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14 abril 2021

Roteiro da exposição sobre o terceiro mês dos calendários positivistas (Aristóteles e Paternidade)

O vídeo correspondente ao roteiro abaixo encontra-se disponível aqui.


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Roteiro da exposição sobre o terceiro mês dos calendários positivistas

 

Parte I – Mês concreto: Aristóteles

 



-        3º mês do calendário positivista concreto

o   Considerando o ano júlio-gregoriano de 2021, o mês de Aristóteles começa em 26 de fevereiro e termina em 25 de março

o   O segundo mês concreto representa a filosofia antiga

§  É o terceiro mês da Antigüidade

§  Ele é antecedido por Moisés (a teocracia inicial) e Homero (a poesia antiga) e seguido pelos outros dois meses da Antigüidade (Arquimedes e César)

-        A filosofia foi o segundo ramo intelectual a separar-se da árvore teocrática, após a poesia e antes da ciência

o   Os primeiros filósofos gregos têm suas elaborações ainda muito próximos da teologia, utilizando mitos antigos para refletir sobre o mundo, mas, ao mesmo tempo, tendendo à positividade; assim, há um caráter geral metafísico permeando essa filosofia

o   A filosofia grega tem o caráter próprio à filosofia conforme Augusto Comte usa essa expressão, isto é, reflexão geral e sistemática sobre o mundo e o homem

§  Ao mesmo tempo em que os filósofos refletiam sobre o mundo, eles também refletiam sobre o homem, de sorte que eles pensavam em termos ao mesmo tempo cosmológicos e morais: Tales e, ainda mais, Pitágoras e sua escola são totalmente exemplares a esse respeito

o   A filosofia grega raciocina em termos estáticos, repelindo a dinâmica – desde a Matemática até a Moral –; isso pode ser visto com clareza tanto na filosofia quanto na ciência; assim, no máximo os gregos desenvolveram concepções de ordem, mas não de progresso (para o qual faltava também um longo registro histórico, que permitisse claramente a noção de sucessão)

o   Eis como nosso mestre resume a evolução intelectual grega:

§  “Nessa longa elaboração mental [grega], cumpre distinguir três fases desiguais fielmente caracterizadas no quadro concreto [isto é, no calendário positivista concreto]. O movimento começa pela arte de que Homero é o eterno representante. Forçoso era que a poesia, ao mesmo tempo mais independente e mais peada, fosse a primeira a desprender-se do tronco teocrático, de modo a começar a emancipação ocidental. Ela prepara o advento da filosofia que, em princípio esboçada por Tales e Pitágoras, personifica-se enfim no incomparável Aristóteles, por tal forma superior ao seu tempo que só pode ser apreciado na Idade Média. Sob a presidência de sua eterna elaboração, este segundo surto fica assaz caracterizado a ponto de fazer sentir em breve aos verdadeiros pensadores a impossibilidade de ultrapassá-lo sem um longo preâmbulo científico que pudesse desenvolver suficientemente sua primordial base positiva. Então a ciência real, admiravelmente representada por Arquimedes, tornou-se, por sua vez, o objeto principal do gênio grego, cuja aptidão estética e força filosófica se achavam irrevogavelmente exaustas” (Catecismo, p. 412-413)

-        Aristóteles em particular é um dos nomes mais importantes para Augusto Comte, sendo citado inúmeras vezes – sempre da maneira mais elogiosa possível – no Catecismo positivista

o   Antes de mais nada, importa notar que Aristóteles é definido por nosso mestre como um de seus antecessores – nomeadamente, Aristóteles é o grande nome da Antigüidade

§  Aristóteles é ligado em termos intelectuais à modernidade por meio de Tomás de Aquino, Rogério Bacon e Dante na Idade Média; os pensadores modernos que Augusto Comte identifica como seus antecessores são vários, em diversos âmbitos: o seu pai espiritual é Condorcet, integrando a escola filosófica do século XVIII (dos enciclopedistas) de Fontenelle, David Hume e Diderot; Kant é ligado a Hume e José de Maistre, a Condorcet; Bichat e Gall também são antecessores científicos: esses seis nomes (Hume e Kant, Condorcet e De Maistre, Bichat e Gall) ligam Augusto Comte aos três fundadores da verdadeira filosofia moderna (Descartes, Bacon e Galileu) (Catecismo, p. 5-6)

o   Além disso, nosso mestre considera que, se a primeira carreira de nosso mestre (com a redação do Sistema de filosofia positiva) fê-lo um Aristóteles moderno, a sua segunda carreira (do Sistema de política positiva) fê-lo um São Paulo moderno, a partir da inspiração de Clotilde de Vaux:

