Em 2005 publiquei o artigo abaixo na extinta Revista Autor (ano V, n. 4). Esse texto não é propriamente original, mas apresenta algumas reflexões interessantes e úteis, além de possuir um caráter didático.
Ele foi originalmente escrito durante o meu mestrado em Sociologia, cursado na Universidade Federal do Paraná entre 2002 e 2004. De lá para cá eu alteraria algumas observações e alguns comentários, além de acrescentar muitas outras referências bibliográficas. Entretanto, como se costuma dizer, é necessário respeitarmos o que escrevemos na época em que escrevemos; desse modo, as únicas modificações que fiz em relação à versão original foram nas indicações de autores ao longo do texto; no mais, o texto abaixo segue a versão original (incluindo minha titulação e minha inserção profissional).
* * *
Guerra de todos contra
todos:
a contribuição de Hobbes para a política
internacional
Gustavo Biscaia de
Lacerda
|
Thomas Hobbes
Fonte: Wikipédia |
Introdução
A partir da leitura de De cive e O leviatã, não
encontramos elementos específicos de Hobbes sobre a guerra, ou melhor, sobre as relações internacionais. Há, sem dúvida alguma, elementos importantes
sobre o "estado de guerra", sobre sua dinâmica e sua psicologia;
contudo, especificamente sobre as relações estabelecidas entre duas unidades
políticas autônomas, não há indicações além de referências sumárias,
apresentadas com o objetivo exclusivo de comprovar seu modelo lógico de
"estado de natureza". Isso, contudo, exige desenvolvimentos maiores,
em face da elaboração do autor.
Por outro lado, os especialistas em relações
internacionais soem falar em uma tradição "hobbesiana" de análise, em
contraposição a outra "kantiana", ou ainda, embora de maneira menos
freqüente, a outra "grociana". A questão, simples e direta, é: se
Hobbes não apresentou um modelo explícito para as relações internacionais, por
que se fala em tradição hobbesiana? É isso que procuraremos responder neste
ensaio.
Nosso percurso será: em primeiro lugar, faremos um
retrospecto histórico, apresentando as mudanças multisseculares que resultaram
no sistema de estados sobre o qual Hobbes elaborou suas idéias; depois,
esboçaremos os elementos da teoria hobbesiana da sociedade, seguindo seus principais
passos, desde o estado de natureza até o estado civil. Em seguida, comentaremos
algumas tradições analíticas na área das relações internacionais, a partir dos
filósofos que as inspiraram – a fim de se traçar um painel minimamente
abrangente, com certo valor comparativo – e, finalmente, mostraremos de que
maneira é possível falar-se em uma tradição "hobbesiana" das relações
internacionais.
Retrospecto
histórico
Para iniciarmos a apresentação, é importante
notarmos que ao Hobbes escrever, sua preocupação subjacente era elaborar uma
teoria do governo que evitasse a guerra civil – afinal, assim como a Europa
continental passou pelas guerras de religião, a Inglaterra não ficou incólume a
elas, tendo as suas, que se caracterizaram como sendo, além de religiosas, de
caráter intestino e sucessório – e pudesse manter seguros os indivíduos,
preservando ao menos suas vidas. Nesse sentido, Hobbes é um dos grandes
teóricos da ordem civil, a ser mantida por um governo instituído explicitamente
para esse fim.
Essa é a abordagem básica, ou melhor, tradicional,
do pensador, que considera sua importância para as sociedades em seu âmbito
interno, levando em consideração uma conjuntura de curto escopo. Para tratarmos
das relações internacionais, é interessante levarmos em consideração uma
conjuntura mais ampla, tanto no tempo quanto no espaço, que ilumina inclusive
os problemas internos às sociedades européias do século XVII.
Qual a conjuntura a que nos referimos?
A Idade Média caracterizou-se, do ponto de vista
político, pelo feudalismo, ou seja, pela multiplicidade de níveis
político-administrativos, que organizavam territórios e populações de tamanhos
variáveis em complexas redes e relações de suserania e vassalagem. Um senhor
feudal A, por exemplo, poderia ser vassalo de outro senhor B, que, por sua vez,
seria vassalo de outro C: este último poderia ter como suserano o senhor feudal
A. Não havia uma concentração política, isto é, os diversos territórios podiam sofrer
a influência de diversos senhores feudais, com as conseqüências decorrentes
dessa falta de centralização: vários códigos legais, multiplicidade de moedas
etc.
O mais interessante a notar, porém, é que as
relações entre os diversos senhores feudais eram reguladas e, em certa medida,
estabelecidas pelos valores compartilhados por eles – valores fornecidos pela
Igreja Católica. Assim, embora não houvesse propriamente nenhum direito,
nenhuma legislação que os subordinasse, todos estavam cônscios de participarem,
mais ou menos, de um mesmo corpo social (no caso, a cristandade católica). A
religião, nesse caso, fornecia-lhes regras de comportamento e de conduta, entre
si, entre os senhores feudais, e entre os seus subordinados, os servos da
gleba. Esse conjunto formado por elementos materiais – o feudalismo – e por
elementos espirituais – o catolicismo –, intimamente relacionados, como vimos,
formava uma unidade, denominada por Augusto Comte de "civilização
católico-feudal" (Comte, 1934;
Carneiro, 1940).
