15 agosto 2011

Tradução do "Discurso sobre o conjunto do Positivismo" II

Continuando do ponto em que parei antes, posto algumas páginas adicionais da tradução do "Discurso sobre o conjunto do Positivismo". Eventuais correções da tradução e/ou da digitação serão bem-vindas.

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A fraca influência da razão sobre nossa natureza imperfeita interditaria diretamente sobre o novo sacerdócio fazer respeitar suficientemente a dignidade social da verdadeira teoria e sua justa relação com a prática. Mas essa dupla solidariedade fundamental assegurar-lhe-á poderosos apoios em cada cidade, e mesmo no interior de cada família, para organizar a legítima reação moral dos pobres sobre os ricos. A educação universal fornecer-lhe-á, aliás, entre as classes dirigentes, uma assistência suplementar, por meio do acesso de seus mais nobres membros a uma espécie de nova cavalaria. Entretanto, malgrado essa vasta organização da força moral, o ascendente espontâneo de nossa personalidade encontra-se de tal modo pronunciado que a solução efetiva do grande problema humano permanecerá muito inferior aos nossos justos desejos. Essa apreciação, comum a todos os aspectos de nosso verdadeiro destino, deve somente nos encorajar mais a melhor concertar todos os nossos esforços para aperfeiçoar a ordem natural em suas disposições mais importantes, que são, por sua vez, as mais modificáveis e as mais imperfeitas.

Nosso principal progresso, tanto coletivo quanto individual, consiste em desenvolver sempre esse império que não pertence senão a nós sobre nossas próprias imperfeições, sobretudo morais. Essa tendência característica não poderia suficientemente surgir na Antigüidade, que pôde somente lhe preparar a manifestação por meio de um indispensável preâmbulo, intelectual e social. Sua destinação foi mesmo de tal modo incompatível com a posição direta da grande questão humana que ela exige sempre, ao contrário, a íntima subordinação da moral à política. Mas esse nobre fim convém tanto à nossa espécie que, desde a Idade Média, a ela tendeu abertamente, malgrado os obstáculos que oferecem ainda a insuficiente realização dessas duas condições preliminares. A doutrina dominante não estava ainda suficientemente real nem suficientemente completa, o caráter social mantinha-se muito militar e muito aristocrático para permitir então a constituição do ascendente final da moral sobre a política. Entretanto, a insuficiência necessária dessa admirável tentativa não impediu as populações ocidentais de já apreciar esse princípio fundamental, que sobreviveu após o irrevogável declínio das opiniões e dos hábitos de que ele inicialmente surgiu. Para fornecer-lhe uma preponderância decisiva, era necessário que o verdadeiro espírito filosófico, por muito tempo subordinado aos mais simples estudos, abrangesse gradualmente todo o domínio especulativo, até tornar-se plenamente sistemático, depois de sua extensão final às contemplações sociais. Ao mesmo tempo, era indispensável que a atividade industrial prevalecesse irrevogavelmente sobre a existência militar entre todas as populações preparadas pela incorporação romana e pela iniciação católico-feudal. Esse duplo preâmbulo elementar realizou-se, conjuntamente com a decomposição geral do antigo regime, durante a longa transição que nos separa da Idade Média. Uma comoção decisiva desde logo conduziu a elite de nossa espécie a retomar diretamente, sobre melhores bases mentais e sociais, o grande problema proposto por nossos pios e cavalheirescos ancestrais, para instituir enfim sua solução radical, que o Positivismo vem hoje sistematizar e formular.

Todas as fases essenciais dessa preparação coletiva exigem equivalentes na iniciação individual, espontânea ou sistemática, sob pena de insuficiência. Mas é necessário em seguida que esses diversos modos e graus da regeneração humana, além de sua íntima conexão, sejam todos conduzidos a um mesmo centro, próprio a constituir diretamente a unidade fundamental do regime definitivo. Sem essa condensação final, a sistematização positiva não saberia substituir inteiramente a sistematização teológica, malgrado a homogeneidade e a solidariedade superiores de seus elementos mais reais e mais estáveis. Ao seu princípio afetivo, à sua base racional e ao seu fim objetivo, o Positivismo deve então juntar um centro único, que abranja ao mesmo tempo o sentimento, a razão e a atividade. Tal é a última condição de seu ascendente decisivo, tanto privado quanto público.

Ela encontra-se inteiramente realizada pela convergência natural de todos os aspectos positivistas na grande concepção da Humanidade, que vem eliminar irrevogavelmente a de Deus, para constituir uma unidade definitiva mais completa e mais durável que a unidade provisória do regime inicial. A extensão e a aplicação da nova doutrina general tornar-se-ão assim acessíveis a todos os corações e, em conseqüência, a todos os espíritos, evitando hoje um longo e difícil preâmbulo científico, que permanece somente indispensável a seus órgãos sistemáticos.

Conforme sua natureza mais moral que mental, tal centro universal do Positivismo representa da mesma forma o princípio afetivo da sistematização final. Pois o caráter próprio desse novo Grande Ser consistindo em ser necessariamente composto por elementos separáveis, toda a sua existência repousa sobre o amor mútuo que liga sempre suas diversas partes, sem que qualquer cálculo possa jamais substituir um tal instinto.

A essa preponderância direta do sentimento social corresponde o desenvolvimento contínuo do espírito de conjunto, o único que permite conceber o concurso espontâneo de que resulta esse imenso organismo, fazendo abstração de todos os conflitos parciais. A razão participa então como o amor dessa condensação final. Por outro lado, somente ela completa a noção do verdadeiro Ser Supremo, ao desvendar todas as condições, exteriores e interiores, de sua existência real.

Mas a atividade não é menos inerente que o sentimento e a razão à natureza da unidade positivista. Pois o organismo mais completo deve, mais que qualquer outro, reagir sem cessar sobre o meio correspondente, para modificá-lo subordinando-se a ele. Daí resulta o progresso necessário, que não é nunca que o desenvolvimento da ordem emanada do amor.

A Humanidade condensa então diretamente as três características essenciais do Positivismo, seu motor subjetivo, seu dogma objetivo e seu fim ativo. Somente a esse verdadeiro Grande Ser, de que nós somos conscientemente os membros necessários, referem-se doravante todos os aspectos de nossa existência, individual ou coletiva, nossas contemplações para conhecê-la, nossos afetos para amá-la e nossas ações para servi-la.

Eis como os positivistas podem, melhor que os teológicos quaisquer, conceber a vida como um verdadeiro culto, tão íntimo quanto usual. Esse culto contínuo da Humanidade exaltará e purificará todos os nossos sentimentos; engrandecerá e esclarecerá todos os nossos sentimentos; enobrecerá e consolidará todos os nossos atos. O grande problema da Idade Média aí se encontra diretamente resolvido tanto quanto possível, pois a subordinação da política à moral resulta necessariamente de uma preponderância sagrada da sociabilidade sobre a personalidade.

É assim que o Positivismo torna-se enfim uma verdadeira religião, a única completa e real, destinada a prevalecer sobre todas as sistematizações imperfeitas e provisórias que emanaram do teologismo inicial.

A unidade das teocracias antigas foi ela mesma insuficiente, pois sua natureza puramente subjetiva não pôde jamais abranger plenamente a existência prática, sempre subordinada à realidade objetiva. Limitada ao sentimento e à razão, essa sistematização primitiva perdeu logo uma notável parte de seu domínio intelectual, quando o espírito estético libertou-se irrevogavelmente da tutela teocrática, por melhor se adaptar à vida real, seguindo sua vocação espontânea. Mantidos ainda como os únicos árbitros da ciência e da moral, os padres viram em seguida decrescer bastante sua autoridade teórica, assim como o desenvolvimento abstrato das menores concepções positivas permitiu o nascimento da filosofia propriamente dita. Ainda que ela não pôde então ser senão metafísica, ela tendia já a uma sistematização antissacerdotal, que, sem comportar nenhuma eficácia orgânica, arruinou o politeísmo e terminou por transformá-lo em monoteísmo. Nesse modo extremo da teologia, a autoridade especulativa do sacerdócio foi tão radicalmente alterada quando o princípio de sua doutrina. Os padres perderam então o ascendente científico, como perderam no início o ascendente estético. Eles conservaram somente uma supremacia moral, logo comprometida pela emancipação intelectual, de que o espírito positivo constitui a fonte real, ainda que o espírito metafísico tenha-lhe servido então de órgão sistemático.

Quando a ciência cresceu o suficiente para separar-se também da filosofia, ela não tardou a manifestar sua tendência necessária em direção a uma nova unidade especulativa, não menos contrária a toda metafísica que a toda teologia. Essa construção final, naturalmente sujeita a uma lenta sucessão de preâmbulos que as duas outras não exigiam, conduzia além disso o espírito científico a sistematizar a vida ativa, de que ele emana espontaneamente, à medida que dominava o domínio especulativo. Mas esse duplo ascendente não podia completar-se senão pela recente fundação da verdadeira ciência social, constituída enfim por minha teoria histórica. Desde então, os verdadeiros cientistas [savants], elevando-se à dignidade filosófica, tendem necessariamente ao caráter sacerdotal, pois essa elaboração final conduz à preponderância sistemática do princípio afetivo, de que resulta logo uma construção completa tanto quanto homogênea. Assim erigidos em padres da Humanidade, os novos filósofos devem obter um ascendente, intelectual e moral, mais estendido e enraizado que o do sacerdócio antigo. Sua exclusão necessária de toda autoridade temporal torna-se a condição fundamental dessa supremacia espiritual, para garantir a divisão sistemática entre a teoria e a prática. Nenhuma degeneração teocrática é possível em um regime em que o conselho e o comando não podem nunca emanar dos mesmos órgãos.

Conforme essa inteira renúncia à grandeza e à riqueza, individuais ou mesmo coletivas, os padres da Humanidade poderão obter uma incomparável dignidade, ao reunirem o ascendente intelectual, tanto estético quanto científico, e o ascendente moral, sempre separados depois da extinção das teocracias. A razão, a imaginação e o sentimento combinar-se-ão assim para modificar profundamente o império necessário da atividade prática, segundo as verdadeiras leis da moral universal, de que ele [o império da atividade prática] tende sempre a separar-se. Esse novo poder moderador adquirirá tanto mais influência quanto sua sistematização terá precedido e preparado o desenvolvimento direto do regime definitivo; ao passo que o teologismo não tendeu à unidade senão na época de seu declínio. O sacerdócio positivo deve então regenerar ao mesmo tempo todas as funções relativas ao nosso próprio aperfeiçoamento, destinando a ciência a estudar a Humanidade, a poesia a cantá-la e a moral a amá-la, a fim de que, com base nesse irresistível concurso, a política aplique-se sem cessar a servi-la.

Uma tal missão fornece à ciência real uma grandeza e uma consistência que não há iguais, pois somente ela faz-nos conhecer a natureza e a condição do verdadeiro Grande Ser, cujo culto completo deve caracterizar toda nobre existência. Ainda que essa determinação fundamental não pareça exigir senão estudos sociológicos, ela repousa necessariamente sobre um duplo preâmbulo lógico e científico, relativo, inicialmente, ao mundo exterior e em seguida ao homem individual, a fim de apreciar o meio e o agente desses eminentes fenômenos.

