Anotações sobre a liberdade
- A liberdade é um dos temas mais clássicos de reflexão filosófica, política e social
o Para o que nos interessa, podemos considerar aqui dois tipos gerais de liberdade, a “filosófica” e a “política”
§ Antes de mais nada: não trataremos aqui da liberdade econômica
o Augusto Comte evidentemente trata de ambas
§ Mais do que tratar de ambas, Augusto Comte relaciona uma à outra de maneira íntima
§ Na presente exposição, trataremos antes da liberdade política e, com os seus elementos, trataremos da liberdade “filosófica”
- Em termos de liberdade política, eis o que podemos comentar:
o O conceito mais básico e elementar é o de Thomas Hobbes, que entende a liberdade como a capacidade de realizar coisas sem sofrer obstrução
o O sentido básico que Augusto Comte dá à liberdade segue esse conceito de Hobbes
- Entre os séculos XVII e início do século XIX, a partir da chamada “querela dos antigos e dos modernos”, estabeleceu-se uma distinção entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”; no século XX essa distinção recebeu uma nova elaboração, entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva”
o A liberdade negativa consiste em fazer o que se deseja, sem que nada ou ninguém ofereça obstáculos ou resistências
o A liberdade positiva consiste na autonomia da decisão
o Na década de 1990, após o fim do comunismo, revalorizou-se o republicanismo (e a cidadania) e, a partir disso, propôs-se também a “liberdade republicana”, que é a ausência de arbitrariedade nas relações políticas
§ O propositor da liberdade republicana, Phillip Pettit, inspira-se no constitucionalismo da antiga república romana, mas no geral ele tem uma concepção bem restrita e pobre de “república” (ele rejeita os aspectos que as repúblicas costumam e que devem ter: antimonarquia, afirmação das liberdades, caráter social das repúblicas)
· Pettit afirma que essa modalidade de liberdade é uma variação da liberdade negativa; assim, ele acaba aproximando-se mais do liberalismo (liberdade negativa) e afastando-se da “democracia” (liberdade positiva)
· Convém lembrar que o liberalismo é uma degradação do republicanismo, especialmente na Inglaterra do século XVII; em outras palavras, não é o republicanismo que seria uma alternativa atual e meio esquisita ao liberalismo
§ Embora tenha sérias limitações filosóficas, a proposta de Pettit – de que a liberdade consiste na ausência de arbitrariedade nas relações políticas – é uma concepção fundamental e em si mesma muito acertada
· De modo central, a ausência de arbitrariedade significa que ser livre não é o mesmo que fazer qualquer coisa quando e do jeito que se desejar
- Augusto Comte fala em liberdade considerando sempre a autonomia decisória individual e coletiva (liberdade positiva) e a ausência de obstáculos (liberdade negativa); também defende a ausência de arbitrariedade (liberdade “republicana”):
o A autonomia nas decisões e o respeito tanto à autonomia quanto às decisões é o que confere dignidade nas relações sociais
o As liberdades de consciência, expressão e associação são as liberdades fundamentais da vida política moderna
o O pacifismo, o relativismo e a fraternidade evitam a arbitrariedade nas relações sociais e políticas; além disso, a república deve ter um caráter social mais que político
- No que se refere à “liberdade filosófica”: é a respeito dela que as considerações de Augusto Comte sobre a liberdade são mais conhecidas:
o Popularmente, quando há referências ao conceito positivista de liberdade, menciona-se apenas um pequeno trecho específico (um parágrafo, na verdade) do Catecismo positivista
§ Nesse trecho, muito famoso, Augusto Comte afirma que não temos liberdade de desobedecermos às leis naturais:
“O Sacerdote – [...] Longe de ser por
qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda a
parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente.
Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua
natureza, para o centro da Terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a
menos que a interposição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do
mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada
livre se ela se efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum
empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta
sempre uma apreciação equivalente que, diretamente incontestável, quanto à
atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para
seu guia racional” (Augusto Comte, Catecismo
positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-244)
o Esse trecho tornou-se famoso porque os críticos do Positivismo atribuem-lhe vários aspectos negativos: cientificismo, determinismo, ausência de liberdade
o Vale reforçar: esse trecho é famoso porque os “críticos” de Augusto Comte limitam-se apenas a esse trecho, que é um pequeno parágrafo de uma obra de divulgação de Comte: as reflexões e as obras propriamente políticas (Opúsculos de filosofia social, Sistema de política positiva, Apelo aos conservadores) são desprezadas
o Mas a leitura do trecho completo, isto é, a leitura integral dos parágrafos anteriores e posteriores em que se insere a citação acima evidencia que as interpretações negativas são extremamente superficiais, quando não de má-fé:
“A Mulher – Antes de encetarmos o melhor domínio teórico, eu devo,
meu pai, submeter-vos um escrúpulo geral devido às objeções metafísicas que
com freqüência tenho ouvido formular contra esta extensão decisiva do dogma
positivo. Toda sujeição do mundo moral e social a leis invariáveis, comparáveis
às da vitalidade e da materialidade, é agora apresentada, por certos
argumentadores, como incompatível com a liberdade do homem. Posto que estas
objeções me tenham sempre parecido puramente sofísticas, nunca eu soube
destruí-las nos espíritos, ainda muito numerosos, que se deixam, assim,
estorvar em sua marcha espontânea para o positivismo.
O Sacerdote – É fácil, minha filha, superar este embaraço
preliminar, caracterizando diretamente a verdadeira liberdade.
Longe de ser por qualquer forma incompatível com a
ordem real, a liberdade consiste por toda parte em seguir sem obstáculos as leis
peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade
manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da terra, com uma
velocidade proporcional ao tempo, a menos que a inter-posição de um fluido não
modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função,
vegetativa ou animal, é declarada livre, se ela efetua de conformidade com as
leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa
existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente, que,
diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária
para seu motor afetivo e para seu guia racional.
Se a liberdade humana consistisse em não seguir lei
alguma, ela seria ainda mais imoral do que absurda, por tornar-se impossível um regime qualquer,
individual ou coletivo. Nossa inteligência manifesta sua maior liberdade quando
se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da ordem exterior, apesar
dos impulsos físicos ou morais que possam tender a perturbá-la. Nenhum espírito
pode recusar seu assentimento às demonstrações que compreendeu. Mas, além
disto, cada qual é incapaz de rejeitar as opiniões assaz acreditadas em torno
de si, mesmo quando ignora os verdadeiros fundamentos em que assentam, a menos
que não esteja preocupado de uma crença contrária. Podemos desafiar, por
exemplo, os mais orgulhosos metafísicos a que neguem o movimento da terra, ou
doutrinas ainda mais modernas, posto que eles ignorem absolutamente as provas
cientificas de tais doutrinas. O mesmo acontece na ordem moral, que seria
contraditória se cada alma pudesse, a seu bel-prazer, odiar quando cumpre amar,
ou reciprocamente. A vontade comporta uma liberdade semelhante à da inteligência, quando nossos
bons pendores adquirem bastante ascendência para tornar o impulso afetivo
harmônico como verdadeiro destino dele, superando os motores contrários.
Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte
inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior. Porém, à medida
que os fenômenos se complicam, eles se tornam mais suscetíveis de perturbação,
e o estado normal supõe neste caso maiores esforços, os quais, aliás, são aí
possíveis graças a uma aptidão maior para as modificações sistemáticas. Nossa
melhor liberdade consiste, pois, em fazer prevalecer, tanto quanto possível, os
bons pendores sobre os maus; e é também nisso que o nosso império tem a
sua maior amplitude, contanto que a nossa intervenção se adapte sempre às leis
fundamentais da ordem universal.
A doutrina metafísica sobre a pretendida liberdade moral deve ser historicamente considerada como um resultado passageiro da anarquia moderna; porquanto ela tem por objeto direto consagrar o individualismo absoluto, para o qual tendeu cada vez mais a revolta ocidental que teve de suceder à Idade Média. Mas este protesto sofistico contra toda verdadeira disciplina, privada ou pública, não pode de modo nenhum entravar o positivismo, se bem que o catolicismo não pudesse superá-lo. Jamais se conseguirá apresentar como hostil à liberdade e à dignidade do homem o dogma que melhor consolida e desenvolve a atividade, a inteligência e o sentimento” (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-247; os grifos são meus).
