07 agosto 2011

Tradução do "Discurso sobre o conjunto do Positivismo"

Passo a traduzir o "Discurso sobre o conjunto do Positivismo", escrito por Augusto Comte em 1848. Farei essa tradução por partes e começo-a pelo capítulo final do livro (cap. 6), dedicado a reunir os elementos expostos anteriormente e coordená-los com vistas à constituição e à afirmação da Religião da Humanidade.

Agradecerei bastante se houver observações construtivas a respeito da tradução. Havendo dúvidas sobre trechos do texto, fico à disposição para dirimi-las.

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Conclusão geral do Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo[1]
Religião da Humanidade
O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim; tal é, após este longo discurso preliminar, o caráter fundamental do regime definitivo que o Positivismo vem inaugurar ao sistematizar todas a nossa existência, pessoal e social, por uma combinação inalterável entre o sentimento, a razão e a atividade. Essa sistematização final preenche, bem além de qualquer possibilidade anterior, as diversas condições essenciais, seja quanto ao desenvolvimento especial das diferentes partes de nossa natureza, seja quanto à sua conexão geral. A supremacia necessária da vida afetiva encontra-se aí melhor constituída que antes, a partir da universal preponderância do sentimento social, que pode diretamente encantar quaisquer pensamentos e atos.
Jamais opressiva a respeito do espírito, uma tal dominação do coração santifica a inteligência ao votá-la doravante para o serviço contínuo da sociabilidade, de que ela deve consolidar o ascendente e esclarecer o exercício. Dignamente subordinada ao sentimento, a razão adquire assim uma autoridade que não pudera ainda obter, como única apta a desvendar a ordem fundamental que dirige necessariamente toda a nossa existência de acordo com o conjunto das leis naturais dos diversos fenômenos. Essa base objetiva da verdadeira sabedoria humana reage profundamente sobre nossos próprios afetos, que encontram, na obrigação de conformarem-se a ela, uma fonte de fixidez própria a conter sua versatilidade espontânea e uma estímulo direto à preponderância dos instintos simpáticos. Nobremente aplicado a um ofício fundamental que o preserva de toda divagação ociosa, o gênio científico encontra o mais vasto alimento na apreciação de todas as leis reais que influenciam sobre os nossos destinos e sobretudo no estudo de nossa própria natureza, individual e coletiva. A preponderância do ponto de vista sociológico, longe de sufocar as especulações mais abstratas, aumenta tanto sua consistência quanto sua dignidade, ao constituir a única unidade que elas comportam.
Ao assegurar à imaginação sua justa influência sobre o conjunto da vida humana, esse regime final consolida e realiza o desenvolvimento habitual da imaginação, daqui para frente aplicada à sua destinação característica – a idealização contínua da realidade. As funções científicas não são indispensáveis senão para construir a base exterior de todas as nossas concepções. Mas, esse ofício uma vez cumprido, as funções estéticas convêm mais à nossa inteligência, desde que seu exercício respeite sempre esse fundamento necessário, aliás tão próprio para prevenir seus desvios. Sob esse única condição geral, elas são diretamente encorajadas pela sistematização positiva, como estando ao mesmo tempo as mais conformes ao seu princípio afetivo e as mais próximas de seu fim ativo. Profundamente incorporadas à nova existência, elas constituem-lhe, de ordinário, o exercício mais doce e o mais salutar de nossa inteligência, que não saberia tender mais diretamente a cultivar a afeição e a perseguir o aperfeiçoamento.
Primeiramente emanada da vida ativa, a sistematização final a ela regressa com um acréscimo de energia, que, após sua longa preparação especulativa, ela pôde remontar ao seu princípio ativo, tornado doravante sua fonte direta. Longe de suscitar qualquer abatimento, esse amor fundamental conduzir-nos-á sempre à mais completa atividade, ao votar toda a nossa existência ao aperfeiçoamento universal. Ele não nos obriga a estudar a ordem universal senão a fim de melhor aplicar nossas forças quaisquer, individuais ou coletivas, ao seu melhoramento artificial. Duramente esboçado até agora, mesmo a respeito do mundo material, essa destinação normal não pôde ainda ocupar senão a menor parte dos esforços humanos. Seu desenvolvimento não poderia tornar-se degradante senão se limitasse-se aos níveis inferiores do aperfeiçoamento. Desde que nossa sabedoria especulativa abarque diretamente seu principal domínio, nossa sabedoria ativa aplica-se sobretudo aos mais eminentes fenômenos, em que a ordem natural é ao mesmo tempo mais imperfeita e mais modificável. Assim aumentada e sistematizada, nossa existência persegue de preferência o melhoramento intelectual e ainda mais o aperfeiçoamento moral, seja na ternura, seja na coragem. A vida privada e a vida pública encontram-se doravante ligadas por um mesmo fim principal, de que a vida familiar vem enobrecer todos os atos. Daí, a preponderância necessária da prática, longe de jamais ser hostil à teoria, prescreve-lhe sobretudo as mais difíceis pesquisas, para descobrir as verdadeiras leis de nossa natureza pessoal e social, de que o conhecimento permanecerá sempre inferior às nossas necessidades reais. Em vez de dispor à secura moral, uma tal atividade habitual encaminha-nos sem cessar a melhor sentir que o amor universal constitui não somente nossa principal felicidade mas também nosso mais possante meio, indispensável à eficácia de todos os outros.