O culto dos positivistas não se dirige, como o dos teologistas, a um ser absoluto, isolado, incompreensível, cuja existência não comporta nenhuma demonstração e que rejeita toda comparação real. Nenhum mistério deve alterar a evidência espontânea que caracteriza o novo Ser Supremo. Ele não será dignamente cantado, amado e servido senão após um suficiente conhecimento das diversas leis naturais que regem sua existência, as mais complicadas que podemos contemplar.

De acordo com essa complicação superior, ele oferece, mais ainda que qualquer outro organismo, esse duplo atributo de solidariedade interior e de subordinação exterior que pertence a todo corpo vivo. Malgrado sua imensa extensão no tempo e no espaço, a exata apreciação de cada um de seus fenômenos manifesta-nos seu consenso universal. Sua existência é também a mais dependente da necessidade exterior, resultante, em relação a cada ser real, do conjunto das leis inferiores. A todas as fatalidades ordinárias, matemáticas, astronômicas, físicas, químicas e biológicas, vêm então se juntar as fatalidades sociológicas, estrangeiras às naturezas menos eminentes. Mas, por uma última conseqüência geral de sua complicação característica, esse grande organismo reage necessariamente mais que qualquer outro sobre o conjunto do mundo real, de que ele é o verdadeiro chefe. Sua definição científica parece então se reduzir a concebê-lo como o ser verdadeiramente supremo, que manifesta mais todos os principais atributos da vitalidade.

Mas uma última característica essencial, que não pertence senão a si mesma, deve completar sua noção fundamental, ao apreciar sistematicamente a independência necessária de seus próprios elementos. Enquanto as diversas partes de qualquer outro organismo não saberiam viver isoladamente, a grande existência compõe-se de vidas realmente separáveis. Ainda que essa independência não impeça o consenso, ela também é tão indispensável quanto o concurso para a natureza de um tal ser, que perderia toda sua superioridade se seus elementos tornassem-se inseparáveis. A dificuldade de conciliar essas duas condições igualmente fundamentais explica suficientemente a lentidão dessa suprema evolução. Entretanto, o novo Grande Ser não supõe, como o antigo, uma abstração puramente subjetiva. Sua noção resulta, ao contrário, de uma exata apreciação objetiva; pois o homem, propriamente dito, não existe senão no cérebro mais abstrato de nossos metafísicos. No fundo, não há nada de real senão a humanidade, ainda que a complicação de sua natureza tenha-nos interdito até aqui de sistematizar sua noção, termo necessário de nossa iniciação científica. Essa última apreciação conduz a completar a concepção sistemática do Ser Supremo, distinguindo duas ordens de funções elementares, umas de atividade, outras de ligação. Com efeito, não há nela nada de diretamente ativo senão as partes separáveis; mas a eficácia de suas operações depende de seu concurso, espontâneo ou concertado. Um tal organismo supõe então ao mesmo tempo funções exteriores, essencialmente relativas à sua existência material, e funções interiores, especialmente destinadas a combinar seus elementos móveis. Ora, essa indispensável divisão reduz-se, no fundo, a estender até ao organismo coletivo a grande teoria do incomparável Bichat sobre a distinção das duas vidas, de nutrição e de relação, em todo organismo individual. É aí que é necessário obter a verdadeira fonte sistemática da separação normal dos dois poderes sociais. O poder Temporal, o único diretor, emana da personalidade e desenvolve a atividade, do que resulta a ordem fundamental; ao passo que o poder Espiritual, puramente moderador, representa imediatamente a sociabilidade e institui o concurso, que determina o progresso. Assim, na concepção do Grande Ser, o primeiro corresponde ao aparelho nutritivo e o segundo ao aparelho nervoso do organismo individual.

O conjunto desse estudo estático permite em seguida à ciência apreciar diretamente a existência dinâmica correspondente, conforme minha teoria fundamental da evolução humana, como exporá o terceiro volume deste tratado. Nosso Grande Ser não é mais imóvel nem absoluto; sua natureza relativa torna-o eminentemente passível de desenvolvimento: em uma palavra, ele é o mais vivo dos seres conhecidos. Ele estende-se e compõe-se mais e mais pela sucessão contínua das gerações humanas. Mas suas mutações necessárias são tão sujeitas quanto suas funções fundamentais a leis invariáveis. Seu conjunto, doravante apreciável, constitui um espetáculo mais imponente que a sublime inércia do antigo Ser Supremo, cuja existência passiva não era suspensa senão por inexplicáveis caprichos. Assim, somente a ciência real pode fazer-nos apreciar esse destino preponderante, que domina e envolve todos os nossos. Como a respeito dos menores fenômenos, é ao estudo sistemático do passado que pertence a determinação do porvir para caracterizar o presente. Da concepção normal do Grande Ser, passamos então à história de sua formação contínua, cujo conjunto resume todos os progressos quaisquer. Sua noção era incompatível, na Antigüidade, seja com o ascendente do espírito teológico, seja com o desenvolvimento da atividade guerreira, fundada sobre a escravidão dos produtores. Somente a pátria, mesmo muito restrita inicialmente, podia constituir então o prelúdio necessário da Humanidade. Sob essa nacionalidade primitiva, surgiu, na Idade Média, o sentimento da fraternidade universal, de acordo com o caráter defensivo da nova atividade militar e da livre concentração das crenças sobrenaturais em um monoteísmo comum a todo o Ocidente. O desenvolvimento dos hábitos cavalheirescos e o primeiro esboço de uma separação normal entre os dois poderes elementares, anunciaram já a elaboração direta do grande organismo, proclamando a subordinação da política à moral. Mas a natureza quimérica e egoísta das crenças dominantes, assim como o caráter militar e aristocrático desse regime transitório, não permitiram então outra preparação imediata que a indispensável abolição de toda escravidão pessoal, principal resultado dessa grande época. Os hábitos industriais tendo assim começado a prevalecer, o sentimento de fraternidade pôde apoiar-se sobre uma atividade verdadeiramente universal. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento decisivo da positividade racional preparou a elaboração final da ciência social, a única capaz de sistematizar tais preparações, para construir diretamente a noção do verdadeiro Grande Ser. Essa concepção foi inicialmente tornada sistemática quanto às funções especulativas, sobretudo científicas, que suscitaram, faz dois séculos, a primeira fórmula relativa a esse imenso e eterno organismo[1]. Ao longo da indispensável dissolução do sistema teológico e militar, a evolução moderna fez em seguida surgir, com base nas suas diversas preparações orgânicas, a noção real do progresso contínuo que caracteriza essa vida coletiva. Mas a concepção da Humanidade não pôde constituir uma nova unidade fundamental senão após o estremecimento decisivo que, de uma parte, manifestou a urgência de uma regeneração universal e, de outra parte, suscitou a filosofia capaz de sistematizá-la. É assim que a contemplação do Grande Ser acompanha sempre sua formação gradual. Sua concepção atual resume tanto o conjunto de nossas preparações sociais quanto o de nossas especulações positivas.

Ao caracterizar assim a consagração direta da ciência regenerada, seria supérfluo insistir aqui na dignidade que ela fornece ao seu indispensável preâmbulo inorgânico e biológico, desde então intimamente anexado ao dogma final. As partes mais inferiores recebem dessa forma uma augusta destinação social, seja com base em sua superioridade lógica, seja em virtude de sua necessidade científica. É verdade que a religião da Humanidade exige hoje a abolição radical do regime acadêmico, como sendo ao mesmo tempo imoral e irracional, sobretudo na França. Esse duplo perigo resulta, com efeito, entre os geômetras, de sua cega limitação ao simples começo da iniciação positiva; entre os biólogos, de um tendência empírica a instituir seus estudos sem base e sem destinação sistemáticos. O bom senso e a moral proscreverão logo toda especialidade teórica que não seja concebida e cultivada de acordo com as vistas enciclopédicas, próprias a vinculá-la sempre ao conjunto de nossa existência. Não se pode conter de outra forma o idiotismo e o egoísmo, já demais desenvolvidos, que suscitam necessariamente a anarquia atual. Mas essa indispensável depuração assegurará em seguida a consagração pública de todos os verdadeiros trabalhos científicos, mesmo a respeito dos menores objetos. Assim corrigidos de sua desastrosa secura, os estudos matemáticos manifestarão sempre sua secreta aptidão moral, como as únicas reais de convicções verdadeiramente inabaláveis, que não saberiam obter nas altas especulações aqueles que não saibam obtê-las nas mais simples. Quando a íntima conexão de todas as nossas concepções encontrar-se assaz apreciada, o Grande Ser afastará tanto o publicista que se mantém estrangeiro à geometria quanto o geômetra que desdenha da Sociologia. Da mesma forma, purificados de seu perigoso materialismo, os estudos biológicos adquirirão desde então a imponente grandeza devida às teorias preliminares mais próximas da ciência final e as mais próprias a preparar o dogma fundamental. O espírito que aspirava a compreender o Ser Supremo sem ter de início apreciado as vitalidades inferiores não seria menos censurável que aquele que se recusava a vincular a Biologia à sua única destinação normal. Tornados indispensáveis às demonstrações morais e dignamente subordinadas às inspirações do coração, todos os sãos estudos científicos encontrar-se-ão doravante ligados profundamente ao sacerdócio da Humanidade. O reino do verdadeiro sentimento desenvolverá o impulso da reta razão [droite raison], que, por seu turno, consolidá-la-á por uma sanção sistemática. Além de sua evidente necessidade para regularizar a atividade espontânea do Grande Ser, a filosofia natural tende imediatamente a aperfeiçoá-la, ao tirar do exterior a única base de fixidez que comporta o conjunto de nossas afeições.

Irrevogavelmente votada ao estudo, direto ou indireto, da Humanidade, a ciência assumirá doravante um caráter verdadeiramente sagrado, como fundamento sistemático do culto universal. Somente ela pode fazer-nos bem conhecer, não somente a natureza e a condição do Grande Ser, mas também seus destinos e suas tendências sucessivas. Nesse sacro ofício, cuja imensa dificuldade exige a combinação habitual de todas as nossas forças especulativas, nossos menores procedimentos científicos enobrecer-se-ão por seu vínculo permanente com as mais altas funções. A precisão escrupulosa e a austera circunspecção do método positivo, que parecem tão geralmente pueris em sua aplicação ociosa, serão então respeitadas e recomendadas como garantias indispensáveis à eficácia de uma elaboração relativa às nossas principais necessidades. Sentir-se-á que, longe de ser incompatível com o verdadeiro sentimento, a verdadeira racionalidade pode concorrer bastante para consolidá-lo e desenvolvê-lo, ao manifestar melhor todas as relações reais, sobretudos sociais.

Mas qualquer imponente grandeza que a ciência regenerada deva assim receber do novo culto, este fornecerá à poesia uma consagração ainda mais direta e mais completa, assinalando-lhe uma destinação mais ativa e mais familiar. Daqui por diante votado a cantar a Humanidade, o gênio estético sentir-se-á diretamente chamado à sua missão natural, de que todo o seu desenvolvimento anterior não constitui senão seu prelúdio necessário, quase sempre realizado com impaciência pela arte, que escapou antes da ciência do jugo teocrático. Ele não aceita francamente senão o regime politeico, que lhe permite idealizar livremente todos os nossos sentimentos elementares, para representar os deuses ingenuamente conforme o tipo humano. Secretamente rebelde à concentração monotéica, que não lhe deixa senão um papel demasiado subalterno, ele tendeu, após o fim da Idade Média, a apoderar-se enfim de seu verdadeiro domínio, subordinado até então a tenebrosas quimeras. O culto do verdadeiro Grande Ser abrir-lhe-á rapidamente uma carreira inesgotável, chamando-o sobretudo a idealizar nossa existência coletiva, de que a Antigüidade não pôde oferecer-lhe senão um fraco esboço, pouco favorável à alta poesia.

