Nosso principal progresso, tanto coletivo quanto individual, consiste em desenvolver sempre esse império que não pertence senão a nós sobre nossas próprias imperfeições, sobretudo morais. Essa tendência característica não poderia suficientemente surgir na Antigüidade, que pôde somente lhe preparar a manifestação por meio de um indispensável preâmbulo, intelectual e social. Sua destinação foi mesmo de tal modo incompatível com a posição direta da grande questão humana que ela exige sempre, ao contrário, a íntima subordinação da moral à política. Mas esse nobre fim convém tanto à nossa espécie que, desde a Idade Média, a ela tendeu abertamente, malgrado os obstáculos que oferecem ainda a insuficiente realização dessas duas condições preliminares. A doutrina dominante não estava ainda suficientemente real nem suficientemente completa, o caráter social mantinha-se muito militar e muito aristocrático para permitir então a constituição do ascendente final da moral sobre a política. Entretanto, a insuficiência necessária dessa admirável tentativa não impediu as populações ocidentais de já apreciar esse princípio fundamental, que sobreviveu após o irrevogável declínio das opiniões e dos hábitos de que ele inicialmente surgiu. Para fornecer-lhe uma preponderância decisiva, era necessário que o verdadeiro espírito filosófico, por muito tempo subordinado aos mais simples estudos, abrangesse gradualmente todo o domínio especulativo, até tornar-se plenamente sistemático, depois de sua extensão final às contemplações sociais. Ao mesmo tempo, era indispensável que a atividade industrial prevalecesse irrevogavelmente sobre a existência militar entre todas as populações preparadas pela incorporação romana e pela iniciação católico-feudal. Esse duplo preâmbulo elementar realizou-se, conjuntamente com a decomposição geral do antigo regime, durante a longa transição que nos separa da Idade Média. Uma comoção decisiva desde logo conduziu a elite de nossa espécie a retomar diretamente, sobre melhores bases mentais e sociais, o grande problema proposto por nossos pios e cavalheirescos ancestrais, para instituir enfim sua solução radical, que o Positivismo vem hoje sistematizar e formular.
Todas as fases essenciais dessa preparação coletiva exigem equivalentes na iniciação individual, espontânea ou sistemática, sob pena de insuficiência. Mas é necessário em seguida que esses diversos modos e graus da regeneração humana, além de sua íntima conexão, sejam todos conduzidos a um mesmo centro, próprio a constituir diretamente a unidade fundamental do regime definitivo. Sem essa condensação final, a sistematização positiva não saberia substituir inteiramente a sistematização teológica, malgrado a homogeneidade e a solidariedade superiores de seus elementos mais reais e mais estáveis. Ao seu princípio afetivo, à sua base racional e ao seu fim objetivo, o Positivismo deve então juntar um centro único, que abranja ao mesmo tempo o sentimento, a razão e a atividade. Tal é a última condição de seu ascendente decisivo, tanto privado quanto público.
Ela encontra-se inteiramente realizada pela convergência natural de todos os aspectos positivistas na grande concepção da Humanidade, que vem eliminar irrevogavelmente a de Deus, para constituir uma unidade definitiva mais completa e mais durável que a unidade provisória do regime inicial. A extensão e a aplicação da nova doutrina general tornar-se-ão assim acessíveis a todos os corações e, em conseqüência, a todos os espíritos, evitando hoje um longo e difícil preâmbulo científico, que permanece somente indispensável a seus órgãos sistemáticos.
Conforme sua natureza mais moral que mental, tal centro universal do Positivismo representa da mesma forma o princípio afetivo da sistematização final. Pois o caráter próprio desse novo Grande Ser consistindo em ser necessariamente composto por elementos separáveis, toda a sua existência repousa sobre o amor mútuo que liga sempre suas diversas partes, sem que qualquer cálculo possa jamais substituir um tal instinto.