Em comparação com a era moderna, a época
católico-feudal constituiu-se, portanto, de territórios administrados por
diversos suseranos, em disputa entre si, e por uma certa comunidade de valores,
que mais ou menos disciplinava a conduta de todos e estipulava os deveres e os
direitos mútuos, estabelecendo também suas regras de conduta.
Esse estado de coisas vigeu do século V ao século
XIII; a partir da XIV centúria entrou paulatinamente em crise: os valores
anteriormente compartilhados passaram a ser criticados e discutidos, ao mesmo
tempo que as esferas de influência dos senhores feudais passaram a definir-se,
e os territórios sob sua influência tornaram-se cada vez mais exclusivos seus.
O antigo elemento regulador e legitimador, tornando-se cada vez mais falho, foi
paulatinamente substituído pela idéia de soberania dos príncipes sobre seus
territórios, ou seja, de que apenas eles, os príncipes, poderiam ditar as
regras sobre seus territórios, e mais ninguém. O relacionamento entre esses
príncipes, tornados cada vez mais autônomos uns dos outros, também perdeu o
antigo elemento de regulação mútua.
Da mesma forma que nesse momento tornam-se mais
fortes e violentas as disputas entre os diversos príncipes, outro aspecto da
decadência religiosa ganha relevo: a chamada "reforma protestante"
(que na verdade não reformou nada, apenas destruiu).
De um movimento estritamente religioso, a reforma
passou a ser também um movimento político, com diversos príncipes assumindo o
credo protestante para furtarem-se à autoridade papal – que, afinal de contas,
era também uma autoridade política – e afirmarem sua independência
político-nacional. Em outras palavras, e apenas reafirmando a idéia, nessa
conjuntura uniam-se, misturavam-se problemas políticos com problemas religiosos
(sacralizando uns, politizando outros). O resultado dessas disputas, que se
estenderam do século XVI até meado do século XVII, foi a Paz de Westfália, de
1648, que pôs fim aos conflitos religiosos na Europa continental e consagrou
tanto o sistema de estados nacionais quanto o princípio cujus regio, ejus religio ("seguir a religião de seu
príncipe").
Na Inglaterra houve também os conflitos religiosos,
igualmente misturados a problemas políticos, com o agravante de estarem ligados
a questões sucessórias. Henrique VIII em 1542, desejando separar-se de Isabela
de Castela mas não obtendo a autorização do papa, faz um cisma com Roma e criou
a Igreja Anglicana. No século XVII, contudo, a linha sucessória propriamente
inglesa e anglicana acabou, restando o trono inglês aos Stuarts, escoceses de
extração católica. Ao mesmo tempo, havia um conflito entre o poder central, do
rei, e o poder local, dos nobres e da burguesia, ou, se se desejar, entre o
monarca e o Parlamento.
Enquanto no continente as disputas eram travadas entre
as nações, ou melhor, através delas – sendo ao mesmo tempo guerras civis e
guerras internacionais – como a Inglaterra é uma ilha, desde o século XVII
unificada sob o jugo londrino, essas disputas resultaram diretamente em guerra
civil, com a seguinte configuração: realistas tendentes ao catolicismo versus
parlamentaristas anglicanos.
Esse foi o ambiente a respeito do qual Hobbes
escreveu. Como se sabe, os conflitos ingleses duraram cerca de 40 anos e só
foram solucionados quando a dinastia Stuart encerrou-se, com a morte de Jaime
II, e os nobres instituíram uma nova dinastia, chamando Guilherme de Orange da
Holanda para governar a Inglaterra.
O
modelo hobbesiano
Ao elaborar sua teoria do governo e da
sociedade, Hobbes pensava basicamente nas instituições necessárias a manter a
ordem civil no interior de um país, no interior de um território dado. Sua
preocupação é com a legitimação e o funcionamento do governo nacional, e não
com a dinâmica das relações internacionais, entre os governantes que procura
legitimar; como já comentamos, quando trata dessas relações, fá-lo somente de
passagem, com o intuito apenas de confirmar seu modelo, e não para estender
suas reflexões para outro âmbito.
Ainda assim, há que se apresentar esse modelo.
O método hobbesiano é por assim dizer
"geométrico". A partir de alguns postulados gerais sobre a
natureza humana, isto é, a partir de uma certa psicologia e uma certa
antropologia – bastante negativas, aliás – ele deriva uma série de
conseqüências para as relações entre os homens. A partir de sua caracterização
geral, a solução é mais ou menos evidente, e toda sua exposição adquire as
características de uma demonstração rigorosamente lógica, sem dúvida alguma
sedutora pelo encadeamento seguro das idéias.
