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03 setembro 2024

O Positivismo é tecnocrático?

No dia 23 de Gutenberg de 170 (3.9.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, agora em sua duodécima conferência (dedicada à exposição da evolução histórica do desenvolvimento humano, ou seja, da religião, em particular do fetichismo e do politeísmo).

Depois das exortações e da indicação das efemérides, lemos nosso documento "Programa republicano mínimo - orientações para o voto no dia 6 de outubro".

Na parte do sermão procuramos responder à seguinte pergunta: o Positivismo é tecnocrático?

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/9s5IO) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/mMKn5).

Os tempos da prédica foram os seguintes:

00 min 00 s - início

15 min 27 s - exortações 

24 min 58 s - efemérides

29 min 35 s - leitura do documento "Programa republicano mínimo"

45 min 21 s - leitura comentada do Catecismo positivista

1 h 00 min 51 s - sermão 

2 h 10 min 00 s - término

As anotações que serviram de base para a exposição oral estão reproduzidas abaixo.

*   *   *

O Positivismo é tecnocrático?

(23 de Gutenberg de 170/3.9.2024)

 1.       Abertura

2.       Exortações iniciais

2.1.    Sejamos altruístas!

2.2.    Façamos orações!

2.3.    Façam o Pix da Positividade! (Chave pix: ApostoladoPositivista@gmail.com)

3.       Efemérides:

3.1.    24 de Gutenberg (4.9): nascimento de Richard Congreve (1881)

3.2.    25 de Gutenberg (5.9): transformação de Augusto Comte (1857)

3.3.    26 de Gutenberg (6.9): nascimento do Alte. Henrique Batista de Oliveira (1908)

3.4.    27 de Gutenberg (7.9): independência do Brasil (1822)

4.       Leitura do documento “Programa republicano mínimo – orientações para o voto no dia 6 de outubro”

 

IGREJA POSITIVISTA VIRTUAL

Programa republicano mínimo

Orientações para o voto no dia 6 de outubro

1. Introdução: a necessidade de critérios para escolher candidatos

Neste ano, no dia 6 de outubro, teremos eleições municipais, em que a população brasileira elegerá seus novos prefeitos e vereadores; desde o dia 16 de agosto temos campanha eleitoral. Os partidos políticos, a Justiça Eleitoral, os meios de comunicação e vários grupos da sociedade civil afirmam que é importante “votar com consciência”, “votar de maneira esclarecida”, “buscar os melhores candidatos”, mas muito raramente, para não dizer nunca, são apresentados com clareza os critérios que definem a “consciência”, o “esclarecimento”, os “melhores”. No máximo há a afirmação de que os candidatos escolhidos devem “representar” os eleitores, com isso querendo dizer que os candidatos devem pensar e agir de maneira semelhante aos eleitores – o que, dizendo com clareza, está muito distante dos verdadeiros interesses sociais.

Com o objetivo de auxiliar a reflexão pública e, na medida do possível, orientar nossos concidadãos eleitores na escolha de candidatos a prefeito e a vereador, apresentaremos neste documento alguns critérios positivos e critérios negativos – ou seja, opiniões e comportamentos que os candidatos devem apresentar para serem escolhidos, bem como opiniões e comportamentos que são motivos para rejeitar candidatos.

Este manifesto é dirigido a todos e todas os brasileiros e brasileiras, nossos concidadãos eleitores e nossas concidadãs eleitoras. Como se verá, à primeira vista talvez o programa abaixo pareça muito exigente: mas, por um lado, isso não é motivo para desconsiderá-lo; por outro lado, isso indica o quanto estamos distantes do republicanismo no Brasil.

Antes, porém, é importante expor os fundamentos políticos, sociais e morais dos critérios que apresentaremos.

2. A política positiva e a república

Desde 15 de novembro de 1889 o Brasil é uma República. Embora à primeira vista o conceito de “república” pareça pouco, na verdade ele é um dos mais densos e importantes na vida de qualquer cidadão. A noção de república é um ideal: nem sempre esse ideal realiza-se na prática, mas isso não é motivo para desvalorizar o ideal, nem para rejeitá-lo. Vejamos, então, quais são os elementos desse ideal.

O sentido fundamental da república é o bem comum: efetivamente se dedicar ao bem-estar coletivo, superando o individualismo, o egoísmo, os particularismos, isso é ser republicano. Além disso, a república também se opõe à monarquia e, portanto, à sociedade de castas; em outras palavras, na república o valor de uma pessoa é dado pelo mérito individual, em vez de ser pelas condições em que nasceu (pelo “berço”).

Mais importante do que isso, a dedicação ao bem comum significa a subordinação da política à moral, ou seja, a subordinação da política aos princípios e valores maiores da Humanidade, em que a família subordina-se à pátria e a pátria subordina-se à Humanidade. Somente assim a atividade política pode ser entendida como a dedicação ao bem comum e, a partir disso, ser fiscalizada e responsabilizada.

Disso se seguem várias conseqüências. A primeira delas é que o conjunto da sociedade deve sempre ser levado em consideração. A fraternidade universal é um valor básico: como todos devem orientar suas condutas para a melhoria de vida de todos, o respeito mútuo e a afirmação da dignidade fundamental de todos são pilares da vida coletiva. Daí se segue também que as relações sociais têm que ser pacíficas: qualquer forma de violência degrada as relações humanas e o ambiente social. O pacifismo e a fraternidade universal impõem, por seu turno, o repúdio ao racismo e às discriminações de “gênero”; da mesma forma, eles exigem o respeito ao meio ambiente e, claro, aos animais.

Uma segunda conseqüência é que, embora toda sociedade moderna seja composta por patrícios e proletários, a maior parte da sociedade é composta pelo proletariado (ou seja, pelos trabalhadores) e os esforços sociais têm que se orientar para a melhoria das suas condições de vida: é esse o objetivo que deve orientar a ação dos patrícios.

A regra republicana básica é o “viver às claras”: cada um deve adotar valores em sua vida que sejam publicamente defensáveis e de fato viver conforme esses valores. No caso dos governantes e das figuras públicas, o viver às claras também significa que todos os seus atos são responsabilizáveis, ou seja, são passíveis de acompanhamento, avaliação e cobrança públicas. A publicidade dos atos e das motivações é a regra, nunca a exceção. Como conseqüência do viver às claras, todos devem sempre falar a verdade e cumprir o prometido – ou, em outras palavras, não se deve mentir nem se deve trair.

A instituição republicana básica é a separação entre igreja e Estado: o aconselhamento não pode nem precisa da violência do Estado para fazer-se valer, nem o Estado pode condicionar os seus serviços à aceitação de crenças oficiais. Isso é o que se chama vulgarmente de “laicidade”; uma de suas conseqüências é que sacerdotes devem manter-se afastados do Estado a fim de garantirem sua dignidade, assim como o Estado deve recusar sacerdotes para não ser usado como instrumento de opressão. O afastamento dos sacerdotes em relação à política não quer dizer alienação nem indiferença; quer dizer que, como sacerdotes, não podem trabalhar para o Estado.

A separação entre igreja e Estado é a base das liberdades fundamentais: são as liberdades de crença, de manifestação e de associação, assim como o direito de ir e vir, o habeas corpus e o devido processo legal. Adicionalmente, os órgãos do Estado – especialmente os que são responsáveis diretos pelo atendimento à população – e os servidores públicos devem ser valorizados, mantendo-se sempre também a dignidade da chamada iniciativa privada.

Finalmente, as instituições sociais fundamentais devem ser valorizadas, a começar pela família. Entre a família e a sociedade política (as pátrias) as relações são de complementaridade, não de oposição; o papel da família é o de desenvolvimento afetivo e de educação moral, preparando os cidadãos para a vida na sociedade mais ampla; o papel da sociedade política é o de realizar os trabalhos práticos necessários para manter e desenvolver a vida de todos. Como é mais ampla, a sociedade política regula e protege a família. As pátrias, por sua vez, devem todas unir-se em prol da Humanidade. Assim como os proletários devem ser valorizados e respeitados, as mulheres devem ser valorizadas e ter sua dignidade mantida e afirmada.

Esses valores e essas práticas constituem muito do que é a república, embora não a esgotem. Tudo isso almeja a realização dos um dos supremos ideais dos brasileiros e de todos os seres humanos, que é a união da ordem com o progresso. Como dissemos em outro manifesto[1], quando a ordem e o progresso ficam separados, eles tornam-se antagônicos um em relação ao outro, de tal maneira que a ordem transforma-se em ordem retrógrada e opressiva e o progresso torna-se caótico e também opressivo. Apenas a união das duas perspectivas, em que ambas sejam simultaneamente respeitadas e valorizadas, torna possível que cada uma delas seja cumprida. A ordem consiste na consolidação do progresso, ao passo que o progresso é o desenvolvimento da ordem; o vínculo entre ambos é o amor, que, em termos políticos, deve ser entendido em termos de fraternidade, respeito mútuo e tolerância. O respeito à ordem não equivale à submissão cega ou servil ao poder político; da mesma forma, a verdadeira relação entre o poder e os cidadãos não é a de um soldado que se submete ao seu comandante.

3. Recomendações positivas: procurar candidatos com este perfil

Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos que se vote em candidatos a prefeito ou a vereador que apresentem estas características:

-         respeitem e façam valer a separação entre igreja e Estado (a chamada “laicidade do Estado”)

-         respeitem a dignidade humana e a fraternidade universal

-         respeitem a dignidade do espaço público e das instituições republicanas

-         respeitem a dignidade e valorizem as condições de vida da população brasileira, em particular dos trabalhadores e dos mais pobres, além dos povos indígenas

-         respeitem a dignidade e valorizem a família, independentemente da orientação sexual de cada família

-         respeitem e valorizem a dignidade das mulheres

-         tenham histórico de combate ao racismo e a outras discriminações

-         tenham histórico de defesa da dignidade e das condições de vida dos animais

-         tenham histórico de defesa do meio ambiente

4. Recomendações negativas: recusar candidatos com este perfil

Considerando os valores e os princípios indicados acima, recomendamos que não se vote em candidatos a prefeito ou a vereador que tenham um histórico pessoal e intelectual contrário ao republicanismo. De modo específico, rejeitamos candidaturas que apresentem estas características:

-         sejam membros de cleros, ou seja, sacerdotes, padres, pastores ou equivalentes

-         promovam o clericalismo nas funções públicas (o uso do Estado para promover cultos e/ou doutrinas)

-         desvalorizem os problemas sociais e/ou criminalizem a pobreza

-         promovam a cultura da violência, em particular estimulando a difusão e o uso de armas de fogo pela população civil

-         promovam valores e práticas exclusivistas e excludentes, incluindo aí as chamadas pautas identitárias

-         neguem os problemas ambientais (os “negacionistas climáticos”)

-         promovam a “cultura do cancelamento”

-         promovam a “cultura da baixaria”

-         tenham histórico de ligação com o crime, na forma de apoio ou participação em milícias; de apoio ou participação no crime organizado; de irresponsabilidade pessoal

-         promovam o racismo, a misoginia e preconceitos diversos

Curitiba, 28 de agosto de 2024.