De início, a arte deve participar bastante da construção direta do tipo fundamental, sob a única condição de conformar-se sempre aos grandes dados científicos. Pois a ciência não pode determinar assaz a natureza e o destino do novo Ser Supremo para satisfazer as necessidades de um culto cujo objeto deve conceber-se com clareza a fim de que se possa amá-lo sem esforço e servi-lo com ardor. Pertence ao gênio estético preencher, a esse respeito, as inevitáveis lacunas que deixa o gênio científico, sempre contido nos estreitos limites da realidade, sobretudo em um tal assunto. Seu próprio caráter dispõe-no a representar melhor o da humanidade, pois a arte participa dela mais que a ciência. A independência e o concurso, cuja combinação distingue o Grande Ser de todas as outras vitalidades, constituem também os atributos espontâneos da poesia. Ainda que sua natureza seja mais simpática que a da ciência, suas produções são entretanto as mais individuais de todas, aquelas em que o gênio próprio de cada compositor encontra-se mais marcado, pois ele deve menos a seus predecessores e a seus contemporâneos. Assim, a síntese fundamental que inaugurará o culto final convém mais à arte que à ciência, que lhe fornecerá somente uma base indispensável. A poesia terá aí ainda mais parte que na elaboração primitiva dos tipos politeicos, em que sua cooperação tão vangloriada foi mais aparente que real e reduziu-se, no fundo, a ornar os mitos construídos por uma teocracia obscurecida. Somente ela possibilitará pôr-nos no verdadeiro ponto de vista humanista, ao fazer-nos sentir dignamente todos os atributos essenciais do Grande Ser que nós compomos. Ela cantará fase por fase sua força material, seu melhoramento físico, seu progresso intelectual e sobretudo seu aperfeiçoamento moral. Antipática a toda análise, a arte explicar-nos-á a natureza e a condição da Humanidade ao representar-nos seu verdadeiro destino, sua luta contínua contra uma dolorosa fatalidade, tornada uma fonte de felicidade e de glória, sua lenta evolução preliminar e suas altas esperanças vindouras. Somente a história do amor universal, alma necessária do novo Grande Ser, forneceria à poesia regenerada um objeto inesgotável, para representar, no indivíduo e sobretudo na espécie, a admirável progressão que nos eleva gradualmente à mais pura ternura, partindo entretanto de um brutal apetite.

Esse grande ofício estético assumirá geralmente uma forma comparativa, que caracterizará a superioridade do novo culto, sem exigir nenhuma crítica especial sobre o antigo. Para melhor indicar os principais atributos do verdadeiro Grande Ser, a arte será freqüentemente conduzida, sobretudo no começo, a opor-lhe a imperfeição necessária de seus diversos precursores. A natureza absoluta, indefinida e imutável dos tipos teológicos não permitiu nunca conciliar suficientemente neles as condições essenciais de bondade, sabedoria e força, cuja combinação não se torna inteligível para nós senão em uma existência real, sujeita a leis insuperáveis. O monoteísmo substituiu os deuses ativos e simpáticos, mas sem dignidade e sem moralidade, por uma divindade tanto inerte e impassível quanto impenetrável e inflexível, ainda que sempre majestosa. Conforme a realidade que caracteriza o novo Ser Supremo, sua natureza relativa e modificável permite-nos uma apreciação mais completa e sobretudo mais apta a elevar-nos sem cessar de dominar-nos. Cada um sente nele um superior, de que depende, a todos os respeitos, o seu próprio destino, sempre subordinado à evolução coletiva. Mas essa dominação não nos anula como a antiga onipotência, pois cada digna individualidade reconhece-se, por sua vez, como indispensável para o grande organismo. Ele não é supremo senão por nosso concurso e seu ascendente é superior às outras existências conhecidas. Nenhum terror degradante atrapalha nosso amor por ele e, todavia, ele inspira-nos sempre uma sincera veneração. Longe de supô-lo perfeito, nós estudamos com cuidado suas imperfeições naturais, a fim de corrigi-las tanto quanto possível. Nós amamo-lo com uma afeição tão nobre quanto terna, que, em vez de uma vergonhosa adulação, inspira uma ativa solicitude de aperfeiçoamento. Mas todas essas vantagens do novo culto, indicadas no começo pela filosofia, não podem ser suficientemente desenvolvidas senão pela poesia. Já Goethe, e sobretudo Byron, pressentiram a grandeza moral do homem libertado de toda quimera opressiva. Todavia, eles não puderam chegar assim senão a tipos insurrecionais, em conformidade com seus ofícios revolucionários. É necessário sair do estado negativo em que seus gênios ficaram retidos por sua situação e elevar-se à contemplação positiva do conjunto das leis naturais, sobretudo sociológicas, para cantar dignamente o novo homem em presença do novo deus.

Enfim, a missão sacerdotal da arte regenerada desenvolver-se-á sob uma terceira forma geral, ao presidir o sistema de festas, públicas ou privadas, que constituirá a maior parte do culto propriamente dito. Para um tal ofício, os padres da Humanidade deverão, com efeito, aplicar mais sua aptidão estética que seu talento científico. Afinal, essa imensa função deve, no fundo, consistir em manifestar melhor a natureza, estática e dinâmica, do grande organismo, por meio da idealização de suas diversas características.

Será necessário, então, instituir duas sortes de festas, relativas aos dois atributos necessários do ser fundamental, celebrando-lhe tanto a existência quanto a atividade, de modo a desenvolver os dois elementos indispensáveis do verdadeiro sentimento social. As festas estáticas manifestarão a ordem e estimularão o instinto de solidariedade; as festas dinâmicas caracterizarão o progresso, para fazer sentir melhor a continuidade. Nesse duplo complemento periódico da educação universal, todos os princípios que ela terá proposto serão desenvolvidos e consolidados, ainda que sem nenhuma intenção didática, sempre contrária ao verdadeiro gênio da arte, que não deve instruir senão embelezando. Por outro lado, a fixidez natural de tais solenidades não impedirá jamais o sacerdócio positivista de combiná-las oportunamente, em aplicações especiais aos principais incidentes de cada situação real.

As festas da ordem serão necessariamente menos concretas e mais austeras que as do progresso. Elas deverão caracterizar a solidariedade estática do grande organismo, conforme as diversas funções fundamentais do amor que o anima. A mais geral e mais augusta será, então, a da Humanidade, que, em todo o Ocidente, iniciará dignamente cada novo ano, ao regularizar a única tendência universal que embeleza ainda nossa prosaica existência. Essa solenidade inicial será concernente diretamente à mais vasta solidariedade, de modo a dedicar um a todos os ramos de nossa espécie. Ela poderá completar-se, no mesmo mês, por três festas secundárias, relativas aos graus inferiores de associação, a nação, a província e a cidade. A essa primeira celebração direta do vínculo social, suceder-se-ão, no começo de cada um dos quatro meses seguintes, as das quatro relações de família, o casamento, a paternidade, a filiação e a fraternidade, completadas, no mês seguinte, por uma justa glorificação da domesticidade propriamente dita.

Esse sistema estático representará ao mesmo tempo a verdadeira teoria da nossa natureza, tanto coletiva quanto individual, e o conjunto correspondente da sã moral. Os impulsos puramente pessoais, malgrado sua preponderância, não devem figurar nele distintamente, pois um tal culto é sobretudo destinado a melhor subordiná-los aos instintos simpáticos. Ainda que a educação positiva conceda grande importância às virtudes correspondentes, elas não merecem uma celebração especial, que conduziriam ao egoísmo. Elas devem ser glorificadas apenas indiretamente, em todas as partes do culto humanista, conforme sua influência real sobre os afetos generosos. Daí que não resulta, então, nenhuma verdadeira lacuna no quadro estético de nossos atributos e de nossos deveres. Esse quadro não exige u’a manifestação mais especial da subordinação necessária do Grande Ser ao conjunto do mundo exterior. Com efeito, essa necessidade fundamental faz-se sentir em toda parte, seja que se celebre nossas inclinações que ela regula, seja nossas especulações que ela determina, seja nossa atividade que ela impõe. Apenas a periodicidade de nossas solenidades segundo os movimentos do astro que nos conduz lembra suficientemente nossa invencível subordinação às fatalidades exteriores.

Quanto às festas dinâmicas, destinadas a celebrar o progresso, seu conjunto deve representar a história como o outro [faz com] a moral. O culto estético da Humanidade torna-se aí mais concreto e mais animado, consistindo sobretudo em glorificar os melhores tipos individuais das diversas fases da grande evolução. Entretanto, também é necessário que os principais graus da progressão social sejam abstratamente celebrados, independentemente de toda comemoração pessoal. Ao consagrar-lhes os meses que sobraram do culto estático, quatro festas eqüidistantes glorificarão as três grandes fases do passado, fetíchico, politeico e monoteico, para levar à festa do porvir, termo normal de uma tal celebração.


[1] Referência à sugestão de Blaise Pascal (1623-1662) de considerar a Humanidade como um único indivíduo que se desenvolve ao longo do tempo (nota do tradutor).

08 agosto 2011

Sobre a desconsideração da subjetividade na Teoria Política

A teoria política de Augusto Comte reconhece de maneira radical dois âmbitos da ação social: os poderes Temporal e Espiritual. Cada qual tem suas particularidades sociológicas e seu domínio político; as recomendações de Comte levam sempre em conta essa diversidade. Ora, a Teoria Política, pelo menos desde Hobbes, mas com certeza desde Guilherme de Ockham, desconsidera o poder Espiritual e afirma somente o Temporal; daí a facilidade com que as recomendações de Comte destinadas ao poder Espiritual sejam lidas como sendo para o Temporal, com a conseqüente interpretação de “autoritarismo” (basta ler-se Stuart Mill para evidenciar-se a utilização sistemática dessa falácia). (Aliás, deve-se juntar a isso a hipocrisia teórica, que assume que a citação comtiana de Hobbes é um sinal seguro de seu “autoritarismo”, como se Marx, Weber e toda a tradição política ocidental, com a exceção de Hannah Arendt, não afirmassem que o Estado funda-se em última análise na violência física: basta ler-se Roberto Romano para comprovar-se o emprego dessa falácia.)

Por outro lado, em sentido inverso, o problema subjacente à má interpretação da teoria política de Comte indica um empobrecimento muito grande da Teoria Política de modo geral, que só entende a política em termos de Estado, dominação, “aparelhos coercitivos”, “interesses” etc., de modo a ignorar os elementos ideacionais da política, ou a encará-los de maneira cínica e instrumental.

A acusação de que A. Comte é autoritário revela um brutal empobrecimento teórico da Teoria Política: seu resultado prático é fácil de prever e de comprovar: é a política da força, é afirmação de que o único meio aceitável para a vida política é por meio do Estado e, last but not the least, a doutrina oficial de Estado.

Uma outra conseqüência desse empobrecimento teórico, agora de caráter metodológico, é o desenvolvimento das propostas “interpretativas” nas C. Humanas: como o movimento moderno é em direção ao “materialismo” e, ao mesmo tempo, a Teoria Política enfatiza o poder, as concepções que desconsideram a subjetividade perdem importância. Isso, por sua vez, permite que a metafísica da “vontade”, da “ontologia”, do máximo subjetivismo tenha espaço: daí as propostas “interpretativistas”.