Para ele, os homens vivem naturalmente livres e
isolados, em igualdade de condições uns com os outros. Nesse estado de
natureza, todos os indivíduos têm direito a todos os bens, e não há nada que os
impeça de obterem os bens, exceto sua própria fraqueza ou inabilidade para
obterem-nos, ou a incapacidade de os preservarem. Todos possuem as mesmas
capacidades: força, inteligência, rapidez, argúcia. Se, por acaso, alguém for
mais inteligente ou mais forte que os outros, aquele que está em desvantagem
pode ter alguma característica suplementar em que esteja em posição superior, e
a partir dela superar o primeiro; ou, então, uma aliança entre diversos outros
pode perfeitamente subjugar aquele primeiro superior. É nesse possibilidade de
os indivíduos bastarem-se a si mesmos ou unirem-se com outros que torna
verossímil a igualdade geral de condições nessa liberdade primitiva.
"A natureza humana fez os homens tão iguais
quanto às faculdades do corpo e do espírito que, embora por vezes se encontre
um homem manifestamente mais forte de corpo, ou de espírito mais vivo do que
outro, mesmo assim, quando se considera tudo isto em conjunto, a diferença
entre um e outro homem não é suficientemente considerável para que qualquer um
possa com base nela reclamar qualquer benefício a que outro não possa também
aspirar, tal como ele" (Hobbes,
1997, p. 107).
Claro está que todos têm direito a tudo nessa
condição, mas o simples direito não assegura a posse e assim como alguém pode
obter algo diretamente da natureza – uma fruta, por exemplo –, outro pode
roubá-la sem que haja infração de nenhum direito. O exemplo que fornecemos, uma
fruta, é bastante simples, mesmo simplório: mas digamos que o que se disputa
não seja uma fruta, porém algo mais sério: a própria vida. Nessa situação, fica
evidente a instabilidade das relações entre os indivíduos no estado de
natureza: "Desta igualdade quanto à capacidade deriva a igualdade quanto à
esperança de atingirmos nossos fins. Portanto, se dois homens desejam a mesma
coisa, ao mesmo tempo que é impossível ela ser gozada por ambos, eles tornam-se
inimigos" (Hobbes, 1997, p.
108).
Esse estado de natureza é violento e perigoso. Ao
contrário de John Locke, que o concebia como sendo um estado relativamente
pacífico e harmonioso, no qual os seres humanos já vivem em sociedades prévias
à associação civil, isto é, política, para Hobbes não há associações prévias à
cidade dotadas de permanência e estabilidade. O que as rege é meramente a
conveniência de uns indivíduos em manterem-se associados a outros, pelo tempo
que for necessário para permanecerem vivos ou que a própria aliança não os
prejudique.
A psicologia humana, para Hobbes, é bastante
negativa: os homens "são como são", isto é: mesquinhos, egoístas,
cruéis, covardes, rapaces. Mesmo que se diga o contrário, ainda que se postule
um homem bom, cordial, confiável, honesto, virtuoso, corajoso, a resposta de
Hobbes a tal tipo de consideração é cruel: "Poderá parecer estranho a
alguém que não tenha considerado bem estas coisas que a natureza tenha assim
dissociado os homens, tornando-os capazes de atacar-se e destruir-se uns aos
outros. [...] Que seja portanto ele a considerar-se a si mesmo, que quando
empreende uma viagem se arma e procura ir bem acompanhado; que quando vai
dormir fecha suas portas; que quando está em casa tranca seus cofres; [...].
Que opinião tem ele de seus compatriotas, ao viajar armado; de seus
concidadãos, ao fechar suas portas; e de seus filhos e servidores, quando
tranca seus cofres? Não significa isso acusar tanto a humanidade com seus atos
quanto eu o faço com minhas palavras?" (Hobbes,
1997, p. 109-110).
Não desejamos abundar aqui as citações, mas
torna-se útil apresentar outra citação relativamente longa, na qual Hobbes
define o que é a guerra – etapa fundamental do nosso argumento: "[...]
durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a
todos em respeito, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e
uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens. Pois a guerra não
consiste apenas na batalha, ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo
durante o qual a vontade de travar batalha é suficientemente conhecida.
Portanto a noção de tempo deve ser levada em conta quanto à natureza da guerra,
do mesmo modo que quanto à natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau
tempo não consiste em dois ou três chuviscos, mas numa tendência para chover
que dura vários dias seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste
na luta real, mas na conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que
não há garantia do contrário. Todo o tempo restante é de paz" (Hobbes, 1997, p. 109). O resultado
dessa situação geral é que "a vida do homem é solitária, pobre, sórdida, embrutecida
e curta" (Hobbes, 1997, p. 109).
Hobbes não acusa a natureza humana por essa
condição miserável, nem tampouco, portanto, o próprio homem. Para ele, tal
situação deve-se à falta de uma autoridade capaz de impor sua vontade,
instituindo a justiça e regulando as relações entre os indivíduos (Hobbes, 1997, p. 110).