A essa preponderância direta do sentimento social corresponde o desenvolvimento contínuo do espírito de conjunto, o único que permite conceber o concurso espontâneo de que resulta esse imenso organismo, fazendo abstração de todos os conflitos parciais. A razão participa então como o amor dessa condensação final. Por outro lado, somente ela completa a noção do verdadeiro Ser Supremo, ao desvendar todas as condições, exteriores e interiores, de sua existência real.
Mas a atividade não é menos inerente que o sentimento e a razão à natureza da unidade positivista. Pois o organismo mais completo deve, mais que qualquer outro, reagir sem cessar sobre o meio correspondente, para modificá-lo subordinando-se a ele. Daí resulta o progresso necessário, que não é nunca que o desenvolvimento da ordem emanada do amor.
A Humanidade condensa então diretamente as três características essenciais do Positivismo, seu motor subjetivo, seu dogma objetivo e seu fim ativo. Somente a esse verdadeiro Grande Ser, de que nós somos conscientemente os membros necessários, referem-se doravante todos os aspectos de nossa existência, individual ou coletiva, nossas contemplações para conhecê-la, nossos afetos para amá-la e nossas ações para servi-la.
Eis como os positivistas podem, melhor que os teológicos quaisquer, conceber a vida como um verdadeiro culto, tão íntimo quanto usual. Esse culto contínuo da Humanidade exaltará e purificará todos os nossos sentimentos; engrandecerá e esclarecerá todos os nossos sentimentos; enobrecerá e consolidará todos os nossos atos. O grande problema da Idade Média aí se encontra diretamente resolvido tanto quanto possível, pois a subordinação da política à moral resulta necessariamente de uma preponderância sagrada da sociabilidade sobre a personalidade.
É assim que o Positivismo torna-se enfim uma verdadeira religião, a única completa e real, destinada a prevalecer sobre todas as sistematizações imperfeitas e provisórias que emanaram do teologismo inicial.
A unidade das teocracias antigas foi ela mesma insuficiente, pois sua natureza puramente subjetiva não pôde jamais abranger plenamente a existência prática, sempre subordinada à realidade objetiva. Limitada ao sentimento e à razão, essa sistematização primitiva perdeu logo uma notável parte de seu domínio intelectual, quando o espírito estético libertou-se irrevogavelmente da tutela teocrática, por melhor se adaptar à vida real, seguindo sua vocação espontânea. Mantidos ainda como os únicos árbitros da ciência e da moral, os padres viram em seguida decrescer bastante sua autoridade teórica, assim como o desenvolvimento abstrato das menores concepções positivas permitiu o nascimento da filosofia propriamente dita. Ainda que ela não pôde então ser senão metafísica, ela tendia já a uma sistematização antissacerdotal, que, sem comportar nenhuma eficácia orgânica, arruinou o politeísmo e terminou por transformá-lo em monoteísmo. Nesse modo extremo da teologia, a autoridade especulativa do sacerdócio foi tão radicalmente alterada quando o princípio de sua doutrina. Os padres perderam então o ascendente científico, como perderam no início o ascendente estético. Eles conservaram somente uma supremacia moral, logo comprometida pela emancipação intelectual, de que o espírito positivo constitui a fonte real, ainda que o espírito metafísico tenha-lhe servido então de órgão sistemático.
Quando a ciência cresceu o suficiente para separar-se também da filosofia, ela não tardou a manifestar sua tendência necessária em direção a uma nova unidade especulativa, não menos contrária a toda metafísica que a toda teologia. Essa construção final, naturalmente sujeita a uma lenta sucessão de preâmbulos que as duas outras não exigiam, conduzia além disso o espírito científico a sistematizar a vida ativa, de que ele emana espontaneamente, à medida que dominava o domínio especulativo. Mas esse duplo ascendente não podia completar-se senão pela recente fundação da verdadeira ciência social, constituída enfim por minha teoria histórica. Desde então, os verdadeiros cientistas [savants], elevando-se à dignidade filosófica, tendem necessariamente ao caráter sacerdotal, pois essa elaboração final conduz à preponderância sistemática do princípio afetivo, de que resulta logo uma construção completa tanto quanto homogênea. Assim erigidos em padres da Humanidade, os novos filósofos devem obter um ascendente, intelectual e moral, mais estendido e enraizado que o do sacerdócio antigo. Sua exclusão necessária de toda autoridade temporal torna-se a condição fundamental dessa supremacia espiritual, para garantir a divisão sistemática entre a teoria e a prática. Nenhuma degeneração teocrática é possível em um regime em que o conselho e o comando não podem nunca emanar dos mesmos órgãos.