§  “Sem ela [sem Clotilde], nunca eu poderia podido fazer suceder ativamente a carreira de S. Paulo à de Aristóteles, fundando a religião universal sobre a sã filosofia, depois de ter tirado esta da ciência real” (Catecismo, p. 15)

o   Para Augusto Comte, caso o ambiente social em que Aristóteles surgiu fosse mais próprio à poesia, ele seria tão genial quanto Dante ou quanto foi em filosofia; inversamente, se, por exemplo, Dante tivesse nascido em um ambiente mais filosófico, teria sido tão genial quanto foi Aristóteles ou em poesia (Catecismo, p. 112)

-        Embora limitado às considerações estáticas, como todos na Grécia (ou melhor, como todos na Antigüidade), Aristóteles foi um pensador de âmbito universal e enciclopédico, tendo lançado bases fundamentais para o estudo estático das ciências superiores (Biologia, Sociologia e Moral)

o   na Biologia, ele propôs o esquema (necessariamente subjetivo) da classificação de seres vivos, fez observações importantes sobre a simetria dos animais superiores e, além de muitas outras observações, lançou as bases da Biologia, que só seria fundada de fato por Bichat, no século XIX (Catecismo, p. 233-234)

o   Na Sociologia, fez comparações sistemáticas sobre as cidades gregas e bárbaras, formulando no início da sua Política o fundamento da estática social, ou seja, a separação dos ofícios e a convergência dos esforços

o   Na Moral, especialmente na sua Ética Nicomaquéia, elaborou reflexões fundamentais sobre a felicidade, o dever, a responsabilidade; novamente na Política também afirmou a superioridade moral das mulheres: “a principal força da mulher consiste em superar a dificuldade de obedecer” (Catecismo, p. 349)

o   Em termos de Lógica, Aristóteles também foi fundamental, ao propor a lei estática fundamental do entendimento humano: “nada há no entendimento que não provenha primeiramente dos sentidos” (Catecismo, p. 174-175)

o   Em virtude dessas características todas, Aristóteles estava muito à frente de seu tempo e só foi avaliado plenamente, isto é, respeitado e levado em consideração, na Idade Média (a obra de Tomás de Aquino representa o reconhecimento católico dessa superioridade e a necessidade de, de alguma forma, o catolicismo incorporar o aristotelismo)

o   O poderoso gênio positivo de Aristóteles tinha que se limitar ao ambiente teológico-metafísico geral da Grécia em que viveu; em particular, ele concebia uma divindade monoteica

§  Vale lembrar que esse monoteísmo já era concebido pelo menos desde Sócrates e que, por meio de Platão, influenciará decisivamente a constituição do catolicismo; esse monoteísmo, além disso, é a via orgânica própria ao Ocidente na constituição do monoteísmo, que será elaborado plenamente por São Paulo, alguns séculos depois

§  O monoteísmo de Aristóteles não reconhecia o voluntarismo próprio ao politeísmo ou o presente no mosaísmo; o deus aristotélico limitava-se a criar o mundo e a pô-lo em movimento, afastando-se então da realidade

-        A importância de Aristóteles é tão grande que ele é celebrado pelo menos três vezes nos calendários positivistas:

1)      Sendo o titular do terceiro mês do calendário concreto;

2)      Sendo celebrado na primeira semana do oitavo mês do calendário abstrato, dedicada ao politeísmo intelectual (Catecismo, p. 477) à essa semana celebra a batalha de Salamina, isto é, a vitória do gênio grego sobre a teocracia persa, bem como diversos outros nomes além do de Aristóteles: Homero, Ésquilo, Fídias, Tales, Pitágoras, Aristóteles, Hipócrates, Arquimedes, Apolônio, Hiparco

3)      Sendo o titular da celebração dos dias das semanas (Catecismo, p. 155):

