O longo trecho abaixo continua apresentando
elementos da extensa e interessante avaliação que A. Comte fez das qualidades lógicas,
sociais e morais da Astronomia.
Mas estes parágrafos apresentam uma
observação fundamental: a idéia de que muitos
fenômenos e acontecimentos podem ocorrer (e de fato ocorrem) além das previsões das leis científicas – o exemplo dado é o do choque de um cometa
no planeta Terra. Com essa observação, fica novamente patente que, para Comte, embora só possamos regular a
vida humana por meio das previsões científicas (feitas, por sua vez, por meio
das leis naturais), não é possível prever todos os acontecimentos reais – e é
justamente por tais motivos que a sabedoria humana (moral, intelectual, prática)
deve sempre ser valorizada.
Comte nota que, em seu conjunto, a
Astronomia favorece o relativismo e elimina o absoluto, embora inicialmente dê
a impressão contrária. Mais do que isso: a Astronomia apresenta uma série de importantes
conseqüências morais, não apenas em virtude de seus métodos e suas teorias, mas
também ao relevar ao ser humano a situação cósmica da Terra. Eis algumas dessas
conseqüências: a regulação do sentimento de esperança; a evidência da resistência
do meio à ação humana; a necessidade de o ser humano buscar em si mesmo os
meios para superar as adversidades; o descartar o excesso de previsões e
considerar as possibilidades de eventos imprevisíveis (como o possível choque
de cometa na Terra); o evitar o terror imobilizante frente às adversidades. Como
todos os seres humanos estão igualmente submetidos a esses fenômenos e
possibilidades, o cuidado com os demais e o “viver para outrem” evidencia-se
como lei moral suprema.
Por fim: as observações abaixo reiteram a
concepção de ciência de Comte, bem como a posição que, para ele, a inteligência
ocupa na ordem humana. Nada de “cientificismo”, de “intelectualismo”, de “torre
de marfim” ou distância da realidade prática; nada de concepção asséptica da
ciência; bem ao contrário, preocupação com o bem comum, com o desenvolvimento
das idéias para regular a conduta prática e os sentimentos.
* * *
“Ainsi,
toute l’astronomie concourt naturellement à constituer l’esprit relatif dans le
domaine qui, par as simplicité et son indépendance, paraissait le moins l’admettre.
Envers les phénomènes qui concernent l’homme, on n’a jamais pu méconnaître entièrement
les variations intérieures qui n’y permettent pas l’absolu. Mais cet attribut
semblait devoir appartenir toujours aux événements où nous ne sommes que
spectateurs. Or, l’astronomie l’élimine spontanément dans l’étude même de ceux
qui sont inaccessibles à toute modification humaine. Cette constitution décisive
de la rélativité, au début de l’initiation systématique, doit puissamment influer
sur son extension immédiate aux phénomènes plus compliqués, avant que leur
propre appréciation l’y ait directement établie.
Pour mieux
sentir une telle tendance astronomique, il faut aussi l’envisager sous l’aspect
moral. Car la véritable science céleste étend finalement la relativité de nos
idées à nos espérances, et par suite à tous nos sentiments. En manifestant les
diverses conditions planétaires, elle dissipe la sécurité absolue qui nous représentait
comme exemptes de perturbations quelconques. La stabilité essentielle, tant célébrée
envers la terre, par les géomètres modernes, ne se rapporte qu’aux changements
graduels dus aux gravitations secondaires, qui, en effet, ne peuvent y produire
que des oscillations presque indifférentes. Mais, outre la résistance du
milieu, qu’on y néglige toujours, il faut surtout considérer les changements
brusques, qui ne comportent pas de prévision réelle, et contre lesquels nous ne
possédons aucune garantie scientifique. Rien ne peut, par exemple, démontrer,
quoi qu’on ait dit, que notre planète est à l’abri de tout choc cométaire. En
achevant ainsi d’apprécier notre vraie condition astronomique, on constitue
mieux l’énergie et la dignité du caractère humain, qui doit trouver en lui-même
sa principale ressource contre l’ensemble de nos misères. Sans nous préoccuper de
vaines terreurs, nous tendons alors à écarter davantage un excès de prévoyance
et de présomption, qui altère beaucoup notre véritable bonheur, privé et
public. Les affections bienveillantes, dont il dépend surtout, acquièrent ainsi
plus de prix encore que lorsque chacun se confie trop aux garanties extérieures.