Conforme essa inteira renúncia à grandeza e à riqueza, individuais ou mesmo coletivas, os padres da Humanidade poderão obter uma incomparável dignidade, ao reunirem o ascendente intelectual, tanto estético quanto científico, e o ascendente moral, sempre separados depois da extinção das teocracias. A razão, a imaginação e o sentimento combinar-se-ão assim para modificar profundamente o império necessário da atividade prática, segundo as verdadeiras leis da moral universal, de que ele [o império da atividade prática] tende sempre a separar-se. Esse novo poder moderador adquirirá tanto mais influência quanto sua sistematização terá precedido e preparado o desenvolvimento direto do regime definitivo; ao passo que o teologismo não tendeu à unidade senão na época de seu declínio. O sacerdócio positivo deve então regenerar ao mesmo tempo todas as funções relativas ao nosso próprio aperfeiçoamento, destinando a ciência a estudar a Humanidade, a poesia a cantá-la e a moral a amá-la, a fim de que, com base nesse irresistível concurso, a política aplique-se sem cessar a servi-la.
Uma tal missão fornece à ciência real uma grandeza e uma consistência que não há iguais, pois somente ela faz-nos conhecer a natureza e a condição do verdadeiro Grande Ser, cujo culto completo deve caracterizar toda nobre existência. Ainda que essa determinação fundamental não pareça exigir senão estudos sociológicos, ela repousa necessariamente sobre um duplo preâmbulo lógico e científico, relativo, inicialmente, ao mundo exterior e em seguida ao homem individual, a fim de apreciar o meio e o agente desses eminentes fenômenos.
O culto dos positivistas não se dirige, como o dos teologistas, a um ser absoluto, isolado, incompreensível, cuja existência não comporta nenhuma demonstração e que rejeita toda comparação real. Nenhum mistério deve alterar a evidência espontânea que caracteriza o novo Ser Supremo. Ele não será dignamente cantado, amado e servido senão após um suficiente conhecimento das diversas leis naturais que regem sua existência, as mais complicadas que podemos contemplar.
De acordo com essa complicação superior, ele oferece, mais ainda que qualquer outro organismo, esse duplo atributo de solidariedade interior e de subordinação exterior que pertence a todo corpo vivo. Malgrado sua imensa extensão no tempo e no espaço, a exata apreciação de cada um de seus fenômenos manifesta-nos seu consenso universal. Sua existência é também a mais dependente da necessidade exterior, resultante, em relação a cada ser real, do conjunto das leis inferiores. A todas as fatalidades ordinárias, matemáticas, astronômicas, físicas, químicas e biológicas, vêm então se juntar as fatalidades sociológicas, estrangeiras às naturezas menos eminentes. Mas, por uma última conseqüência geral de sua complicação característica, esse grande organismo reage necessariamente mais que qualquer outro sobre o conjunto do mundo real, de que ele é o verdadeiro chefe. Sua definição científica parece então se reduzir a concebê-lo como o ser verdadeiramente supremo, que manifesta mais todos os principais atributos da vitalidade.