Lunedia: Homero

Martedia: Aristóteles

Mercuridia: César

Venerdia: São Paulo

Jovedia: Carlos Magno

Sábado: Dante

Domingo: Descartes

-        O mês e as semanas do mês de Aristóteles correspondem ao seguinte:

o   Aristóteles – é o conjunto da contribuição filosófica dos nossos antecedentes gregos

o   Tales – reúne os grandes pensadores iniciais da Grécia, que buscavam explicar o mundo com base em algum princípio geral; também inclui pensadores que buscavam desenvolver o que chamaríamos depois de ciência

o   Pitágoras – reúne os moralistas gregos preocupados com os destinos coletivos e também aqueles que procuraram usam a ciência como base da moralidade

o   Sócrates – reúne os pensadores morais em termos individuais; a presença de Zenão incorpora o estoicismo e, daí, a presença de pensadores romanos (Cícero; Plínio, o Jovem; Tácito)

o   Platão – reúne os pensadores metafísicos que constituirão, depois, o monoteísmo católico

 

Parte II – Mês abstrato: a paternidade

-        O terceiro mês do calendário positivista abstrato celebra a paternidade

o   É o segundo mês que celebra os laços fundamentais, em número de cinco: casamento, paternidade, filiação, fraternidade e domesticidade

-        A paternidade corresponde a pelo menos dois tipos de relações:

o   Por um lado, é a responsabilidade masculina de manter a ordem no âmbito doméstico e de prover as necessidades familiares, para isso sofrendo a influência moral, isto é, moderadora das mulheres;

o   Por outro lado, é a responsabilidade paterna de cuidar dos filhos, isto é, de desenvolver os sentimentos de bondade para com aqueles que são, ao mesmo tempo, mais fracos, inferiores e posteriores a si. Este aspecto é o que caracteriza propriamente a “paternidade”, mas é claro que ele tem o aspecto anterior como seu requisito sociológico e moral.

§  Assim, a paternidade estabelece a relação que é completada pela filiação e que é sistematizada em termos morais, tanto no âmbito doméstico quanto no cívico, pela fórmula: “dedicação dos fortes pelos fracos, veneração dos fracos para com os fortes”

-        São quatro as modalidades determinadas por nosso mestre na paternidade, com as respectivas festas semanais; elas vão das mais completas, fortes e íntimas para as mais incompletas e fracas:

1)      Natural – são os laços completos e por vezes involuntários que ligam os pais aos filhos, mas em todo caso sendo laços de origem biológica

2)      Artificial – os laços criados voluntariamente entre pais e filhos, por meio das adoções

3)      Espiritual – são os laços de apoio principalmente moral, mas também intelectual e artístico

4)      Temporal – são os laços de patrocínio material

 

Parte III – Comemorações de aniversários e feriados cívicos

-        Em termos de aniversários, comemoramos neste mês a seguinte figura:

o   Justin Dévot (1867-1921) – morte (2.Aristóteles – 27.fev.)

o   Início do outono (23.Aristóteles – 20.mar.)

 




 

Referências bibliográficas

Augusto Comte: Sistema de filosofia positiva, Sistema de política positiva, Catecismo positivista, Síntese subjetiva

Frederic Harrison: O novo calendário dos grandes homens

Raimundo Teixeira Mendes: As últimas concepções de Augusto Comte

David Carneiro: História da Humanidade através dos seus grandes tipos, v. 2

Ângelo Torres: Calendário Filosófico

Comité des travaux historiques et scientifiques: Sociétés savantes de France

21 agosto 2011

Sobre o estilo de Maquiavel e a Teoria Política moderna

Ao estudarmos a obra de Maquiavel, muitas vezes lemos que ele foi inovador e que, rompendo com uma tradição prévia – geralmente associada ao pensamento moral católico –, teria fundado a “Ciência Política moderna”.


Especificamente, o livrinho O príncipe, que é a obra mais famosa de Maquiavel, refletiria essas inovações, ao apresentar algumas observações teóricas com uma série de exemplos: mas as observações não são sistemáticas (por vezes resumem-se a algumas poucas linhas) e os exemplos freqüentemente têm várias páginas, de maneira que parecem desmesurados. Esse estilo de expor e raciocinar torna a compreensão do livro um tanto difícil – não porque o raciocínio seja complicado, mas porque com grande facilidade perdemos os fios da meada em meio aos exemplos.


O que muitos autores argumentam, ou sugerem[1], é que essa forma assistemática de argumentar seria devida ao ineditismo maquiaveliano. O raciocínio subjacente é o seguinte: ao romper com uma tradição “moralista” anterior, mais preocupada com o aconselhamento moral (em particular, a tradição dos “espelhos do príncipe”) que com a compreensão da realidade política prática, Maquiavel teria tido dificuldades para elaborar o seu pensamento – daí a assistematicidade combinada com a curiosa profusão de exemplos.