Quand même la terre devrait être bientôt bouleversée par un choc céleste, vivre
pour autrui, subordonner la personnalité à la sociabilité, ne cesseraient pas
de constituer jusqu’au bout le bien et le devoir suprêmes. Les vrais
philosophes sentiront toujours, comme les francs prolétaires, que de telles
pensées tendent plutôt à consolider notre bonheur réel, chez ceux du moins qui
savent en utiliser l’aptitude morale” (Comte, Système de politique positive, v. I, p. 506-507).
* * *
Tradução para o português:
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Tradução para o português:
"Assim, toda a Astronomia concorre
naturalmente para constituir o espírito relativo no domínio que, devido à sua
simplicidade e sua independência, pareceria admiti-lo menos. Em relação aos
fenômenos que concernem ao homem, não se pôde nunca desconhecer inteiramente as
variações interiores que não não permitem o absoluto. Mas esse atributo
pareceria dever pertencer sempre aos eventos em que não somos senão
expectadores. Ora, a Astronomia elimina-o espontaneamente no estudo mesmo
desses que são inacessíveis a toda modificação humana. Essa constituição
decisiva da relatividade, no início da iniciação sistemática, devia influenciar
poderosamente sobre sua extensão aos fenômenos mais complicados, antes que sua
própria apreciação tenha sido diretamente estabelecida.
Para melhor sentir uma tal tendência astronômica, é
necessário também a observar sob o aspecto moral. Afinal, a verdadeira ciência
celeste estende finalmente a relatividade de nossas idéias às nossas esperanças
e, em conseqüência, a todos os nossos sentimentos. Ao manifestar as diversas
condições planetárias, ela dissipa a segurança absoluta que nos representava
como isentos de perturbações quaisquer. A estabilidade essencial, tanto
celebrada em relação à Terra, pelos geômetras modernos, não se refere senão às
mudanças graduais devidas às gravitações secundárias, que, com efeito, não
podem produzir senão oscilações quase indiferentes. Mas, além da resistência do
meio, que se negligencia sempre, é necessário sobretudo considerar as mudanças
bruscas, que não comportam previsão real e contra as quais não possuímos nenhuma
garantia científica. Nada pode, por exemplo, demonstrar – o que quer que tenha
sido dito – que nosso planeta está ao abrigo de todo choque cometário. Ao
concluir assim a apreciação de nossa verdadeira condição astronômica,
constitui-se melhor a energia e a dignidade do caráter humano, que deve
encontrar em si mesmo seu principal recurso contra o conjunto de nossas
misérias. Sem nos preocuparmos com vãos terrores, tendemos então a descartar
mais um excesso de previsão e de presunção, que altera bastante nossa verdadeira
felicidade, privada e pública. Os afetos da benquerença, de que ela depende
sobretudo, adquirem assim mais valor ainda que quando cada um confia demais nas
garantias exteriores. Quando mesmo a Terra devesse ser logo perturbada por um
choque celeste, viver para outrem, subordinar a personalidade à sociabilidade,
não cessariam de constituir até o fim o bem e o dever supremos. Os verdadeiros
filósofos sentirão sempre, como os francos proletários, que tais pensamentos
tendem antes a consolidar nossa felicidade real, entre aqueles que ao menos
sabem utilizar a sua aptidão moral" (Comte, Système de politique
positive, v. I, p. 506-507).
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