É interessante, ou melhor, é fundamental para o
argumento notarmos como, apesar de terrível, ou, nas palavras do próprio
Hobbes, essa "solitária, pobre, sórdida, embrutecida e curta" vida
não é "justa" ou "injusta", pelo simples motivo de não
haver uma autoridade superior a todos capaz instituir a justiça. Em outras
palavras, enquanto os homens estão no estado de natureza, nesse estado de
guerra de todos contra todos, os homens apenas seguem a natureza das coisas,
sem "maldade" (embora também sem inocência).
A conclusão lógica, mais ou menos evidente a partir
dos termos em que o inglês formulou o problema, é que é necessário instituir-se
um governo, ou melhor, uma autoridade superior a todos os indivíduos, capaz de
decidir o que é certo e errado, o que é justo ou injusto e de fazer as leis –
e, é lógico, capaz de pôr em prática suas decisões.
Retomamos aqui um certo paralelo com Locke. John
Locke considerava que os homens deveriam passar do estado de natureza para o
estado civil devido às imperfeições que aquele apresentava; o meio para tal
passagem era o contrato social, no qual todos os indivíduos reúnem-se e abrem
mão de algumas de suas liberdades naturais, em favor do respeito a certas
regras de conduta, que salvaguardarão alguns bens considerados importantes. O
contrato social exigia não apenas a limitação de algumas liberdades, como
principalmente a sujeição a um governo, instituído por esse mesmo pacto inicial
e seu garante. De qualquer forma, são as imperfeições do estado de natureza que
exigem, tanto para Locke quanto para Hobbes, sua passagem para o estado civil,
com a constituição simultânea da sociedade humana e da sociedade civil (isto é,
política, caracterizada pelo Estado).
Contudo, para Locke o estado de natureza
caracteriza-se pela relativa concórdia entre os indivíduos, havendo desde então
já sociedades pré-civis (nomeadamente a família). Os homens trabalham e desse
trabalho obtêm os bens necessários para viver – daí, aliás, surgindo a
instituição da propriedade (privada) (Locke,
1978, cap. V).
O estado de natureza, para Locke, é uma situação
por assim dizer "amena", tranqüila, sem dúvida alguma pacífica, na
qual os indivíduos e as famílias ou as coletividades já existentes podem
laborar proveitosamente. O que justifica a passagem para o estado civil são os
defeitos do estado de natureza, ou melhor, no caso lockeano, suas limitações:
malgrado pacífico, há indivíduos que adotam um comportamento
"anti-social", que desrespeitam os demais indivíduos, suas
vidas, liberdades e propriedades. Não havendo um poder superior que regule as
relações humanas, cada um faz sua própria justiça – que, evidentemente, pode
degenerar para situações bastante complexas.
Os indivíduos celebram entre si o contrato social
exatamente para criar um poder capaz de solucionar tais situações, de regular
as eventuais disputas e de repreender os faltosos. A atuação do governo, nesse
caso, é mínima, pois a sociedade tem sua dinâmica própria, anterior a ele, e
exige apenas um regulador para situações muito específicas.
A antropologia de Locke é positiva, e o governo no
estado civil tem pouco a fazer. A situação de Hobbes é inversa: sua
antropologia é negativa, e o governo terá muito a fazer – na verdade, sob certo
sentido, deverá fazer quase tudo. Como vimos, a situação humana no estado de
natureza hobbesiano é o pior possível, pois é o "estado de guerra de todos
contra todos"; é o homo homini lupus
de Lucrécio. E por que isso? Porque todos os homens são iguais entre si, tanto
na sua capacidade de ação quanto em suas possibilidades de desejar os diversos
bens. Como esses bens são relativamente escassos, os homens entram em
competição uns com os outros, em uma disputa sem fim, na qual cada um pode
contar apenas consigo próprio e é árbitro e juiz de suas próprias ações. Além
disso, não há nem certo nem errado, pois não há leis claras, certas, que
estipulem o justo e o injusto.
Ora, a instituição do estado civil é o passo mais
racional que indivíduos em tal estado de natureza podem dar, para
salvaguardarem minimamente suas vidas e seus bens. Reunidos todos, ao
subscreverem ao mesmo tempo o contrato social, que institui a sociedade e o
governo, os indivíduos abrem mão de sua liberdade e de sua capacidade de
decidir autonomamente o que é justo e o que é injusto, e de aplicar as sanções
consideradas adequadas. Essa capacidade é radicalmente retirada e cedida ao
soberano, único indivíduo que a possui.
O motivo último que leva à constituição do pacto é
a conservação da vida de cada um dos indivíduos, e seja pelo que está em jogo,
seja pela soma das diversas vontades individuais, torna-se claro que o poder do
soberano é extremamente grande, na verdade virtualmente infinito – é por tal
motivo que Hobbes denomina-o de Leviatã, isto é, um poder tão grande que se
torna monstruoso (embora um monstro benigno e necessário).
