No dia 9.12.2024 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou um artigo de nossa autoria intitulado "Cultura política, STF e laicidade".
O original da publicação está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/cultura-politica-stf-e-laicidade/.
O texto está reproduzido abaixo.
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Cultura política, STF e laicidade
É
quase senso comum considerar que sem o apoio generalizado e difuso da
sociedade, nenhum regime político pode manter-se. Isso se refere tanto ao apoio
consciente ao regime quanto aos pequenos hábitos e comportamentos do dia a dia,
incluindo aí as formas como agimos e as maneiras que rejeitamos para agir. Assim,
todo regime apresenta um aspecto cultural; dito de outra maneira, toda cultura
tem um aspecto político que se corporifica no regime político, que cria e que
sustenta as instituições.
Vale
notar que as instituições importam, e muito, mas seu funcionamento adequado
depende do apoio social que o conjunto da sociedade fornece, da legitimidade
que as instituições têm para agir da maneira adequada e, não menos importante,
das convicções íntimas que os agentes públicos e os cidadãos têm para fazer
valer as funções das instituições. Em outras palavras, sem a cultura política
sustentando as instituições, estas não passam de cascas vazias e letras mortas.
A
relevância dessas afirmações, aparentemente tão simples, pôde ser comprovada ao
longo da última década, a partir de diferentes exemplos. O primeiro exemplo é o
mais fácil de citar; trata-se da série crise de legitimidade com que as
instituições políticas representativas têm-se defrontado faz tempo. Não se
trata apenas de um sentimento difuso e difundido de que “os políticos não nos
representam”. Isso por si só já seria bastante grave, mas em si gera mais
apatia e cinismo que qualquer outra coisa: ora, a crise de legitimidade que
temos visto desde pelo menos 2013 tem resultado em um ativo comportamento
autoritário. Em vez de as instituições republicanas (nas equívocas formas
“democrático-liberais”) perderem apoio por si sós, o que se tem visto é que
essa perda tem sido trocada por um apoio a práticas e a propostas
institucionais autoritárias, violentas, iliberais. O apelo democrático é o
mesmo: é sempre a soberania popular que justifica essas propostas; como,
supostamente, a vontade popular nunca erra (afinal, vox populi vox dei), muitos consideram que o misticismo saudosista
do regime militar seria aceitável.
Essas
concepções antirrepublicanas têm sido defendidas por muitos grupos sociais e
políticos que tentam implementá-las por meio de duas estratégias
complementares: (1) desgastando as instituições vigentes, corroendo sua
autoridade e/ou mantendo-as inertes (ou melhor, omissas); (2) tentando a
mudança total de uma única vez. A primeira estratégia come pelas beiradas, a
segunda consiste em um ataque direto ao conjunto das instituições.
Ora,
a partir de um sentimento social difuso e difundido, não necessariamente
espontâneo, entre 2019 e 2022 o que se viu foi o seguinte: o poder Executivo buscou
e apoiou o golpismo militarista, o poder Legislativo foi inicialmente um
anteparo a isso (entre 2019 e 2020, com Rodrigo Maia à frente da Câmara dos
Deputados) e depois foi um esteio dessas ambições (em 2021 e 2022, com Artur
Lira como Presidente da Câmara) e a Procuradoria-Geral da República (PGR)
exibiu uma omissão cúmplice: o grande anteparo dessa longa ofensiva foi o Supremo
Tribunal Federal (STF), na figura de Alexandre de Moraes secundado pelos outros
dez ministros.
Vimos,
então, a cultura política em ação, seja no seu aspecto difuso, social, seja no
seu aspecto concreto, institucional e individual; um intenso ativismo social
apoiou e foi apoiado por um ativismo institucional contra o conjunto das
instituições, parte das quais apresentou uma omissão conivente contra esse
mesmo conjunto; uma instituição central em particular opôs-se a isso e evitou o
triunfo da maré antirrepublicana.
Esse
resultado é notável e torna-se ainda mais impressionante quando se o compara
com o outro exemplo que queremos comentar. Os atores envolvidos são os mesmos
(sociedade civil, os três poderes, PGR); a fundamentação filosófico-moral é a
mesma (valores sociais compartilhados, caráter “democrático” das instituições),
a tramitação é a mesma (propostas dos poderes Executivo e/ou Legislativo
avaliadas pelo Judiciário); os casos que nos interessam agora também se referem
a aspectos centrais e fundamentais da República: mas o resultado é inverso ao
anterior. As questões são relativas à laicidade do Estado.
Desde
1890 o Estado brasileiro é laico. Isso deveria significar que o Estado não tem
doutrina oficial nem que as doutrinas/igrejas não se valem do Estado para
imporem-se sobre os cidadãos. O Estado mais ou menos não tem doutrina; mas as
doutrinas/igrejas usam, sim, o Estado para imporem-se e querem, cada vez mais,
que o Estado apóie ativamente esse uso. Nesse quadro, as instituições deveriam
apoiar o que é uma disposição política e constitucional desde o início da
República: mas o poder Legislativo tenta criar brechas o tempo todo; o
Executivo é omisso ou partícipe ativo dessas iniciativas; o Ministério Público é
igualmente omisso. Restaria o Judiciário, mas decisões tomadas nos últimos anos
indicam que o STF também apóia o desprezo à laicidade. E, pior, esse desprezo
manifesta-se pelo mesmo Ministro – infelizmente, Alexandre de Moraes.
Em
2017, Alexandre de Moraes pôs-se contra Roberto Barroso, foi favorável a que as
escolas públicas tenham ensino religioso confessional e foi o autor do voto
vencedor nessa questão. Para Moraes, é lícito ao Estado pagar sacerdotes para
que eles imponham sobre os estudantes suas doutrinas, em caráter oficial (com a
fantasiosa possibilidade de opção). Agora em 2024, o mesmo Moraes julgou que os
crucifixos em órgãos públicos não ofendem a laicidade do Estado, ou seja,
símbolos de uma doutrina específica podem ser exibidos em caráter oficial (e
obrigatório) para todos os cidadãos, mesmo acima dos símbolos da República!
O
argumento empregado nos dois casos pelo Ministro Moraes é o mesmo empregado
pelo ex-Presidente que tentou dar um golpe militar durante quatro anos:
trata-se de que, “se o Estado é laico, a população é cristã”. A laicidade tem
que se dobrar a uma crença compartilhada e pode ser negada. Não se pode
argumentar ignorância ou má fé do Ministro Moraes, nem mesmo tibieza ou medo:
ele não é o tipo de pessoa que se dobra a pressões externas por medo. São
convicções íntimas, compartilhadas pela maioria do STF em 2017 e novamente em
2024.
O
problema, então, é de cultura política – e de filosofia política. Trata-se de
considerar que as opiniões são secundárias e que a força, a violência do Estado
é só o que importa. Um Estado autoritário é um grave problema e deve ser
evitado, sem dúvida: essa é a opinião do STF e de metade da população
brasileira. Mas um Estado que impõe doutrinas e símbolos – na verdade, de
maneira ainda mais dura e agressiva que em um Estado autoritário –, isso não é
problema, pois “a população é cristã” e é lícito que o Estado pague servidores
públicos para pregação religiosa.
São
opções filosóficas e morais incoerentes, na verdade incompatíveis. Essas opções
revelam e conduzem a uma cultura política que é mais que incompatível: ela é
suicida.
Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.