Recusa do "ordem e progresso" como afirmação da metafísica da vontade

A recusa em aceitar que “a ordem é a base do progresso” e que “o progresso é o desenvolvimento da ordem” tem uma origem intelectual, que reforça e é reforçada por dificuldades de concepções políticas. A negação de que o progresso tem necessariamente que se basear na ordem implica que não se aceita limitações para a ação humana, que seria onipotente e infinitamente plástica: a afirmação das “vontades” (ou, mais recentemente, da “imaginação”) é um dos traços da metafísica (se a “vontade” for “divina”, tratar-se-á de teologia). Em sentido semelhante, o elogio da política como sendo o reino da vontade – como feito por muitos dos críticos da “tecnocracia”, das leis naturais e de qualquer coisa que constranja a liberdade da “vontade” – nada mais é que a afirmação do conceito metafísico de vontade, da vontade ilimitada; esse conceito, como diversos outros, aliás, é bastante característico do pensamento alemão e foi ilustrado bem no escrito de Max Weber, Governo e parlamento.

Sobre teorias morais cientificamente embasadas

É possível uma teoria moral que não leve em consideração a realidade humana? Ou, em outras palavras, é possível definir-se o que bom e ruim, belo e feio, justo e injusto sem se conhecer como é o ser humano, sua situação no mundo, as características de sua vida coletiva, o funcionamento de sua mente? Além disso, é possível teorizar a moral sem entender as mudanças ao longo do tempo por que passa o ser humano?

De um ponto de vista estritamente lógico, é claro que, sim, é possível ignorar cada uma, várias ou todas as condições acima; prova disso são as inúmeras teorias que histórica ou atualmente estão à disposição. Todavia, não apenas o ser humano já dispõe – na verdade, desde há pelo menos 150 anos – de conhecimentos cosmológico e social para elaborar teorias que satisfazem as condições acima quanto, por outro lado, os ideais morais – que, por si sós, já são dificilmente atingíveis (e devem ser assim) – só podem (ter alguma chance de) sucesso caso correspondam à realidade dos fatos.

Assim, por um lado, a moralidade exige o conhecimento da realidade para estabelecer-se. (Na verdade, trata-se também de uma questão de eficácia: a realidade impõe-se de qualquer forma; a rejeição a ela ou sua ignorância não apenas não facilitam nada como, ao contrário, freqüentemente dificultam a vida e tornam-na triste e desgostosa.) Por outro lado, a moralidade é o complemente necessário da realidade. Esse “complemento” ocorre em dois níveis, que são em última análise duas facetas do mesmo aspecto: deve-se conhecer a realidade para aplicar-se o conhecimento; a aplicação segue parâmetros que em última análise são morais. Ao mesmo tempo, a moralidade indica o que deve ser estudado ou não.

Evidentemente, é possível separar de modo radical a moralidade da realidade; é possível até mesmo opô-las e agir como se uma não dissesse respeito à outra. Todavia, mais adequado é vinculá-las.

A moralidade tem um caráter ideal e valorativo que não se prende à realidade. Ora, o erro habitual é querer separa um da outra, de tal forma que não haja vinculação alguma entre ambos; no que se refere à moralidade, essa ausência de vinculação dar-se-ia por meio da ignorância, do altaneiro desrespeito pela realidade (com base, por exemplo, na concepção de que o “ser” é diferente do “dever-ser”). Ora, sem ignorar o aspecto puramente valorativo da moral, a questão mais importante é “calibrá-la” com base na realidade, de modo a exigir do ser humano aquilo que é possível, isto é, factível. Uma moral estabelecida dessa forma poderá servir de guia para o ser humano em termos políticos e afetivos; servirá de parâmetro para os julgamentos e as avaliações e também oferecerá modelos, ideais e idéias para serem perseguidos e realizados. Aliás, mesmo que alguns (vários) ideais não sejam efetivamente passíveis de realização (ou de realização permanente e/ou completa), nem por isso eles deixarão de ser merecedores de dedicação e respeito, ou seja, nem por isso deixarão de atuar como ideais e como valores morais.

Assim, não há incompatibilidade entre o conhecimento da realidade e a definição de parâmetros morais; na verdade, uma boa teoria moral é aquela que é concebida de acordo com a realidade historicamente perceptível das teorias morais, considerando sua importância, seus elementos e sua dinâmica, em associação com o conhecimento social e psicológico do ser humano. Bem vistas as coisas, aliás, reiteramos: a moralidade e o conhecimento da realidade – ou, para usar outras palavras, a moral e a ciência – são complementares, não opostos; não há nenhuma impropriedade em falar-se em elaborar cientificamente uma moral, nos termos definidos acima. Convém notar, por outro lado, que há, sim, impropriedade em falar em “moral científica” caso defina-se de maneira estreita tanto a moral quanto a ciência, entendendo-se a moral como algo absoluto (devido a alguma origem teológica ou metafísica dessa definição) e/ou a ciência em termos “naturalísticos”, isto é, tomando as Ciências Naturais como sinônimo de ciência tout court e subordinando os métodos e as teorias das Ciências Humanas às C. Naturais. (Na verdade, exatamente o procedimento da redução das C. Humanas às C. Naturais é o realizado por inúmeros dos que afirmam o caráter absoluto da moral.)

Essas reflexões podem ser aplicadas, por exemplo, ao que se chama de “Ciência Política”. A normatividade está presente no que se chama usualmente de “Teoria Política”; o conhecimento da realidade, na “Ciência Política” propriamente dita. Ora, uma não pode andar afastada da outra, mesmo em termos epistemológicos (no sentido de que as pesquisas empíricas requerem pressupostos morais, sem se reduzirem a eles).

Essas perspectivas, que muitos consideram o ápice da reflexão teórica contemporânea, em particular do que se chama de “pós-positivismo”, são defendidas com clareza e extrema conseqüência por Augusto Comte, o pai da Sociologia e do Positivismo. (A ignorância, o preconceito e a busca metafísica do “novo” são maiores e piores do que usualmente se pensa.)

A conjugação entre a moral e a ciência é um dos problemas mais freqüentes da atualidade; na verdade, muito do que se faz nas C. Humanas é a busca dessa conjugação. Ora, esse esforço foi o que norteou a obra de Comte. Porque A. Comte era muito “humanista” para os “científicos” e muito “científico” para os “humanistas”, sua obra com freqüência é desconsiderada: mas isso se dá, como se percebe, porque uns e outros fecham-se em seus domínios exclusivos (e exclusivistas), embora afirmem a necessidade de conciliação entre as perspectivas polares – isto é, se e quando afirmam. (Como indicamos, há os “científicos” que reduzem o ser humano às C. Naturais e há os “humanistas” que desprezam as ciências, com base em preconceitos teológicos e/ou metafísicos.)

Há outro aspecto a considerar: o espírito de mediação, de busca do meio-termo teórico, é bem mais difícil de obter-se que os extremos. De fato, é mais fácil para o ser humano pensar por meio de extremos, mormente opostos, que por meio de conceitos nuançados; todavia, no que se refere às relações entre moral e ciência, a permanência dos pólos opostos mantém dificuldades e raciocínios que não avançam nem o conhecimento nem a moralidade, ao impedir a obtenção do necessário meio-termo da complementaridade. A afirmação contínua dos pólos opostos faz o ser humano oscilar entre os exclusivismos de cada lado, em vez de adotar uma perspectiva que solucione os problemas enfrentados.

Sobre a legitimação do republicanismo via liberalismo

É completamente incorreto querer assimilar o republicanismo contemporâneo ao liberalismo. É bem verdade que qualquer teoria política atual tem que reconhecer o fato da “liberdade dos modernos”, o que pode ser facilmente assimilado à valorização liberal dos indivíduos; mas, por outro lado, como vários autores já indicaram, a liberdade negativa tem a necessidade lógica e prática da liberdade positiva e, ainda mais, uma “república” não é somente uma justaposição de indivíduos, de modo que tem que prover alguma concepção de “bem comum”. É necessário afirmar essas idéias a fim de evitar-se tentativas de legitimar o republicanismo (em particular de acordo com a riquíssima tradição francesa) via aproximação com o liberalismo (em particular o anglossaxão), como fez Jean-Fabien Spitz em Le moment républicain.

Se, nesse livro, por um lado, o autor está correto ao indicar que os pensadores por ele recenseados assumem o “indivíduo”, por outro lado, seu desejo de aproximar-se do liberalismo fá-lo desprezar republicanos que enfatizam mais o bem comum ou a coletividade que o indivíduo, embora não se filiem ao robespierrismo rousseauniano e a sua postura anti-indivíduo.

Com essa tentativa de justificar o republicanismo por meio de sua aproximação ao liberalismo, Spitz desvaloriza o republicanismo, em vez de valorizá-lo. Se só é aceitável o republicanismo de corte liberal, para que perder tempo sendo republicano? É mais fácil ir diretamente à fonte e aceitar-se alguma variedade “social” do liberalismo!

Nesse sentido, está coberto de razão Quentin Skinner em seu Liberdade antes do liberalismo, que argumenta que é o liberalismo uma corrupção do republicanismo e não o contrário. Restrito ao caso inglês do século XVII, é necessário complementar a leitura dessa pequena obra magistral com pelo menos outras duas: L’Idée républicaine en France, de Claude Nicolet, e Utopia e reforma no Iluminismo, de Franco Venturi.

Sobre o fim dos "ismos"

O colapso do comunismo, seguido do alastramento e da derrocada do neoliberalismo, teve uma conseqüência estranha: a afirmação de que o século XXI não pode ter mais “ismos”. Ora, essa idéia, avançada mesmo por marxistas, repete o que se falou nos anos 1950, sobre o “fim das ideologias”.

Não é possível o fim dos “ismos”, simplesmente porque o ser humano não apenas reage, mas ele age; ao agir, segue concepções e perspectivas preliminares, que estão consignadas ou aproximam-se de variadas formas, necessariamente, em alguns dos “ismos”. Caso alguém afirme não se pautar por ideologias ou filosofias ou doutrinas, simplesmente adotará uma conduta confusa e errática, em um padrão que na melhor das hipóteses será um amálgama eclético, isto é, uma colagem arbitrária de perspectivas de outras doutrinas – ou seja, uma solução de compromisso intelectual e afetiva incoerente e empírica, que, no fundo, seguirá as linhas mestras do que se aprendeu na infância.

Além disso, a ausência de uma doutrina racional, que ao mesmo tempo descreva a realidade e prescreva o bem, o justo, o verdadeiro e o belo, resultará de maneira mais ou menos imediata em alguma forma de egoísmo: pessoal, familiar, regional, nacional, civilizacional, classista – ou variações ou combinações deles. A ausência de doutrinas, assim, embora afirmada como um dos pináculos da consciência contemporânea, é precisamente o contrário: é a ausência de direção e, portanto, é a ausência de parâmetros claros e racionais; assim, não é progresso, mas é retrogradação e impossibilidade de progresso. (Mas, afinal, por que seria isso um problema? Não se afirma correntemente que “o progresso é um mito”?)

A ausência de doutrinas – que, na verdade, é a recusa de doutrinas filosóficas sistemáticas, mas não a ausência de teologias, metafísicas e misticismos em geral – é uma das conseqüências da pós-modernidade (pelo menos, conforme descrita por Jean-François Lyotard) e conduz a um estado de terrível laissez-faire: sem parâmetros, sem valores, não há por que agir; se não há orientação para a ação, seu resultado é o egoísmo erigido em princípio fundamental (mesmo que inconsciente). Isso é a retrogradação mais radical possível.