Ora, essa forma de raciocinar, embora à primeira vista seja tentadora, é errada. Antes de mais nada, porque se baseia em uma ilusão histórica, mais precisamente, em um anacronismo. O Ocidente não valoriza a Idade Média; por diversos motivos, considera-se que não se produziu intelectualmente nada nesse longo período. Todavia, isso é incorreto, pois considera-se que a fase medieval foi homogênea, isto é, como se não tivessem havido vários momentos social e intelectualmente diferentes entre si durante cerca de mil anos. Nesse sentido, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se pela decadência que se seguiu ao apogeu do domínio católico e da ordem feudal. Embora sempre tenha fortes havido disputas em toda a Idade Média, os seus séculos finais caracterizaram-se por inúmeras elaborações teóricas, que ao mesmo tempo procuravam justificar as contendas e dar um tratamento teórico às novas conjunturas políticas específicas.


Podemos pensar em duas disputas, em particular; essas duas disputas, na verdade, eram duas faces de uma única disputa maior, resultantes do reordenamento político e social da decadência da ordem católico-feudal. Por um lado, a oposição entre os dois poderes “universais” da época: a Igreja Católica, representada pelo Papado, que, a partir de sua supremacia espiritual, tencionava tornar-se politicamente superior a todos os chefes temporais; por outro lado, o Império Romano-Germânico, tornado “sagrado” pelo mesmo Papado que tentava deslegitimá-lo. Essa disputa durou séculos e teve episódios memoráveis dos pontos de vista prático e intelectual: podemos ficar somente na humilhação imposta pelo Papa Gregório VII ao Imperador Henrique IV, durante o inverno alpino na cidade de Canossa; mas o resultado dessa oposição, como sabemos, foi o enfraquecimento mútuo dos dois e o surgimento de condições para a afirmação da lealdade a um novo âmbito político. Esse novo âmbito era intermediário em termos de extensão territorial: nem “universal”, como o Papado e o Império, nem restrito, como os feudos; eram os reinos, que depois seriam chamados de estados nacionais modernos[2]. Entre inúmeros outros autores, podemos citar os famosos Dante e Guilherme de Ockham participando dessas lutas.


Ao mesmo tempo, os séculos finais da Idade Média caracterizaram-se, de uma perspectiva intelectual e artística, pelo Renascimento, ou seja, pela redescoberta européia das tradições gregas e romanas, a partir da sua difusão pelos árabes. O Renascimento, ao mesmo tempo em que forneceu elementos para as reflexões políticas envolvidas nas lutas entre Papado, Império e reis, também inspirou pensadores e políticos para tratarem das suas realidades específicas: pensamos nas “repúblicas renascentistas” sendo justificadas como a reafirmação, ou a continuidade, das antigas cidades-Estado da Grécia e de Roma.

Aliás, mesmo que não houvesse esses antecedentes imediatos, o Renascimento consistiu na retomada dos textos antigos, que continham reflexões extremamente sistemáticas sobre as realidades cósmica, social e moral: Aristóteles é o grande exemplo disso. Ora, Aristóteles não podia ser desconhecido de Maquiavel, pois Tomás de Aquino elaborou sua teologia procurando conjugar Sto. Agostinho com, precisamente, Aristóteles.

Em outras palavras, essas disputas políticas originaram uma grande elaboração intelectual; essa produção é desconsiderada quando se afirma que Maquiavel era radicalmente inédito ao escrever O príncipe.

Dito isso, poder-se-ia argumentar que a forma como O príncipe foi redigida é adequada ao seu objetivo, isto é, que corresponde precisamente a um manual prático para os chefes militares que desejem obter e manter o poder, fundando novas unidades políticas, adequadas à realidade do fim da Idade Média, isto é, adequadas à existência plena dos estados nacionais modernos[3].


Essa linha de argumentação é factível. Todavia, caso leiamos também os Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio, ou simplesmente Discorsi, veremos que eles apresentam a mesma forma narrativa: algumas observações teóricas mais ou menos pouco sistemáticas seguidas de longos exemplos históricos. Embora os Discorsi tivessem também uma preocupação prática – a (re)organização das repúblicas italianas, em particular Florença –, o fato é que eles têm objetivos muito menos pragmáticos, revestindo-se de um caráter mais normativo.


