Comentários sobre o academicismo e o
cientificismo
- À primeira vista, pode parecer estranho ou irônico que o Positivismo aborde o academicismo e o cientificismo
o Essa estranheza ou ironia deve-se ao fato de que, justamente de acordo com os parâmetros estabelecidos pelos próprios academicismo e cientificismo, o Positivismo seria extremamente ou seria por definição academicista e/ou cientificista
o Assim, para limpar o terreno e deixar clara a posição do Positivismo a respeito: o academicismo e o cientificismo são vícios intelectuais e institucionais, de orientação metafísica e que correspondem a hábitos contrários ao que o Positivismo estabelece ou recomenda
o Convém notar que as palavras “cientificismo” e “academicismo” são relativamente recentes, tendo sido elaboradas, com objetivos críticos, após a morte de Augusto Comte; ou seja, ele próprio não as empregou, embora os conceitos estejam meio ou menos subjacentes a inúmeras passagens do fundador do Positivismo
- Tratando inicialmente do cientificismo: podemos defini-lo a parti do Positivismo como sendo a tendência da ciência a constituir-se de maneira absoluta e, portanto, metafísica
o É importante lembrarmos alguns aspectos:
§ Ao longo de sua constituição, a ciência sempre reconheceu e buscou o relativo, ao buscar as leis naturais (e, assim, rejeitando na prática, quando não na teoria, a metafísica e o absoluto)
§ A tendência absolutista (e metafísica) da ciência não tem nada a ver com afirmações como a de que a ciência seria, sempre e de qualquer maneira, metafísica, porque teria “pressupostos filosóficos” ou porque muitos de seus conceitos teriam origem teológico-metafísica
· Afirmações desse tipo servem apenas para conscientemente confundir, misturar e, a partir disso, legitimar a metafísica
o A ciência adota metas absolutas quando passa a considerar-se um objetivo por si só e para si mesma, independentemente de quaisquer outras considerações morais, intelectuais e práticas
§ De maneira bastante direta, essa tendência pode ser vista quando os cientistas afirmam que o desenvolvimento infinito da ciência é, por si só, um objetivo aceitável, bom, correto
§ Em outras palavras, isso se dá quando a ciência rejeita limites intelectuais e mesmo morais à sua atividade
o Uma outra possibilidade de a ciência constituir-se de maneira absoluta é quando ela francamente estabelece para si própria a investigação do absoluto: por exemplo, a origem do universo
o Ainda outra possibilidade de a ciência tornar-se absoluta é quando ela estabelece, implícita ou explicitamente, que seus procedimentos são os únicos aceitáveis
§ Isso não se refere à necessidade de bases empíricas para qualquer afirmação; não se refere às relações entre fatos e conceitos; não se refere ao relativismo
§ Isso se refere, sim, à rejeição da concepção de que a ciência, em si mesma, por mais importante que ela seja, é apenas uma etapa prévia – de caráter essencialmente intelectualista, analítico, parcial e especializante – para uma elaboração filosófica superior e posterior – que abrange o conjunto da existência humana, de caráter sintético, globalizante e generalizante
§ Essa necessária elaboração de síntese filosófica posterior à atividade científica coordena os vários resultados científicos entre si e que os situa no conjunto da existência humana, em particular subordinando a inteligência às necessidades humanas e, daí, subordinando duplamente a ciência a tais necessidades (subordina como integrante da inteligência e subordina ainda mais como atividade analítica, parcial e especializante)
§ Em outras palavras, quando os cientistas e os filósofos da ciência rejeitam a síntese positiva subjetiva e relativa, que se constitui na Religião da Humanidade, eles são plenamente cientificistas
· O cientificismo, então, não está no que corresponde ao que é próprio e legítimo na ciência (como nas críticas que os teológicos e os metafísicos fazem à ciência e para quem qualquer afirmação da ciência é “cientificista”); o cientificismo está nos desvios daquilo que é próprio e legítimo à ciência
o Como um importante caso particular da situação anterior, uma outra forma de cientificismo é quando se considera que, apesar dos inúmeros e graves defeitos lógicos e morais da teologia e da metafísica ao longo da história, elas não teriam desempenhado nenhuma função efetiva no desenvolvimento humano, como etapas necessárias desse desenvolvimento, mesmo no sentido da constituição da ciência