 

5.       Leitura comentada do Catecismo positivista

5.1.    Continuação da duodécima conferência, sobre a evolução histórica do desenvolvimento humano, isto é, da religião, abordando em particular o fetichismo e o politeísmo

6.       Sermão: sobre a tecnocracia

6.1.    O tema do sermão de hoje com freqüência ressurge nos debates políticos e sociais

6.1.1. Além de ressurgir com certa freqüência, o tema da tecnocracia muitas vezes é associado ao Positivismo, o que exige de nós uma resposta, seja a favor, seja contra

6.1.2. Como veremos, não somente o Positivismo tem algo a dizer a respeito da tecnocracia como o que diz é contrário a ela

6.1.2.1.             Aliás, mesmo um filósofo francês de orientação católica – Jean Lacroix – reconheceu com facilidade que o Positivismo é totalmente contrário à tecnocracia (cf. Jean Lacroix, A sociologia de Augusto Comte, Curitiba, Vila do Príncipe, 2003, p. 101, 115)

6.2.    Antes de mais nada, temos que saber o que é a “tecnocracia”

6.2.1. Trata-se de um problema mais geral sobre as relações que se estabelecem entre a ciência, a tecnologia (ou a “técnica) e a política

6.2.2. Segundo a Wikipédia – cuja página em português sobre a tecnocracia é no mínimo problemática –, a autoria formal da palavra é de William Henry Smith, engenheiro estadunidense, em 1919

6.2.3. Podemos perceber pelo menos dois sentidos básicos para a tecnocracia:

6.2.3.1.             governo dos técnicos (ou dos “sábios”)

6.2.3.2.             governo baseado em decisões técnicas, em que essas decisões impedem, ignoram ou rejeitam a discussão pública

6.2.3.2.1.                   O que se supõe nessas duas possibilidades é que, de um lado, há os técnicos sábios que atuam no governo e que elaboram as políticas públicas que terão como objeto, ou como alvo, a “população”; de outro lado, há uma população que recebe, ou sofre, as políticas públicas e que é ignorante e incapaz de avaliar, opinar e agir

6.2.3.2.2.                   Os técnicos, além disso, são vistos como distantes e acima das disputas políticas; seu conhecimento seria puramente objetivo e “neutro”

6.2.3.2.3.                   Haveria, assim, uma separação clara entre Estado e sociedade e a ação do Estado seria (quase) sempre unilateral, de cima para baixo

6.2.3.2.4.                   Em outras palavras, a imagem que surge da ou com a tecnocracia é a de um governo técnico ativo, todo-poderoso e todo sábio e de uma sociedade passiva e ignorante

6.2.4. Mesmo sendo contrários à tecnocracia, é importante notar que todo governo deve, necessariamente, basear suas decisões em avaliações técnicas: se não for assim, as decisões – e, de maneira mais ampla, as políticas públicas – serão mero palpitismo, meras tentativas e erros (e muitos erros!)

6.2.4.1.             O que a república – ou melhor, a sociocracia – exige é que, por um lado, as avaliações técnicas sejam feitas e levadas a sério e, por outro lado, ao mesmo tempo (e, às vezes, até antes), que a população seja ouvida em suas demandas, que a população possa avaliar, opinar, modificar e até participar da formulação e da aplicação das políticas públicas

6.2.4.2.             A “população” que recebe as políticas públicas não é u’a massa informe, passiva e irracional; não por acaso, Augusto Comte falava em “sociedade civil”, ou seja, em uma sociedade organizada, ativa, necessariamente capaz de avaliar por si só as diversas questões – contando, para isso, é claro, com seus próprios “técnicos”

6.2.4.3.             Todo esse processo de avaliação e de participação na elaboração e na implementação das políticas públicas – que são intrínsecos à sociocracia! – integra o que se chama atualmente de “participacionismo”, “deliberacionismo” etc., constituindo o que se é conhecido por “democracia participativa”

6.2.5. É necessário notar que a crítica à tecnocracia com freqüência inclui um elogio da atividade política

6.2.5.1.             Entretanto, esse elogio pode abarcar muitos sentidos diferentes da política:

6.2.5.1.1.                   A política como espaço da participação cívica social

6.2.5.1.2.                   A política como espaço da disputa de poder

6.2.5.1.3.                   A política como espaço da retórica e da disputa intriguista e fofoqueira, de caráter parlamentar

6.2.5.2.             Cada um dos diferentes sentidos acima implica uma postura diferente em relação à tecnocracia, ou melhor, críticas diferentes à tecnocracia

6.2.5.2.1.                   Sem concordarmos com a tecnocracia, evidentemente o Positivismo avalia de maneira diferente cada um dos sentidos dados à política: valorizamos muito a participação cívica social, aceitamos mais ou menos como um fato a disputa do poder, mas rejeitamos o intriguismo parlamentar

6.3.    Como é que o Positivismo encara a tecnocracia, o suposto governo dos técnicos e quais os fundamentos da avaliação positivista disso?

6.3.1. O conceito básico aqui é a instituição fundamental da política positiva, a separação entre os dois poderes, em que de um lado há o poder Temporal, que trata da ordem material das sociedades, e de outro há o poder Espiritual, que trata da ordem intelectual e moral das sociedades

6.3.1.1.             O poder Temporal é prático, o poder Espiritual é teórico: cada um deles requer habilidades e qualidades específicas para satisfazer necessidades e atividades diferentes, resultando até mesmo em problemas diferentes

6.3.1.1.1.                   A confusão entre os dois poderes degrada cada um deles e impede o adequado desenvolvimento das respectivas atividades

6.3.1.1.2.                   Além disso, de maneira específica, a confusão dos dois poderes impede que o poder Espiritual fiscalize e avalie o poder Temporal, ao mesmo tempo em que torna praticamente impassíveis de avaliação e discussão as ordens do poder Temporal

6.3.1.2.             Exigência fundamental da separação entre os dois poderes é a existência de uma sociedade civil organizada, que se representa por si só e que orienta a ação do Estado

6.3.1.2.1.                   Em outras palavras, existe antes uma sociedade e depois, e a partir da sociedade, existe um Estado

6.3.1.2.2.                   É essa sociedade civil que informa o Estado, que estabelece os valores e as principais idéias, que propõe os problemas a serem enfrentados, que acompanha e avalia as políticas públicas

6.3.1.3.             O poder Espiritual é o responsável pela mobilização e pela expressão das idéias da sociedade civil

6.3.1.4.             Dessa forma, a separação dos dois poderes estabelece, pelo Positivismo, ao mesmo tempo um quadro institucional e uma realidade social em que a sociedade não é nunca passiva, embora sem dúvida seja diferentemente ativa em relação ao Estado

6.3.2. Como indicamos antes, o Estado tem que ter um corpo técnico altamente qualificado, a fim de avaliar os problemas sociais, elaborar, implementar e avaliar (a posteriori) as políticas públicas projetadas para tratar dos problemas sociais

6.3.2.1.             A presença de técnicos no Estado é uma exigência ao mesmo tempo política e moral

6.3.2.1.1.                   As sociedades modernas desenvolveram as ciências e, a partir delas, as várias tecnologias: não há porque o Estado não se utilizar desses conhecimentos e das técnicas resultantes; seria, como de fato é, totalmente imoral o Estado desprezar esse conhecimento técnico

6.3.3. Assim como a sociedade civil é ativa e possui seus próprios técnicos, é claro que, inversamente, os técnicos a serviço do Estado não são alheios aos valores e às idéias difundidas na sociedade civil (e, claro, nem são alheios às disputas havidas no seio da sociedade)

6.3.3.1.             Assim, a correta imagem que se deve ter, no que se refere à tecnocracia, ou melhor, contra ela, é a de um Estado e de uma sociedade que se relacionam de diversas formas e que mantêm uma porosidade mútua (ainda que, evidentemente, a instituição chamada Estado tome as decisões coletivas e implemente-as com caráter impositivo)

6.3.4. É importante lembrar que Augusto Comte criticava asperamente as pretensões políticas dos “sábios” e dos cientistas

6.3.4.1.             Não por acaso, um dos muitos motivos por que Augusto Comte criticava Platão era devido à pretensão desse grego de instituir os “filósofos-reis”, ou seja, em que os filósofos deveriam necessária e exclusivamente ser os reis

6.3.4.2.             Da mesmíssima forma, um dos vários motivos por que Augusto Comte criticava Saint-Simon – e que também resultaram no rompimento de relações entre eles – foi a pretensão platônica modernizada, não mais com os “filósofos-reis” mas com os “cientistas-reis”

6.3.4.3.             Essas diversas críticas de Augusto Comte – como se vê, todas elas baseadas em última análise no princípio da separação entre os dois poderes – foram por vezes sumariadas por nosso mestre na expressão “pedantocracia”, ou seja, o “governo dos pedantes”

6.3.4.3.1.                   A expressão “pedantocracia” foi criada por Stuart Mill

6.4.    Vale a pena perguntarmos: como é que se chegou a atribuir ao Positivismo um caráter tecnocrático?

6.4.1. Isso se deu basicamente por três caminhos diferentes, mas que com freqüência são complementares

6.4.1.1.             Por um lado, uma série de escorregões filosóficos a partir de interpretações superficiais e muito apressadas da obra de Augusto Comte

6.4.1.1.1.                   O raciocínio aí é dedutivo, ou seja, baseia-se em conceitos gerais e genéricos para, apenas com base neles (e, portanto, sem a leitura direta de Augusto Comte nem um conhecimento minimamente adequado de nosso mestre), deduzir o seguinte: Comte teria afirmado a importância social e política dos cientistas (afinal, ele teria sido cientificista); ele teria afirmado também que a ciência é “neutra” e que é indiscutível (um objetivismo acrítico); para Comte, a nova sociedade (científica) deveria ser governada pelos cientistas: logo, Comte teria proposto a tecnocracia!

6.4.1.2.             Por outro lado, o desejo de críticos do marxismo e do sovietismo de encontrar fundamentos filosóficos mais amplos às suas críticas

6.4.1.2.1.                   É fato que parte da justificativa do sovietismo residia em concepções tecnocráticas

6.4.1.2.2.                   Quem faz essa crítica são pensadores de viés liberal que com freqüência consideram que a ciência deve ser apenas descritiva e nunca prescritiva – ou seja, que a ciência não deveria nunca fazer previsões!

6.4.1.2.3.                   Esses pensadores, em vez de mirarem na falta de liberdade constitutiva do marxismo e do sovietismo, procuram criticar todas as concepções que valorizam a ciência e as suas previsões

6.4.1.3.             De maneira menos evidente, ou seja, menos honesta, há também o desejo de criticar-se a afirmação social e intelectual da ciência nas sociedades modernas

6.4.1.3.1.                   O sentido da crítica, aí, é o de “demonstrar” os efeitos negativos da ciência por meio da tecnocracia

6.4.1.3.2.                   Nesse caso, estão pensadores francamente teológicos (católicos, por exemplo) mas também aqueles metafísicos que são teológicos envergonhados (místicos, idealistas etc.)

