13 abril 2023

Comentários sobre o espectro da morte

No dia 17 de Aristóteles de 169 (11.4.2023) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua sexta conferência (dedicada ao conjunto do dogma).

Antes da leitura comentada do Catecismo positivista, fizemos um complemento da homenagem aos aniversários de nascimento e de transformação de Clotilde de Vaux, ocorridos na semana anterior. Esse complemento de homenagem consistiu em recitarmos o belo poemeto de Henrique Batista da Silva Oliveira, Ave Clotilde, e também em recitarmos as sete máximas de Clotilde.

Após a leitura comentada do Catecismo positivista, dedicamos nosso sermão a alguns comentários sobre o "espectro da morte", ou seja, a algumas reflexões sobre em que consiste a morte, em termos biológicos, sociológicos e morais. As anotações que serviram de guia para nossa exposição oral estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/cUSqg) e Positivismo (encr.pw/F618g). O sermão sobre o espectro da morte inicia-se em 45' 55".

ATENÇÃO: devido a um problema técnico, a transmissão no canal Positivismo foi interrompida em 1h 15' 02".

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Comentário sobre o espectro da morte

 -        Poucos assuntos são tão importantes quanto a morte

o   A importância desse tema, evidentemente, está em que todos morreremos algum dia

o   Assim, não deixa de ser um tanto paradoxal – mas não muito – que a importância da morte está em definir os limites e, por extensão, o sentido da vida

o   Como dizia Clotilde de Vaux, “Não há nada de irrevogável na vida senão a morte”

o   Se a vida fosse eterna, sem dúvida que a morte apresentaria outro valor

-        Embora uma boa seqüência para tratar desse tema fosse a sugerida pela escala enciclopédica (em particular em termos biológicos, sociológicos e morais), seguiremos aqui uma outra seqüência, para podermos abordar antes os problemas filosóficos e morais que o espectro da morte suscita atualmente no Ocidente; depois, em um viés mais claramente positivo, abordaremos o tema da perspectiva biológica e então moral

-        Apesar da importância central que a morte apresenta para todos nós, pelo menos a partir do século XX a reflexão a respeito dela tornou-se muito confusa: ou seja, não se sabe o que fazer com ou a respeito da morte

o   Essa confusão ocidental traduz-se em um intenso infantilismo a respeito da morte, que, por sua vez, é sinal de uma grande imaturidade intelectual e moral

-        Antes de mais nada, é importante termos clareza de alguns aspectos elementares:

§  Todos morreremos algum dia, mais cedo ou mais tarde

§  Podemos, e devemos, buscar viver o máximo possível

·         É claro que esse “viver o máximo possível” pode ser entendido pelo menos de três formas, ou seja, em três âmbitos diferentes: (1) viver mais tempo; (2) viver de maneira mais proveitosa; (3) viver mais “intensamente”

§  Conforme aprendemos com o Positivismo e como Augusto Comte nunca se cansou de sublinhar e reafirmar, uma realidade que em certo sentido é tão plenamente individual (a vida de nossos corpos) também é, ao mesmo tempo e até mesmo mais, plenamente social e histórica

§  O sentido da morte e da vida, então, é algo ao mesmo tempo profundamente sócio-histórico e individual

-        É evidente que a morte é um acontecimento desagradável para os envolvidos: trata-se da perda de alguém que nos é caro em termos afetivos, intelectuais e/ou práticos

o   A brevidade da vida impõe a todos a necessidade de refletir sobre o que fazer com o tempo disponível e sobre o que significa “estar vivo”; isso implica estabelecer um sentido para a vida e, daí, também um sentido para a morte

o   Talvez poucas situações mostrem tão claramente os valores e as concepções profundas das filosofias e das religiões quanto as relativas à morte; inversamente, poucas situações geram tantas reflexões e concepções que têm tantas conseqüências para as filosofias e as religiões como a morte

o   A brevidade da vida e a tragédia da morte podem ser entendidas de diversas maneiras, evidentemente:

§  Uma certa tradição, resultante no Ocidente da confluência da teologia judaica com um certo sobrenaturalismo metafísico grego, estabelece que a morte é passagem para uma outra e “verdadeira” vida

§  Mas a concepção do “além vida” não foi a primeira nem é a última que a Humanidade elaborou sobre a vida e a morte: o fetichismo e o Positivismo propõem coisas muito diferentes – mais satisfatórias, mais generosas, mais suaves

·         Essas diferentes perspectivas que variam em função dos tempos e dos lugares sugerem que é possível e, daí, que é necessário mudarmos as atuais concepções imaturas prevalecentes no Ocidentes (concepções que, além de tudo, correspondem à diluição de concepções teológicas)

