar as relações sociais.
A ciência isolada é até prejudicial; como todos os aspectos de nossa existência,
ela tem de subordinar-se ao amor universal que nos impele a servir
à
Família, à Pátria, e à Humanidade.
p. 15-16