Mas uma última característica essencial, que não pertence senão a si mesma, deve completar sua noção fundamental, ao apreciar sistematicamente a independência necessária de seus próprios elementos. Enquanto as diversas partes de qualquer outro organismo não saberiam viver isoladamente, a grande existência compõe-se de vidas realmente separáveis. Ainda que essa independência não impeça o consenso, ela também é tão indispensável quanto o concurso para a natureza de um tal ser, que perderia toda sua superioridade se seus elementos tornassem-se inseparáveis. A dificuldade de conciliar essas duas condições igualmente fundamentais explica suficientemente a lentidão dessa suprema evolução. Entretanto, o novo Grande Ser não supõe, como o antigo, uma abstração puramente subjetiva. Sua noção resulta, ao contrário, de uma exata apreciação objetiva; pois o homem, propriamente dito, não existe senão no cérebro mais abstrato de nossos metafísicos. No fundo, não há nada de real senão a humanidade, ainda que a complicação de sua natureza tenha-nos interdito até aqui de sistematizar sua noção, termo necessário de nossa iniciação científica. Essa última apreciação conduz a completar a concepção sistemática do Ser Supremo, distinguindo duas ordens de funções elementares, umas de atividade, outras de ligação. Com efeito, não há nela nada de diretamente ativo senão as partes separáveis; mas a eficácia de suas operações depende de seu concurso, espontâneo ou concertado. Um tal organismo supõe então ao mesmo tempo funções exteriores, essencialmente relativas à sua existência material, e funções interiores, especialmente destinadas a combinar seus elementos móveis. Ora, essa indispensável divisão reduz-se, no fundo, a estender até ao organismo coletivo a grande teoria do incomparável Bichat sobre a distinção das duas vidas, de nutrição e de relação, em todo organismo individual. É aí que é necessário obter a verdadeira fonte sistemática da separação normal dos dois poderes sociais. O poder Temporal, o único diretor, emana da personalidade e desenvolve a atividade, do que resulta a ordem fundamental; ao passo que o poder Espiritual, puramente moderador, representa imediatamente a sociabilidade e institui o concurso, que determina o progresso. Assim, na concepção do Grande Ser, o primeiro corresponde ao aparelho nutritivo e o segundo ao aparelho nervoso do organismo individual.
O conjunto desse estudo estático permite em seguida à ciência apreciar diretamente a existência dinâmica correspondente, conforme minha teoria fundamental da evolução humana, como exporá o terceiro volume deste tratado. Nosso Grande Ser não é mais imóvel nem absoluto; sua natureza relativa torna-o eminentemente passível de desenvolvimento: em uma palavra, ele é o mais vivo dos seres conhecidos. Ele estende-se e compõe-se mais e mais pela sucessão contínua das gerações humanas. Mas suas mutações necessárias são tão sujeitas quanto suas funções fundamentais a leis invariáveis. Seu conjunto, doravante apreciável, constitui um espetáculo mais imponente que a sublime inércia do antigo Ser Supremo, cuja existência passiva não era suspensa senão por inexplicáveis caprichos. Assim, somente a ciência real pode fazer-nos apreciar esse destino preponderante, que domina e envolve todos os nossos. Como a respeito dos menores fenômenos, é ao estudo sistemático do passado que pertence a determinação do porvir para caracterizar o presente. Da concepção normal do Grande Ser, passamos então à história de sua formação contínua, cujo conjunto resume todos os progressos quaisquer. Sua noção era incompatível, na Antigüidade, seja com o ascendente do espírito teológico, seja com o desenvolvimento da atividade guerreira, fundada sobre a escravidão dos produtores. Somente a pátria, mesmo muito restrita inicialmente, podia constituir então o prelúdio necessário da Humanidade. Sob essa nacionalidade primitiva, surgiu, na Idade Média, o sentimento da fraternidade universal, de acordo com o caráter defensivo da nova atividade militar e da livre concentração das crenças sobrenaturais em um monoteísmo comum a todo o Ocidente. O desenvolvimento dos hábitos cavalheirescos e o primeiro esboço de uma separação normal entre os dois poderes elementares, anunciaram já a elaboração direta do grande organismo, proclamando a subordinação da política à