Todos os signatários do pacto cedem sua liberdade
ao soberano e a ele submetem-se. Cabe apenas ao soberano a determinação do que
é certo ou errado, justo ou injusto, bom ou mal, e, evidentemente como sua
justificativa é a ordem civil, isto é, paz e harmonia social, ao soberano
também cabe a possibilidade de decidir quais doutrinas são adequadas e quais
não são. Em outras palavras: cabe apenas ao soberano a decisão sobre o que pode
ou não ser feito ou pensado. Uma vez feito o pacto, ele não pode ser desfeito,
pois colocaria as vidas em perigo, ao reinstituir o estado de natureza; como o
soberano é o indivíduo escolhido para regular as relações sociais, sua palavra
é lei, e desobedecer a ela é crime de sedição.
Também deve estar claro que todos os contratantes
têm sua liberdade limitada, exceto um – o próprio soberano. Da mesma forma,
como o bem maior que se busca preservar com a instituição do Leviatã é a vida,
o soberano pode tomar qualquer medida que julgar necessário em favor da paz
civil, exceto tirar a vida de seus cidadãos (aliás, essa é a única
possibilidade que Hobbes admite para a revolta ou a sublevação).
Em linhas bastante gerais essa é a teoria de Hobbes
para a instituição do governo. A situação por ele percebida era terrível, e
igualmente terrível foi a solução esboçada. Poderíamos ainda discutir diversos
outros aspectos, mas que não teriam muito valor para a discussão presente.
O
realismo: Hobbes aplicado à política internacional
Como dissemos anteriormente, as indicações de Hobbes sobre a política
internacional foram apenas episódicas, muito mais preocupadas em avalizar seu
modelo teórico de estado de natureza que em as discutir como um tema
específico. Por outro lado, sua concepção do que seja a guerra – mais que o
efetivo conflito entre dois grupos, a mais ou menos permanente disposição para
a contenda – é valiosa.
Sua preocupação era com a política interna.
Preocupava-se o inglês em justificar, da maneira mais adequada para o seu
tempo, o poder do soberano, pondo fim às disputas políticas e religiosas de sua
época. Seu foco, portanto, era no sentido de constituir o "interno",
não em perceber as disputas "externas".
Ainda assim, há toda uma tradição teórica das
relações internacionais que se filia explicitamente em Hobbes. De que forma
isso se dá?
Primeiramente, as apresentações: essa tradição de
extração hobbesiana é a realista, assim autodenominada por buscar conhecer a
realidade internacional como ela é na "realidade", isto é, palco de
disputas entre as unidades políticas consideradas – os estados – preocupadas
basicamente com dois objetivos: sua sobrevivência e a realização dos interesses
nacionais.
Como o próprio Hobbes comentou, "[...] mesmo
que jamais tivesse havido um tempo em que os indivíduos se encontrassem numa
condição de guerra de todos, de qualquer modo em todos os tempos os reis, e as
pessoas dotadas de autoridade soberana, por causa de sua independência vivem em
constante rivalidade, e na situação e atitude dos gladiadores, com as armas
assestadas, cada um de olhos fixos no outros; isto é, seus fortes, guarnições e
canhões guardando as fronteiras de seus reinos, e constantemente com espiões no
território de seus vizinhos, o que constitui uma atitude de guerra" (Hobbes, 1997, p. 110).
Entre os estados nacionais não há uma
regulamentação que discipline suas condutas, nem, tampouco, uma legislação
aplicável a todos eles, que lhes esteja acima. São unidades políticas
autônomas, que decidem a partir de seus próprios critérios como agir e como
proceder, e quais os melhores meios para tanto, sem prestarem maiores
considerações que essas estritamente políticas.
Se considerarmos que os estados nacionais são as
unidades políticas que reúnem grupos e coletividades unidas por laços comuns –
línguas, histórias, culturas –, representando cada um uma tradição específica,
perceberemos que sua manutenção é um objetivo minimamente razoável, isto é,
além do mero patriotismo tradicionalista (semelhante à legitimação tradicional
de Weber). Cada estado representa um conjunto de valores e deve ser responsável
por sua capacidade de preservação; ora, em um ambiente caracterizado pela
multiplicidade de atores com as mesmas características, a capacidade de ação de
cada um é restringida pela ação dos demais, e nada assegura que os vários
objetivos não são conflitantes ou mesmo antitéticos. Assim, e na ausência de
uma autoridade superior aos estados, capaz de solucionar as disputas e
eventualmente impor uma certa ordem nas relações, o que prevalece de fato é,
por um lado, a chamada "anarquia internacional", e, por outro, a
permanente disputa pelo poder.