- O trecho acima tem que ser entendido como uma crítica científico-filosófica às pretensões de que a liberdade consiste em desejar qualquer coisa e, a partir disso, em querer fazer qualquer coisa
o Como vimos acima, a respeito da liberdade republicana, desejar qualquer coisa e poder fazer qualquer coisa é o mesmo que ser arbitrário e não ter nenhuma regra; mais do que isso, é o desejo de uma realidade que ceda aos nossos caprichos
- A concepção de leis naturais estabelece que o mundo não é caótico, ou seja, que ele obedece a regularidades:
o As regularidades evidenciadas e afirmadas pelas leis naturais rejeitam também, em particular, a concepção de que o mundo é governado por entidades que fazem o que querem, quando querem, do jeito que querem
o Lembremos que a teologia é a transposição para a ordem cósmica de um desejo imaturo interno aos seres humanos
- Entendendo a questão de uma outra perspectiva e chegando ao ponto que nos interessa aqui: a concepção de leis naturais requer o amadurecimento intelectual e moral do ser humano, no conjunto dos vários sentidos próprios ao amadurecimento:
o É necessário reconhecer que a realidade impõe limites à ação humana
o É necessário reconhecer que o mundo não obedece às meras vontades humanas
o É necessário reconhecer que a satisfação das vontades humanas requer tanto a limitação dessas vontades quando a adequação das vontades às possibilidades efetivas de ação
§ Podemos até não gostar do fato de que a realidade não é dócil às vontades humanas: ainda assim, temos que nos resignar a isso e aprender a lidar com a realidade
· Essa resignação é o que todos os filósofos sempre reconheceram como sendo a “sabedoria”
· É necessário insistir: essa resignação consiste, precisamente, em um dos mais importantes aspectos do que se chama, por toda parte, de “amadurecimento”
§
Por outro lado, insistir em que o mundo e a realidade deveriam curvar-se à vontade humana é
puramente pirraça, é mentalidade e comportamento infantil e caprichoso
- Há uma concepção difundida segundo a qual a mera vontade humana, entendida como puro desejo de algo, não tem limites e que, portanto, nesse sentido, a vontade humana seria “livre”
o A concepção da vontade-desejo da liberdade também consiste em um entendimento infantil da liberdade, especialmente da liberdade negativa (que é a ausência de impedimentos à ação): a liberdade aí é tornada sinônima de arbitrariedade
o A redução da vontade humana ao “desejo” é o último refúgio da concepção infantil de liberdade, ao tentar recuar ao máximo da subjetividade o âmbito do arbitrário
- Como a teologia e a metafísica buscam o absoluto e o arbitrário; como elas consistem em transpor para uma suposta objetividade algo que é próprio ao que é subjetivo, o resultado é que a concepção de liberdade que rejeita as leis naturais é uma concepção teológico-metafísica
o Essa concepção tem o terrível agravante de que é imatura ou, da pior maneira possível, é infantil, é mimada
- Reconhecermos o império das leis naturais e submetermo-nos a ele é a única garantia de ação e de aperfeiçoamento, ou seja, é a única possibilidade de liberdade
o Qualquer possibilidade de ação requer o conhecimento das leis naturais (seja o conhecimento empírico e concreto, seja o conhecimento sistemático e abstrato)
o Como dizia Francis Bacon, “só se pode controlar a natureza submetendo-se a ela”
- É por meio do conhecimento e do reconhecimento das leis naturais que o ser humano pode agir e satisfazer suas necessidades e, quando é o caso, também seus desejos
o O (re)conhecimento das leis naturais é ao mesmo tempo uma etapa e um resultado geral do amadurecimento do ser humano
o Vale notar que até mesmo os desejos satisfeitos pelo recurso às leis naturais não são desejos arbitrários, pois são limitados e regulados pelas condições idiossincráticas dos indivíduos e, acima de tudo, pelos “contextos” sociais, em termos políticos e morais (e mesmo tecnológicos)
- Em suma: Augusto Comte reconhece a particularidade das reflexões políticas sobre liberdade, mas evidencia que mesmo essas reflexões não podem isolar-se de reflexões mais amplas sobre a realidade cósmica e sobre a existência humana no mundo
o
Não há
nisso nenhum cientificismo, nenhum determinismo, nenhuma negação da liberdade
(ou a afirmação de autoritarismo): o que há é a exigência de amadurecimento
moral e intelectual e a rejeição da arbitrariedade (moral, intelectual e
política)
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