moral. Mas a natureza quimérica e egoísta das crenças dominantes, assim como o caráter militar e aristocrático desse regime transitório, não permitiram então outra preparação imediata que a indispensável abolição de toda escravidão pessoal, principal resultado dessa grande época. Os hábitos industriais tendo assim começado a prevalecer, o sentimento de fraternidade pôde apoiar-se sobre uma atividade verdadeiramente universal. Ao mesmo tempo, o desenvolvimento decisivo da positividade racional preparou a elaboração final da ciência social, a única capaz de sistematizar tais preparações, para construir diretamente a noção do verdadeiro Grande Ser. Essa concepção foi inicialmente tornada sistemática quanto às funções especulativas, sobretudo científicas, que suscitaram, faz dois séculos, a primeira fórmula relativa a esse imenso e eterno organismo[1]. Ao longo da indispensável dissolução do sistema teológico e militar, a evolução moderna fez em seguida surgir, com base nas suas diversas preparações orgânicas, a noção real do progresso contínuo que caracteriza essa vida coletiva. Mas a concepção da Humanidade não pôde constituir uma nova unidade fundamental senão após o estremecimento decisivo que, de uma parte, manifestou a urgência de uma regeneração universal e, de outra parte, suscitou a filosofia capaz de sistematizá-la. É assim que a contemplação do Grande Ser acompanha sempre sua formação gradual. Sua concepção atual resume tanto o conjunto de nossas preparações sociais quanto o de nossas especulações positivas.
Ao caracterizar assim a consagração direta da ciência regenerada, seria supérfluo insistir aqui na dignidade que ela fornece ao seu indispensável preâmbulo inorgânico e biológico, desde então intimamente anexado ao dogma final. As partes mais inferiores recebem dessa forma uma augusta destinação social, seja com base em sua superioridade lógica, seja em virtude de sua necessidade científica. É verdade que a religião da Humanidade exige hoje a abolição radical do regime acadêmico, como sendo ao mesmo tempo imoral e irracional, sobretudo na França. Esse duplo perigo resulta, com efeito, entre os geômetras, de sua cega limitação ao simples começo da iniciação positiva; entre os biólogos, de um tendência empírica a instituir seus estudos sem base e sem destinação sistemáticos. O bom senso e a moral proscreverão logo toda especialidade teórica que não seja concebida e cultivada de acordo com as vistas enciclopédicas, próprias a vinculá-la sempre ao conjunto de nossa existência. Não se pode conter de outra forma o idiotismo e o egoísmo, já demais desenvolvidos, que suscitam necessariamente a anarquia atual. Mas essa indispensável depuração assegurará em seguida a consagração pública de todos os verdadeiros trabalhos científicos, mesmo a respeito dos menores objetos. Assim corrigidos de sua desastrosa secura, os estudos matemáticos manifestarão sempre sua secreta aptidão moral, como as únicas reais de convicções verdadeiramente inabaláveis, que não saberiam obter nas altas especulações aqueles que não saibam obtê-las nas mais simples. Quando a íntima conexão de todas as nossas concepções encontrar-se assaz apreciada, o Grande Ser afastará tanto o publicista que se mantém estrangeiro à geometria quanto o geômetra que desdenha da Sociologia. Da mesma forma, purificados de seu perigoso materialismo, os estudos biológicos adquirirão desde então a imponente grandeza devida às teorias preliminares mais próximas da ciência final e as mais próprias a preparar o dogma fundamental. O espírito que aspirava a compreender o Ser Supremo sem ter de início apreciado as vitalidades inferiores não seria menos censurável que aquele que se recusava a vincular a Biologia à sua única destinação normal. Tornados indispensáveis às demonstrações morais e dignamente subordinadas às inspirações do coração, todos os sãos estudos científicos encontrar-se-ão doravante ligados profundamente ao sacerdócio da Humanidade. O reino do verdadeiro sentimento desenvolverá o impulso da reta razão [droite raison], que, por seu turno, consolidá-la-á por uma sanção sistemática. Além de sua evidente necessidade para regularizar a atividade espontânea do Grande Ser, a filosofia natural tende imediatamente a aperfeiçoá-la, ao tirar do exterior a única base de fixidez que comporta o conjunto de nossas afeições.