Vinculado ao “fim dos ‘ismos’” está o multiculturalismo. O multiculturalismo não resolve nada; embora ele afirme a dignidade de todas as doutrinas, não conduz a nada além da justaposição dos seres humanos; em outras palavras, não permite que os seres humanos vivam juntos, sob uma doutrina mínima comum, que indique parâmetros e valores que possibilitem o diálogo de todos com todos. Além disso, a afirmação formal de que todas as doutrinas e filosofias são iguais – quando existem, evidentemente, pois o multiculturalismo convive com a já mencionada idéia do “fim dos ‘ismos’” – resulta em uma recusa consciente da valoração da realidade: além de impossível, isso produz resultados funestos, como a recusa de avaliar (em um exemplo fácil) o nazismo. Da mesma forma, se todas as doutrinas são iguais e devem ser respeitadas com um espírito de “autodeterminação das culturas”, o diálogo entre as doutrinas não é possível: daí a justaposição de seres humanos, que não interagem mas vivem lado a lado, sem se relacionarem.

07 agosto 2011

Tradução do "Discurso sobre o conjunto do Positivismo"

Passo a traduzir o "Discurso sobre o conjunto do Positivismo", escrito por Augusto Comte em 1848. Farei essa tradução por partes e começo-a pelo capítulo final do livro (cap. 6), dedicado a reunir os elementos expostos anteriormente e coordená-los com vistas à constituição e à afirmação da Religião da Humanidade.

Agradecerei bastante se houver observações construtivas a respeito da tradução. Havendo dúvidas sobre trechos do texto, fico à disposição para dirimi-las.

* * *

Conclusão geral do Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo[1]
Religião da Humanidade
O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim; tal é, após este longo discurso preliminar, o caráter fundamental do regime definitivo que o Positivismo vem inaugurar ao sistematizar todas a nossa existência, pessoal e social, por uma combinação inalterável entre o sentimento, a razão e a atividade. Essa sistematização final preenche, bem além de qualquer possibilidade anterior, as diversas condições essenciais, seja quanto ao desenvolvimento especial das diferentes partes de nossa natureza, seja quanto à sua conexão geral. A supremacia necessária da vida afetiva encontra-se aí melhor constituída que antes, a partir da universal preponderância do sentimento social, que pode diretamente encantar quaisquer pensamentos e atos.
Jamais opressiva a respeito do espírito, uma tal dominação do coração santifica a inteligência ao votá-la doravante para o serviço contínuo da sociabilidade, de que ela deve consolidar o ascendente e esclarecer o exercício. Dignamente subordinada ao sentimento, a razão adquire assim uma autoridade que não pudera ainda obter, como única apta a desvendar a ordem fundamental que dirige necessariamente toda a nossa existência de acordo com o conjunto das leis naturais dos diversos fenômenos. Essa base objetiva da verdadeira sabedoria humana reage profundamente sobre nossos próprios afetos, que encontram, na obrigação de conformarem-se a ela, uma fonte de fixidez própria a conter sua versatilidade espontânea e uma estímulo direto à preponderância dos instintos simpáticos. Nobremente aplicado a um ofício fundamental que o preserva de toda divagação ociosa, o gênio científico encontra o mais vasto alimento na apreciação de todas as leis reais que influenciam sobre os nossos destinos e sobretudo no estudo de nossa própria natureza, individual e coletiva. A preponderância do ponto de vista sociológico, longe de sufocar as especulações mais abstratas, aumenta tanto sua consistência quanto sua dignidade, ao constituir a única unidade que elas comportam.
Ao assegurar à imaginação sua justa influência sobre o conjunto da vida humana, esse regime final consolida e realiza o desenvolvimento habitual da imaginação, daqui para frente aplicada à sua destinação característica – a idealização contínua da realidade. As funções científicas não são indispensáveis senão para construir a base exterior de todas as nossas concepções. Mas, esse ofício uma vez cumprido, as funções estéticas convêm mais à nossa inteligência, desde que seu exercício respeite sempre esse fundamento necessário, aliás tão próprio para prevenir seus desvios. Sob esse única condição geral, elas são diretamente encorajadas pela sistematização positiva, como estando ao mesmo tempo as mais conformes ao seu princípio afetivo e as mais próximas de seu fim ativo. Profundamente incorporadas à nova existência, elas constituem-lhe, de ordinário, o exercício mais doce e o mais salutar de nossa inteligência, que não saberia tender mais diretamente a cultivar a afeição e a perseguir o aperfeiçoamento.
Primeiramente emanada da vida ativa, a sistematização final a ela regressa com um acréscimo de energia, que, após sua longa preparação especulativa, ela pôde remontar ao seu princípio ativo, tornado doravante sua fonte direta. Longe de suscitar qualquer abatimento, esse amor fundamental conduzir-nos-á sempre à mais completa atividade, ao votar toda a nossa existência ao aperfeiçoamento universal. Ele não nos obriga a estudar a ordem universal senão a fim de melhor aplicar nossas forças quaisquer, individuais ou coletivas, ao seu melhoramento artificial. Duramente esboçado até agora, mesmo a respeito do mundo material, essa destinação normal não pôde ainda ocupar senão a menor parte dos esforços humanos. Seu desenvolvimento não poderia tornar-se degradante senão se limitasse-se aos níveis inferiores do aperfeiçoamento. Desde que nossa sabedoria especulativa abarque diretamente seu principal domínio, nossa sabedoria ativa aplica-se sobretudo aos mais eminentes fenômenos, em que a ordem natural é ao mesmo tempo mais imperfeita e mais modificável. Assim aumentada e sistematizada, nossa existência persegue de preferência o melhoramento intelectual e ainda mais o aperfeiçoamento moral, seja na ternura, seja na coragem. A vida privada e a vida pública encontram-se doravante ligadas por um mesmo fim principal, de que a vida familiar vem enobrecer todos os atos. Daí, a preponderância necessária da prática, longe de jamais ser hostil à teoria, prescreve-lhe sobretudo as mais difíceis pesquisas, para descobrir as verdadeiras leis de nossa natureza pessoal e social, de que o conhecimento permanecerá sempre inferior às nossas necessidades reais. Em vez de dispor à secura moral, uma tal atividade habitual encaminha-nos sem cessar a melhor sentir que o amor universal constitui não somente nossa principal felicidade mas também nosso mais possante meio, indispensável à eficácia de todos os outros.
É assim que, na existência positiva, o coração, o espírito e o caráter consolidam-se e desenvolvem-se mutuamente, após a sistematização habitual de seus próprios exercícios naturais. Jamais a vida pública e a vida privada puderam ser assim tão ligadas, exceto por essa igual consagração a uma mesma destinação essencial, em que elas não diferem senão pela extensão de seus meios respectivos. Votadas uma e outra a fazer prevalecer sempre, tanto quanto possível, a sociabilidade sobre a personalidade, cada uma aplica-lhe sem cessar, e a todos os propósitos, todas as nossas forças quaisquer – afetivas, especulativas e ativas.
Após essa posição final do grande problema humano, a arte social, diretamente consagrada à sua solução geral, assume doravante como princípio fundamental a separação normal dos dois poderes elementares, um moral, que aconselha, o outro político, que comanda. A preponderância necessária deste último, sempre fundada sobre a força material, representa o ascendente espontâneo da personalidade sobre nossa imperfeita natureza, em que as mais grosseiras necessidades encontram-se com as mais urgentes e as mais contínuas. Sem essa irresistível fatalidade, nossa própria vida individual ficaria falha de consistência e de direção; mas sobretudo nossa existência coletiva não comportaria nem caráter, nem atividade. É por isso que o poder moral, que repousa sobre a convicção e a persuasão, deve manter-se puramente moderador, sem jamais se tornar diretor.
Emanado do sentimento e da razão, ele representa especialmente a sociabilidade; somente ela cultiva-o imediatamente. Mas, porque ele corresponde aos nossos mais eminentes atributos, ele não pode obter uma preponderância prática que pertence aos [atributos] mais enérgicos. Inferior em força, ainda que superior em dignidade, ele opõe sempre seu classamento virtual dos indivíduos de acordo com seu mérito mental e moral ao seu classamento real segundo a riqueza ou a grandeza. Sem jamais chegar a fazer prevalecer seus princípios de apreciação, ele ainda leva a modificar felizmente a ordem natural de toda sociedade, ao lembrá-la dignamente do espírito de conjunto e do sentimento de dever, que a atividade prática tende a alterar.
Esse ofício fundamental, cuja necessidade é em todos os lugares sentida, sistematiza-se com a atribuição característica desse poder moderador, para preparar-nos para a vida real por uma sã educação geral, principalmente relativa à moral, mesmo em sua parte intelectual. Assim votada à especulação e à afeição, essa força modificadora não pode constituir um digno órgão sistemático da sociabilidade senão permanecendo sempre exterior à ação. Seu primeiro dever consiste então em combater, em seu próprio seio, nosso vãos instintos de elevação temporal, que não se tornam salutares, malgrado a impureza de sua fonte ordinária, senão nas naturezas verdadeiramente destinadas a um indispensável comando. Essa renúncia solene à riqueza e à grandeza torna-se a base primitiva do verdadeiro poder teórico e a condição inicial de sua legítima resistência às usurpações sempre iminentes do poder prático. Ele obtém assim seus principais apoios habituais, ao desenvolver suas afinidades naturais com os elementos sociais que são, como ele, necessariamente estrangeiros ao governo político.
Primeira fonte espontânea da influência modificadora, a partir de sua natureza eminentemente afetiva, as mulheres tornam-se então, em virtude de sua situação passiva, as auxiliares domésticas do verdadeiro poder espiritual. Ele associa-as intimamente ao seu ofício essencial, confiando-lhes toda a educação privada, de que a educação pública não constitui, no regime positivo, senão um indispensável complemento sistemático. Como esposas, elas participam ainda mais de suas funções consultivas, ao temperar por meio da persuasão o ascendente material que ele [o poder Espiritual] modera somente pela convicção. No gênero de vida pública que convém à sua natureza, elas assistem-no espontaneamente, para elaborar a opinião comum de que ele torna-se o órgão sistemático, apreciando os atos, e sobretudo as pessoas, a partir dos princípios que ele fornece-lhes. Esse íntimo concurso desenvolver-se-á mais quando as mulheres, dignamente preservadas pelos homens de toda solicitude material, serão em toda parte também estrangeiras à riqueza e à dominação, como se vê tão freqüentemente entre os proletários.
Ainda que menos pura e menos direta, a afinidade do povo com o poder filosófico fornece naturalmente a este uma enérgica assistência civil em seu inevitável antagonismo com o poder político. Privados ao mesmo tempo de lazer material e de força individual, os proletários não saberiam habitualmente participar do governo prático, cuja eficácia depende sobretudo de sua concentração. Ao contrário, a força moral, sempre emanada de uma livre convergência, comporta, e mesmo exige, ramificações universais. Ora, liberados de toda grave responsabilidade prática, os proletários associam-se naturalmente ao poder teórico, com base na disponibilidade de espírito e na despreocupação pessoal que os dispõe mais que seus chefes temporais às vistas de conjunto e aos sentimentos generosos. Eles fornecerão assim a principal base habitual da verdadeira opinião pública, quando uma educação geral, que lhes será sobretudo destinada, permitir-lhes bem caracterizar seus votos. Suas necessidades, assim como suas inclinações, aproximam-nos sempre do sacerdócio filosófico, que se tornará seu órgão sistemático face às classes dirigentes. Em troca desse ofício natural, ele receberá deles uma imponente assistência por sua grande missão social de subordinar sem cessar o comando à moralidade. Nos casos excepcionais que exigirão a intervenção política do poder moderador, o caráter ativo de seu elemento popular dispensará seu elemento filosófico de uma anomalia que o desnaturalizaria quase tanto quanto ao seu elemento feminino.




