26 abril 2023

Sobre as máximas de Clotilde de Vaux

No dia 3 de César de 169 (25.4.2023) fizemos nossa prédica positiva. Em um primeiro momento, demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, abordando o conjunto do dogma positivo, na sexta conferência do livro.

Na seqüência, no sermão, abordamos as máximas de Clotilde Vaux: as anotações que serviram de base para a exposição estão reproduzidas abaixo.

A prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (https://l1nk.dev/Pw56R) e Positivismo (https://encr.pw/YI1B8); o sermão pode ser visto a partir de 52' 30".


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As máximas de Clotilde

 -        Tratar de Clotilde de Vaux é ao mesmo tempo importantíssimo e um tanto difícil

o   É importante porque ela foi a cofundadora da Religião da Humanidade, nas palavras do próprio Augusto Comte

§  Na verdade, é difícil exagerar essa importância: sem Clotilde, o Positivismo seria apenas um cientificismo; com Clotilde, o Positivismo pôde desenvolver-se até a bela e inspiradora Religião da Humanidade

o   É difícil porque a sua vida, a sua produção literária e a sua relação com Augusto Comte são muito “estranhos” à nossa época

-        Consideremos a sua produção literária: ela era poetisa e romancista

o   A sensibilidade estética de Clotilde era claramente romântica

o   Mas a principal dificuldade não está em sua sensibilidade romântica da época: o problema que se apresenta para nós é que a nossa época é decididamente anti-romântica, ou melhor, é intelectualista e materialista

o   Todo o ciclo romântico integra uma grande tradição de pensar, ou melhor, de raciocinar usando a poesia; assim, os raciocínios estavam intimamente vinculados à expressão artística e, portanto, à manifestação e ao estímulo dos sentimentos

o   A nossa época, ao contrário, é resolutamente intelectualista, materialista e anti-romântica, isto é, antiafetiva

§  É necessário termos clareza a respeito desse traço contemporâneo: o materialismo e o intelectualismo são devidos às metafísicas materialistas (liberalismo e comunismo), ao desprezo intelectualista pelos sentimentos, ao culto (igualmente metafísico) da política e da luta do poder – e, englobando tudo isso mas ajuntando a isso seus próprios erros, devemos também ao desprezo feminista pelos sentimentos e pela cultura aos sentimentos (vistos como “ideologia patriarcal e/ou falocrática” contra as mulheres)

§  É claro que a sensibilidade contemporânea – materialista, anti-romântica, antiafetiva, politicista – tem profundas conseqüências sobre as artes, que se tornaram largamente superficiais e/ou intelectualistas – e mesmo quando se pretendem afetivas, perderam em grande parte seu caráter de elevação moral

-        É necessário, então, insistir: é impossível entender – e sentir – as máximas de Clotilde sem termos clareza de que elas são a expressão poética de sentimentos e de idéias

o   Sem entender esse íntimo vínculo entre expressão poética, demonstração de sentimentos e argumentação filosófica, no fundo também não se pode entender o próprio Positivismo, nem a insistência de Augusto Comte no valor e na importância dos sentimentos e da poesia

o   Duas frases de Augusto Comte ilustram bem essas concepções:

§  A primeira refere-se ao papel das mulheres: “Superiores pelo amor, mais bem dispostas a sempre subordinar ao sentimento a inteligência e a atividade, as mulheres constituem espontaneamente seres intermediários entre a Humanidade e os homens” (Augusto Comte – Política positiva, v. II, p. 63)

§  A segunda é uma tocante declaração de respeito, de veneração e de afeto de Augusto Comte em relação a Clotilde: “Tu foste, sem o saber, como eu o repito cada martedia, a mulher a mais eminente, de coração, de espírito e mesmo de caráter que a história universal apresentou até hoje. O futuro parece-me dificilmente suscetível de um melhor tipo” (Augusto Comte – Confissões anuais)

-        Feitos esses comentários iniciais, apresentamos duas poesias de Clotilde, que ela enviou para Augusto Comte em seu epistolário no final de 1845, após o fundador da Religião da Humanidade já se ter declarado apaixonado pela moça:

 

Os pensamentos de uma flor

(Clotilde de Vaux; tradução de Raimundo Teixeira Mendes)[1]

 

Nasci p’ra ser amada: ó, graças, bom Destino!

Que os soberbos mortais praguejem teus azares!

O vento os arrebate aos pés de teus altares,

Eu tenho o meu perfume e o gozo matutino.

 

Tenho o primeiro olhar do rei da natureza,

Por gala o seu fulgor, seu beijo em chama acesa;

Tenho um sorrir de irmã da juvenil Aurora;

Tenho a brisa nascente a dulcidão que mora

Na gota pendurada à borda do meu cális.