6.4.2. No Brasil, essas três origens convergiram contra o Positivismo pela direita liberal, durante e após o regime militar

6.4.2.1.             Escandalosamente, os herdeiros morais e políticos de Roberto de Oliveira Campos – os mesmos herdeiros e colegas que apoiaram o regime de 1964 durante o regime e que o apoiam hoje com saudade – têm a ousadia de chamar-nos de “tecnocráticos”!

6.5.    Em suma:

6.5.1. A tecnocracia consiste na presunção da neutralidade política da ciência, da onisciência dos sábios e da passividade ignorante da sociedade civil

6.5.2. O Positivismo rejeita a tecnocracia, a partir da separação entre os dois poderes:

6.5.2.1.             A ciência não é “neutra”, a sociedade civil não é passiva nem ignorante e o Estado não é e não pode ser visto como onisciente

6.5.3. O Estado precisa, necessariamente, de um amplo corpo técnico altamente qualificado; mas isso é muito diferente dos pressupostos que permitem a tecnocracia, ou seja, do Estado onisciente e ativo que pura e simplesmente impõe decisões a uma sociedade amorfa, passiva e irracional

7.       Encerramento



[1] Abaixo-assinado A bandeira nacional republicana não é fascista, de 26 de outubro de 2022, disponível em: https://peticaopublica.com.br/pview.aspx?pi=BR127657

Hernani Gomes da Costa: 20 mitos sobre o Positivismo

No dia 18 de Gutenberg de 170 (29.8.2024) realizamos mais uma Live AOP, novamente contando com a bela participação de Hernani Gomes da Costa, que apresentou a palestra "Vinte mitos sobre o Positivismo".

A Live AOP foi transmitida no canal Positivismo, disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=g17TNaHxneI&t=5397s.

A versão escrita da exposição oral - devidamente revisada e complementada - está reproduzida abaixo.

*   *   *


Vinte mitos sobre o Positivismo 

Hernani Gomes da Costa

 

Caras irmãs e irmãos na Humanidade:

O ensaio que apresentaremos aqui corresponde a uma proposta bem direta de minha esposa Sandra.

Consultando-me sobre se havia dentre as publicações do Positivismo, algo semelhante a um texto resumido, no qual constasse uma lista dos principais equívocos já registrados sobre a doutrina, seguidos de breves pinceladas de respostas, e acompanhadas estas por trechos decisivos de Augusto Comte que comprovassem cada comentário; tive de responder- The que eu ignorava qualquer coisa do gênero.

A propaganda positivista – tanto quanto sei e bem mais por uma questão pessoal de seus propositores, que por qualquer peculiaridade limitante da doutrina – não só evitou sempre a polêmica, como buscou espontaneamente o que de fato parecia ser o caminho mais curto entre si e seu público: apresentar o Positivismo pelo que o Positivismo é, e não pelo que ele não é.

Mas os nossos conturbados tempos talvez hajam mudado também mais esse estilo, exigindo agora como Sandra tão bem me fez ver a necessidade de algum trabalho que precisasse ir buscar inspiração no chamado método apofático de exposição. Tal é, em teologia, o método segundo o qual a natureza de Deus jamais é apresentada – nem mesmo indicada – mas apenas sugerida de modo oblíquo, e mesmo assim, pelo que tal ser não é.

“Julgais conhecê-Lo? Pois então não é Ele!” dizia Santo Agostinho, talvez um precursor desse gênero de produção teológica.

Ora, com uma igual incitação podemos nós também provocar nossos diversos estudiosos acadêmicos e curiosos internautas do Positivismo: “Julgais conhecer a doutrina apenas por seus comentadores externos e por seus críticos e adversários? Pois então... não é ela...”

Nossos esforços não foram, contudo, realizados plenamente.

Ficamos devendo a vocês que nos assistem, nada menos do que toda a parte bibliográfica dos trechos comtianos, precisando tal indispensável complemento acrescentar-se noutra ocasião.

Se alguma coisa porém, devemos encontrar em tal lacuna que pudéssemos chamar de compensação; diríamos que a ausência dos trechos do fundador permitiu-nos incluir um número bem maior daqueles equívocos, alguns dos quais só muito recentemente achados no Youtube; e na verdade novos até para nós, veteranos dessa longa batalha de idéias e de ideais.

Há ainda uma outra razão para considerar que nossos esforços não tenham sido concluídos. Sem descambarmos na idéia esdrúxula de que entramos na “era da pós verdade”, existe muito, muito mais ainda a encontrar em matéria de desinformação sobre o Positivismo, como sobre qualquer outra coisa. As facilidades tecnológicas de difusão de conteúdo intelectual trouxeram consigo uma avalanche delas; de modo que saber como pesquisar assunto, com critérios nítidos para realizar uma vasta triagem, tornou-se tão ou mais importante quanto saber assimilar aquilo que de fato se tenha encontrado.

É assim, que sem de modo algum pretender esgotar o assunto, e sem alcançar nenhuma precisão quanto a havermos formado aqui uma genuína classificação para os nossos diversos mitos; julgamos ao menos ter podido reuni-los de modo mais ou menos vago nos seguintes 20 grupos gerais:

1)      Mitos de natureza conspiratória

2)      Mitos sobre a Religião da Humanidade considerada como um todo

3)      Mitos sobre as origens históricas do Positivismo

4)      Mitos sobre os conceitos fundamentais de “positivo”, “Positivismo” e “positividade”

5)      Mitos sobre as práticas cultuais da Religião da Humanidade

6)      Mitos sobre a relação do Positivismo com a ciência em geral

7)      Mitos sobre a construção sociológica de Augusto Comte

8)      Mitos sobre a pluralidade do movimento positivista

9)      Mitos sobre a obsolescência do Positivismo

10)  Mitos sobre a relação entre o Positivismo e as belas artes

11)  Mitos sobre as propostas políticas do Positivismo

12)  Mitos sobre a vida pessoal de Augusto Comte

13)  Mitos sobre a vida pessoal de Clotilde de Vaux

14)  Mitos sobre a vida pessoal de Carolina Massin

15)  Mitos sobre a relação do Positivismo com as artes médicas

16)  Mitos sobre o Positivismo e a antropologia

17)  Mitos sobre como o Positivismo trata a questão da existência de Deus

18)  Mitos sobre o Positivismo e a política internacional

19)  Mitos sobre a atuação dos positivistas no Brasil

20)  Mitos sobre a sucessão de Augusto Comte

Antes porém, de começarmos; uma última palavra: optamos por denominar “mito” a lista dos equívocos aqui apresentados, não só a fim de evitar o sempre desnecessário servilismo cultural a expressões inglesas tais como fakenews; como para resgatar a acepção de mentira que precisa continuar comportando a palavra mito; sentido esse, diga-se, que foi quase perdido desde seu recente emprego como apelido para certo personagem passageiro, que soube tão bem encarnar esse termo, sob tal significação negativa.

1) Mitos de natureza conspiratória sobre o Positivismo

A exemplo de certas correntes do budismo que se fingem teológicas nos primeiros círculos da iniciação de seus discípulos, para só depois revelarem-se ao adepto adiantado como doutrinas agnósticas; teria feito o Positivismo algo semelhante, fingindo-se uma religião, para que só bem depois o iniciado compreendesse não passar tudo aquilo apenas de um hábil disfarce para encobrir um projeto de pura “dominação política”? Não seria mais correto e até mesmo mais honesto caracterizar o Positivismo como apenas mais uma dentre as diversas correntes de filosofia, haja vista como rejeita as concepções sobrenaturais e pretende reorganizar a sociedade terrena, ao invés de nos preparar para uma outra existência extra mundana? Não é, de alguma forma, enganosa essa forma de “atrair o público”?

Não. É natural – e talvez mesmo inevitável – aos visitantes que pela primeira vez cheguem a um Templo da Humanidade sem nenhum conhecimento prévio da doutrina – que tomem aquele cenário como o de uma igreja teológica ou mesmo de um centro esotérico. Afinal que outros exemplos se tem senão o de ambientes desse tipo? É inclusive também natural supor que talvez essas mesmas pessoas – a maioria até – se desinteressassem e desistissem dessa primeira visita, se fossem antes disso informadas acerca do caráter antiteológico de nossas idéias. Mas daí a supor que a aparência de nossos templos tenha sido maquiavelicamente concebida como uma espécie de arapuca, vai uma distância enorme.

Aliás, se é verdade que a aparência de nossos templos pode oferecer algum engano dessa natureza, não é menos certo, inversamente, que muitos espaços em aparência laicos estejam fortemente impregnados de teologismo. Da mesma forma, não é menos certo que não haja uma só ocasião em nossas prédicas, aonde não tenhamos a oportunidade de expor com franqueza as nossas convicções, e assim desfazer qualquer possibilidade de erro não só a esse como a muitos outros respeitos.

Não se pode, pois, em boa-fé, falar de logro aonde desde o início e desde sempre tudo tenha sido tão transparente. Essa pérola de delírio conspiratório é assim, inteiramente falsa. Parece mesmo a certas pessoas que quanto mais às claras procuramos viver, maiores se tornam os motivos pelos quais elas suspeitam de lhes estarmos ocultando algo escabroso.

O Positivismo, apesar de sua plena emancipação do sobrenatural veio a tornar-se, sim, uma genuína e completa doutrina religiosa e apenas como tal pode ser agora devidamente sentida, compreendida e aplicada tanto individual quanto coletivamente.

Tendo por Ser Supremo a própria Humanidade, sustentada pela Terra e envolvida pelo Espaço, o Positivismo possui como qualquer outra religião, seus templos, seu culto, sua liturgia, seus sacramentos, e seu corpo sacerdotal próprio; assim como compreende uma filosofia peculiar e regras e sugestões práticas específicas.

As semelhanças do Positivismo com o Catolicismo representaram, por parte de Augusto Comte, uma tentativa de cópia ou de plágio deste? O culto positivista é inteiramente baseado no culto católico?

Não. Embora o Positivismo considere-se expressamente o herdeiro do legado espiritual de todas as religiões e muito em particular do Catolicismo – suas semelhanças com ele não tiveram como propósito copiá-lo ou plagiá-lo, mas aproveitá-lo no quanto isto fosse possível, obedecendo nisso à própria consciência histórica de assim cumprir esse papel de sucessão. O culto positivista, aliás, não é de todo baseado no catolicismo.

Ele ainda está em construção devendo incorporar ainda muitos outros elementos hauridos do cerimonial de várias religiões, funcionando, por assim dizer, como uma espécie de esperanto religioso. Por outro lado, certos elementos do culto católico precisaram ser rejeitados como impróprios a incorporarem-se à liturgia positiva, em virtude de seu caráter egoístico ou estritamente sobrenatural. Tais são por exemplo as orações interesseiras, o sacramento da confissão, a extrema-unção etc. etc.

2) Mitos sobre a Religião da Humanidade considerada como um todo

Ao apresentar-se como uma religião que rejeita as crenças sobrenaturais, o Positivismo teria elaborado um conceito particular de religião a ser utilizado exclusivamente para si? Teria dado à palavra religião algum significado próprio adaptando-o a essa sua tão peculiar rejeição ao sobrenatural?