[1] Fonte: Comte, A. 1929. Système de politique positive. V. I. 5e ed. Paris: Société Positiviste. P. 321-327. Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.

30 julho 2011

Astronomia versus astrologia

Artigo didático opondo a Astronomia à Astrologia. Extremamente útil para evitar-se a astrologia e todas as pseudociências.

Autoria de Carlos Alexandre Wuenche e publicado na revista Ciência Hoje (Rio de Janeiro, v. 43, n. 256, p. 24-29, jan.-fev.2009).

Disponível aqui.

22 julho 2011

"Os positivistas ortodoxos e a Guerra do Paraguai"

Artigo do historiador marxista gaúcho Mario Maestri, abordando a oposição dos positivistas ortodoxos à Guerra do Paraguai. O autor indica que os positivistas, liderados por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, foram uns dos poucos, se não os únicos, a denunciarem o imperialismo e a prepotência de D. Pedro II no Cone Sul e, particularmente, contra o Paraguai e o Uruguai.

Dessa forma, ajuda a derrubar dois mitos difundidos pelos "liberais" brasileiros, a saber, as idéias de um D. Pedro como um governante "pacífico" e "industrioso" e os positivistas como "militaristas" ou "alienados da realidade nacional" (como propagou Sérgio Buarque de Hollanda).

Publicado na Revista Brasileira de História Militar (Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, abril de 2011) e disponível aqui: http://www.historiamilitar.com.br/artigo2RBHM4.pdf.

06 maio 2011

Republicanismo na Inglaterra

Entrevista sobre republicanismo na Inglaterra, que, entre inúmeros aspectos, enfatiza o quanto essa instituição é anacrônica, atualmente inútil e que sobrevive muito devido à propagação de uma fantasia. Vale a pena.

O original em vídeo está disponível aqui.

A transcrição está disponível abaixo, a partir da página do jornal eletrônico Conjur.

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"Atração exercida pela Monarquia é uma fantasia"

Entrevista do ativista antimonarquista britânico Graham Smith ao jornalista Silio Boccanera do programa Milênio, transmitido originalmente no dia 25 de abril pelo canal de televisão por assinatura Globo News. O Milênio vai ao ar às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo.
Foto: Paulo Pimentel/Globo NewsO sucesso do filme O Discurso do Reientre críticos e público desperta mais uma vez o intrigante culto à Monarquia britânica, uma instituição que fascina muitos e enfurece outros. A mistura de história, conto de fadas, celebridade e telenovela que se desenrola nas ilhas britânicas contamina também outros países, onde o público estrangeiro e criado em culturas diferentes se deixa levar também por narrativas pitorescas como a do rei gago George VI.
Antes disso, fizeram e fazem sucesso na TV o drama de um antecessor que enlouqueceu no trono e perdeu a colônia americana, rainhas virgens e poderosas, soberanas mais contemporâneas que resistem a mostrar emoção diante de tragédias ou dinastias salpicadas de ginástica de alcova. Sem esquecer das princesas gamourosas de verdade e rivais sem glamour; príncipes envelhecendo em eterna espera para herdar a coroa da coroa; ou herdeiros coroados que largam o trono para casar com a mulher amada, divorciada e estrangeira em trama digno de telenovela.
O culto à Monarquia como celebridade se agravou ainda mais, em abril, quando o príncipe William, segundo na linha do trono, se casou com a plebéia Kate Middleton. Uma cerimônia que alcançou altos índices de audiência na TV pelo mundo em clima de conto de fadas. Nova festa está marcada para o ano que vem, quando a rainha Elizabeth II completa 60 anos no trono.
Encantam-se os fãs, irritam-se os que veem na Monarquia uma instituição obsoleta retrógrada, cara, perdulária, elitista, fútil e sobretudo antidemocrática, porque não eleita. É o caso da organização britânica Republic, que defende o fim da Monarquia e sua substituição por uma República com um chefe de estado eleito em vez de escolhido por direito hereditário. O governo executivo continuaria nas mãos do parlamento, como hoje. O principal dirigente desse grupo de pressão, Graham Smith, conversou com o Milênio em Londres.
Silio Boccanera — Lançaram mais um filme de sucesso sobre a Monarquia britânica, como tantos outros antes, e tivemos o casamento do príncipe Wiliiam. Ou seja, a febre da realeza está de volta, como já aconteceu no passado. Por que esse fascínio pela família real britânica, pelas famílias reais em geral, pela Monarquia em geral?
Graham Smith — Faz parte do imaginário. É uma coisa histórica, de conto de fadas, da Disney etc. E hoje faz parte dessa cultura de celebridades. Eles são ricos, se mostram como uma família de prestígio. E acho que eles conseguiram se separar muito bem de sua posição constitucional. Ou seja, eles evitam ser colocados no mesmo nível que os políticos. É como se fossem celebridades de alto nível. E, como nos contos de fadas, eles exercem certa atração, isso é verdade. Mas esse interesse sempre existiu, e esse interesse vem do mundo todo, seja de países republicanos ou monarquistas. Portanto, ele nada tem a ver com ideais políticos, filosóficos ou com a visão da Monarquia em si. É apenas uma expressão cutlural ou uma ideia relacionada a contos de fadas. Uma fantasia, não algo sério.
Silio Boccanera — É claro que, para os republicanos e antimonarquistas em geral, a ideia da Monarquia parece muito antiquada, obsoleta. Mas, observando países que ainda são monarquistas, do Reino Unido à Holanda e aos países escandinavos, vemos que são países muito modernos. Não há contradições nesse aspecto.
Graham Smith — Há uma contradição, e isso é um problema. Há movimentos republicanos em todos esses países europeus. Cerca de seis meses atrás, foi criada uma aliança entre esses movimentos. Essa questão é tratada atualmente em todas as monarquias européias. E esse conflito ocorre porque somos países modernos e cosmopolitas. No entanto, temos essas instituições que tentam se impor na psique do país, na identidade nacional, de um modo que não é apropriado. E isso é especialmente forte no Reino Unido, onde ouvimos que somos um país atrasado, tradicionalista, que ama a família real e não necessariamente valoriza a democracia. E isso tudo vem do fato de termos essa instituição que é muito presente e que se autopromove, que continua promovendo suas ideias. Isso se choca com quem realmente somos, e é um dos motivos para querermos acabar com a Monarquia. Queremos um sistema que represente quem realmente somos, e não um que tente nos deixar presos ao passado.
Silio Boccanera — Analisando o impacto internacional da Monarquia britânica, tirando sua popularidade, o fator novela e celebridade, a rainha é chefe de Estad de alguns países da Commonwealth, formada por ex-colônias britânicas. Vários desses países a mantiveram como chefe de Estado. Ao contrário dos Estados Unidos, que abandonaram a Monarquia, vários outros países a mantiveram. Não é estranho eles terem tido chance de pôr fim a isso e não fazê-lo?
Graham Smith — A Commonwealth tem mais de 50 países, e a rainha é chefe de Estado de apenas 14 deles. A maior parte dos países da Commonwealth são repúblicas. E é justo dizer que os países mais estáveis e prósperos e que conseguiram se tornar democráticos de maneira pacífica e sem grandes problemas, não viram a necessidade de dar esse passo.
Silio Boccanera — Canadá, Austrália...
Graham Smith — Exato. Canadá, Austrália, Nova Zelândia e alguns pequenos países do Caribe. Eles são muito próximos dos Estados Unidos. Mas todos os outros países, onde foi mais difícil a transição da colônia para Estado independente, romperam definitivamente com o passado e viraram repúblicas. E há movimentos republicanos no Canadá, Austrália e Nova Zelândia. A maioria dos australianos quer o fim da Monarquia. Na Nova Zelândia, esse número é quase metade da população, dependendo da pesquisa. Mas, quando se pergunta sobre a sucessão, com Charles sendo coroado rei, o apoio ao republicanismo começa a aparecer.
Silio Boccanera — Talvez devêssemos lembrar aos espectadores que a Monarquia não é apenas a rainha, o marido dela e os príncipes, mas toda a estrutura da família real. Qual é o tamanho dela?
Graham Smith — É mais do que a família real, é a Constituição, é um sistema político. Mas, em termos da casa real, estamos falando sobre 15, 16 pessoas com o título de Sua Alteza Real, que fazem coisas como inaugurar hospitais, cortar fitas, esse tipo de coisa. E que recebem do Estado. A maioria recebe algum tipo de subsídio para viagens, moradia, essas coisas. E mais pessoas, além dessas 15, moram de graça em palácios, em casas, e por aí vai. Mas há outros além desses 15, que são todos os funcionários, pois é uma estrutura bem grande. Muitas pessoas trabalham tanto nos palácios quanto nas casas, servindo à família real.
Silio Boccanera — E quem paga por isso? O contribuinte?
Graham Smith — O contribuinte, isso. O contribuinte paga quase tudo isso. Eles tentam evitar... Há territórios chamados “ducados”, o Ducado de Lançastes e o Ducado da Cornuália, que dão dinheiro para a rainha e para o príncipe Charles. Estou falando de 10 milhões, 20 milhões de libras por ano. Então alegaram... Como recebiam dinheiro desses ducados, estavam gastando seu próprio dinheiro, mas isso ainda é dinheiro dos contribuintes, pois, sem a Monarquia, os ducados seriam propriedade do Estado. Então, todo o dinheiro que vai para a família real e que mantém a Monarquia iria para o Tesouro e para o Estado se não houvesse Monarquia.
Silio Boccanera — Você faz parte de um movimento antimonarquista. O que seria feito de todas essa pessoas? Eles teriam que trabalhar, viver como qualquer pessoa? Seria um horror!
Graham Smith — Nós somos democratas. Nós acreditamos que todos deveriam ser tratados da mesma maneira. Se nos tornarmos uma República, eles serão cidadão, como todos nós, e teriam que cuidar de si mesmos, teriam que pagar impostos, trabalhar, se precisassem, o que é improvável, pois eles são bem ricos, mesmo sem nossa ajuda. Eles poderão apenas viver para aproveitar a vida.
Silio Boccanera — Mas a rainha aqui tem um poder extraordinário, que outros monarcas não têm. Ela é chefe da Igreja.
Graham Smith — É.
Silio Boccanera — É uma função muito importante, não é? Ela está acima do arcebispo da Cantuária.
Graham Smith — Na verdade, temos uma Igreja de Estado. E nosso monarca tem um poder enorme que outros monarcas não têm. A maioria das monarquias européias tem em sua Constituição limites muito rígidos do que o monarca pode fazer. E, em vários países, como a Suécia, o monarca não pode fazer quase nada. No Reino Unido, a rainha é chefe da Igreja e nomeia todos os membros da Igreja. Mas ela também nomeia vários funcionários do Estado. Ela nomeia o primeiro-ministro e todos os ministros. E, se ela se recusar a fazê-lo, ninguém poderá fazer nada, a menos que o Parlamento faça algo.
Silio Boccanera — Não acontece na prática, mas pode acontecer.
Graham Smith — Pode e já aconteceu. Embora raro, no período moderno... Nos últimos 30, 40 anos não aconteceu muito, mas a rainha já nomeou primeiros-ministros de sua própria escolha, e isso aconteceu porque o Partido Conservador, nos anos 50 e 60, não elegeu líderes internamente. As pessoas meio que emergiram a partir de acordos nos bastidores. Então, houve dois primeiros-ministros nomeados pela rainha por indicação de pessoas que não deveriam aconselhá-la. Houve certa preocupação no partido, e por isso eles decidiram passar a eleger seu líder, para que ficasse claro quem ele seria. Mas ela pode dissolver o Parlamento, e ninguém poderia fazer nada. Ela pode demitir o primeiro-ministro e nomear outra pessoa. Ela também pode impedir a aprovação de leis. Há todas essas coisas que ela pode fazer, mas é improvável que faça. O perigo é que alguém como Charles, na condição de rei, fique tentado a usar algum desses poderes em particular. Por exemplo, digamos que haja um governo conservador que simpatize com a Monarquia e que não faça nada errado. O monarca tem reuniões secretas privadas com o primeiro-ministro todas as semanas. Não é impossível imaginar o rei Charles dizendo a um primeiro-ministro que proponha fazer algo que ele desaprova: “Olha, posso tornar sua vida difícil, tenho poder para fazer isso, então quero que você mude essa política.” E ninguém saberia disso.
Silio Boccanera — Então, sua preocupação é que, embora as pessoas digam que a Monarquia é inofensiva, pois a rainha ou rei não tem poderes, você está dizendo que, na verdade, eles têm. A rainha escolheu não exercer esse poder, mas ele existe.
Graham Smith — Com certeza. Não estamos sugerindo que teremos uma crise, em que Charles exerça seus poderes, mas há o risco de que ele exerça sua influência. Além disso, por outro lado, o chefe de Estado tem um trabalho a fazer, e ele precisa ser capaz de aconselhar e alertar o primeiro-ministro se achar que ele está seguindo um caminho específico. Ele tem que poder tomar decisões sobre a dissolução do Parlamento se houver algum tipo de crise política. Mas não é uma função que um monarca pode ou deve desempenhar, pois não pode ser responsabilizado se tomar a decisão errada. Nós queremos alguém que possa tomar essas decisões e ser responsabilizado por elas.
Silio Boccanera — Os planos de reforma do seu grupo republicano é acabar com a Monarquia e mudar a situação atual. Mas vocês querem criar o quê?
Graham Smith — Nós queremos um Reino Unido republicano e democrático. Nós não queremos algo grandioso ou suntuoso, mas uma Constituição republicana muito direta que diga que o poder pertence ao povo, que o país é democrático e que será governado assim. Nós teremos políticos, mas o poder deles será limitado. O chefe de Estado será eleito e agirá de forma independente, protegendo a Constituição e exercendo algumas funções básicas. Queremos um chefe de Estado constitucional, não queremos o presidencialismo nos moldes que existe no Brasil ou nos Estados Unidos. Ele não teria poder político, não tomaria decisões políticas, só tomaria decisões constitucionais. Por exemplo, se o Parlamento aprovar uma lei que o presidente considere inconstitucional, o presidente pode se recusar a promulgá-la,e a lei seria submetida a um tribunal, que a julgaria. Se o Parlamento não conseguir decidir quem será o primeiro-ministro, o presidente pode atuar como árbitro. Então, uma República bem direta, prática e pragmática, com um chefe de Estado exercendo uma função determinada.
Silio Boccanera — Então, um presidente mais como o da Alemanha, da Itália...
Graham Smith — Da República da Irlanda.
Silio Boccanera — E não como o da França, do Brasil ou Estados Unidos.
Graham Smith — Com certeza. Ele teria um papel bem simples e funcional.
Silio Boccanera — Com relação à função de chefe de Estado, como você disse, vocês preferem presidentes com poucos poderes. Aqueles que defendem a Monarquia e a rainha ou rei como chefe de Estado dizem que o fato de eles não serem ligados a nenhum partido político é algo positivo.
Graham Smith — Seria positivo se a rainha fizesse alguma coisa. Essa é a falácia desse argumento. Se ela tivesse alguma função, se pudesse atuar independentemente do primeiro-ministro, sua aparente imparcialidade seria algo positivo. Mas, como ela delega seu poder ao primeiro-ministro, isso é irrelevante, não faz diferença. Nós queremos alguém que seja não só imparcial, mas que possa ser responsabilizado por essa imparcialidade. Esse é outro ponto importante: não sabemos quão imparcial a rainha é, pois não sabemos nada sobre ela. Ela nunca dá entrevistas. Ela nunca sentaria aqui para responder a perguntas sobre o que fez e por que fez. E ela tem essas reuniões secretas. Por isso, não sabemos o que ela faz a portas fechadas, não sabemos o que acha sobre os partidos políticos. E não podemos responsabilizá-la se ela tomar alguma decisão errada. Mas a questão toda é que ela não se envolve, então não faz diferença se ela é imparcial ou não. Com um chefe de Estado eleito, ainda é possível ter alguém imparcial, mesmo que ele tenha uma carreira em um partido político. Nós já vemos isso com o presidente da Câmara dos Comuns. Espera-se que ele seja imparcial, e ele sempre foi imparcial. Ainda assim, eles são eleitos e pagos, servem a casa por muitos anos...
Silio Boccanera — E representam um partido.
Graham Smith — Exato. Mas, assim que se tornam presidentes, eles deixam o partido e se tornam um membro da Câmara independente. E não há por que não ter uma figura semelhante como chefe de Estado. Mas essa imparcialidade deve ser constatada, julgada, e ele deve poder ser responsabilizado.
Silio Boccanera — E o que você faria com o chefe de Estado, a rainha ou o rei Charles? A guilhotina não pode ser, a forca...
Graham Smith —
Somos uma organização democrática e pacífica. Como eu disse antes, nós queremos nos libertar e libertá-los. Eles estariam livres de suas obrigações e livres para viver a vida que escolhessem, e nós seriamos livres para escolher seu sucessor.