Sobre a anarquia internacional, devemos levar em
consideração que não se trata de desordem, isto é, de ausência de ordem ou de
regularidade, ou mesmo de instabilidade perene. Muito ao contrário, no sistema
internacional há uma regularidade bastante grande, e há algumas
regras empíricas que ordenam o sistema. Perceba-se que "regras
empíricas" significam alguns procedimentos que, face às constantes
disputas, os vários estados perceberam serem funcionais, que evitam uma guerra
sem fim, ou melhor, a disputa física permanente. Etimologicamente, anarquia
significa "ausência de governo", e é nesse sentido que devemos tomar
essa expressão, quando nos referimos às relações internacionais.
Como dissemos, a anarquia não implica desordem,
pois alguns princípios regem, de fato, as relações entre os países; essas
regras, embora tenham uma adesão tácita (às vezes explícita), não significam,
por sua vez, concordância de valores esposados pelas nações: por exemplo, após
as Cruzadas a Cristandade e o Islã passaram a conviver um com o outro; suas
visões de mundo, como é sabido, são profundamente diferentes uma da outra, mas
aceitou-se a necessidade de um ao menos tolerar o outro. Da mesma forma, durante
a Guerra Fria, após o período mais tenso, ou seja, depois de 1954, ainda que no
delicado xadrez estratégico, Estados Unidos e União Soviética continuaram sua
disputa mas sem chegarem às vias de fato, e respeitando o poder adversário,
procurando preservar o sistema – isto é, pelo menos preservarem a si próprios.
Sobre a disputa pelo poder, é importante notarmos
que, no campo realista, o poder é a categoria-chave e o instrumento fundamental
de análise, tanto dos analistas quanto dos agentes políticos. Em outras
palavras: é por meio da avaliação do poder de que um ou outro ator dispõe que
se definirá a conduta mútua. Esse poder, em princípio meio para um fim –
manutenção da existência política e obtenção de metas – em virtude da constante
disputa por mais recursos, por maiores capacidades, torna-se ele próprio um fim
em si mesmo (basta pensarmos na corrida atômica entre as superpotências durante
a Guerra Fria).
Antes de prosseguirmos, é interessante lembrarmos a
definição de guerra que Hobbes deu: "[...] durante o tempo em que os
homens vivem sem um poder comum capaz de os manter a todos em respeito, eles se
encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos
os homens contra todos os homens. Pois a guerra não consiste apenas na batalha,
ou no ato de lutar, mas naquele lapso de tempo durante o qual a vontade de
travar batalha é suficientemente conhecida. Portanto a noção de tempo deve ser
levada em conta quanto à natureza da guerra, do mesmo modo que quanto à
natureza do clima. Porque tal como a natureza do mau tempo não consiste em dois
ou três chuviscos, mas numa tendência para chover que dura vários dias
seguidos, assim também a natureza da guerra não consiste na luta real, mas na
conhecida disposição para tal, durante todo o tempo em que não há garantia do
contrário. Todo o tempo restante é de paz" (Hobbes, 1997, p. 109).
Poderíamos dizer, sem sobra de dúvidas, que essa
percepção – de que os atores estatais, ainda que não estejam efetivamente em
conflito armado, permanecem em estado de guerra pela própria configuração do
sistema – é a que define a tradição realista em política internacional.
Há alguns princípios gerais que permitem o
ordenamento do sistema internacional, a partir do realismo. Esses princípios
são três: a oligarquia, a hierarquia e o equilíbrio de forças (pistone, 1986, p. 1090-1092). A noção
de oligarquia é bastante direta, e sugere que em todos os
momentos há sempre poucos atores relevantes que têm, de fato, a capacidade de
ditar as regras de comportamento do sistema. Como dissemos acima, em política
internacional vale tanto quanto em política interna o princípio de que os
fundamentos do poder, ou melhor, seus recursos, são vários: os países podem ter
sua potência fundamentada em diversos elementos – com a particularidade, também
indicada acima, de que o fator militar é crucial, indicando quais as potências
grandes e quais as pequenas, ou: quais ordenam e quais obedecem.
Em segundo lugar, a hierarquia estabelece as
relações entre os grandes e os pequenos, e é em certo sentido uma decorrência
do princípio anterior, da oligarquia. A hierarquia reforça a idéia de
concentração dos recursos, mas indica, além disso, que há um sentido muito
claro na direção das decisões e do poder no sistema: ele flui de cima para
baixo, dos mais fortes para os mais fracos. Assim, enquanto a oligarquia
estabelece em princípio a existência de dois níveis – quem manda e quem obedece
–, a hierarquia permite multiplicar esses níveis, com gradações de poder –
mantida, claro está, a orientação do fluxo de poder, que é de cima para baixo.
Esses dois princípios sugerem uma certa geometria piramidal nas relações
internacionais: poucos em cima, que mandam, e cada vez mais abaixo, que se
submetem uns aos outros.