Tenho o raio que brinca a se abismar nos vales;

Tenho o mago painel, a sena inigualada,

Do universo entreabrindo as portas da alvorada.

 

Jamais frio mortal haurir-me deve a vida:

No seio da volúpia a manso me adormeço;

Me guarda a natureza o esplêndido adereço;

Em seu festim de amor desperto embevecida.

 

Muita vez embelezo a formosura;

Num puro seio o meu candor se côa;

Enlaça-me o prazer n’alegre cr’ao,

E a seu lado me prende alma ventura.

 

                Quanto o rouxinol s’inspira

No meu talo em doce enleio,

Para não turvar-lhe o gorjeio

                               A natura inteira espira.

 

Amor me diz seus votos mais secretos;

Abrigo de seus ais grata saudade;

Dos seus mistérios zelo a f’licidade;

A chave sou dos corações secretos.

 

Ó! Doce Destino, se as leis que nos baixas

Suspiros profanos pudessem mudar,

Só eu haveria, nas diáfanas faixas,

De amor aos bafejos à vida tornar.

 

Da tempestade sombria

Poupa-me o horrendo furor;

Dá que sempre a leda flor

Nas tuas festas sorria.

 

A infância

(Clotilde de Vaux; tradução de Raimundo Teixeira Mendes)[2]

 

Vem, criança gentil, mais perto... que m’encanta

Ver-te a madeixa loura, o meigo olhar formoso,

As graças naturais que têm tanto invejoso,

A fonte onde arde a inocência o templo seu levanta.

 

Vem, qu’eu gosto de ver-te o velho pai prezando

Mais que o ledo brincar que os anos seus molesta;

Gosto de ver fugir, dos beijos teus à festa,

A nuvem que, no olhar materno, ia assomando.

 

Gosto de ver o ancião que vai, a lento passo,

O humilde lar buscando, apoiado ao teu braço;

Gosto de ver-te a mão encheres, com carinho,

Do pobre que se senta à borda do caminho.

 

Por que se hão de ir embora encantos dessa idade,

Graças que as nossas mães com tanto amor afagam?

Os sonhos do porvir, por que se nos apagam?

Ah! Sim! É que é preciso um dia de saudade!

 

-        Indo às máximas de Clotilde:

o   Elas foram recolhidas e estabelecidas por Augusto Comte a partir das obras literárias, das cartas e das conversas em visitas que eles mantiveram durante 1845 e 1846

o   Elas foram formalmente apresentadas no Testamento de Augusto Comte e, a partir daí, reproduzidas nos mais variados livros

o   Seja porque foram estabelecidas por Augusto Comte, seja porque, evidentemente, elas apresentam valor por si sós, elas integram o conjunto de máximas e fórmulas próprias à Religião da Humanidade

§  Convém termos clareza de que elas não têm as características sistemáticas e sintéticas das máximas elaboradas por Augusto Comte: mas, por outro lado, são observações morais agudas e profundas, verdadeiramente dignas de um espírito feminino profundo[3]

 

As sete máximas de Clotilde de Vaux (T, p. 99)[4]

1)      É indigno dos grandes corações derramar as perturbações que sentem. (Lúcia, 7ª carta)

a.       Os “grandes corações”, ou seja, as pessoas que buscam aperfeiçoar-se moralmente, devem evitar descontroles e explosões afetivas, especialmente em público: saber manter a reserva e até o autocontrole é uma virtude moral e prática

b.      Essa máxima evidentemente não quer dizer que as pessoas não devam manifestar seus sentimentos, ou que não devam chorar em momentos de grande tristeza (ou de grande alegria): o que está em questão é o descontrole do comportamento a partir dos sentimentos, especialmente quando somos tomados por sentimentos muito intensos

c.       Há um aspecto de exemplo e de liderança subjacente à expressão “grande coração”

2)      Que prazeres podem exceder os da dedicação? (Lúcia, 8ª carta)

a.       Essa máxima evidencia que a fórmula da felicidade pessoal é a destinação altruística dos egoísmos e, mais do que isso, que quando o altruísmo passa a ser verdadeiramente o parâmetro de nossas condutas, a dedicação aos demais (o altruísmo) quase que eclipsa a satisfação pessoal (egoística) dessa ação

3)      Eu compreendi, melhor que ninguém, a fraqueza de nossa natureza quando ela não é dirigida para um objetivo elevado e que seja inacessível às paixões (T, p. 333)

a.       As nossas condutas têm que se basear e orientar em símbolos, objetivos e metas que, morais por si sós, não se submetam às disputas cotidianas; esse afastamento das disputas cotidianas implica que os símbolos, os valores e as metas que nos orientam não se corromperão e poderão manter-se como metas morais, práticas e intelectuais efetivas

b.      É claro que isso não implica que essas metas não possam ser avaliadas em termos de exeqüibilidade, de moralidade, de positividade etc.