Não. Diríamos mesmo que se tal houvesse sido o caso, essa necessidade demonstraria a própria inaptidão e consequente falência da doutrina para constituir-se como uma autêntica religião. Ela revelar-se-ia incapaz de reivindicar em igualdade de condições o mesmo destino afetivo, intelectual e prático das demais doutrinas.

De modo algum Augusto Comte “reinventou” para si o termo religião, utilizando-o de modo particular e, dessa forma, equívoco. Tudo quanto ele precisou e limitou-se a fazer aí – como, aliás, em diversos outros casos semelhantes da elaboração de suas definições básicas – foi observar que, por sua origem, a palavra religião não havia se referido nunca – nem mesmo indiretamente – a qualquer crença sobrenatural. Tratou-se pois, apenas dele vislumbrar no âmago de tal conceito, uma espécie de espaço vazio reservado a uma doutrina que ainda não existia; espaço este que nenhuma das demais religiões poderia nem suspeitar que houvesse e nem reivindicar jamais a si mesmas como a elas apropriado. Tudo que o Positivismo fez, portanto, foi alojar-se dignamente aí, nesse espaço vago não só desconhecido como não disputável – existente no conceito de religião.

O culto positivista é uma espécie de personalismo ególatra, ou de idolatria aos gênios e aos heróis?

Não. É verdade que Augusto Comte concebeu um calendário preparatório onde são homenageados vultos históricos que desempenharam papéis da mais extrema importância tanto para o desenvolvimento dos nossos sentimentos, quanto de nossas idéias e de nossas ações.

Mas estas celebridades são lembradas aí apenas na qualidade de personificações da Humanidade, e mesmo assim, referidas a um determinado aspecto preciso de sua ação. Além disso, o calendário de modo algum exclui o culto a quem quer que nos tenha sido benéfico, e nem impede de serem convenientemente lembradas todas aquelas individualidades cujos nomes tenham sido esquecidos pela história.

O culto central, aliás é sempre o culto à Humanidade, cuja imensa maioria de seus elementos constituintes continuará sempre anônima, sem que isto de modo algum a desmereça.

3) Mitos sobre a história do Positivismo

A idéia da Religião da Humanidade já estava de algum modo embutida desde o início nas especulações de Augusto Comte? Teria ele herdado a idéia da Religião da Humanidade, diretamente de Saint-Simon, de quem, por um curto período chegou a declarar-se discípulo?

Não. Um dos motivos de Augusto Comte haver logo se afastado de Saint-Simon foi justamente o caráter cada vez mais teológico que suas idéias vinham tomando. Ora, mesmo quando Augusto Comte havia concluído os seis volumes da Filosofia Positiva, ele ainda identificava tal como Saint-Simon religião com teologismo.

A reforma social tal como concebida por Augusto Comte não poderia ser, portanto, nessa primeira fase de seu pensamento, jamais promovida por qualquer coisa imaginada como uma nova religião, o que então equivaleria a dizer que a solução da questão social se limitaria ao trabalho de criar uma nova forma de teologismo. Tal foi aliás, a solução charlatanesca que Saint-Simon acabou por adotar, com o seu “Novo Cristianismo” e que Augusto Comte, tão justamente rejeitou.

O poder espiritual ao qual Augusto Comte se referia em seu Curso de Filosofia Positiva poder esse encarregado de substituir o catolicismo exausto no ocidente – apenas caberia a uma nova filosofia, incumbida de desempenhar tal papel e de preencher como pudesse as lacunas das filosofias de cunho sobrenatural e metafísico.

Convém lembrar que muito embora já a essa época Augusto Comte entrevisse a importância crucial que representa para isso o conjunto dos nossos sentimentos, tal compreensão haveria enfim de ser percebida por ele próprio como ainda bastante precária. E a fundação da Religião da Humanidade que correspondeu à segunda etapa de seu pensamento – corresponderia também ao que foi a solução final para o problema da constatação daquela insuficiência original.

A Religião da Humanidade teria sido o resultado passional do deslumbramento de Augusto Comte por Clotilde de Vaux?

Não. A Religião da Humanidade foi uma consequência lógica uma genuína decorrência da filosofia positiva no que esta possui de mais característico. Tratou-se em última análise apenas de aplicar a lei dos três estados à própria idéia de religião, de modo a fazê-la alcançar a positividade.

No entanto, para que a filosofia positiva viesse obter, como uma de suas consequências naturais, a extensão e a profundidade requeridas a uma nova doutrina religiosa, não teria bastado a Augusto Comte apenas meras meditações novas. Foi necessária uma transformação no conjunto de seu próprio psiquismo, foi preciso operar sobre si uma mudança íntima ainda mais radical de perspectiva do que a que poderia ser fornecida por quaisquer simples correções teóricas fundadas em novas evidências objetivas.

Exigia-se na prática, que uma inteiramente nova situação moral fosse-lhe proporcionada para que sua obra pudesse avançar em qualquer passo decisivo original. Enfim, era a genialidade, chegada à culminância de sua expressão, que precisava agora completar-se pelo desabrochamento de um amor puro e terno; na verdade, um amor tal como Augusto Comte sempre ansiou e pressentiu como indispensável à consecução de seus trabalhos, mas que pelos descaminhos de sua vida e apesar de sua espontânea afetuosidade-ele nunca pudera experimentar; e por cuja falta o conjunto inteiro de sua obra ainda se ressentia.

Mas tal foi de fato o que acabou trazendo-lhe a boa sorte, mediante o encontro com sua inspiradora e cofundadora da Religião da Humanidade – Clotilde de Vaux.

O papel desempenhado por Clotilde de Vaux na fundação da Religião da Humanidade teria sido apenas o papel afetivo de “musa inspiradora”?

Não. Augusto Comte caracterizou a Religião da Humanidade como tendo sido fundada igualmente por ele e por Clotilde. Mas embora já não fosse pouco afirmar o que seria aí uma participação puramente afetiva; concepções-chave como as da conciliação do dever com a felicidade, e as da incorporação do fetichismo ao Positivismo apenas para citar dois exemplos bem característicos foram diretamente sugeridas e mesmo hauridas por Comte nos escritos de Clotilde de Vaux.

Buscando ela no mundo da ficção literária, através de suas poesias e novelas, apresentar a urgência moral de uma enorme reforma social; e estando ela – tanto quanto o próprio filósofo – emancipada de crenças sobrenaturais, Clotilde de Vaux, após um único ano de convívio objetivo com Augusto Comte traria, de modo sutil, para a então filosofia positiva, uma tal transformação afetiva, intelectual e prática; que aquilo que Augusto Comte havia a princípio considerado como a totalidade de sua obra, revelou-se-lhe apenas uma de suas três futuras partes.

Somente Clotilde foi capaz de sugerir que a filosofia positiva era sim, uma condição necessária, mas de modo algum suficiente para dar por concluído o trabalho da regeneração social sonhado por ambos.

De fato, ainda faltava ao Positivismo assinalar diretamente tanto o princípio quanto o alvo final dessa regeneração ou, por outra, faltava à filosofia positiva inserir-se apenas como um simples elemento de uma construção ainda mais vasta – uma religião – na qual passasse tal filosofia a representar apenas seu aspecto diretamente intelectual, sua base teórica, ou – o que vale dizer o novo dogma para uma nova doutrina.

4) Mitos sobre os conceitos de “positivo”, “Positivismo” e “positividade”

O Positivismo tem alguma relação ou equivale ao assim chamado “pensamento positivo”?

Não. O Positivismo não considera haver nenhuma evidência de que seja possível modificar diretamente o rumo dos acontecimentos exteriores, por meio apenas de algo como o que seria a suposta “força do nosso pensamento” sem que para isso intervenha algum meio material ou sem que essa interferência no exterior possa ser sempre compreendida como o resultado de uma mudança operada em nossa subjetividade, a qual indiretamente alcança o mundo externo mediante as novas disposições morais do próprio sujeito pensante, frente aos problemas que ele precisa enfrentar. Em outras palavras, a pura e simples expectativa que possamos alimentar de que um fato ocorra por mais nítida e viva que possa ser-não guarda por si só nenhuma relação no sentido de interferir – quer no aumento, quer na diminuição – das possibilidades de que ocorra, exceção feita apenas, como dissemos, aos casos em que essa mudança exterior dependa exclusivamente de novas disposições morais nossas, colhidas daquelas expectativas assim exaltadas. Embora o conhecimento que o homem tenha do mundo exterior seja modelado pelas condições que sua mente lhe oferece e impõe; nossos sentimentos, nossos pensamentos e mesmo os maiores e mais concentrados ímpetos de nossa vontade quando não seguidos por correspondentes ações práticas são considerados até aqui, pelo Positivismo – e segundo todas as evidências já acumuladas como incapazes de alterar materialmente o mundo exterior.

O Positivismo é uma forma de “otimismo” no sentido de corresponder à crença de que todos os males que acontecem no mundo ou conosco guardam algum “propósito bom” ou contribuem sempre, no final, para “o bem”?

Não. O termo Positivismo foi utilizado por Augusto Comte segundo uma significação mais antiga, e hoje pouco utilizada. Nesta significação, o termo referiu-se inicialmente e sobretudo ao que é ou ao que está posto, colocado, apresentado, postulado, evidente, positivo, sendo-lhe depois adjuntos alguns outros significados.

O Positivismo não compartilha nem do otimismo providencial dogmatizado pela teologia e nem do otimismo vago sustentado pela metafísica espiritualista ou do fatalismo sustentado pela metafísica materialista.

Ao rejeitar o sobrenatural o Positivismo não estaria roubando à Humanidade uma preciosa fonte de suas mais altas esperanças e aspirações? O Positivismo opõe-se ao “encantamento do mundo”?

Não. O otimismo teológico já adota por princípio tácito que cada acontecimento encerra em si um desígnio secreto. Tal propósito universal é concebido como incomunicável e incompreensível por nós; e evidente apenas à própria divindade que assim o teria ordenado.

Ora, ao se estabelecer tal pressuposto, tudo quanto se dá o que quer que nos aconteça e por pior que seja – não poderá nunca deixar de ser logicamente tomado como “bom”; e isso, já não mais por conta de qualquer reconhecimento efetivo de havermos sido agraciados por nada, mas apenas tautologicamente, em virtude daquela própria definição apriorística adotada, a qual acabou no fundo fazendo a idéia de “bem” não mais depender da idéia de qualquer benefício real. Tal otimismo teológico torna-se assim uma concepção blindada frente aos mais vastos e variados contraexemplos de mal que pudéssemos aduzir-lhe em contrário; e é exatamente essa circunstância que torna sofístico tal otimismo, na qualidade de petição de princípio ou de círculo vicioso.

A submissão de todos os acontecimentos a leis naturais tal como suposta pela Religião da Humanidade, torna-a uma espécie de fatalismo? O Positivismo considera que o que é “natural” não pode nem deve ser mudado?

Não. O Positivismo também não compartilha do fatalismo vago dos materialistas e dos tabus de um naturalismo absoluto. Estes identificam a todo momento a necessidade processual-pela qual algo tenha chegado a existir com a necessidade constitutiva pela qual algo precisasse em vista disso, continuar existindo sempre como parte irremovível de um todo que deve ser integralmente suportado, respeitado e mesmo admirado exatamente tal como é, e sem que nada nunca possa mudá-lo.