O terceiro princípio é um pouco mais complexo: é o
do equilíbrio, ou da balança de poder. Em um universo internacional
caracterizado pela multiplicidade de poderes, cada qual preocupado minimamente
com a manutenção de sua existência, é de interesse coletivo que nenhum em
particular possua mais poder que os demais, isto é, que nos cálculos relativos de recursos,
nenhum país sozinho possua mais que os demais em condições tais que um outro,
apenas com seus próprios recursos ou em coalizão, consiga superá-lo. A
complexidade deste princípio reside em que supõe uma série de fatores, o
primeiro dos quais é que haja de fato a multiplicidade de atores independentes:
se viger o "império universal", isto é, se não existir mais a
"anarquia internacional", não fará sentido em tratar de poderes
rivais competindo por sua manutenção autônoma.
(Aliás, em rigor não é necessário falar em
"império universal": basta cessar, em uma região qualquer, a
"anarquia internacional", para que a balança de poder deixe de
funcionar). Mesmo assim, a balança de poderes supõe alguns poderes – que jamais
ultrapassaram, historicamente, o número de seis (pistone, 1986, p. p. 1091) –: Sardenberg formulou uma
tipologia que inclui, além da balança de poderes propriamente dita e o império
universal, a bipolaridade, o triângulo, a multipolaridade e algumas outras
modalidades (sardenberg, 1982, p.
49). Considerando que entre a existência de um único ator e vários, todos os
estados intermediários são exata e tão-somente isso – estados intermediários –
sua importância prática não é menor, e seu reflexo nas teorias de RI tampouco.
Os estados nacionais permanecem em constante
disputa, procurando perceber no que cada uma pode superar as demais.
Evidentemente, tal relacionamento é de soma zero: o que um ator perde o outro
ganha, necessariamente. O jogo travado por definição não pode ter soma
diferente de zero, pelo simples motivo de que os recursos à disposição são relativamente
escassos: território, riquezas, tempo, populações. Se os recursos fossem
suficientemente abundantes, não haveria necessidade de disputas ou de conflitos
alocativos, podendo cada estado desenvolver como melhor considerar (ou
considerasse) seus objetivos nacionais, em um jogo de soma positiva.
Das formulações anteriores resulta com clareza que
o objeto de pesquisa preferencial dos realistas é o fenômeno da guerra, a
partir de uma perspectiva político-estratégica. As variáveis analíticas preferenciais
são os exércitos, as populações (como recursos humanos disponíveis para as
forças armadas), a capacidade industrial-militar e assim por diante. Quem detém
o maior exército ou o exército mais eficaz é quem detém a preponderância, e,
portanto, é capaz de manter-se melhor.
Por fim, deve-se notar, contudo, que os realistas
não negam a possibilidade de os estados entrarem em acordo uns com os outros,
ou de estabelecerem relações de cooperação, visando a determinados objetivos,
além, logicamente, de estabelecerem uma paz mais ou menos duradoura.
Todas essas questões também são examinadas e
explicadas pelos realistas, a partir de uma percepção também já esboçada por
Hobbes: a de que no estado de natureza, em virtude de seus interesses – e, em
face do próprio estado de natureza, apenas em virtude dos interesses –, os
estados podem unir-se em determinadas situações para fazerem frente a inimigos
comuns, celebrando acordos e pactos de confiança e auxílios mútuos, bem como,
em face de uma certa igualdade geral no poder das nações, estabelecer-se uma situação
de relativa calmaria, isto é, de ausência de conflito aberto (o que, de acordo
com o modelo, aproximar-se-ia ao máximo de uma situação de paz).
É claro que, assim que as necessidades do momento
exigissem a mudança das alianças ou o fim dos acordos de cooperação, não há
nada que impeça a reconfiguração dos tratados. Assim, por exemplo, temos que os
Aliados da Segunda Guerra Mundial – Estados Unidos, Inglaterra, França e União
Soviética – entraram em conflito após a conflagração, fazendo alianças com os
inimigos da véspera – Estados Unidos, Inglaterra e França com o Japão, a
Alemanha e a Itália, contra a União Soviética.
A premissa jurídica básica pacta sunt servanda ("os pactos devem ser cumpridos") não
tem maior validade no campo das relações internacionais além de cada conjuntura
particular. "As necessidades da ‘razão de Estado’ como pivô do
comportamento internacional colocam a obrigação de cumprir tratados [...] em
posição subordinada às necessidades e objetivos de poder. A palavra empenhada será
ou não cumprida em função do custo da oportunidade do cumprimento" (fonseca jr., 1998, p. 53). Bem
entendido que se deve analisar o custo do rompimento do tratado (ou,
inversamente, de sua manutenção): assim, há um elemento poderoso de cálculo na
ação, que mantém uma certa previsibilidade no sistema.
Conclusões
parciais
Nossa preocupação neste ensaio foi o de
relacionar Hobbes à escola realista das relações internacionais, ou melhor,
essa escola ao filósofo, e cremos ter sido bem-sucedidos. Como comentamos
diversas vezes, Hobbes não tratou diretamente de política internacional,
preocupado que estava com a ordem interna aos estados, mas percebeu, por outro
lado, que seu modelo de estado de natureza, conquanto puramente teórico e idealtípico
(em uma linguagem mais atual) era aproximadamente válido para as relações
interestatais.
