É possível usarmos séries de super-heróis para pensarmos sobre moralidade individual e coletiva?
Não somente é
possível como é necessário. Isso porque o comum das pessoas não se dedica à
reflexão sistemática sobre as coisas morais, limitando-se a apenas as praticar
e seguir a moralidade corrente. Não há nisso nenhuma crítica; não há porquê nem
como que todos sejam filósofos.
Enfim, se o comum
das pessoas pratica a moralidade corrente, isso nos dias atuais significa que
são influenciadas pela moralidade exposta pelos meios de comunicação; não é por
outro motivo, por exemplo, que as novelas brasileiras de Glória Peres procuram sempre
“conscientizar” a audiência a respeito de “temas sociais”, assim como o seriado
estadunidense Lei e Ordem – SVU
procura “amplificar as vozes” (como afirma a propaganda do canal Universal, a
respeito das séries produzidas por Dick Wolf).
Pois bem: há alguns
dias assisti ao seriado Wanda Visão,
do serviço Disney +. (Assinei tal serviço, por apenas um mês, só para ver esse
seriado e mais alguns produzidos pelos estúdios Marvel.)
Em termos de
qualidade da produção, a série é excelente: tudo muito bem feito, bonito,
elaborado. O roteiro também impressiona, especialmente porque se decidiu que a
primeira metade da série, ou seus primeiros 2/3 (de um total de nove), imitaria
séries cômicas antigas, em que cada episódio da séria corresponderia a uma
década (começando nos anos 1950 e indo até os anos 2000).
Até aí, tudo bem.
Mas é no final da série, em particular no seu episódio final, que estão os
problemas, em número de pelo menos dois:
(1)
por um lado, uma agência
governamental verifica que uma cidade inteira – cidade pequena, com cerca de
3.600 habitantes, mas, enfim, uma cidade inteira – foi feita de refém e que
seus habitantes sofreram lavagem cerebral; portanto, essa agência tem que
libertar esses cidadãos. Após algumas investigações, identifica o seqüestrador
na figura de Wanda (a suposta heroína) e adequadamente passa a tratá-la como
inimiga, bem ou mal agindo conforme essa nova premissa. Com isso a narrativa da
série muda a abordagem a respeito dessa agência governamental: de heróis passam
a vilões, apenas porque decidiram perseguir, talvez eliminar, uma criminosa. Em
concordância com isso, as personagens secundárias passam a rebelar-se contra a
agência “malvada”, sublevando-se, sabotando a agência e até auxiliando a
criminosa. No episódio final da série, a condição “malvada” da agência governamental
é confirmada e, de maneira correlata, as personagens que apoiaram a criminosa são
deixadas ilesas.
(2)
Por outro lado, e em concordância com
os fatos acima, a criminosa – mais uma vez: uma seqüestradora em massa que faz
lavagem cerebral – mantém sua condição de “heroína”, mesmo que seja uma heroína
problemática, sujeita a variados e profundos traumas; mas, de modo central para
o que nos interessa, os seus traumas justificam, desculpam e redimem todos os
seus crimes. Aliás, mais do que isso: a heroína-criminosa sai impune e as
personagens secundárias, que haviam sabotado os esforços para neutralizar a
criminosa, acabam concordando com os valores, os sentimentos e a conduta dessa
criminosa. Essa concordância dá-se em bases estritamente individuais, ou
melhor, individualistas: “se eu estivesse na sua situação e se tivesse os seus
poderes, com certeza faria algo bem parecido”; nenhuma palavra sobre seqüestro
e lavagem cerebral de 3.600 pessoas, nem sobre depredação de bens (sim, pois,
afinal, há sempre “lutas” e “batalhas” que destroem tudo ao redor).
Qual o problema de
fundo nisso tudo? Quais os problemas com a moralidade exposta acima?
Os “super-heróis”
são indivíduos que realizam grandes feitos, a partir de habilidades
extremamente extraordinárias (capacidade de vôo, superforça, resistência física
descomunal, superinteligência, emissão de raios pelos olhos e pelas mãos etc.
etc.), sendo que esses grandes feitos consistem basicamente em lutas físicas de
proporções gigantescas. Qualquer consideração adicional ou é desconsiderada ou
é vista como um empecilho (indevido e imoral) à ação dos super-heróis. O que
está no caminho dos super-heróis pode e deve ser desconsiderado, ignorado ou,
no limite, destruído: leis, instituições, prédios, pessoas; claro que essa
possibilidade só é dada aos super-heróis, sendo negada aos “supervilões”. Caso
haja desastres, os super-heróis devem caçar os supervilões; mas, no caso de os
próprios super-heróis causarem esses desastres, suas responsabilidades são ignoradas
(como se não tivessem ocorrido desastres) ou são minimizadas (com a recorrente afirmação
de que “não foi culpa sua”) (nas raras vezes em que os heróis são
responsabilizados, rapidamente são reintegrados à atividade legítima, sem
maiores implicações – e, de qualquer maneira, sempre com o viés de que são mais
vítimas que criminosos).