Retornando ao estilo teórico maquiaveliano: as observações acima sugerem que o tatear da escrita de Maquiavel não era devido à sua novidade, ao ineditismo de sua elaboração, mas consistia especificamente em um traço pessoal. Ele não era inédito nem rompia com uma tradição prévia porque inúmeros outros autores redigiram reflexões políticas agudas, tanto em termos de realismo quanto em termos de utilidade prática. O que ele pode ter feito é ter jogado uma pá de cal nos manuais de aconselhamento do tipo “espelho do príncipe” – próprios, talvez, à Idade Média – e iniciado a tradição de manuais adequados à luta prática – “como obter o poder e manter-se nele”.


Uma reflexão crua sobre os meios necessários e disponíveis para a obtenção do poder têm, evidentemente, uma grande importância prática, além de servir para a reflexão teórica. Mais do que isso: Maquiavel adotou uma forma de raciocinar que, atualmente, é chamada de “Teoria Política historicamente informada”, em que procurava utilizar a experiência histórica não apenas como guia, como fonte de exemplos, como conselheira, mas também como fonte de elementos para uma reflexão mais sistemática[4]. Embora tanto O príncipe quanto os Discorsi tenham elementos de cada uma dessas abordagens, enquanto O príncipe usa mais a história como conselheira, os Discorsi revelam uma abordagem da história como fonte para entender-se os processos sociais subjacentes.


Também convém notar que a obra de Maquiavel originou várias correntes e interpretações teóricas, todas elas riquíssimas e que se mantêm contribuindo para a compreensão que temos da política. Sem ser exaustivo, podemos pensar em Jean-Jacques Rousseau afirmando ser O príncipe um aviso ao povo, contra os poderosos; em Frederico II, escrevendo seu Anti-Maquiavel; em Antônio Gramsci vendo o “príncipe moderno” na figura do partido político; nos teóricos elitistas italianos (Gaetano Mosca, em particular) e, mais recentemente, nas elaborações do neo-republicanismo, a que se ligam Quentin Skinner, John McCormick, Newton Bignotto, Ricardo Silva e inúmeros outros.

Ainda assim, embora a abordagem de Maquiavel seja útil e interessante – particularmente, esposamos a concepção de que a Teoria Política deve ser “historicamente informada”, a fim de ser mais realista – e ele tenha originado ou contribuído com inúmeras correntes teóricas importantes, a reflexão sobre o estilo de escrita maquiaveliano não é muito favorável a ele. “Não ser favorável” não significa que ele não tenha escrito coisas que mereçam a leitura e a reflexão, mas que seu ineditismo não é tão marcante nem sua contribuição tão fundamental. Na verdade, como vimos, pode-se argumentar seriamente contra o seu ineditismo (deixando de lado a obviedade de que, em princípio, todo autor que escreve é inédito): essa concepção vincula-se à falta de consciência histórica. Da mesma forma, a falta de sistematicidade de seu pensamento leva a pôr seriamente em dúvida suas contribuições. 

O resultado disso é que somos levados a concordar com Augusto Comte em sua avaliação de Maquiavel[5]

“Avant de quitter cette second phase, je dois signaler Hobbes et Bossuet comme ayant déjà préparé alors la rénovation de la philosophie politique. Machiavel, avant eux, avait fait quelques heureuses tentatives partielles pour rattacher l’explication de certains phénomènes politiques à des causes purement naturelles, quoiqu’il ait deparé son ouvrage par une appréciation tout à fait vicieuse de la sociabilité moderne, qu’il ne put jamais suffisamment distinguer de l’ancienne. La célèbre conception de Hobbes sur l’état de guerre primordial et le prétendu règne de la force, a presque toujours été méconnue ; mais, considérée d’une manière impartiale, on sentira qu’elle a constitué un puissant aperçu primordial, statique et dynamique, de la prépondérance des influences temporelles dans l’ensemble permanent des conditions sociales ; et, aussi, de l’état nécessairement militaire des sociétés primitives. C’est la une vue saine introduite au milieu des hypothèses fantastiques sur l’état de nature et le contrat social, et elle a, par conséquent, une éminent valeur. La participation de Bossuet à cette préparation est plus évidente et moins disputée. J’ai déjà signalé la valeur de son élaboration historique, où, pour la première fois, les phenomènes politiques sont envisagés comme assujettis à des lois invariables que permettent de les déterminer les uns par les autres. Quoique le principe théologique qui dominait cette lumineuse conception dût l’altérer profondément, il ne pouvait dissimuler tout à fait sa valeur, ni empêcher son heureuse influence sur les études historiques de la période suivante. On sente, du reste, qu’elle ne pouvait naître alors qu’au sein du catholicisme, dont elle constitue la dernière inspiration capitale, puisque l’instinct négatif empêchait ailleurs toute juste appréciation quelconque de l’évolution humaine. La nature de grande service qu’a rendu Bossuet ressort de sa destination, qui était de représenter l’histoire systématique comme la base nécessaire de l’éducation politique”[6].