-        Comecemos por uma constatação sobre a atualidade: no Ocidente temos uma atitude ambivalente ante a morte:

o   Por um lado, teme-se o evento da morte e há uma repulsa por tudo aquilo que se refere à morte, visto como macabro e/ou próprio a um suposto culto da morte;

§  Muitas vezes se assume uma perspectiva metafísica, em que a morte é encarada como uma abstração personificada

o   Por outro lado, como não poderia deixar de ser, é a morte que dá sentido à vida e, considerando o cristianismo, a morte é o momento de passagem para o “além”

-        Em termos históricos, o temor da morte tem crescido à medida que a ocorrência da morte afasta-se cada vez mais de nós: em outras palavras, à medida que a expectativa de vida aumenta, que a taxa de mortalidade infantil cai, que as guerras diminuem em quantidade e em mortes, que a qualidade de vida aumenta

o   Em outras palavras, à medida que a morte afasta-se do nosso cotidiano, passamos a encará-la com horror, como se morrer fosse antinatural – isto é, como se, além de um desastre, ela fosse também plenamente evitável

o   Essa repulsa da morte vincula-se não apenas a um hedonismo individualista, mas também a uma repulsa ao envelhecimento (e aos idosos) e, assim, a uma concepção mistificada da “eterna juventude”

-        A secularização do Ocidente tem afastado as pessoas das crenças cristãs de vida após a morte; mas, ao mesmo tempo, a secularização também tem estimulado (vinculado em parte a um certo ateísmo de fundo, em parte à ideologia estadunidense) o individualismo

o   Sem que se deixe formalmente de lado uma eventual crença na vida após a morte, a secularização individualista conduz a atitudes hedonistas e quase niilistas, em interpretações cada vez mais superficiais do carpe diem

o   Ainda assim, apesar do hedonismo individualista secularizado, a morte continua sendo o destino de todos nós e, portanto, a avaliação sobre o que fazer de nossas vidas e sobre qual o sentido da vida e da morte permanece como uma questão central para todos, mesmo que seja uma questão implícita

-        A ambigüidade atual do Ocidente em face da morte na verdade atualiza – e, portanto, mantém sob outros aspectos – uma ambigüidade estabelecida anteriormente pelo cristianismo

o   Embora o cristianismo considere que a morte é a passagem desta vida para uma suposta vida melhor e “mais verdadeira”, ao mesmo tempo ele considera a morte um momento absoluto de término

o   Essa concepção cristã de que a morte é um término e que, portanto, apresenta um certo caráter absoluto vincula-se ao raciocínio fundamental da teologia, segundo o qual a matéria é inerte e somente se torna ativa por obra e graça de uma força externa (no caso, a divindade, por meio do “sopro divino”, ou da “alma”)

§  Assim, para o cristão, quando uma pessoa morre, é o sopro divino, ou a alma, que sai do corpo: o corpo perde seu laço com a divindade e torna-se apenas um pedaço de carne cujo destino é o apodrecimento

o   Vale notar que, se fôssemos incapazes de perceber na atitude ocidental atual um espírito metafísico, esse caráter seria evidenciado pelo simples fato de que essa atitude atual é a versão corrompida de concepções teológicas

o   A teologia, ao pressupor uma “vida além da morte”, é vaga e arbitrária em suas concepções:

§  Ela é vaga porque, se houvesse uma tal vida, ninguém nunca voltou dela para esta vida e, portanto, ninguém pode dizer com clareza em que ela consistiria

§  Ela é arbitrária porque, não tendo nenhum parâmetro para defini-la, a vida após a morte é caracterizada segundo a imaginação da pessoa, do lugar e da época em questão

·         A tradição cultural atenua um pouco esses defeitos, mas o fato é que, no final das contas, o caráter puramente imaginativo das características mantém a vagueza e a arbitrariedade

§  Além disso, é digno de nota que mesmo os teológicos os mortos não com um apelo à sua situação na vida após a morte, mas efetivamente por meio da memória de suas atividades nesta vida: em outras palavras, mesmo apelando para uma suposta vida após a morte, os teológicos honram o caráter humano dos mortos e de suas vidas

-        O fetichismo e o Positivismo, em contraposição, estabelecem que a matéria é naturalmente ativa; assim, os corpos não necessitam de intervenções externas para serem ativos

o   Dessa forma, quando alguém morre, a atividade do corpo não cessa, mas ela modifica-se

o   Mas o que é a “morte”? A morte é a cessação dos fenômenos biológicos, ou seja, das constantes trocas (mutuamente modificadoras) entre o corpo e o ambiente