Pelo contrário o Positivismo não só considera a existência de imperfeições no mundo, como toma as leis naturais na conta de algo que é sempre percebido como o de uma a constância ocorrida em meio à variedade. Assim, nossa ação deve poder incluir e harmonizar tanto a atividade transformadora propriamente dita, como a sábia resignação.

O Positivismo considera que habitemos em um mundo essencialmente “bom”?

Não. O Positivismo não compartilha a idéia de um “cosmos bom”, ou de “mãe natureza” toda protetora. Só na Humanidade constata-se inequivocamente e do modo mais completo a capacidade de compreender aquilo de que precisamos, e com isso nos prover.

A idéia de um mundo essencialmente bom, porém toma a si essas boas expectativas que apenas poderiam ser legitimamente depositáveis nessa ação lúcida da Humanidade, estendendo-as daí – de modo indistinto e irrestrito – a um universo que carece por sua maior simplicidade, de igual lucidez e ao qual seria injusto, ingênuo e frustrante dele exigi-la. Enxertando de modo artificioso tais expectativas aos menores acontecimentos cósmicos, essa metafísica espiritualista oferece uma espécie de otimismo que exagera nossa fé na vida, e mesmo tende a nos tornar hipócritas, uma vez que tentarmos mudar urgentemente o que nos aflige, ao mesmo tempo em que concebemos em geral apenas para os outros que essas mesmas aflições sejam partes de um grandioso plano.

Completando tal desserviço, tudo quanto tal metafísica pode nos oferecer a guisa de consolo são falsos remédios que não consistem senão em explicações arbitrárias, obscuras, tortuosas e tendenciosas; que bem pouco se assemelham ao tipo de benignidade que a Religião da Humanidade de fato consegue reconhecer e conceber no mundo material, apesar de sua inconsciência.

Se o Positivismo não possui nenhuma fé sobrenatural, não seria então impossível a ele, como religião, dar ao homem nada que equivalesse e se equiparasse a um verdadeiro consolo, tal como as diversas religiões teológicas supõem oferecer, com concepções tais como as de Deus, da alma imortal, do paraíso etc.?

Não. Embora rejeitando essas concepções, a Religião da Humanidade encontra à sua própria maneira, diversas formas de cultivar e de estimular de modo direto e permanente em nós, as melhores expectativas gerais sobre o conjunto da ordem universal; ordem essa que se revela assim favorável tanto ao desenvolvimento do mundo material, quanto do desenvolvimento conexo da própria Humanidade nele.

Embora não possamos jamais esperar da simples materialidade, reações caracteristicamente humanas isto é, devotadas conscientemente ao nosso favor, podemos, ainda assim e tal como indica o uso universal que proclama como bom a tudo quanto simplesmente nos faça bem – supor que o conjunto das leis naturais que nos cercam e ao qual precisamos nos submeter – forma, junto a nós uma fatalidade que nos é sempre benigna, e mesmo benéfica embora não exatamente bondosa e benévola.

Se por um lado devemos imaginar que a ordem universal ignore tanto a nossa existência moral quanto os nossos propósitos, ela ainda assim nunca nos trai malévola e maleficamente, esquivando-se de nossos esforços em compreendê-la, ou enganando-nos de modo ativo e deliberado para nos causar prejuízo.

Assim, tal inconsciência radical da ordem universal não precisa servir e nem nos autoriza a que não continuemos sempre mantendo em relação a um futuro que nos seja desconhecido, uma expectativa geral que não seja favorável. Pelo contrário, só assim estaremos livres dos viciosos antolhos com os quais nós, por um lado, não saberíamos nem aproveitar a casualidade das circunstâncias oportunas que a vida nos oferecesse, e nem por outro, manteríamos o necessário ânimo para reagir às adversidades acumuladas por nossas inevitáveis decepções, evitando que estas nos conduzissem à inação.

A construção da Religião da Humanidade e a autoproclamação de Augusto Comte como primeiro sumo pontífice da Humanidade representou um extravagante retrocesso ao misticismo, tal como pretendeu sustentar Emílio Littré e seus seguidores, que viam em tal elaboração um caso patológico de delírio megalomaníaco e excesso de imaginação contrário à ciência?

Não. Devemos insistir: na Religião da Humanidade não existe o sobrenatural, portanto não existe misticismo algum propriamente dito. Quanto à imputação de concepções delirantes, só podemos afirmar uma coisa quem dera que a nossa espécie estivesse inteiramente mergulhada no dilema de construir, com bases científicas, uma sociedade melhor sem privilégios e sem preconceitos, inspirada no amor universal e esclarecida pelo conhecimento das leis naturais que regulam o mundo e o homem!

5) Mitos sobre as práticas cultuais da Religião da Humanidade

A imagem central da mulher com uma criança nos braços e que domina os altares dos templos da Humanidade é a imagem de Clotilde de Vaux? A Religião da Humanidade é uma “clotildolatria”?

Não Embora nós tributemos à cofundadora do Positivismo religioso as mais altas honrarias, o fato é que a imagem da mulher de trinta anos com uma criança nos braços que consta na iconografia da nossa doutrina como seu símbolo central não representa Clotilde de Vaux. Tal imagem figura a própria Humanidade como um todo, e tal como idealizada pelo Positivismo.

Apenas acontece que, segundo os votos de Augusto Comte, os traços fisionômicos do rosto dessa mulher são pintados de modo a fazer lembrar as feições de Clotilde de Vaux, podendo, aliás, comportar inúmeras variações aceitáveis. Não podemos nos esquecer que foi só o feliz encontro entre ela e Augusto Comte, que fez brotar em ambos a certeza de que o amor é a matéria fundamental da religião. E como não existe amor mais reconhecidamente puro e verdadeiro como o que as mães em geral devotam aos seus filhos, a imagem da mulher com a criança nos braços torna-se de modo muito natural, o mais expressivo símbolo para figurar o conjunto da Religião da Humanidade.

O Positivismo considera as mulheres como inferiores aos homens?

Não. A sociologia positiva realiza uma tripla comparação entre as sexos, de acordo com os três grandes grupos de nossas funções cerebrais, a afetividade, o intelecto e a atividade; tomando sempre o cuidado de considerar os casos concretos que se afastem de tal tipologia.

Do ponto de vista afetivo as mulheres são consideradas em geral como superiores aos homens, tanto por seu menor egoísmo, quanto por seu maior altruísmo. Quanto à inteligência, embora os intelectos feminino e masculino sejam concebidos como complementares, as mulheres levam ai uma considerável vantagem sobre os homens, em virtude de seu maior poder de síntese.

Sendo a inteligência masculina mais inclinada a desnecessárias minuciosidades de análise, estas não raro obscurecem a percepção de uma questão como um todo; sobretudo em seus mais sutis aspectos morais, que tendem a passar despercebidos à grosseria masculina derivada esta de uma prevalência maior, nos homens, da instinto destruidor. Quanto à atividade, o Positivismo considera que as mulheres sejam mais frágeis que os homens apenas em tudo quanto a coragem, a prudência e a perseverança dependerem, para seu exercício, da força física, sobretudo muscular.

Existe alguma contradição entre a Filosofia Positiva e a Religião da Humanidade?

Não. As diferentes fases necessárias pelas quais a obra de Augusto Comte passou, e que conduziram-no à formulação final da Religião da Humanidade não se contradizem umas com as outras.

Correspondem, ao contrário e como ele próprio o comprovou às etapas de um simples desenvolvimento continuo, operado mediante um único esforço e com um mesmo objetivo, o qual consistiu sempre em proporcionar à Humanidade uma nova e mais elevada forma de sentir, de pensar e de agir. Mas isso por sua vez também não deve ser compreendido como se no Positivismo não existissem idéias que houvessem sido defendidas num primeiro momento e rejeitadas depois.

O Positivismo desvaloriza o pensamento religioso como “primitivo”, “ilógico” ou “pré-lógico”?

Não. Ele considera que o pensamento religioso tenha representado sempre a vanguarda dos esforços afetivos, intelectuais e práticos da Humanidade, de acordo com os limites que cada tempo e lugar impuseram à sua elaboração. Considera-se ainda que a melhor forma de compreender a história humana seja através da história comparada das religiões.

6) Mitos sobre a relação do Positivismo com a ciência

O Positivismo valoriza exclusivamente a ciência? É um “cientificismo”? É um “intelectualismo”? Pretende substituir a filosofia pela ciência? Decretou a “morte da filosofia”?

Não. A cultura científica, isto é, a apreciação e o conhecimento das leis da natureza – deve, em boa lógica, formar apenas um intermediário capaz de unir a cultura estética isto é a apreciação e o conhecimento das belas artes – à cultura prática – isto é, a apreciação e o conhecimento dos diversos meios técnicos que permitem nossa ação sistemática sobre a natureza. Nessa qualidade de intermediária a cultura científica está portanto inteiramente subordinada a esses dois extremos cuja ligação ela faz.

7) Mitos sobre a construção sociológica de Augusto Comte

A sociologia criada por Augusto Comte deveria ser hoje tomada como uma espécie de pseudociência? Augusto Comte teria sido apenas o mero criador da palavra sociologia, cabendo a outros autores, tais como Durkheim, Spencer, Weber e Marx a efetiva elaboração dessa ciência?

Não. A Política Positiva, sua segunda obra de vulto leva o seguinte sub-titulo: Tratado de Sociologia instituindo a Religião da Humanidade. Tendo ele feito em sua primeira obra – o Curso de Filosofia Positiva – um balanço geral de todas as ciências de seu tempo, ele ai chegou de fato a apresentar as bases fundamentais de uma nova ciência que primeiramente denominou “Fisica Social”, ou Filosofia da História. Foi essa mesma ciência que com desenvolvimentos capitais, seria reapresentada com o hoje consagrado neologismo por ele criado, de Sociologia, em sua Política Positiva.

Augusto Comte, portanto, acrescentou efetivamente ao conjunto das ciências então existentes mais uma; pela fundação de um autêntico tratado de Sociologia. Foi nessa obra onde pela primeira vez chegaram a ser apresentados tanto o objeto e o método próprios a essa ciência, como suas concepções e conceitos indispensáveis, suas partes constitutivas, e suas relações necessárias com as demais ciências que formam a escala enciclopédica.

A Sociologia é a última, a mais importante, e a mais complexa ciência, segundo Augusto Comte?

Não. Até mais ou menos a metade do segundo volume de sua Política Positiva, Augusto Comte continuou supondo que a sociologia representasse a última e a mais importante ciência, aquela que apenas faltava ainda construir para que os mais eminentes fatos da história humana pudessem enfim ser de todo compreendidos e utilizados em nome do bem comum, da mesma forma como já o podiam ser os mais singelos fenômenos da ordem material e vital.

Porém a partir daí, ele notaria pouco a pouco a necessidade de mais uma nova ciência a qual denominou “Moral” – aquilo que hoje chamamos de “Psicologia” – destinada a fornecer-nos o conhecimento do homem enquanto realidade individual, assim como a sociologia fornecera o conhecimento do homem enquanto realidade coletiva.