Irrevogavelmente votada ao estudo, direto ou indireto, da Humanidade, a ciência assumirá doravante um caráter verdadeiramente sagrado, como fundamento sistemático do culto universal. Somente ela pode fazer-nos bem conhecer, não somente a natureza e a condição do Grande Ser, mas também seus destinos e suas tendências sucessivas. Nesse sacro ofício, cuja imensa dificuldade exige a combinação habitual de todas as nossas forças especulativas, nossos menores procedimentos científicos enobrecer-se-ão por seu vínculo permanente com as mais altas funções. A precisão escrupulosa e a austera circunspecção do método positivo, que parecem tão geralmente pueris em sua aplicação ociosa, serão então respeitadas e recomendadas como garantias indispensáveis à eficácia de uma elaboração relativa às nossas principais necessidades. Sentir-se-á que, longe de ser incompatível com o verdadeiro sentimento, a verdadeira racionalidade pode concorrer bastante para consolidá-lo e desenvolvê-lo, ao manifestar melhor todas as relações reais, sobretudos sociais.
Mas qualquer imponente grandeza que a ciência regenerada deva assim receber do novo culto, este fornecerá à poesia uma consagração ainda mais direta e mais completa, assinalando-lhe uma destinação mais ativa e mais familiar. Daqui por diante votado a cantar a Humanidade, o gênio estético sentir-se-á diretamente chamado à sua missão natural, de que todo o seu desenvolvimento anterior não constitui senão seu prelúdio necessário, quase sempre realizado com impaciência pela arte, que escapou antes da ciência do jugo teocrático. Ele não aceita francamente senão o regime politeico, que lhe permite idealizar livremente todos os nossos sentimentos elementares, para representar os deuses ingenuamente conforme o tipo humano. Secretamente rebelde à concentração monotéica, que não lhe deixa senão um papel demasiado subalterno, ele tendeu, após o fim da Idade Média, a apoderar-se enfim de seu verdadeiro domínio, subordinado até então a tenebrosas quimeras. O culto do verdadeiro Grande Ser abrir-lhe-á rapidamente uma carreira inesgotável, chamando-o sobretudo a idealizar nossa existência coletiva, de que a Antigüidade não pôde oferecer-lhe senão um fraco esboço, pouco favorável à alta poesia.
De início, a arte deve participar bastante da construção direta do tipo fundamental, sob a única condição de conformar-se sempre aos grandes dados científicos. Pois a ciência não pode determinar assaz a natureza e o destino do novo Ser Supremo para satisfazer as necessidades de um culto cujo objeto deve conceber-se com clareza a fim de que se possa amá-lo sem esforço e servi-lo com ardor. Pertence ao gênio estético preencher, a esse respeito, as inevitáveis lacunas que deixa o gênio científico, sempre contido nos estreitos limites da realidade, sobretudo em um tal assunto. Seu próprio caráter dispõe-no a representar melhor o da humanidade, pois a arte participa dela mais que a ciência. A independência e o concurso, cuja combinação distingue o Grande Ser de todas as outras vitalidades, constituem também os atributos espontâneos da poesia. Ainda que sua natureza seja mais simpática que a da ciência, suas produções são entretanto as mais individuais de todas, aquelas em que o gênio próprio de cada compositor encontra-se mais marcado, pois ele deve menos a seus predecessores e a seus contemporâneos. Assim, a síntese fundamental que inaugurará o culto final convém mais à arte que à ciência, que lhe fornecerá somente uma base indispensável. A poesia terá aí ainda mais parte que na elaboração primitiva dos tipos politeicos, em que sua cooperação tão vangloriada foi mais aparente que real e reduziu-se, no fundo, a ornar os mitos construídos por uma teocracia obscurecida. Somente ela possibilitará pôr-nos no verdadeiro ponto de vista humanista, ao fazer-nos sentir dignamente todos os atributos essenciais do Grande Ser que nós compomos. Ela cantará fase por fase sua força material, seu melhoramento físico, seu progresso intelectual e sobretudo seu aperfeiçoamento moral. Antipática a toda análise, a arte explicar-nos-á a natureza e a condição da Humanidade ao representar-nos seu verdadeiro destino, sua luta contínua contra uma dolorosa fatalidade, tornada uma fonte de felicidade e de glória, sua lenta evolução preliminar e suas altas esperanças vindouras. Somente a história do amor universal, alma necessária do novo Grande Ser, forneceria à poesia regenerada um objeto inesgotável, para representar, no indivíduo e sobretudo na espécie, a admirável progressão que nos eleva gradualmente à mais pura ternura, partindo entretanto de um brutal apetite.