Os super-heróis são
uma criação estadunidense. A ênfase a ser dada na definição acima é no “indivíduo”:
só o indivíduo importa, todo o resto (isto é, tudo ao redor, seja sociedade,
sejam objetos físicos) sendo apenas “resto” e/ou empecilho. Em outras palavras,
a moralidade própria aos super-heróis é caracteristicamente estadunidense:
super-individualista, antissocial (e, deve-se também notar, anti-histórica),
autocentrada.
O agressivo e irresponsável individualismo dos “super-heróis”, exemplificado à perfeição na série Wanda Visão, fica mais evidente quando contrapomos essas figuras estadunidenses a outras criações, também ocidentais mas “antigas”.
Os heróis gregos – por
exemplo, Hércules – e os heróis medievo-modernos – por exemplo, El Cid – são “heróis”
não necessariamente porque possuem habilidades extraordinárias, mas porque
realizam grandes feitos. Esses grandes feitos são “grandes” porque envolvem
dificuldades enormes, insuperáveis e insolúveis pelo comum dos seres humanos,
mas, mais do que isso, são dificuldades que envolvem a coletividade, os seus
vínculos e as obrigações daí decorrentes. Em outras palavras, são problemas
que implicam as individualidades dos heróis mas que só ganham sentido porque são
problemas coletivos; as individualidades só se realizam na medida em que se
vinculam aos vários níveis e âmbitos da sociedade.
Mais: o caráter
heróico dos heróis aumenta, ou consolida-se, ou mesmo se realiza, na medida em
que os heróis têm que se submeter às regras e às sanções morais coletivas.
Hércules e El Cid são exemplares nesse sentido: os 12 trabalhos de Hércules,
nos quais labutou por mais de dez anos, foram uma expiação por um terrível crime
(pelo qual, aliás, ele não foi propriamente "responsável" – a morte de sua esposa
e de seus filhos em um acesso de loucura causado pela deusa Hera); já El Cid – pelo
menos na poderosa versão de Corneille – vê-se na contingência de não poder
casar-se com sua amada porque ambos estavam presos a fortes laços morais e
familiares. Essas dificuldades aumentam muito o valor moral e a nobreza de
Hércules e de El Cid e é por elas que eles são verdadeiramente conhecidos e
valorizados.
Os heróis gregos
eram, realmente, superiores ao comum dos mortais; mas aí temos Ulisses, que,
embora fosse um grande guerreiro, distinguia-se de fato apenas pela astúcia. O
seu valor é dado, na Ilíada, pelos
serviços que presta à causa helênica; já na Odisséia
o seu valor é de fato mais individual, mas mesmo assim se vincula de maneira
inegável e indissolúvel aos seus laços sociais (o amor pela esposa Penélope, a
amor por seu filho Telêmaco, a preocupação com seus súditos na pequena e
pedregosa Ítaca); mesmo o desafio à autoridade e à existência dos deuses tem,
claramente, um sentido social, como fica evidente na preocupação da deusa Palas
Atena que o destino de Ulisses sele o destino dos próprios deuses.
Coroando o caráter
social das individualidades dos heróis antigos e modernos, o que se vê em todas
as grandes tragédias é o drama enfrentado por seus protagonistas para cumprirem
suas responsabilidades, quer eles desejam-nas mas sejam impedidos (ou seja-lhes
fatal), quer eles não as desejem mas vejam-se obrigados a cumpri-las. As
responsabilidades, ou melhor, as responsabilizações correspondem, o mais das
vezes, à afirmação dos vínculos sociais; os protagonistas das grandes tragédias
aceitam suas responsabilidades e lidam com suas conseqüências, por mais duras
que elas sejam (e elas sempre são duríssimas). (Pensemos em Antígona, primeiro
exilada com seu pai Édipo (em Édipo rei)
e depois condenada à morte por insistir em realizar os funerais de seu irmão
Polinice, considerado traidor de Tebas (em Antígona).
Pensemos também no titã Prometeu, que, fiel à sua natureza oracular, sabe de
antemão que suas ações em prol dos seres humanos custar-lhe-ão duras e
prolongadas punições; mas, mesmo assim, aceita com altivez e orgulho o fardo de
seu comportamento (em Prometeu acorrentado).)
Enfim, retornemos a
Wanda Visão: a sua moralidade
extremamente individualista tem que ser qualificada como um defeito – um
defeito profundo e próprio à mentalidade dos EUA. Esse defeito choca-se com a
alta qualidade técnica (“plástica”) da série. Inversamente, a qualidade técnica
acentua o defeito moral e, bem vistas as coisas, essa própria qualidade técnica
avilta-se ao servir de veículo para uma moralidade desprezível.
É essa moralidade que é servida – pela Disney, conhecida por seu suposto “moralismo” e seu suposto conservadorismo moral! – para consumo popular nos EUA e, daí, por extensão, para o resto do mundo.