c.       A Humanidade, claramente e não por acaso, é um desses ideais superiores inacessíveis às paixões

4)      São necessários à nossa espécie, mais que às outras, deveres para fazer sentimentos. (T, p. 374)

a.       Essa máxima indica que nós precisamos de deveres, de relações mútuas obrigatórias de uns para com os outros, e que essas relações desenvolvem por seu turno sentimentos apropriados a essas relações

b.      O que se afirma aí é a necessidade primária de sairmos de qualquer egoísmo e/ou de qualquer imobilismo e/ou de qualquer isolamento para lançar-nos em relações com outras pessoas, outros grupos, outras idéias

c.       Além de tirar-nos de nossos egoísmos, nossos isolamentos, nossos imobilismos e nossos individualismos, essas relações obrigam-nos a considerar, de maneira cada vez mais sistemática, as concepções, os valores, os sentimentos de outras pessoas e outros grupos: isso significa que desenvolvemos a empatia, que se torna cada vez mais generalizada (de outras pessoas específicas para outros grupos em geral)

5)      Não há na vida nada de irrevogável senão a morte. (T, p. 419)

a.       Essa máxima indica que quase tudo na vida pode ser desfeito; mas a única coisa que, com toda a certeza, não pode ser desfeita, é a morte (individual, em particular)

6)      Todos temos ainda um pé no ar sobre o limiar da verdade. (T, p. 484)

a.       Essa máxima tem um caráter mais filosófico e epistemológico que propriamente moral: ela sugere a cautela e a humildade nas ações e em nossos conhecimentos; assim, ela também evita o absolutismo filosófico

7)      Os maus têm com freqüência maior necessidade de piedade que os bons. (T, p. 537)

a.       Essa máxima é bastante direta e clara, embora sugira uma reflexão que nem sempre é entendida e seguida com clareza na prática: para avaliarmos quem age de maneira errada e/ou má, com freqüência precisamos ser mais altruístas que com aqueles que agem de maneira correta, a fim de não sermos injustos

b.      Além disso, em um sentido mais profundo, essa máxima indica que não podemos entregar-nos ao ódio e à raiva ao tratarmos (de maneira ocasional ou permanente) de e/ou com pessoas, grupos ou assuntos que despertem o ódio ou a raiva: afinal, como se diz, apenas o amor constrói



[1] Carta de Clotilde a Comte, de 30.11.1845 (109ª carta do epistolário).

Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte e Clotilde, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903, p. 49-50. Edição eletrônica em francês de 1916: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f3d104ea-4350-4a3d-a58a-63ec4a10fc54.

[2] Carta de Clotilde a Comte, de 5.12.1845 (113ª carta do epistolário).

Fonte: Raimundo Teixeira Mendes, Comte e Clotilde, Rio de Janeiro, Igreja Positivista do Brasil, 1903, p. 60. Edição eletrônica em francês de 1916: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/f3d104ea-4350-4a3d-a58a-63ec4a10fc54.

[3] O seguinte trecho do Catecismo positivista é elucidativo a respeito: “Se as teorias morais fossem tão cultivadas como o são as outras, sua complicação superior expô-las-ia, dada essa indisciplina especial, a divagações mais freqüentes e mais nocivas. Mas o coração vem, então, guiar melhor o espírito, recordando com mais força a subordinação universal da teoria à prática, em virtude de um título felizmente ambíguo. Os filósofos devem, com efeito, estudar a moral com a mesma disposição com que as mulheres a estudam, a fim de haurir nela as regras de nossa conduta. Somente a ciência dedutiva deles proporciona às induções femininas uma generalidade e uma coerência que estas não poderiam adquirir por outro modo, e que entretanto se tornam quase sempre indispensáveis à eficácia pública, ou mesmo privada, dos preceitos morais” (Augusto Comte, Catecismo positivista, 2ª ed., Rio de Janeiro: Igreja Positivista do Brasil, 1895, p. 218-219; versão eletrônica disponível aqui: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/7f269639-d637-40eb-9ba9-d15010dab59f).

[4] Aqui e nas citações abaixo, o “T” refere-se ao Testamento de Augusto Comte. Além disso, “Lúcia” foi uma novela escrita por Clotilde, com um caráter parcialmente autobiográfico e altamente valorizada por Augusto Comte. Uma versão eletrônica do Testamento pode ser lida aqui: https://bibdig.biblioteca.unesp.br/items/510b1daa-24d3-48e3-a1ed-ddce5191ee5a.

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