§  Mas, ainda assim, o corpo sem atividades biológicas continua em atividade em outros âmbitos

o   Dessa forma, a morte não é propriamente um fim: ela corresponde a uma transformação

o   O corpo que não abriga mais uma atividade biológica específica do próprio corpo mantém-se ativo em outros âmbitos; como o Positivismo e o fetichismo consideram que não há separação entre corpo e “alma”, o corpo sem vida não é apenas um pedaço de carne a apodrecer

·         No que se refere à “alma”, o Positivismo define-a como sendo o conjunto das funções cerebrais

§  Esse corpo é parte integrante fundamental da pessoa que morreu e cuja relação com o ambiente está modificada (em certo sentido, está diminuída; mas, em outro sentido, está aumentada)

-         As concepções acima explicam e justificam o culto aos mortos, tanto no Positivismo quanto, antes, no fetichismo

o   O culto aos mortos, portanto, não tem nada de macabro; não se trata de culto à morte, mas de lembrança sistemática e sistematizada de quem morreu

o   As concepções acima também justificam plenamente o nome do oitavo sacramento positivista: a “transformação

o   Vale lembrar que o culto aos mortos, no âmbito do cristianismo, é incoerente em relação ao seu dogma e dá-se devido à permanência de hábitos fetichistas e/ou à intuição do valor desse culto

-        De maneira mais específica, a transformação que ocorre com a morte, no Positivismo, consiste no seguinte:

o   Evidentemente, a mudança no estado geral de atividade do corpo, em que há uma diminuição nessa atividade (em termos biológicos)

o   Mas, por outro lado e de maneira mais importante, a vida objetiva cede lugar à vida subjetiva; a atividade concreta (especialmente cívica) cede lugar à atividade abstrata (diretamente afetivo-intelectual); a participação na solidariedade do presente cede lugar à continuidade na história

o   Dessa forma, o Positivismo considera não apenas que a morte corresponde a uma transformação, como também afirma que há, sim, uma vida após a morte: entretanto, a concepção positiva de “vida após a morte” estabelece que temos uma vida subjetiva após a morte

§  Em vez de aumentar a distância, a vida subjetiva após a morte aproxima de cada um de nós os entes queridos que sofreram a transformação

o   Vale a pena recordar e insistir: a concepção subjetiva de vida após a morte é clara e bem definida; em contraposição, a concepção objetiva, absoluta, teológico-metafísica de vida após a morte é imprecisa, extremamente vaga (não se sabe exatamente o que seria) e profundamente arbitrária (afinal, não tem nenhum parâmetro verdadeiro, exceto variações da presente vida)

-        Como se sabe, a vida subjetiva após a morte, realizada em particular no culto aos mortos, apresenta uma série de importantes conseqüências morais, intelectuais e práticas:

o   Define com clareza o sentido da vida de cada um de nós, sem cair nem no individualismo nem no hedonismo

o   Vincula cada um de nós ao conjunto dos seres humanos, ou seja, estabelece de maneira profunda o sentido de pertencimento

o   Torna a vida e a morte racionais e orientadas para um propósito moral e intelectualmente verdadeiro, bom e belo

o   Estabelece uma recompensa altruísta para os esforços contínuos de cada um de nós

§  Assim, estabelece parâmetros claros para a orientação e a avaliação da vida de cada um de nós

o   Diminui a dor da perda dos nossos entes queridos (e/ou importantes), quando de suas mortes

§  Assim, diminui o trauma de cada um de nós perante essas mortes e evita todo e qualquer desespero

o   Aproxima-nos do convívio com os mortos por meio da vida subjetiva, sem que isso se degrade em um culto macabro ou em um culto metafísico à “morte”

§  No caso das doações de órgãos, a vida do doador em certo sentido mantém-se por meio de quem recebe os órgãos: além de isso consistir em um forma objetiva e subjetiva de compartilhar a vida, também significa a única forma racional e possível de ocorrer o quimérico ideal teológico da ressurreição

§  Assim, diminui o trauma de cada um de nós perante essas mortes e evita todo e qualquer desespero

o   Estimula diretamente o altruísmo, desenvolve nossos pendores artísticos, aperfeiçoa nossa capacidade de idealização, desenvolve nossos pensamentos e, last but not the least, melhora nossos esforços práticos

§  Vale notar que todos esses esforços alteram – para melhor – a anátomo-fisiologia cerebral e, daí, de todo o nosso corpo

o   Deve ser claro para qualquer pessoa que esse conjunto de conseqüências estimula diretamente a harmonia coletiva e individual

§  Todavia, vale notar que essas concepções distanciam-se não apenas das concepções próprias à teologia, como também se distanciam das superficiais concepções vigentes atualmente no Ocidente, tão marcadas pelo individualismo, pelo hedonismo, pelo niilismo criptocristão – e pelo horror à morte

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