Chama a atenção o fato de que a sede mundial de uma igreja tenha leis soberanas próprias, um governo teocrático, e que, por meio de acordos internacionais, um outro Estado soberano aplique as decisões jurídicas dessa igreja. Tal situação verdadeiramente anômala existe desde 1929, quando o regime fascista de B. Mussolini celebrou o Tratado de Latrão, reconhecendo à Igreja Católica personalidade jurídica de Estado soberano - mesmo que o Vaticano seja, no final das contas, apenas um pequeno bairro na cidade de Roma.
O livro já recebeu uma tradução brasileira, publicada em 2016 - pode ser adquirida aqui. É de questionar-se, de qualquer maneira, se ele ensejará investigações aprofundadas sobre a riqueza da Igreja Católica no Brasil, além de maiores investigações sobre as igrejas evangélicas também aqui operantes.
O original da entrevista encontra-se disponível aqui.
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"O meu livro é
um mapa da corrupção no Vaticano. Todo o dinheiro recolhido fica para os
cardeais, em vez de ir para os pobres"
MUNDO 09.05.2016 às 9h47
Entrevista a Emiliano
Fittipaldi, o jornalista que passou um ano a investigar a gestão das finanças
das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. A investigação resultou
no livro Avareza, e a fuga de informação que relata já mereceu o nome de
Vatileaks
Isabel Nery
ISABEL NERY
Jornalista
O dinheiro do
Vaticano entra sobretudo pela mão dos fiéis, que esperam vê-lo aplicado em
obras de caridade. Mas, afinal, está investido em ações como as da petrolífera
Exxon, e bens imobiliários. Depois de receber uma lista de propriedades da
Igreja em Londres, Paris e Roma, no valor de 4 mil milhões de euros, o
jornalista da revista italiana L'Espresso passou um ano a investigar a gestão
das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. Fittipaldi
descobriu que as esmolas são transformadas em fundos e que as beatificações são
verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Chegou a dizer-se que a fuga de
informação teria vindo de elementos próximos de Francisco, mas o Papa também já
criticou publicamente o livro. Avareza é agora lançado em Portugal, pela
editora Saída de Emergência, numa altura em que o autor, de 41 anos, enfrenta
um processo, acusado do crime de “subtração e divulgação de notícias e
documentos reservados”, previsto na lei do Estado do Vaticano. Se perder,
poderá ser condenado a um máximo de 8 anos de prisão. Por isso, confessa-se
“cansado”. Pela reação negativa de Francisco, “surpreendido”. As revelações, e
fuga de informação inscrita em documentos sigilosos, já mereceram o nome de
Vatileaks.
Quais foram as
descobertas mais chocantes desta investigação jornalística?
Em 2012, as esmolas recolhidas para apoiar os pobres somaram
53,2 milhões, mas só 11 milhões foram para ajudar os mais desfavorecidos. A
Cúria romana ficou com 35,7 milhões. Há cardeais a viverem em luxo. No meu
livro digo o nome e apelido de cada um. Descobri que há cardeais a viver em
Roma em apartamentos de 400 metros quadrados. E não usam esse espaço nem para
pobres nem para refugiados.
Como é que usam o
dinheiro das esmolas?
Descobri que Tarcisio Bertone [ex-secretário de Estado] usou
200 mil euros de um hospital pediátrico para fazer restauros na sua casa. Um
cardeal pedófilo pagava 50 mil euros por mês à secretária.
De onde vinha todo
esse dinheiro?
Um dos negócios incríveis que denuncio no meu livro é o das
beatificações. O caminho mais rápido para chegar a santo é pagar a um bom
advogado para tratar do processo. Pela beatificação da espanhola Francisca Ana
de las Dolores cobraram-se 482 693 euros.
Quer dizer que nos
países pobres não pode haver santos?
Não. Em África ou nas Filipinas não há dinheiro para isso.