Esse grande ofício estético assumirá geralmente uma forma comparativa, que caracterizará a superioridade do novo culto, sem exigir nenhuma crítica especial sobre o antigo. Para melhor indicar os principais atributos do verdadeiro Grande Ser, a arte será freqüentemente conduzida, sobretudo no começo, a opor-lhe a imperfeição necessária de seus diversos precursores. A natureza absoluta, indefinida e imutável dos tipos teológicos não permitiu nunca conciliar suficientemente neles as condições essenciais de bondade, sabedoria e força, cuja combinação não se torna inteligível para nós senão em uma existência real, sujeita a leis insuperáveis. O monoteísmo substituiu os deuses ativos e simpáticos, mas sem dignidade e sem moralidade, por uma divindade tanto inerte e impassível quanto impenetrável e inflexível, ainda que sempre majestosa. Conforme a realidade que caracteriza o novo Ser Supremo, sua natureza relativa e modificável permite-nos uma apreciação mais completa e sobretudo mais apta a elevar-nos sem cessar de dominar-nos. Cada um sente nele um superior, de que depende, a todos os respeitos, o seu próprio destino, sempre subordinado à evolução coletiva. Mas essa dominação não nos anula como a antiga onipotência, pois cada digna individualidade reconhece-se, por sua vez, como indispensável para o grande organismo. Ele não é supremo senão por nosso concurso e seu ascendente é superior às outras existências conhecidas. Nenhum terror degradante atrapalha nosso amor por ele e, todavia, ele inspira-nos sempre uma sincera veneração. Longe de supô-lo perfeito, nós estudamos com cuidado suas imperfeições naturais, a fim de corrigi-las tanto quanto possível. Nós amamo-lo com uma afeição tão nobre quanto terna, que, em vez de uma vergonhosa adulação, inspira uma ativa solicitude de aperfeiçoamento. Mas todas essas vantagens do novo culto, indicadas no começo pela filosofia, não podem ser suficientemente desenvolvidas senão pela poesia. Já Goethe, e sobretudo Byron, pressentiram a grandeza moral do homem libertado de toda quimera opressiva. Todavia, eles não puderam chegar assim senão a tipos insurrecionais, em conformidade com seus ofícios revolucionários. É necessário sair do estado negativo em que seus gênios ficaram retidos por sua situação e elevar-se à contemplação positiva do conjunto das leis naturais, sobretudo sociológicas, para cantar dignamente o novo homem em presença do novo deus.
Enfim, a missão sacerdotal da arte regenerada desenvolver-se-á sob uma terceira forma geral, ao presidir o sistema de festas, públicas ou privadas, que constituirá a maior parte do culto propriamente dito. Para um tal ofício, os padres da Humanidade deverão, com efeito, aplicar mais sua aptidão estética que seu talento científico. Afinal, essa imensa função deve, no fundo, consistir em manifestar melhor a natureza, estática e dinâmica, do grande organismo, por meio da idealização de suas diversas características.