Silio Boccanera — Onde você vê apoio para a causa republicana? Há sinais de crescimento?
Graham Smith —
Eu acho que o apoio da Monarquia está diminuindo e mudando. As pessoas têm criticado mais a instituição, tem relutado um pouco mais em continuar com essa deferência. Isso não necessariamente significa que elas apóiem uma República, ainda, mas o terreno está sendo preparado para um debate sólido. Então nós vemos que há bastante espaço para construirmos uma Monarquia que apóie o que queremos. E o apoio vem de todas as vertentes políticas e sociais, de pessoas de direita, de esquerda, de centro, de todas as idades e estilos de vida. Elas consideram a ideia como uma opção válida. E isso é uma grande mudança de 30 anos atrás, quando era uma aspiração somente da esquerda. Hoje, não é assim.
Silio Boccanera — Mas o outro lado, os monarquistas, vêem republicanos como um bando de comunistas estranhos, esquerdistas, anarquistas. Vocês são tudo isso?
Graham Smith — De forma alguma. Na verdade, nós, os republicanos talvez tenhamos uma visão semelhante em relação aos monarquistas. Quando falamos de monarquistas, como um grupo, não estamos falando da maioria do país, mas de uma minoria ardente que defende a Monarquia, que participa de organizações e segue a rainha no Twitter, por exemplo, que realmente se interessa por isso. Mas eles também são uma minoria. E há uma minoria de republicanos. Há todo um grupo no meio disso que olha os dois lados e pensa: “Não sei quem devo apoiar.” E, como eu disse, eles concordam em manter a Monarquia porque nunca pensaram nos motivos para mudar o sistema. Mas, no que diz respeito aos republicanos, nós estamos em todas as vertentes políticas e sociais, e as pessoas que governariam uma República seriam tão normais quanto qualquer um, são pessoas inteligentes, instruídas e profissionais que querem um país democrático.
Silio Boccanera — Você nasceu e foi criado nesta atmosfera, com todas essas tradições que você intelectualmente rejeita hoje, mas, como um cidadão britânico, como alguém com essa criação, quando pensa no ano que vem, no jubilei da rainha, que completará 60 anos de reinado, com todo tipo de comemoração, o que você vai fazer? Você vai participar?
Graham Smith — Nós estaremos em campanha, como no casamento. Faremos nossas festas nas ruas e nossas reuniões. Nós aproveitamos todas as oportunidades, pois vemos esses acontecimentos não como datas nacionais, mas da Monarquia. São eventos criados para perpetuar mitos e promover a instituição. E, com certeza, ano que vem, quando chegar o 60º aniversário, nossa mensagem principal será: por 60 anos, uma pessoa teve certeza de que seria chefe de Estado. Ela nunca nos perguntou, nunca pediu nosso voto para isso, nunca sugeriu que o povo pudesse dar sua opinião. E isso quer dizer que estamos mais perto de ter Charles fazendo o mesmo. E eu vou me sentar e dizer ao Charles para ir ao Palácio de Buckingham e virar chefe de Estado sem nem perguntar nada? Nós queremos essa discussão, que as pessoas escolham como será. Vamos lembrar as pessoas de que é uma instituição bizarra, que não deve se perpetuar por mais 60 anos. Como eu disse, a Monarquia sobrevive porque o povo não pensa nisso. E esses eventos grandiosos só fazem as pessoas pensarem e ajudam nossa campanha.
Silio Boccanera — Se formos além da família real britânica e pensarmos em outras monarquias, da Espanha à Escandinávia e aos países africanos, elas ainda exercem algum fascínio. Talvez não tão forte. Você acha que isso tem relação com o conceito de que há pessoas que recebem coisas por direito inato, e não por mérito próprio?
Graham Smith — Eu não sei se é isso. Mais uma vez, acho que eles exercem alguma fantasia. E acho que as pessoas que gostam e se interessam pela vida da Monarquia também entendem isso. Quando o Afeganistão se livrou do Talibã, falou-se do retorno do rei ao seu trono. Discussões semelhantes ocorreram também no Leste Europeu. Mas nenhum desses países deu esse passo, eles não restituíram a Monarquia. E acho que essa fantasia é alimentada, até certo ponto, pela frustração com os políticos plebeus, sejam eles democráticos ou não. Daí, essa ideia do cavaleiro que vem salvar o país. Mas as pessoas percebem que isso não acontece na vida real e continua sendo uma fantasia, em vez de ser considerado como uma solução política séria.
Silio Boccanera — E a possível atração do fator que podemos chamar de ligação com o passado? É uma família com uma longa tradição, uma família muito antiga, que faz as pessoas se sentirem confortáveis, pois ela as une à sua própria história. Você acha que isso influencia?
Graham Smith — Há alguma verdade nisso. Não podemos deduzir muita coisa a partir disso. Em grande parte, isso faz parte do pacote de relações públicas da Monarquia. Eles tentam sugerir ou promover a ideia de que há essa longa ligação. É claro que a família de qualquer pessoa é antiga, e todo país tem uma história e uma tradição antigas, distintas do resto do mundo. É possível analisar outros aspectos da mesma maneira. Mas os monarquistas e as famílias reais sabem muito bem usar isso como sua própria história. Acho que existe esse aspecto, mas não podemos tirar muito significado dele.
Silio Boccanera — Uma das críticas dos republicanos à Monarquia é que a família real não deve se envolver em questões públicas nem defender posições. A rainha parece seguir essa linha, mas o príncipe Charles se envolveu em muitas controvérsias, e a última era relacionada à arquitetura moderna, que ele odeia. Fale sobre o último incidente, no qual até você esteve envolvido, protestando contra ele.
Graham Smith — Ele se envolve em várias coisas, e a arquitetura é uma das coisas nas quais se envolveu muito. Acho que você se refere...
Silio Boccanera — Chelsea.
Graham Smith — Chelsea Barracks. É um empreendimento muito grande em um terreno degradado de West London. O local está abandonado há bastante tempo, e o governo quis construir um grande empreendimento lá, que ia gerar muito dinheiro, ia empregar milhares de pessoas. Como sempre, alguns moradores se opuseram à arquitetura, e houve um processo democrático, para que o conselho local decidisse o que fazer. Mas esse processo seria demorado, colocando em risco muitos empregos. Charles usou sua influência e sua autoridade para, basicamente, pôr um ponto final em tudo. Os empreendedores tinham o apoio financeiro de famílias reais do Oriente Médio – ele falou com eles – e todo o projeto foi cancelado. E chegou a um ponto, em Londres, em que vários arquitetos passaram a mostrar o projeto ao príncipe Charles antes de construir, com medo de investir muito no empreendimento, e tê-lo cancelado porque Charles se envolveu.
Silio Boccanera — Ele vai alem...
Graham Smith — Muito além de sua função. E ele faz isso em todos os assuntos. Ele faz lobby na área de saúde pública, ele pede que o governo gaste em tratamentos que ele defende, em vez de tratamentos convencionais. Ele faz lobby para o meio ambiente. Recentemente, ele fez um discurso contra o crescimento econômico, dizendo que ele causa danos ao meio ambiente, tanto globalmente quanto no Reino Unido. E isso é uma questão muito controversa, ainda mais quando o governo se esforça tanto para incentivar o crescimento econômico. Ele não pode fazer isso, pois não pode ser responsabilizado por suas posições.
Silio Boccanera — E haveria também todo o aspecto cerimonial disso.
Graham Smith — Certamente.
Silio Boccanera — Ele cortaria fitas por aí.
Graham Smith — Um chefe de Estado constitucional. Ele exerceria quase o mesmo papel que a rainha. Mas a diferença é que a rainha não pode ter nenhuma atuação, pois ela não pode ser responsabilizada, então ela delega seu poder ao primeiro-ministro. Ou seja, nós temos um chefe de Estado que não pode cobrar responsabilidade dos nossos políticos, porque ela delega esse poder ao primeiro-ministro. Ou seja, nós temos um chefe de Estado que não pode cobrar responsabilidade dos nossos políticos, porque ela delega esse poder ao primeiro-ministro cujo óbvio interesse é não responsabilizar os políticos. Nós queremos alguém que cumpra a Constituição e seja independente do governo.
Silio Boccanera — Alguém que equilibre melhor as coisas.
Graham Smith — Exato.
Silio Boccanera — Se analisarmos a Espanha, por exemplo, a Monarquia está associada à modernidade. O rei Juan Carlos teve uma participação política forte e evitou uma volta à ditadura. Ao pensar na Monarquia espanhola, pensamos em modernidade; ao pensar na Monarquia britânica, pensamos em algo do passado. Essa avaliação está correta?
Graham Smith — Os problemas dos países europeus são bem diferentes, e os da Espanha são diferentes dos nossos, pois sua história e sua experiência com a Monarquia são bem diferentes. Como você disse, o rei evitou um golpe de Estado que levaria à ditadura. Eles também tiveram a Guerra Civil, a República, Franco etc. Isso mudou totalmente a natureza do debate. No Reino Unido, sempre tivemos Monarquia, e, por isso, a natureza do debate é totalmente diferente. Nós temos muito mais em comum com as monarquias do norte da Europa do que com a da Espanha, que é bem diferente.
Silio Boccanera — Da Escandinávia e...
Graham Smith — Dinamarca, Holanda, Bélgica, Suécia e Noruega. Eles têm uma relação parecida com a Monarquia.
Silio Boccanera — Há sempre o fator “novela”, não é? Acompanhamos a vida dessas pessoas, de seus filhos, netos, como se acompanhássemos uma novela de televisão.
Graham Smith — Sim, mas é um fenômeno razoavelmente recente, dos últimos 20, 30 anos, desde que a família real britânica e, provavelmente, as de outros países também, começaram a ficar mais expostas aos olhos da mídia, com episódios de suas vidas privadas estampadas nas capas dos tabloides. E virou mesmo um tipo de novela. É uma faca de dois gumes, pois, quando alguém está o tempo todo nos tabloides, o interesse pela novela cresce, mas sua reputação, sua imagem, podem ser manchadas. O que eles têm feito, com exceção do casamento, é transformar essa novela numa coisa muito sem graça, meio monótona, tirando seu fascínio, pois a reação deles foi fazer o contrário. De tanto tentar evitar escândalos como os dos anos 80 e 90, eles se tornaram entediantes.
Silio Boccanera — As pessoas não gostam muito de Charles... Elas respeitam e gostam da rainha, mas a ideia de Charles se tornar rei pode afastar o povo da Monarquia?
Graham Smith — Parte do apoio que a Monarquia tem está relacionada à rainha. Ela reinou durante toda a transição para a sociedade moderna, de uma época em que tínhamos muito mais respeito pela família real, em 1952, em que questionávamos menos as coisas e as aceitávamos... O Reino Unido era o Reino Unido, nada havia mudado, nós éramos daquele jeito, e assim ficamos. Então passamos por um longo período de transição, para uma democracia muito mais popular. Todos querem se pronunciar, querem ser ouvidos, querem discutir tudo e querem ter escolhas. Acho que, como a rainha reina há tanto tempo, a maioria das pessoas não lembra como era antes. Com isso, ela se tornou o fator-chave...
Silio Boccanera — Eles dizem: “Enquanto foi ela, tudo bem. Mas, se for o Charles, eu não quero.”
Graham Smith — Exato. Eles sentem um afeto pessoal por ela, e nunca viveram nada diferente. Mas, assim que se fala em mudar o monarca, as dúvidas surgem. Tanto a mudança da pessoa quanto as mudanças mais substanciais, ou a discussão do funcionamento do sistema, tudo isso suscita várias dúvidas. Quando o monarca está vivo, as pessoas não pensam nisso. As pessoas não pensam duas vezes nisso, veem como parte da vida britânica. Basta começar a falar criticamente do assunto para as opiniões começarem a variar bastante.
Silio Boccanera — Em termos de apoio do povo, ao menos no Reino Unido, as últimas pesquisas da BBC, de uns anos atrás, mostram que 76% dos britânicos querem manter a Monarquia. É um número bem alto.
Graham Smith — É uma grande maioria, sim. Cerca de 20% a 25% das pessoas querem o fim da Monarquia. São milhões de pessoas. Somos um país populoso. Mas não há um debate significativo de alto nível muito freqüente. Há várias oportunidades para isso, e vamos promover um grande debate, para aumentar esse apoio. Mas esses 76% têm uma opinião menos sólida do que se pensa. A maioria das pessoas entrevistadas acha que não devemos gastar um centavo com a Monarquia. Isso sugere que as pessoas passaram de um apoio realmente ativo a algo do tipo: “Vamos manter a Monarquia, pois não faz muita diferença para nós.”
Silio Boccanera — Mas, quando você mostra os gastos...
Graham Smith — Exato.O que se tira disso é: “Não ligo para isso, então por que acabar?” “Não ligo para isso, então por que devo sustentá-los?” Isso significa que grande parte – não todos os 76%, mas grande parte deles – simplesmente não se interessa mais pela Monarquia, o que é uma grande mudança do cenário de 20, 30 anos atrás. Isso nos dá chance de dizer por que o tema é importante e por que devemos fazer algo a respeito. E são essas pessoas que não ligam que nós queremos convencer de que é hora de mudar.
(Foto: Paulo Pimentel/Globo News)