Tamanha é a importância que esta ciência passou a adquirir, que Augusto Comte a considerou dentre todas as demais, a mais eminente e aquela que dá sentido último a todas as outras. Cada ciência passou assim a figurar apenas como um degrau que permite chegar até ela, numa escala ascendente. Em sua última obra, a Síntese Subjetiva, ele chega mesmo a considerar como abortada toda iniciação científica que não finaliza na Moral.

8) Mitos sobre a pluralidade do movimento positivista

As doutrinas que também se denominam “Positivismo” consideram Augusto Comte como seu principal e melhor representante? Podemos concluir que tudo quanto o mundo acadêmico põe na conta de “Positivismo” seja atribuível a Augusto Comte? Quando a academia fala de “Positivismo” isso deve ser sempre entendido como uma referência a Augusto Comte?

Não. Como em todas as doutrinas religiosas, filosóficas e políticas que tenham obtido larga projeção e penetração social, a interpretação feita do Positivismo não pôde ser uniforme, e nem seus princípios foram todos integralmente aceitos, compreendidos e aplicados por aqueles que pretenderam-se positivistas.

As dissidências, dissensões e rompimentos que constituem sempre uma conseqüência esperável e mesmo previsível de tal repercussão social- ocorreram também no Positivismo, mesmo ainda em vida de Augusto Comte.

Comentadores acadêmicos e dicionários de filosofia oferecem informações confiáveis ou suficientes sobre o Positivismo?

Não. A fim de evitar falsas aproximações, é indispensável que todos quanto desejem conhecer o pensamento de Augusto Comte, tomem certas precauções, extensiveis, alias, ao estudo de qualquer outra doutrina. Embora simples, tais cautelas infelizmente tendem a ser um tanto negligenciadas na formação teórica de nossas atuais academias.

A primeira mais obvia e importante de todas consiste em considerar sempre antes de tudo aquilo que o próprio fundador apresentou como correspondendo às suas idéias ao invés de darmo-nos por satisfeitos apenas com o que tenhamos ouvido falar a respeito destas, por meio de comentários. Só assim será possível constatar as muitas, variadas, generalizadas e enraizadas distorções de que padece a exposição apócrifa do Positivismo.

Ao nos depararmos então com quaisquer discrepâncias no cotejo do que o próprio filósofo escreveu e a interpretação dos comentadores; não pode haver dúvida que é àquele que devemos eleger como verdadeiro representante da doutrina, como aliás é também o caso, em se tratando de qualquer filosofia ou religião.

É possível considerar que se tenha travado conhecimento do Positivismo tal como formulado por Augusto Comte através do exame de sua suposta derivação chamada “Positivismo lógico” ou “Circulo de Viena”?

Não. Os propósitos filosóficos do Circulo de Viena não corresponderam aos do Positivismo tal como formulado por Augusto Comte. Embora os filósofos do Círculo de Viena pretendessem constituir o corpo de uma “ciência unificada”, e livre de interpretações metafísicas, jamais esteve suficientemente claro qual seria o principio ou o conceito fundamental pelo qual far-se-ia possível realizar tal unificação. Ora, no Positivismo, esse principio é determinado do modo mais explicito: é a própria idéia e ideal da Humanidade.

O chamado “Positivismo jurídico” corresponde a uma aplicação ao direito, das idéias de Augusto Comte?

Não. O Positivismo jurídico toma como conceito de “lei” apenas aquilo que “houver de constar objetivamente nos códigos da lei”. Para o Positivismo no entanto, as leis humanas, artificialmente instituídas devem poder refletir diretamente – e traduzir o mais de perto possível – as leis naturais, prolongando-as por assim dizer.

Desse modo, nem tudo quanto possa ser codificável como lei merece, segundo o Positivismo, tal qualificativo; podendo mesmo uma lei artificial opor-se diretamente ao que prescreveria uma lei natural, se fosse formulada de modo imperativo.

9) Mitos sobre a obsolescência do Positivismo

Não parece óbvio que uma doutrina formulada há quase dois séculos encontre-se hoje de todo inadaptada às mínimas necessidades do homem contemporâneo, requerendo tamanhos esforços para sua atualização, que melhor seria abandoná-la logo de vez?

Não. Se por “atualização” devemos compreender o que há de indispensável incorporar ao desenvolvimento continuo da doutrina; e se por “modernidade” devemos compreender as mais recentes conquistas estéticas, científicas e tecnológicas que a Humanidade sem cessar obteve até aqui; nós desafiamos a que nos seja apresentado um único positivista sério que já não houvesse defendido tal necessidade inalienável. Como elemento prático de sua fórmula fundamental consta, ao lado do Amor por principio de da Ordem por base, a Progresso por fim.

Mas, por outro lado, se o que se toma por essa pretendida “atualização” consiste na afirmação de que, por algum meio estranho o pensamento metafísico ou teológico teria conseguido encontrar nesse interregno, alguma extraordinária e insuspeita novidade a oferecer, novidade que de fato fizesse merecer a rejeição mesmo das simples linhas gerais do Positivismo como caducas; então, nós só podemos exigir igualmente que nos sejam oferecidos quais sejam esses grandes triunfos.

10) Mitos sobre as relações entre o Positivismo e as belas artes

O Positivismo estabelece um antagonismo entre ciência e arte? Entre realidade e imaginação?

Não. Ocorre porém que na atual situação onde a cultura cientifica acadêmica encontra-se ainda tão desgarrada da cultura estética e das verdadeiras urgências da Humanidade, o Positivismo torna-se pela valorização superior que confere à cultura estética-naturalmente avesso aos excessos ociosos da ciência, a suas aplicações belicosas e antiecológicas, e ao caráter dispersivo e presunçoso de muitas de suas pesquisas e especulações. Ainda mesmo quando mais bem aplicadas, as ciências obrigam-se e limitam-se a apenas oferecer um indispensável conhecimento real das leis naturais. Por outro lado, se as belas artes devem tomar para si essas mesmas leis, elas o conseguem fazer com um grau muito maior de liberdade.

As belas artes não estão circunscritas à ciência e apenas consideram suas leis como matéria prima para a idealização plausível de inúmeras outras situações virtualmente possíveis e moralmente desejáveis à ordem e ao progresso da Humanidade; e isso, mesmo quando é o caso de tais circunstâncias ainda não se verificarem objetivamente pela observação empirica.

O Positivismo inspirou o movimento estético e literário conhecido como “realismo”?

Não. O Positivismo não restringe o campo das ficções estéticas diretamente próprio às belas artes ao que seria a representação pura e simples da realidade objetiva tal como esta se verifica, e nem considera como genuína expressão artística aquilo que pretenda meramente retratá-la.

As belas artes relacionam-se de preferência aos sentimentos que nos impulsionam e formam as nossas motivações básicas, assim, elas tornam-se mais notáveis, nesse particular do que a ciência propriamente dita.

Enquanto a ciência ocupa-se diretamente com a descrição abstrata da realidade, fazendo isso de tal modo a que possamos guiar nossa vida atual, prevendo os acontecimentos com base na experiência passada; as belas artes encarregam-se muito especialmente de antecipar e de idealizar aquela mesma realidade, completando-a e projetando-a com vistas a um futuro aperfeiçoado, mesmo que indefinido.

E assim que as belas artes nos habilitam a representar o mundo e o homem não só tal como estes se afiguram aos nossos sentidos, mas, sobretudo como ambos poderiam – ou mesmo deveriam ser – segundo as mais altas expectativas do nosso altruísmo.

O Positivismo subaltemiza as belas artes, conferindo-lhes uma importância menor do que à ciência e a tecnologia?

Não. Ocorre exatamente o contrário. As belas artes encerram no Positivismo um extraordinário papel e missão. Elas constituem a única forma de cultura capaz de disciplinar, depurar e mesmo completar a ciência, tal como convém à sua plena eficácia.

São as belas artes que erguem a ciência a um grau de dignidade que mesmo hoje ainda não possui, apesar de todo o seu tão propalado desenvolvimento. Longe, portanto, de valorizar exclusivamente a ciência e de estabelecer entre esta e as belas artes qualquer antagonismo, a Religião da Humanidade as integra, e isso de um modo como até agora nunca foi possível.

Se for dado à arte rejeitar tanto o papel de soberana quanto o de subalterna das ciências, ela alcançará a única situação de supremacia que lhe cabe, obtendo assim ao mesmo tempo o duplo privilégio de tanto poder caminhar além dos limites inerentes à ciência, quanto dela jamais desgarrar-se, acompanhando-a sempre a uma distância igualmente segura tanto para sua digna independência quanto para sua necessária colaboração.

As correntes de pensamento pedagógico que procuram fazer chegar – de modo artificial e o mais cedo possível – a cultura científica às crianças, constituem correntes pedagógicas ligadas ao Positivismo ou nele inspiradas?

Não. Como conseqüência da maior valorização que o Positivismo faz da cultura estética, as belas artes estão na raiz de todo o projeto pedagógico do Positivismo.

No Positivismo a educação não começa pela ciência, mas pelas belas artes. A poesia, a música, a pintura, a escultura e a arquitetura formam essa cultura estética que é oferecida espontaneamente no lar à criança e ao adolescente. E tal cultura é considerada mesmo como indispensável.

Ela deve, pois, preceder e preparar tanto a cultura científica quanto a cultura técnica, que serão sistematicamente oferecidas primeiro pela escola e em seguida na vida profissional de cada indivíduo. Tal é, segundo o Positivismo, a única forma de prevenir que a ciência sucumba ao seu duplo e sempre eminente perigo moral e social, o qual consiste num cultivo exclusivo da razão, que ameaça secar a sensibilidade e inflar o orgulho e a vaidade teóricas.

O Positivismo é um “racionalismo”?

Não. Embora seja verdade que no início de sua carreira teórica Augusto Comte tenha se ocupado de um modo mais direto com a reforma do entendimento propriamente dito, isso representou só uma primeira etapa de seus trabalhos de regeneração social.

Tratava-se então, nesse momento, de garantir antes de tudo, que as novas concepções que fundamentassem essa vanguarda teórica encerrassem uma racionalidade e uma evidência empírica superiores ao que fora em parte tentado e obtido por outras formas de interpretação do mundo e do homem.

Mais exatamente, o objetivo de Augusto Comte havia sido então o de oferecer ao mundo uma nova filosofia – a filosofia positiva que substituísse os dogmas indemonstráveis e indiscutíveis do teologismo exausto – assim como as questões insolúveis, obscuras e ociosas da metafísica tanto espiritualista quanto materialista de modo a oferecer novas bases racionais sobre as quais contemplar e meditar. Ora, tal propósito só poderia ser alcançado por intermédio de um método que num primeiro momento fizesse prevalecer tanto quanto possivel a objetividade sobre a subjetividade.

Foi assim que essa nova filosofia necessitou àquela época limitar-se a reunir a si as concepções o mais diretamente possível emanadas do conjunto das ciências. Porém isso correspondeu, como dissemos, apenas a uma fase necessária de seus trabalhos, que viriam a ser em seguida completados pela adoção direta e sistemática do método inverso, isto é, do método subjetivo, método este que consiste em fazer referir o estudo do mundo ao estudo do homem.