o Um outro caso particular da situação anterior é quando os cientistas e os filósofos da ciência afirmam o reducionismo
§ O reducionismo consiste na negação da autonomia de ciências superiores e o “imperialismo” de ciências inferiores sobre elas
§ Exemplos: o algebrismo (tudo reduz-se aos números ou ao movimento dos corpos), o “astronomismo” (no caso da astrologia), o “fisicalismo”, o “quimicismo”, o biologicismo, o sociologismo, o economicismo; inversamente, há também o psicologismo (que, todavia, basicamente não é uma forma de reducionismo)
o Quais os motivos que explicam a acusação – infundada e injusta, como vemos – de que o Positivismo seria cientificista? Sugerimos três ou quatro possibilidades, não necessariamente excludentes entre si:
§ A busca de um bode expiatório e/ou de um álibi para os hábitos cientificistas de outras correntes e grupos, em que se atribui aos outros os próprios defeitos
§ A ignorância generalizada e/ou os preconceitos contra o Positivismo
§ A má-fé e a desinformação, ou seja, a imputação intencional de características sabidamente erradas ao Positivismo
§ A rejeição da aplicação à ciência dos parâmetros morais e intelectuais próprios à síntese subjetiva e relativa
- Tratando do academicismo: podemos defini-lo a partir do Positivismo como sendo a tendência a considerar que somente na academia, isto é, nas universidades, é possível ser inteligente, produzir ciência e, de modo geral, produzir conhecimento
o Inversamente, o academicismo estabelece que qualquer produção intelectual que se desenvolva fora das universidades não tem valor intelectual
§ O academicismo chega a tal ponto que muitas vezes nem mesmo instituições de pesquisa que não sejam “universidades” são respeitadas
o Em virtude disso, o academicismo considera que, se alguém não possui um diploma, não tem valor intelectual
§ Em outras palavras, inversamente, o academicismo estabelece que o valor intelectual de alguém está vinculado à posse de algum(ns) pedaço(s) de papel
o Mas é necessário termos clareza a respeito de um aspecto central: o vício moral-intelectual-institucional do academicismo é muito diferente da valorização da instrução e da busca de conhecimentos teóricos e práticos
§ Em outras palavras, ao criticarmos o academicismo, não criticamos os esforços coletivos e individuais em prol do esclarecimento e do conhecimento
o Uma outra manifestação do academicismo é julgar que, se algum corpo doutrinário não foi elaborado nas universidades, ou não foi ensinado nas universidades, ele não tem existência efetiva e/ou ele não tem valor
§ Por exemplo: como a Sociologia foi fundada por Augusto Comte fora das universidades e ela só passou a ser ensinada a partir dos anos 1890, com uma outra geração de pensadores, não positivistas e estreitamente vinculados a universidades, a Sociologia só teria surgido a partir dos anos 1890
§ Ou, inversamente: como Augusto Comte elaborou suas reflexões fora das universidades, a sua Sociologia não seria científica, não seria uma “verdadeira Sociologia”
o Essas concepções são aplicadas atualmente, mas é claro que sempre foram autoaplicadas pelo e ao público universitário
§ Além da aplicação à realidade atual, essas concepções também são ampliadas e exageradas para considerar que as universidades em geral, desde sempre, foram sempre bastiões do conhecimento verdadeiro
- A partir das definições acima, parece claro que, embora cada um dos conceitos sejam independentes um do outro, eles costumam andar juntos
o O academicismo, dependendo da sua versão (ou dos seus exageros), pode ser cientificista ou não: ele pode fingir que as universidades durante séculos não foram bastiões conservadores ou retrógrados da metafísica e da teologia
- Para concluir: vale reforçar que o Positivismo é anticientificista e antiacademicista
o A concepção de ciência do Positivismo valoriza a ciência, mas reconhece e estabelece limites a ela e, ao coordenar a existência humana, estabelece que a ciência ocupa uma posição necessariamente limitada e subordinada
§ Para usar conceitos atuais: o Positivismo tem uma concepção reflexiva, profunda e densa da ciência e do conhecimento humano; dessa forma, sua concepção da ciência não é simplista e não a considera todo-poderosa
o Como vemos, o Positivismo é antiacademicista por si só, mas o anticientificismo do Positivismo reforça o antiacademicismo
§ O antiacademicismo também se vincula a um respeito pela sabedoria popular
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