É assim que, na existência positiva, o coração, o espírito e o caráter consolidam-se e desenvolvem-se mutuamente, após a sistematização habitual de seus próprios exercícios naturais. Jamais a vida pública e a vida privada puderam ser assim tão ligadas, exceto por essa igual consagração a uma mesma destinação essencial, em que elas não diferem senão pela extensão de seus meios respectivos. Votadas uma e outra a fazer prevalecer sempre, tanto quanto possível, a sociabilidade sobre a personalidade, cada uma aplica-lhe sem cessar, e a todos os propósitos, todas as nossas forças quaisquer – afetivas, especulativas e ativas.
Após essa posição final do grande problema humano, a arte social, diretamente consagrada à sua solução geral, assume doravante como princípio fundamental a separação normal dos dois poderes elementares, um moral, que aconselha, o outro político, que comanda. A preponderância necessária deste último, sempre fundada sobre a força material, representa o ascendente espontâneo da personalidade sobre nossa imperfeita natureza, em que as mais grosseiras necessidades encontram-se com as mais urgentes e as mais contínuas. Sem essa irresistível fatalidade, nossa própria vida individual ficaria falha de consistência e de direção; mas sobretudo nossa existência coletiva não comportaria nem caráter, nem atividade. É por isso que o poder moral, que repousa sobre a convicção e a persuasão, deve manter-se puramente moderador, sem jamais se tornar diretor.
Emanado do sentimento e da razão, ele representa especialmente a sociabilidade; somente ela cultiva-o imediatamente. Mas, porque ele corresponde aos nossos mais eminentes atributos, ele não pode obter uma preponderância prática que pertence aos [atributos] mais enérgicos. Inferior em força, ainda que superior em dignidade, ele opõe sempre seu classamento virtual dos indivíduos de acordo com seu mérito mental e moral ao seu classamento real segundo a riqueza ou a grandeza. Sem jamais chegar a fazer prevalecer seus princípios de apreciação, ele ainda leva a modificar felizmente a ordem natural de toda sociedade, ao lembrá-la dignamente do espírito de conjunto e do sentimento de dever, que a atividade prática tende a alterar.
Esse ofício fundamental, cuja necessidade é em todos os lugares sentida, sistematiza-se com a atribuição característica desse poder moderador, para preparar-nos para a vida real por uma sã educação geral, principalmente relativa à moral, mesmo em sua parte intelectual. Assim votada à especulação e à afeição, essa força modificadora não pode constituir um digno órgão sistemático da sociabilidade senão permanecendo sempre exterior à ação. Seu primeiro dever consiste então em combater, em seu próprio seio, nosso vãos instintos de elevação temporal, que não se tornam salutares, malgrado a impureza de sua fonte ordinária, senão nas naturezas verdadeiramente destinadas a um indispensável comando. Essa renúncia solene à riqueza e à grandeza torna-se a base primitiva do verdadeiro poder teórico e a condição inicial de sua legítima resistência às usurpações sempre iminentes do poder prático. Ele obtém assim seus principais apoios habituais, ao desenvolver suas afinidades naturais com os elementos sociais que são, como ele, necessariamente estrangeiros ao governo político.
Primeira fonte espontânea da influência modificadora, a partir de sua natureza eminentemente afetiva, as mulheres tornam-se então, em virtude de sua situação passiva, as auxiliares domésticas do verdadeiro poder espiritual. Ele associa-as intimamente ao seu ofício essencial, confiando-lhes toda a educação privada, de que a educação pública não constitui, no regime positivo, senão um indispensável complemento sistemático. Como esposas, elas participam ainda mais de suas funções consultivas, ao temperar por meio da persuasão o ascendente material que ele [o poder Espiritual] modera somente pela convicção. No gênero de vida pública que convém à sua natureza, elas assistem-no espontaneamente, para elaborar a opinião comum de que ele torna-se o órgão sistemático, apreciando os atos, e sobretudo as pessoas, a partir dos princípios que ele fornece-lhes. Esse íntimo concurso desenvolver-se-á mais quando as mulheres, dignamente preservadas pelos homens de toda solicitude material, serão em toda parte também estrangeiras à riqueza e à dominação, como se vê tão freqüentemente entre os proletários.
Ainda que menos pura e menos direta, a afinidade do povo com o poder filosófico fornece naturalmente a este uma enérgica assistência civil em seu inevitável antagonismo com o poder político. Privados ao mesmo tempo de lazer material e de força individual, os proletários não saberiam habitualmente participar do governo prático, cuja eficácia depende sobretudo de sua concentração. Ao contrário, a força moral, sempre emanada de uma livre convergência, comporta, e mesmo exige, ramificações universais. Ora, liberados de toda grave responsabilidade prática, os proletários associam-se naturalmente ao poder teórico, com base na disponibilidade de espírito e na despreocupação pessoal que os dispõe mais que seus chefes temporais às vistas de conjunto e aos sentimentos generosos. Eles fornecerão assim a principal base habitual da verdadeira opinião pública, quando uma educação geral, que lhes será sobretudo destinada, permitir-lhes bem caracterizar seus votos. Suas necessidades, assim como suas inclinações, aproximam-nos sempre do sacerdócio filosófico, que se tornará seu órgão sistemático face às classes dirigentes. Em troca desse ofício natural, ele receberá deles uma imponente assistência por sua grande missão social de subordinar sem cessar o comando à moralidade. Nos casos excepcionais que exigirão a intervenção política do poder moderador, o caráter ativo de seu elemento popular dispensará seu elemento filosófico de uma anomalia que o desnaturalizaria quase tanto quanto ao seu elemento feminino.




[1] Fonte: Comte, A. 1929. Système de politique positive. V. I. 5e ed. Paris: Société Positiviste. P. 321-327. Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.

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