02 maio 2011

Dia do Trabalho

O Dia do Trabalho, 1° de Maio, é uma das datas mais importantes a serem comemoradas, especialmente no Brasil, cujo calendário é tão marcado por um detestável clericalismo.

Nessa data comemora-se a atividade prática que cria, todos os dias, a todo instante, a realidade material da sociedade. Desse modo, não apenas o esforço direto para a constituição da sociedade, mas também os esforços de cada um dos indivíduos que realiza esses esforços: é assim que o Dia do Trabalho também é o Dia dos Trabalhadores.

A sociedade são sempre e cada vez mais as subjetividades individuais e coletivas: as lembranças e os valores que recebemos de nossos antepassados (próximos e distantes), as lembranças e os valores que deixaremos para nossos descendentes (próximos e distantes). É apenas com o passar do tempo que podemos melhorar: apenas com paciência, com bons exemplos, com o acúmulo de idéias corretas (mas também de erros!) que o ser humano pode conhecer-se melhor, pode tornar-se um indivíduo mais correto e afetivo e pode melhorar a realidade em que vive.

Mas essas realidades só são possíveis porque temos uma existência objetiva, no presente, que depende radicalmente do trabalho material para existir: a comemoração do Dia do Trabalho, bem como do Dia do Trabalhador, é um ato de justiça e uma afirmação da Humanidade.

No Positivismo, o conjunto dos trabalhadores, o proletariado, é a “providência geral”: como indicamos há pouco, são os agentes diretos da Humanidade.

Religião e Positivismo

O Positivismo é uma religião. Mas o que isso quer dizer? No dia-a-dia, a palavra “religião” tem os sentidos de (1) “teologia” e (2) “instituições religiosas”, ou seja, são as crenças nas divindades e/ou as organizações que promovem essas crenças.

Para nós, positivistas, a religião são também as instituições, mas não somente isso; em vez de serem apenas as teologias, a religião é o conjunto de práticas, de instituições, de idéias, de valores que fazem o ser humano conhecer-se cada vez melhor, que o aperfeiçoam. Em outras palavras, para o Positivismo a religião é o esforço moral e intelectual para o ser humano melhorar como indivíduo, como membro de família, como cidadão e como integrante da Humanidade.

A teologia é apenas uma das várias fases da religião e mesmo ela não assume uma única forma: o fetichismo é muito diferente do politeísmo e estes são diferentes do monoteísmo. Nenhuma dessas formas é igual às outras, de modo que não se pode falar que “todas as religiões são iguais” somente porque todas essas modalidades acreditam em seres sobrenaturais. Se há algo em comum a todas as religiões é que elas são meios para um fim: o fim é o “religare” do ser humano, isto é, do ligar cada um a si mesmo e, em seguida, religá-lo aos vários vínculos sociais.

Assim, nós, positivistas, somos religiosos: não acreditamos nos deuses e procuramos melhorar os seres humanos. Isso é religião, não a crença nos deuses.

Pequenos textos sobre o Positivismo

A partir de hoje postarei pequenos textos sobre o Positivismo. Eles terão o objetivo de esclarecer aspectos da doutrina positivista. Este blogue procura tratar de questões políticas, científicas, sociológicas e filosóficas, mas também há espaço para algo mais doutrinário: será esse o objetivo dessas postagens.

É necessário lembrar que o Positivismo, conforme elaborado por Augusto Comte em suas várias obras, tem um objetivo profundamente prático: ele destina-se a oferecer parâmetros, regras, valores e idéias para orientar a vida dos seres humanos. Assim, esses pequenos textos procurarão expor algumas dessas regras.