Sobre a responsabilidade social
“Os deveres sociais do capital podem reduzir-se a dois: produzir riqueza e sustentar os seres humanos”.
Luís Lagarrigue
A vitória de Luís Inácio Lula da Silva para a Presidência da República pôs na ordem do dia uma tendência que lentamente se formou no Brasil ao longo dos anos 1990: o valor da “responsabilidade social”.
Esse conceito tem sido aplicado por diversas empresas que – preocupadas com as condições de vida, não apenas de seus funcionários, mas de todos os cidadãos – desenvolvem programas de auxílio a necessitados, com a “adoção” de alunos carentes, doação de alimentos, reciclagem de lixo reutilizável, campanhas de “conscientização social” e assim por diante.
Ora, esses atos, por si sós, não constituem novidade alguma; com maior ou menor ênfase, há vários anos, talvez décadas, diferentes grupos têm-nos defendido. O mais notável nesse movimento são seus defensores: empresários, capitalistas, donos de empresa – justamente aqueles que, pela profissão ou mesmo pela mentalidade, seriam os menos propensos a tal tipo de conduta.
Ainda mais interessante é o fato de que o valor da responsabilidade social, ainda que possa ser comparado ao da “caridade”, não é igual a ela, pois não se trata de remediar a condição de vida de quem sofre, mas de evitar que quem sofre sofra, ou seja, é um comportamento preventivo, ao invés de paliativo.
Sem dúvida alguma é uma alteração profunda, absolutamente necessária para a sociedade, e que, se tem sido mais difundida (no Brasil) apenas nos últimos anos, a verdade é que é um valor, um conceito existente há mais de um século e meio.
Foi o filósofo francês Augusto Comte (1991), autor da frase que está em nossa bandeira nacional, Ordem e Progresso, quem pensou pela primeira vez os termos da responsabilidade social; são eles muito simples.
A idéia básica, fundamental, é que a sociedade é um todo e não uma coleção de indivíduos que, por acaso ou por necessidade, interagem. Essa totalidade caracteriza-se mais por sua existência ao longo do tempo, através das gerações sucessivas, que pelo mero tempo presente; além disso, nela cada um tem seus deveres para com os demais, a começar pelo respeito mútuo. A segunda idéia é que o trabalho, isto é, a atividade humana, não é apenas a econômica, pois envolve tudo o que fazemos: as idéias, os pensamentos, a política, a produção material, as obras artísticas e assim por diante. A terceira idéia é que o ser humano tem uma constituição tal que somos naturalmente altruístas, ou seja, somos venerantes, fraternos e bondosos, cumprindo apenas exercitar esses sentimentos e desenvolvê-los.
Essas percepções – que não são idéias abstratas, porém questões de fato – têm algumas conseqüências claras: quando trabalhamos, não o fazemos apenas ou principalmente para nós mesmos, para satisfazer nosso egoísmo presente. É claro que precisamos viver e, nesse sentido, não há como não ser egoísta: mas os frutos de nossa ação ultrapassam a mera satisfação de nossos próprios desejos ou necessidades, tanto “neste momento”, no presente, quanto ao longo do tempo; o que fazemos influencia a vida dos demais, incluindo-se aí as gerações posteriores, que serão as principais afetadas por nossos atos de hoje.
Além disso, as pessoas não iguais; cada um é diferente dos outros, e disso resulta que as habilidades e as competências são, também, diferentes. Da mesma forma como há indivíduos mais propensos e habilitados a serem filósofos, ou poetas, ou engenheiros, ou médicos, ou artesãos, ou políticos, há indivíduos hábeis na condução dos negócios econômicos, e são eles que devem cuidar desses assuntos, com a máxima liberdade possível. Mas essa “máxima liberdade possível” só se justifica porque são os empresários que sabem como lidar com os assuntos sob sua responsabilidade, assim como sabem quais são os problemas que enfrentam; nesse sentido, a liberdade, que deve ser garantida, exige, em contrapartida, a máxima responsabilidade na condução dos negócios. E, como dissemos antes, a sociedade não é uma coleção de indivíduos egoístas que interagem para satisfazer seus desejos...
Outra tendência que tem se acentuado no Brasil, desde os anos 1990, é a difusão dos cursos de Administração. Fora os aspectos técnicos dos diversos tipos de administração, é interessante notar que um “administrador” é alguém que gere o patrimônio alheio, tendo para isso muita liberdade – afinal, é ele que sabe quais são os problemas que enfrenta na gestão – mas, da mesma forma, tendo que prestar contas periodicamente aos donos da empresa ou ao corpo de acionistas; caso malverse os recursos à sua disposição, ou seja incompetente, é substituído por alguém mais capaz.
É exatamente essa mentalidade que deve generalizar-se pela sociedade; mas, ao invés de sermos “administradores de empresas”, seremos “funcionários sociais”, responsáveis pela gestão da sociedade naquilo que nos cabe; ao invés de buscarmos o lucro para a satisfação mesquinha de desejos egoístas de acumulação material e ostentação, buscaremos a melhoria das condições de vida e de existência do ser humano.
Da mesma forma, a concepção que temos da propriedade mudará, ou deverá mudar: não sendo nunca “coletiva”, como propõe o socialismo, ela será social; não teremos a “propriedade” dos bens, mas apenas a “posse” ou seu “usufruto”. Ao dispormos dos bens, temos liberdade para tanto, sujeitando-nos também à completa responsabilidade (social) implicada. Ou, como disse o filósofo Comte, “O capital é social em sua origem; deve ser também em sua destinação”.