[1] Não penso em nenhum autor em particular neste momento; os comentários que faço são de fato genéricos e “impressionistas”, baseados nas leituras que fiz na época de estudante de graduação e de mestrado – antes, portanto, de estudar com atenção a História das Idéias. De qualquer forma, para o presente argumento, como se verá, a ausência de algum nome específico que tenha proposto o senso comum que comento não é tão problemática.

[2] Uma ótima exposição dessas lutas é o livro de Raquel Kritsch, Soberania – a construção de um conceito (São Paulo: Humanitas, 2002).

[3] A realidade vivida por Maquiavel era da incapacidade das cidades-Estado italianas manterem-se mais ou menos estáveis ao longo do tempo. Essa dificuldade foi aumentada bastante a partir das guerras da Itália, ou seja, a partir do momento em que dois novos estados nacionais – França e Espanha, particularmente a primeira – decidiram atuar na península.

[4] Uma exposição dos “estilos” das teorizações na Teoria Política pode ser lida no artigo de Ricardo Silva, “Identidades da teoria política: entre a ciência, a normatividade e a história” (Pensamento Plural, Pelotas, v. 3, p. 9-21, jul.-dez.2008. Disponível em: http://www.ufpel.edu.br/isp/ppgcs/pensamento-plural/edicoes/03/01.pdf. Acesso em: 26.maio.2011). A abordagem do uso sistemático da história para teorizar na política corresponderia, no texto de Ricardo Silva, à parceria mantida na última década e meia por Quentin Skinner com Phillip Pettit.

[5] Fonte da citação: Auguste Comte, La philosophie positive d’Auguste Comte, condensée par Miss Harriet Martineau (T. II. Paris: Louis Bahl, 1895, p. 491-492).

[6] “Antes de concluir essa segunda fase, devo indicar Hobbes e Bossuet como já tendo então preparado a renovação da filosofia política. Maquiavel, antes deles, fez algumas felizes tentativas parciais para vincular a explicação de certos fenômenos políticos a causas puramente naturais, embora tenha desfigurado sua obra por uma apreciação em todos os sentidos viciosa da sociabilidade moderna, que ele não pôde jamais distinguir suficientemente da antiga. A célebre concepção de Hobbes sobre o estado de guerra primordial e o pretendido reino da força foram quase sempre mal conhecidos, mas, considerada de uma forma imparcial, sentimos que ela constituiu uma poderosa percepção primordial, estática e dinâmica, da preponderância das influências temporais no conjunto permanente das condições sociais e, assim, do estado necessariamente militar das sociedades primitivas. Essa é uma sã visão introduzida no meio das hipóteses fantásticas sobre o estado de natureza e o contrato social e ela tem, em conseqüência, um valor eminente. A participação de Bossuet nessa preparação é mais evidente e menos disputada. Já assinalei o valor de sua elaboração histórica, em que, pela primeira vez, os fenômenos políticos foram percebidos como sujeitos a leis invariáveis que permitem determiná-las umas pelas outras. Embora o princípio teológico que dominou essa luminosa concepção devesse alterá-la profundamente, ele não pôde dissimular de todo seu valor, nem impedir sua feliz influência sobre os estudos históricos do período seguinte. Sentimos, quanto ao resto, que ela não podia nascer em outro lugar que não no seio do catolicismo, em que ela constitui a última inspiração capital, desde que o instinto negativo impediu alhures toda e qualquer justa apreciação da evolução humana. A natureza do grande serviço que rendeu Bossuet evidencia sua destinação, que foi a de representar a história sistemática como a base necessária da educação política” (tradução minha).