O Positivismo defende a idéia da soberania e da independência da razão em relação aos sentimentos? Defende a chamada “neutralidade científica”?

Não. Embora a ênfase maior da primeira fase da obra de Augusto Comte precisasse de fato incidir sobre o entendimento, isso jamais significou que ele houvesse negligenciado o papel fundamental que cabe à subjetividade em geral – e muito em particular aos sentimentos – no conjunto da existência humana, sem excluir dai o papel destes na própria formulação das hipóteses teóricas, mesmo as mais abstratas e aparentemente livres da intervenção do chamado fator humano. Aliás, é dito explicitamente por Augusto Comte que só existem ciências humanas. Porém algumas importantes conseqüências dessa primeira percepção apenas seriam de todo alcançadas pelo fundador no fim de sua carreira. Em sua grande obra inaugural o Sistema de Filosofia Positiva publicada em seis volumes, não puderam constar ainda todas as importantes deduções cabíveis de serem extraídas da preponderância natural dos sentimentos no conjunto da existência humana.

É assim que até aonde ele conseguira chegar, parecia-lhe suficiente que apenas essa nova filosofia resumisse e resolvesse toda a questão da regeneração social e moral, por via de novas fontes de convicção.

Supôs-se primeiramente que haveria de ser apenas mediante uma radical reforma geral do entendimento, que as sociedades e os indivíduos haveriam de obter uma orientação mais segura e comum para a vida, superior à oferecida pelos preceitos e tabus das religiões teológicas, e seria então essa nova orientação teórica que, reagindo sobre os nossos sentimentos, acabaria por conduzi-los a um patamar mais alto de sociabilidade. Alcançada, porém a fase religiosa do Positivismo, essa ordem de importância inverte-se, de modo a que a própria convicção passa a ser vista como dependendo de certas predisposições afetivas fora das quais não ocorre.

O Positivismo considera acima de tudo os “fatos objetivos”? Caracteriza-se pelo “objetivismo”?

Não. Os fatos objetivos por si sós não chegam sequer a formar aquilo que o Positivismo denomina ciência. Uma simples coleção de fatos não é por si só capaz de nos proporcionar o poder máximo que define a ciência positiva, ou seja, a capacidade de prever os acontecimentos com base no conhecimento das leis que os regulam. A ciência positiva baseia-se nos fatos, mas não está por eles e a eles limitada.

Ao designar por “abstrato” o estado metafísico do entendimento, e ao considerá-lo um estado transitório, estaria com isso o Positivismo condenando a abstração como recurso lógico, elegendo apenas a concretude, assumindo-se assim como uma filosofia “concreta”?

Não. Pelo contrário, no Positivismo não existe aquilo a que se poderia chamar de “ciência concreta”. A rejeição que o Positivismo realiza do processo metafísico de raciocinar não tem por objeto as abstrações propriamente ditas, mas o processo de reificá-las, de hipostasiá-las, de “ontologizá-las”, de coisificá-las de modo absoluto e objetivo e em seguida considerar essas coisificações como supostas explicações para os fatos que elas mesmas já haviam descrito em geral. É de se notar também que o Positivismo rejeita igualmente e pelas mesmas razões o que corresponde ao processo inverso, ou seja, ele também rejeita o abstracionismo tornado absoluto e objetivo que dissolve a concretude dos corpos em seus diversos fenômenos, considerando que só eles “existam de verdade”. O que o Positivismo chama de metafísica é definido precisamente pela forma absoluta e objetiva com que é conduzido esse duplo processo subjetivo de abstração e de concreção.

11) Mitos sobre a política positiva

O Positivismo é militarista?

Não. Ele não é nem militarista e nem insurrecional. O Positivismo considera que o desenvolvimento da civilização determinará a gradual extinção dos exércitos, e em geral, de todo recurso à força bruta em questões internacionais, culminando assim na superação final da guerra. É, pois, uma doutrina inerentemente pacifista.

Essa previsão de nosso planeta comportar uma Humanidade que alcançou enfim a paz e a concórdia é peculiar à religiosidade positiva e contrasta com todas as profecias apocalípticas e carmas expiatórios das religiões teológicas. Tal futuro aliás, não decorre do que seria a adoção “racional” de qualquer cálculo egoístico restrito às supostas dificuldades crescentes da tecnologia bélica, ou dos impasses logísticos e econômicos inerentes à política de guerra. A inteira confiança que a Religião da Humanidade deposita nesse futuro feliz dá-se como expressão direta da fé que cultivamos no amadurecimento moral, intelectual e prático dos seres humanos, e assim, no prevalecimento progressivo da fraternidade entre os povos.

No Brasil foi notória a tentativa do Apostolado Positivista de desmilitarizar a sociedade, quer no sentido de esclarecer as autoridades e o público, da necessidade de tornar opcional o alistamento militar, quer pela devolução de troféus de guerra, restituição de territórios tomados à força etc.

O Positivismo é “nacionalista”? Apóia o modo pelo qual são realizadas hoje as ditas festividades cívicas?

Não. A Humanidade estando acima de todas as pátrias faz do Positivismo uma doutrina internacionalista. O que o Positivismo denomina culto cívico só faz sentido como referência ao culto à Humanidade.

Não existe no Positivismo culto cívico exclusivo à uma pátria isolada; devendo pelo contrário constituir-se no fundo apenas como um laço capaz de melhor robustecer no público nacional as relações deste com a Humanidade. O culto cívico é assim, apenas uma ênfase ocasional, ou um momento especial dirigido à pátria; em meio a uma cerimônia sempre e necessariamente destinada em última análise a glorificar a Humanidade, na Terra e no Espaço.

Ao prever um “regime político liderado por banqueiros” o Positivismo passa a ser caracterizado como uma plutocracia?

Não. O que o Positivismo designa como banqueiro constitui al apenas à corporação dos elementos responsáveis por dispensar, por fazer chegar aos diversos elementos da ordem social, as provisões e os instrumentos de que a Humanidade necessita. Sua função social consistindo precisamente nisso, torna-se assim também este o seu correspondente dever, fora do qual revelam-se tais funcionários incapazes para o exercício desta atividade prática.

O Positivismo é totalitário?

Não. O totalitarismo por sua própria definição consiste na supressão artificial, violenta e arbitrária de tendências minoritárias, em nome do que se tenha como uma suposta maioria. Toda a esperança que o Positivismo acalenta é a de que essas tendências minoritárias possam sempre expressar-se livremente de modo a demonstrarem na prática o seu suposto valor.

O Positivismo é “ocidentalista”? É “eurocêntrico”? É “elitista”?

Não. As distinções que hoje definem tanto aquilo que se entende por ocidente quanto por oriente acabarão por se apagar diante do conceito geral de Planeta Terra. A “elite” a qual o Positivismo se refere não corresponde a nenhuma elite financeira ou política. Ele está se referindo a uma vanguarda que pôde perceber com maior nitidez, completude e rapidez aquilo que corresponde à solução da crise pela qual o mundo em geral, e em particular o ocidente atravessa.

O Positivismo é uma forma de capitalismo?

Não. O Positivismo considera que o capital, sendo social em sua origem deve ter um destino social. Assim, a única justificativa que convém à posse do capital consiste na competência em dar a ele esse seu único destino legítimo.

O Positivismo é tecnocrata?

Não. Como o nosso sacerdote Gustavo Biscaia de Lacerda esclarecerá detalhadamente no próximo sermão no canal Positivismo (Youtube.com/ThePositivism) e no Igreja Positivista Virtual (Facebook.com/IgrejaPositivistaVirtual) em data vindoura, o conhecimento técnico está subordinado ao conhecimento teórico e o conhecimento teórico está subordinado à formação afetiva dada pela cultura estética.

O Positivismo é fisiocrata?

Não. Se por fisiocracia devemos entender o prevalecimento absoluto das leis mais grosseiras da materialidade como devendo decidir sempre e sem apelação os destinos humanos em todas as ocasiões, então o Positivismo não corresponde a um fisiocratismo.

O Positivismo é um “reformismo”?

Não. Para esclarecer tal questão tomemos o seguinte exemplo: quatro irmãos vem a se tornar vizinhos ao receberem por herança, cada um, uma casa na ampla área de um sitio. Essas casas são iguais, igualmente mobiliadas e por seu tempo de existência fazem inequivocamente parte da história.

Um desses quatro irmãos decide pôr abaixo a casa inteira e aproveitar o terreno para construir do zero e com tudo novo algo que possa estar de todo ao seu gosto pessoal. O segundo irmão, pelo contrário, reconhecendo tratar-se tal casa de um pedaço do passado, decide preservar intacto o Imóvel como um monumento, de modo a que nada possa nele ser modificado sob nenhuma justificativa, por maiores que sejam os riscos inerentes à sua inevitável deterioração. O terceiro irmão, reconhecendo o passado histórico de seu imóvel, mas também reconhecendo do mesmo modo a necessidade de substituir eventualmente os materiais a medida em que o tempo os torna imprestáveis, admite tais substituições, mas com uma condição: a de que estas sejam sempre feitas por outros objetos que sejam o mais exatamente semelhantes aos originais em cada mínimo detalhe, ainda que para isso seja preciso encomendá-los; de modo a que a continuidade seja assim de todo mantida e a substituição não seja sequer perceptível por ninguém. O quarto e último irmão enfim, é aquele que sente-se livre tanto para preservar a casa em certos aspectos ou elementos originais, quanto para mudar-lhes outros, ou mesmo destrui-los, dependendo cada uma dessas escolhas, de com isso poder legar aos que vierem habitá-la após sua morte, uma residência mais confortável, bonita e segura.

Ao primeiro irmão, corresponde a situação que o Positivismo chama de revolucionária. Ao segundo, por oposição está a situação que o Positivismo descreve como reacionária. A terceira, é aquela designada como conservadora; e a última, é aquela que deve poder ser sempre aplicada pelos positivistas e que unicamente consegue conciliar as condições de ordem com as condições de progresso.

12) Mitos sobre a vida pessoal de Augusto Comte

Augusto Comte passou por “várias crises psiquiátricas”?

Não. Ele sofreu uma única crise ou colapso nervoso, seguido de um surto psicótico, o qual de fato obrigou-o a uma internação por um ano, num hospital psiquiátrico. Após esse evento, porém, ele recuperou-se por completo, e retomou o seu Curso de Filosofia Positiva.

13) Mitos sobre a relação do Positivismo com as artes médicas

O Positivismo é contra a terapêutica vacinista?

Não. O Positivismo apenas considera como uma infração à separação dos dois poderes a obrigatoriedade legal da vacinação, ou seja, ele apenas toma na conta de erro político a criminalização da resistência à vacina.

O Positivismo é uma forma de “experimentalismo” à la Claude Bernard? Não.

O alcance efetivo dos experimentos decai necessariamente à medida em que as ciências se complicam, partindo da matemática e chegando até a moral. Além disso, existen limites éticos que condenariam certos experimentos no âmbito da biologia, da sociologia e da moral ainda mesmo que pudéssemos imaginá-los como realizáveis e conclusivos.