Mas o Banco do Vaticano ganhou 100 milhões de euros. Francisco quis fechá-lo e
depois mudou de ideias. Todo o dinheiro devia ir para os pobres. Mas, em dois
anos, o fundo do Banco do Vaticano só entregou 17 mil euros, embora tenha
amealhado cem milhões. Daí o título do meu livro, Avareza.
O Vaticano é
avarento?
O Vaticano comporta-se como uma offshore. Nem sequer dá toda a informação à polícia sobre quem tem
contas no seu banco. Por vezes, o Vaticano decide como um banco e não como uma
Igreja. Francisco quer mais transparência para o futuro, mas não quer que se
descubra o passado. Quer limpar a Igreja por dentro sem que ninguém saiba. Mas
eu não trabalho para o Vaticano nem para o Papa. Sou jornalista.
Vive num país que
alberga o Estado do Vaticano. Como conseguiu escrever sobre um tema tão
sensível?
Em Itália é muito difícil escrever sobre isto. Temos o
Vaticano dentro do nosso país. E o Vaticano tem uma relação muito estreita com
a televisão, com muito poder sobre ela. Mas o tema é bom para quem faz
jornalismo de investigação, como eu.
Conseguiu publicar
artigos e livros sobre o tema, apesar de tudo.
Sou um jornalista sortudo: tenho toda a liberdade no meu
jornal. Em Itália é muito difícil escrever sobre corrupção na Igreja Católica.
A comunicação social italiana está em 77º lugar no índice de liberdade de
imprensa. O Governo é muito próximo da Igreja e não diz nada sobre este
escândalo. A informação que publico está a ser revelada pela primeira vez na
história.
Ficou isolado com a
publicação do livro?
Os meus colegas dizem que roubei os documentos, uma rádio
católica sugeriu que me enforcasse. Mas tenho todo o apoio do meu editor. E já
muita gente leu o meu livro. Fico feliz com isso. Porque o que um jornalista
mais quer é ser lido. Comecei há 4 anos a escrever sobre o tema para a minha
revista.
Quem lhe passou a
informação queria prejudicar o Papa ou ajudá-lo?
As minhas fontes são seculares e do Vaticano. Não se
conhecem. Algumas gostam do Papa e outras não. Não sei se querem ajudar ou
destruir o Papa. Mas os jornalistas não têm de perguntar “porquê” às fontes. As
motivações da fonte não são um problema nosso. Nós só temos de fazer o nosso
trabalho.
Que leitura faz do
facto de aparecerem estes documentos na altura em que o Papa é Francisco, visto
como moderado e defensor dos mais fracos?
É estranho.
Mas, lendo o seu
livro, parece que é mais uma questão de imagem do que de conteúdo.
A propaganda do Vaticano é muito forte. Francisco é um
comunicador perfeito. Escrevemos que este Papa mudou tudo em apenas 3 anos no
Vaticano. Mas não é verdade. Não é possível. O Papa é o homem mais poderoso do
mundo. O grande escândalo é em Roma. Todos sabem que a Igreja Católica tem
problemas com as finanças.
Por haver demasiados
vícios e demasiado antigos na Igreja?
O Vaticano é um Estado rico. Mas todo o dinheiro recolhido
fica no Vaticano, para os cardeais, em vez de ir para os pobres. Isso é incrível!
É aí que está o problema. Mas fico feliz por estar a denunciar. Depois do meu
livro, Francisco mudou o sistema para haver mais controlo.
Está desiludido com
Francisco?
Francisco e o Vaticano estão muito zangados comigo porque
destruí essa propaganda. Ele queria reformar, mas não teve tempo para isso. E
agora está sozinho. Tem muitos inimigos.
O Papa corre mais
perigo de vida por ter querido reformar a Igreja?
Não me parece. Mas, na Cúria romana, muitos odeiam-no.
Tendo em conta tudo o
que denuncia, pode ser bom sinal, ser odiado pela Cúria?
Para um papa que quer mudar a Igreja, sim. Mas não sei se
será capaz. Espero que ele ganhe esta batalha, mas não tenho a certeza. O meu
livro não é contra a fé, mas contra a corrupção na Igreja. Os padres devem rezar,
não andar em casa dos políticos. Em Itália, a Igreja tem negócios, incluindo na
área da saúde, casas e palácios. A ingerência da Igreja em Itália é muito forte
e Francisco quis mudar isso.
