O colapso do comunismo, seguido do alastramento e da derrocada do neoliberalismo, teve uma conseqüência estranha: a afirmação de que o século XXI não pode ter mais “ismos”. Ora, essa idéia, avançada mesmo por marxistas, repete o que se falou nos anos 1950, sobre o “fim das ideologias”.
Não é possível o fim dos “ismos”, simplesmente porque o ser humano não apenas reage, mas ele age; ao agir, segue concepções e perspectivas preliminares, que estão consignadas ou aproximam-se de variadas formas, necessariamente, em alguns dos “ismos”. Caso alguém afirme não se pautar por ideologias ou filosofias ou doutrinas, simplesmente adotará uma conduta confusa e errática, em um padrão que na melhor das hipóteses será um amálgama eclético, isto é, uma colagem arbitrária de perspectivas de outras doutrinas – ou seja, uma solução de compromisso intelectual e afetiva incoerente e empírica, que, no fundo, seguirá as linhas mestras do que se aprendeu na infância.
Além disso, a ausência de uma doutrina racional, que ao mesmo tempo descreva a realidade e prescreva o bem, o justo, o verdadeiro e o belo, resultará de maneira mais ou menos imediata em alguma forma de egoísmo: pessoal, familiar, regional, nacional, civilizacional, classista – ou variações ou combinações deles. A ausência de doutrinas, assim, embora afirmada como um dos pináculos da consciência contemporânea, é precisamente o contrário: é a ausência de direção e, portanto, é a ausência de parâmetros claros e racionais; assim, não é progresso, mas é retrogradação e impossibilidade de progresso. (Mas, afinal, por que seria isso um problema? Não se afirma correntemente que “o progresso é um mito”?)
A ausência de doutrinas – que, na verdade, é a recusa de doutrinas filosóficas sistemáticas, mas não a ausência de teologias, metafísicas e misticismos em geral – é uma das conseqüências da pós-modernidade (pelo menos, conforme descrita por Jean-François Lyotard) e conduz a um estado de terrível laissez-faire: sem parâmetros, sem valores, não há por que agir; se não há orientação para a ação, seu resultado é o egoísmo erigido em princípio fundamental (mesmo que inconsciente). Isso é a retrogradação mais radical possível.
Vinculado ao “fim dos ‘ismos’” está o multiculturalismo. O multiculturalismo não resolve nada; embora ele afirme a dignidade de todas as doutrinas, não conduz a nada além da justaposição dos seres humanos; em outras palavras, não permite que os seres humanos vivam juntos, sob uma doutrina mínima comum, que indique parâmetros e valores que possibilitem o diálogo de todos com todos. Além disso, a afirmação formal de que todas as doutrinas e filosofias são iguais – quando existem, evidentemente, pois o multiculturalismo convive com a já mencionada idéia do “fim dos ‘ismos’” – resulta em uma recusa consciente da valoração da realidade: além de impossível, isso produz resultados funestos, como a recusa de avaliar (em um exemplo fácil) o nazismo. Da mesma forma, se todas as doutrinas são iguais e devem ser respeitadas com um espírito de “autodeterminação das culturas”, o diálogo entre as doutrinas não é possível: daí a justaposição de seres humanos, que não interagem mas vivem lado a lado, sem se relacionarem.
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