Será necessário, então, instituir duas sortes de festas, relativas aos dois atributos necessários do ser fundamental, celebrando-lhe tanto a existência quanto a atividade, de modo a desenvolver os dois elementos indispensáveis do verdadeiro sentimento social. As festas estáticas manifestarão a ordem e estimularão o instinto de solidariedade; as festas dinâmicas caracterizarão o progresso, para fazer sentir melhor a continuidade. Nesse duplo complemento periódico da educação universal, todos os princípios que ela terá proposto serão desenvolvidos e consolidados, ainda que sem nenhuma intenção didática, sempre contrária ao verdadeiro gênio da arte, que não deve instruir senão embelezando. Por outro lado, a fixidez natural de tais solenidades não impedirá jamais o sacerdócio positivista de combiná-las oportunamente, em aplicações especiais aos principais incidentes de cada situação real.
As festas da ordem serão necessariamente menos concretas e mais austeras que as do progresso. Elas deverão caracterizar a solidariedade estática do grande organismo, conforme as diversas funções fundamentais do amor que o anima. A mais geral e mais augusta será, então, a da Humanidade, que, em todo o Ocidente, iniciará dignamente cada novo ano, ao regularizar a única tendência universal que embeleza ainda nossa prosaica existência. Essa solenidade inicial será concernente diretamente à mais vasta solidariedade, de modo a dedicar um a todos os ramos de nossa espécie. Ela poderá completar-se, no mesmo mês, por três festas secundárias, relativas aos graus inferiores de associação, a nação, a província e a cidade. A essa primeira celebração direta do vínculo social, suceder-se-ão, no começo de cada um dos quatro meses seguintes, as das quatro relações de família, o casamento, a paternidade, a filiação e a fraternidade, completadas, no mês seguinte, por uma justa glorificação da domesticidade propriamente dita.
Esse sistema estático representará ao mesmo tempo a verdadeira teoria da nossa natureza, tanto coletiva quanto individual, e o conjunto correspondente da sã moral. Os impulsos puramente pessoais, malgrado sua preponderância, não devem figurar nele distintamente, pois um tal culto é sobretudo destinado a melhor subordiná-los aos instintos simpáticos. Ainda que a educação positiva conceda grande importância às virtudes correspondentes, elas não merecem uma celebração especial, que conduziriam ao egoísmo. Elas devem ser glorificadas apenas indiretamente, em todas as partes do culto humanista, conforme sua influência real sobre os afetos generosos. Daí que não resulta, então, nenhuma verdadeira lacuna no quadro estético de nossos atributos e de nossos deveres. Esse quadro não exige u’a manifestação mais especial da subordinação necessária do Grande Ser ao conjunto do mundo exterior. Com efeito, essa necessidade fundamental faz-se sentir em toda parte, seja que se celebre nossas inclinações que ela regula, seja nossas especulações que ela determina, seja nossa atividade que ela impõe. Apenas a periodicidade de nossas solenidades segundo os movimentos do astro que nos conduz lembra suficientemente nossa invencível subordinação às fatalidades exteriores.
Quanto às festas dinâmicas, destinadas a celebrar o progresso, seu conjunto deve representar a história como o outro [faz com] a moral. O culto estético da Humanidade torna-se aí mais concreto e mais animado, consistindo sobretudo em glorificar os melhores tipos individuais das diversas fases da grande evolução. Entretanto, também é necessário que os principais graus da progressão social sejam abstratamente celebrados, independentemente de toda comemoração pessoal. Ao consagrar-lhes os meses que sobraram do culto estático, quatro festas eqüidistantes glorificarão as três grandes fases do passado, fetíchico, politeico e monoteico, para levar à festa do porvir, termo normal de uma tal celebração.[1] Referência à sugestão de Blaise Pascal (1623-1662) de considerar a Humanidade como um único indivíduo que se desenvolve ao longo do tempo (nota do tradutor).
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