A popularidade
ajuda-o ou prejudica-o?
Ser tão popular é muito importante. Pode fazer algumas
reformas por ter o povo com ele. Mas cometeu erros.
Quais?
Quando mudou os homens próximos de Benedict [Bento XVI,
anterior Papa] deu a sua confiança a Pell [responsável pelas finanças do
Vaticano]. Foi um grande erro de Francisco. Pell trabalha dentro do banco do
Vaticano e não quer transparência. Francisco viveu muitos anos em Buenos Aires.
Talvez não soubesse bem o que se passava no Vaticano.
Como reagiu àquilo
que revelou sobre o Vaticano no seu livro?
A reação deixou-me muito surpreso. Ele é um rei no Vaticano
e eu tenho um problema com a justiça dele. O Papa está muito zangado com a
edição do meu texto. Levou-me a tribunal. Depois da publicação disse em
público, na Praça São Pedro, em Roma, dirigindo-se à multidão, que o meu livro
era mau para a Igreja.
Porquê?
Não percebo porque é um problema para a reforma que
Francisco quer fazer. O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano! Acho que
o livro poderá ajudar no futuro.
Preocupa-o que os
radicais islâmicos usem investigações como esta para denegrir a Igreja Católica
e ganharem terreno?
Nunca me tinham perguntado isso… Não tenho o poder de mudar
o mundo. Não sei se pode destruir a fé na Igreja. Mas isso não é um problema
meu. Sou jornalista. Toda a informação que divulgo é verdadeira.
Ninguém o acusa de
publicar informações falsas ou erradas?
Não. Nem uma linha do livro foi desmentida.
Nos processos que tem
contra si, de que o acusam, então?
Acusam-me de ter revelado informação confidencial. Dizem que
os meus documentos são privados e pessoais. Mas ninguém diz que publiquei
mentiras. Se digo a verdade, não devo ter problemas com a justiça.
Mas está a ter.
Sim. A sentença deverá ser conhecida em meados de maio. Mas
fiz outro trabalho jornalístico sobre Bertone e estou com problemas porque um
tribunal de Roma diz que o difamei. Nos próximos tempos, vou passar mais tempo
em tribunal do que no jornal.
Que pena poderão
aplicar-lhe?
Uma lei do Vaticano de há 3 anos prevê penas para quem
publique informações confidenciais como as que divulgo no livro.
A possível
ilegalidade surge à luz da lei do Vaticano?
O meu crime é ser jornalista. O Vaticano não tem imprensa
livre. Rege-se por leis próprias, que não são as mesmas das italianas. Mas há
um acordo entre Itália e o Vaticano, e quem cometer um crime no Vaticano pode
ter problemas com a lei italiana.
Que problemas?
Podem aplicar-me uma pena de 5 a 8 anos. Mas será difícil
porque Itália tem lei de liberdade de imprensa.
Sendo pouco provável
a condenação judicial, que outras consequências lhe trouxe a publicação deste
livro sobre os escândalos financeiros do Vaticano?
Tentaram destruir a minha reputação. E a reputação é o mais
importante para um jornalista. Fui ao Vaticano para me defender deste ataque.
Eu não ameacei ninguém. Para o Vaticano eu sou culpado. Mas terão um problema
político se me acusarem.
O seu livro mudará
alguma coisa?
Às vezes podemos mudar alguma coisa. Denunciei 10% do
escândalo económico dentro do Vaticano. Sei de cardeais que têm milhões de
euros no banco do Vaticano. Se outros quiserem investigar, terão muito sobre o
que escrever.
Quer dizer que não
continuará a escrever sobre o tema?
Estou muito cansado. Fui muito atacado em Itália. Dei
entrevistas a jornais dos EUA, Espanha e Portugal. Mas, em Itália, nem um
jornal quis ouvir as minhas denúncias.
É Católico?
Sou agnóstico.