O realismo foi a teoria que melhor explicou a
realidade mundial no período da Guerra Fria; alguns autores chegaram mesmo a
comentar que por definição a Guerra Fria foi um período realista (Vigevani, Veiga & Mariano, 1994; villa,
1999). Por outro lado, a insistência nos fatores exclusivamente
estratégico-militares e nos jogos de soma zero deu ensejo a numerosas críticas
ao realismo, ocasionando diversas atualizações: aquelas que enfatizam as
possibilidades de integração harmoniosa dos estados ou dos seres humanos – os
globalistas e os grocianos – (Fonseca
jr., 1998; Bull, 2002), aquelas que preconizam mesmo o fim dos estados
nacionais, em uma linha liberal (Vigevani,
Veiga & Mariano, 1994) ou ainda aqueles que percebem que as
variáveis militares não são as determinantes, mas os estados permanecem em
constante disputa entre si, usando agora a economia como instrumento de
disputa, no neo-realismo (Vigevani,
Veiga & Mariano, 1994). E há, é claro, aqueles que fazem uma análise
ainda propriamente realista ou geopolítica (kissinger,
1997; carvalho, 2002).
Devemos aqui fazer um registro, na verdade uma
explicação, ligando o início do ensaio ao seu desenvolvimento e a esta
conclusão. O realismo, na esteira da obra de Hobbes, encara apenas os conflitos
entre unidades políticas que não têm sobre si uma autoridade, que lhe cerceie a
ação ou que lhe estipule regras de comportamento, isto é, que se encontram na
situação de "anarquia", postulando, além disso, que essa é a essência
do sistema internacional.
A exposição que aqui fizemos pode ser dividida, grosso modo, em duas partes, a primeira
consagrada a uma certa filosofia da história e a outra apresentando e
discutindo o modelo hobbesiano e o realismo dele derivado. Consideramos, na
primeira parte, que o modelo de estado de natureza que Hobbes definiu
correspondeu a uma certa configuração internacional ao mesmo tempo política e
cultural, configuração sem dúvida alguma "temporária", isto é, que
integra as etapas da história da humanidade. Ao mesmo tempo, a descrição que
Hobbes fez da sociedade humana, e que o seguindo, fazem os realistas, é
parcial, porquanto percebe apenas os aspectos materiais da realidade,
notadamente os políticos, desconsiderando os valores que efetivamente regem e
pautam a conduta humana.
Não se trata aqui, de maneira alguma, de defender
um certo idealismo, que preconiza a validade total das idéias e dos valores na
conduta humana. A partir do momento em que há uma pluralidade de agentes
políticos mais ou menos autônomos entre si, não subordinados a um poder
temporal, o modelo hobbesiano torna-se quase que fatal. Contudo, há que se
fazer ressalvas.
A comunidade de valores entre alguns países
estabelece limites claros, embora extremamente variáveis, na conduta mútua
desses países, permitindo alguns comportamentos, proibindo outros e
restringindo ainda outros. As restrições a que nos referimos não se originam de
sanções materiais de um país sobre outro, mas das opiniões e dos valores que
uns têm em relação aos outros, e que os cidadãos de um país alimentam em
relação aos seus governantes. Esses valores estabelecem um fundo de moralidade
e de ordem internacional (comte, 1934;
1972; Bull, 2002), caminhando, nos dias atuais, cada vez mais em direção
a uma opinião pública internacional (Vigevani,
Veiga & Mariano, 1994).
Aron (1987), já no final da vida, discutiu o valor
do modelo realista, considerando se a "anarquia internacional" é pelo
menos ainda um recurso heurístico, um tipo ideal, concluindo pela afirmativa. A
experiência da Guerra Fria, encerrada há pouco mais de dez anos, ilustra com
força a importância de se ter em consideração o modelo realista; como dissemos,
as unidades políticas autônomas entre si levam quase naturalmente a essa formulação.
Contudo, não podemos deixar de assinalar: o realismo hobbesiano tem valor em
algumas situações e cada vez mais como tipo ideal.
Em parte Augusto Comte e Hedley Bull inspiraram-se
em Hugo Grócio: cada vez mais devemos perceber o verdadeiro "realismo"
como sendo grociano ou comteano, assim como o realismo hobbesiano cada vez mais
como um caso particular do realismo anterior. Ou, nas
palavras do próprio Bull: "The particular solution that Hobbes recommends
for the provision of domestic peace and security, moreover – the establishment
of all-powerful Leviathans – is, I should argue, one that makes the attainment
of international peace and security more difficult. The priority that Hobbes
gave to pursuing the former even at the expense of the latter appears to
reflect a belief he had that internal or domestic strife is more terrible than
strife among states" (bull, 1981, p. 718).
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