O Positivismo adota a chamada frenologia? Teria inspirado práticas médicas eugenistas tais como as realizadas em campos de concentração ou teria contribuído para sustentar teoricamente “terapêuticas” mutiladoras da psiquiatria tais como a célebre lobotomia da área pré-frontal do cérebro?

Não. As radicais modificações realizadas por Augusto Comte na frenologia tal como originalmente concebida por Franz Josef Gall, excluem dentre várias de suas práticas a chamada cranioscopia, por meio da qual supunha-se factível obter uma caracterização imediata das faculdades afetivas, intelectuais e práticas mais proeminentes de um indivíduo desconhecido, por simples inspeção visual de certas áreas mais ou menos desenvolvidas de sua cabeça e face.

Além disso a unidade funcional que a teoria positiva do cérebro concebe para o exercício de suas atividades, bem como as relações do próprio organismo com ele, proscreve como irracional e imoral procedimentos tais como a lobotomia. O Positivismo condena também e veementemente qualquer forma de política eugenista.

14) Mitos sobre o Positivismo e a antropologia

O Positivismo afirma a inferioridade de uma raça em comparação com outra? A doutrina positivista depende do conceito de raça?

Não. O Positivismo afirma que mesmo na eventual catástrofe do desaparecimento biológico de qualquer grupo humano referível ao que já se tenha entendido por raça; os progressos humanos de qualquer natureza acabariam por revelar-se plenamente intercambiáveis de modo a que isso não comprometeria a longo prazo o conjunto total da evolução humana a nenhuma perda irreparável. É assim que a conjunto dos progressos afetivos, intelectuais e práticos é concebido como podendo ser executado indistintamente por qualquer grupo humano.

15) Mitos sobre a vida pessoal de Clotilde de Vaux

Clotilde de Vaux foi amante de Augusto Comte?

Não. A união conjugal dos dois fundadores da Religião da Humanidade não incluiu as relações sexuais como um de seus elementos constitutivos.

16) Mitos sobre como o Positivismo trata a questão da existência de Deus

O Positivismo é agnóstico?

Não. A resposta que os agnósticos dão à questão “Deus existe?” é “Não sei.” Tal não é a resposta que o Positivismo tem a oferecer a essa questão. O Positivismo caracteriza-se como filosofia, por rejeitar o sobrenatural. Assim, ao rejeitar o sobrenatural, a única resposta que lhe convém e que de fato pode oferecer à questão “Deus existe?” é um categórico e inequívoco: “não”.

O Positivismo é uma forma de “materialismo”?

Não. O materialismo caracteriza-se filosoficamente pela pretensão metafísica de haver descoberto – no que designam como “matéria” a constituição intima dos corpos quaisquer. O Positivismo rejeita todo esse gênero inteiro de especulação como radicalmente inacessível e ocioso. Ao considerar a idéia de matéria, ele o faz apenas na qualidade de uma das muitas construções lógicas de que a ciência deve se servir, mas cujo mérito resume-se apenas em caracterizar, em resumir e em fixar para alguns propósitos bem definidos e circunscritos, certos aspectos da empiria, de preferência a outros; modo algum tomando, assim, tais elaborações abstratas como se se tratassem de uma realidade objetiva com a qual fizesse sentido determinar qualquer conteúdo essencial a respeito daquilo pelo que o mundo e o homem seriam constituídos, numa suposta última analise.

O Positivismo é ateu?

Não. Os ateus rejeitam do modo mais completo não apenas a idéia da existência objetiva de um Deus sobrenatural como o próprio conceito de divindade. Assim eles rejeitam também qualquer sentido que pudesse haver em se considerar a Humanidade na qualidade de uma divindade natural. Além disso, as justificativas pelas quais os diversos ateus supõem-se emancipados das crenças sobrenaturais diferem radicalmente daquelas pelas quais o Positivismo pretende haver alcançado o mesmo resultado teórico que eles.

O Positivismo é uma doutrina “naturalista” no sentido de que considera as injustiças sociais algo inerente à natureza, de modo que na qualidade de algo “natural” tornar-se-iam também inevitáveis? Considera subversiva a própria idéia de “justiça social”?

Não. Embora o Positivismo não realize uma oposição absoluta entre natureza e cultura, ele distingue dentre tudo aquilo que inclui no seu conceito de natureza, aquilo que cabe precisamente ou à biologia, ou à sociologia ou à moral, como fenômenos próprios a cada uma dessas ciências. Em outras palavras, a verdadeira oposição que o Positivismo estabelece não é entre o conceito de natural e o de cultural, mas entre o conceito de natural e o de sobrenatural. Além disso, já o próprio conceito que a doutrina faz de natureza não inclui a idéia de uma fixidez total.

O Positivismo é determinista (ou fatalista)?

Não. O Positivismo considera e valoriza a seu modo o conceito de liberdade e de autonomia. Um corpo qualquer é denominado livre na exata medida em que ele é capaz de expressar suas tendências espontâneas sem nenhum impedimento, restrição ou dificuldade externa. Assim o conceito de liberdade torna-se sempre um limite máximo de expressividade, para o qual tende a ação de um corpo qualquer.

17) Mitos sobre o Positivismo e a política internacional

O Positivismo é favorável ao colonialismo?

Não. O Positivismo condena como retrograda toda politica imperialista e colonialista, considerando-a um vestígio desnecessário e ignóbil da antiga fase militar conquistadora pela qual a Humanidade precisou a seu tempo passar em épocas mais primitivas.

O Positivismo é “antidemocrático”?

Não. Em sua crítica, o Positivismo limita-se a assinalar o caráter vago do conceito de democracia, que é ora identificado como o de um perfil de regime político, ora como o de um simples método de escolha dos seus correspondentes funcionários oficiais.

Tal idéia encontra-se assim, aquém daquilo que pretende designar, já a partir de sua própria imprecisão conceitual. É na idéia da separação entre o poder temporal e o poder espiritual, que o Positivismo considera estarem contidos cada fundamento e todas as garantias do que melhor se poderia definir como um regime caracterizado pelo respeito às liberdades civis, e ao pleno exercício da cidadania a todos indistintamente. Se a um tal regime deve-se chamar democracia, então o regime apresentado pelo Positivismo compatibiliza-se com ela e a representa por seus objetivos fundamentais.

18) Mitos sobre o Positivismo no Brasil

O Positivismo chegou ao Brasil por meio dos militares?

Não. Seria bem mais exato afirmar que o Positivismo chegou ao Brasil através da Matemática, ciência de que Augusto Comte era professor. Tendo ele escrito um livro de Geometria Analítica adotado no Brasil nos colégios militares e em cursos de engenharia, foi por meio de tal obra que ele tornou-se primeiramente conhecido entre nós.

Embora este livro não apresentasse de modo direto a filosofia positivista, tal como ele o fez depois no seu Curso de Astronomia Popular, o brilhantismo de sua escrita, suas vistas originais e a quase total ausência das fórmulas e dos desenhos, comuns nos demais livros de geometria, despertaram no público uma curiosidade e um interesse mais amplo acerca de seus outros trabalhos; muito em particular acerca de seu Curso de Filosofia Positiva, em seis volumes.

O Positivismo inspirou o golpe militar de 1964?

Não. A Igreja e o clube positivista precisaram ter suas atividades suspensas durante parte do tempo em que vigorou o golpe militar de 1964. Consta inclusive que este último foi denunciado às autoridades, invadido e depredado.

O amor teria sido de alguma forma excluído – ou como diríamos hoje, “deletado” da bandeira nacional?

Não. A atual bandeira do Brasil foi concebida desde sua origem para ser uma bandeira transitória, na qual apenas deveria figurar num primeiro momento a divisa política do Positivismo onde o amor aparece implicitamente no conectivo que une a ordem com o progresso.

Com o triunfo final da Religião da Humanidade, esse lema acabará por revelar-se como insuficiente devendo assim ser substituído pela formula completa que resume o Positivismo a qual inclui seus três elementos essenciais, o amor, a ordem e o progresso.

Muitos políticos brasileiros foram “positivistas”? Existem “políticos positivistas”?

Não. Em rigor não existem políticos positivistas, uma vez que o Positivismo prescreve aos seus aderentes absterem-se de participar diretamente da vida politica candidatando-se a cargos eletivos ou assumindo cargos ministeriais durante toda a primeira fase da transição que deve conduzir natural, pacifica e espontaneamente a sociedade à livre adoção da Religião da Humanidade.

A primeira república foi uma aplicação do Positivismo à política brasileira?

Não. Não sendo o Positivismo uma proposta de reforma política mas sim religiosa, a consecução do regimen sociocrático só é possível e mesmo concebível após a efetiva adoção da Religião da Humanidade e como expressão direta desta.

19) Mitos sobre a vida pessoal de Carolina Massin

Augusto Comte separou-se de sua esposa Carolina Massin?

Não. Tal iniciativa partiu dela.

21)  Mitos sobre a sucessão de Augusto Comte

Emile Littré foi o sucessor de Augusto Comte?

Não. Foi um dissidente e um traidor que rejeitou a unidade da obra de Augusto Comte e intentou, junto a Carolina Massin, anular seu testamento. Neste documento Augusto Comte legou a guarda de seu espólio e de seu imóvel a um conjunto de discípulos nomeados por ele como executores testamenteiros, os quais deveriam manter o local e os seus bens até que fosse possivel identificar alguém apto a desempenhar o papel de sucessor no sumo sacerdócio da Humanidade. Na presidência desses executores esteve Pierre Laffitte.

Pierre Laffitte foi o sucessor de Augusto Comte?

Não. Assim como em Littré, Augusto Comte depositou em Laffitte algumas esperanças nesse sentido, que foram por fim abandonadas. Após a morte de Augusto Comte, Laffitte jamais reivindicou o titulo de sucessor de Augusto Comte, criando inclusive para si um novo cargo, que faria contemporizar a situação de sua preeminência junto ao grupo de positivistas franceses e junto à presidência do testamento com a sua condição pessoal de desejoso ainda não preparado para ocupar aquela função sacerdotal. Para isso ele denominou-se e se fez conhecer na Revista Ocidental e em suas circulares anuais, assinando-se como “Diretor do Positivismo”.

Pierre Laffitte obteve por boa parte do tempo em que esteve à frente da execução do testamento e da publicação da Revista Ocidental – um prestigio teórico notável, e até certo ponto merecido tendo ainda sabido conduzir brilhantemente ao fracasso a tentativa criminosa de Littré e Carolina Massin.

Porém, nos últimos anos de sua vida, ele tomou inspirado por conselhos inconseqüentes a decisão de declarar encerrada a execução do testamento, o que equivaleu na prática a que com isso ele se autoproclamasse o segundo sumo pontífice da Humanidade. Tendo já a essa altura perdido boa parte de seu anterior prestigio e tendo grande facção do movimento positivista tanto inglês, quanto brasileiro e chileno já se separado de sua direção; Laffitte foi quase de todo rejeitado como sucessor de Augusto Comte.

Enfim, já bem perto de sua morte, ele haveria de declarar-se arrependido de extinguir a delegação dos executores testamenteiros.