31 janeiro 2023

Anotações sobre as hierarquias (ou classificações) positivas

No dia 3 de Homero de 169 (31.1.2023) fizemos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, especialmente em sua quinta conferência, dedicada ao culto público.

Antes da leitura comentada, exercendo nosso papel de sacerdócio positivo, da Religião da Humanidade, condenamos, na medida das nossas forças, o atual genocídio praticado de maneira criminosa e intencional contra os índios ianomânis, no Norte do Brasil. Tal genocídio foi principalmente causado pela omissão intencional da ajuda dos poderes públicos (federal e estadual) em prover os auxílios aos nossos irmãos indígenas, especialmente em termos alimentares.

Para a Religião da Humanidade, o genocídio dos ianomâmis é motivo de tristeza e cobrança pelo menos por três motivos:

1) foi um positivista ortodoxo brasileiro, aliás também descendente de indígenas, que criou o antigo Serviço Nacional de Proteção aos Índios (SNI), com vistas a localizar, identificar e respeitar os inúmeros grupos indígenas que vivem no território nacional: trata-se do grande Cândido Mariano da Silva Rondon, o "Marechal da Paz".

2) A Religião da Humanidade foi enormemente desenvolvida pela instituição do "neofetichismo"; o neofetichismo, por sua vez, consiste na incorporação do fetichismo inicial à positividade final, aumentando o espaço dedicado à afetividade na vida humana, completando o papel da afetividade na vida lógica humana e, assim, tornando o Positivismo mais adequado a cumprir seu objetivo, que é o de realizar altruisticamente a harmonia coletiva e individual. Pois bem: o fetichismo é a categoria geral que nomeia as religiões indígenas e, portanto, trata-se de uma dívida de gratidão do Positivismo para com esses povos.

3) A política positiva estabelece que a política moderna tem que ser pacifista, tanto em âmbito internacional quanto em âmbito interno, da mesma forma que estabelece que cumpre ao Ocidente o dever de atuar como exemplo moral nesse sentido. O exemplo moral a ser dado pelo Ocidente, em termos de pacifismo, corresponde ao abandono total do colonialismo e do imperialismo, bem como ao mais cioso respeito aos povos mais frágeis e que não se encontram no nível de desenvolvimento ocidental. Na prática, no caso do Brasil, isso significa que os povos indígenas têm que ser cuidadosamente respeitados e valorizados. (A atuação de Rondon, portanto, corresponde à aplicação deste princípio e do princípio anterior ao caso brasileiro.)


Índio ianomâmi (sem maiores identificações)
Índio ianomâmi (sem maiores identificações)


Marechal Rondon, em 1930

Após a leitura comentada do Catecismo positivista, fizemos o nosso sermão. O tema escolhido para essa reflexão semanal foi a teoria positiva das hierarquias. Assim, apresentamos abaixo as anotações que havíamos elaborado para tratar desse tema. É importante notar que essa exposição valeu-se intensamente de um diálogo travado ao longo dos dias anteriores (e não concluído até a realização da prédica) com nosso amigo Hernani Gomes da Costa (embora, é claro, as eventuais falhas, limitações ou exageros da exposição sejam de minha inteira responsabilidade).

(Algumas considerações adicionais de Hernani, que devido a alguns motivos não puderam ser incluídas na prédica, podem ser lidas nesta postagem.)

A prédica foi gravada e está disponível nos canais Apostolado Positivista (acesse.one/Hierarquia) e Positivismo (encr.pw/Sequencias). No vídeo do Apostolado Positivista, o sermão pode ser visto a partir de 34' 35".

*   *   * 

Anotações sobre as hierarquias positivas

 

-        A noção de hierarquia é uma das principais na política atual e também é um conceito fundamental no Positivismo: mas é evidente que o sentido dado à palavra “hierarquia” na Religião da Humanidade é muito diferente do dado na política atual

o   Na política atual, a hierarquia é a relação vertical, basicamente política, mas com certa freqüência também social, em que um indivíduo ou um grupo está acima dos demais e, por isso, tem poder sobre esses demais, isto é, manda neles

o   Embora no Positivismo esse sentido político e social esteja presente, ele é secundário em relação a um sentido filosófico mais amplo

-        O sentido fundamental da hierarquia no Positivismo é o de organização, de princípio de arranjo

o   O enunciado elementar das hierarquias no Positivismo é o da 14ª lei da filosofia primeira: “Todo classamento positivo procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva como objetiva”

o   Adicionalmente, há também a lei dos intermediários, correspondente à 15ª e última lei da filosofia primeira: “Todo intermediário deve ser subordinado aos dois extremos cuja ligação opera”

§  Vale notar que essas duas leis integram a seção mais subjetiva da filosofia primeira

-        Retomando o conteúdo: o que a lei da hierarquia estabelece é que toda e qualquer classificação tem que ser elaborada considerando a generalidade decrescente ou crescente, seja ela objetiva, seja ela subjetiva

o   Um primeiro aspecto que se evidencia do princípio acima é que “classificação” equivale a “hierarquia” e vice-versa, o que corrobora a nossa afirmação anterior de que, no Positivismo, a hierarquia é acima de tudo igual a “organização, arranjo”

o   Em segundo lugar, é necessário ter-se clareza de que, no Positivismo, as hierarquias, ou as classificações, não consistem em meras listas, ou meras seqüências

§  Como veremos adiante, o Positivismo valoriza inúmeras seqüências específicas; em alguns casos, tais seqüências são extremamente valorizadas, desenvolvidas e aprofundadas: mas, ainda assim, tais seqüências não são, em si mesmas, classificações

o   Esse princípio vale para as classificações científicas e também para as classificações sociais e morais

§  A lei da classificação das ciências (também chamada de “hierarquia das ciências”) exemplifica uma classificação ao mesmo tempo científica e moral, com generalidade objetiva decrescente e generalidade subjetiva crescente

§  A classificação (hierarquia) social proposta por Augusto Comte revela uma generalidade subjetiva decrescente (e uma generalidade objetiva crescente), ao passar do sacerdócio, para as mulheres, para o patriciado, para o proletariado

o   De modo geral, o âmbito objetivo é complementar ao subjetivo: a Moral é a ciência subjetivamente mais ampla, assim como objetivamente é a mais restrita

o   Nas classificações positivistas, cada um dos termos tem que ser valorizado e respeitado por si só; ainda assim, os termos que se apresentam como subjetivamente mais gerais são os mais importantes e mais nobres: a Moral, o sacerdócio, a religião, o amor

o   Os elementos que são objetivamente mais gerais são menos nobres, mas são importantes por si sós e têm uma influência (donde uma importância) maior

o   Principalmente em relação aos elementos menos valorizados há uma série de compensações, geralmente de caráter moral (e, portanto, de valorização social), freqüentemente com conseqüências políticas

§  Por exemplo, o proletariado é o objeto principal da política positiva, é o conjunto da população e também é o fiscal da política

§  Outro exemplo: o sacerdócio é subjetivamente o mais importante, mas a política e a economia cabem ativamente ao patriciado e passivamente ao proletariado

-        A outra lei da filosofia primeira – a lei do intermediário – tem um papel complementar na teoria das hierarquias; ela estabelece que os intermediários ligam os pólos entre si e, portanto, os intermediários compartilham características com esses pólos

o   No âmbito do Positivismo, o exemplo mais clássico de intermediário é a metafísica, que, conforme o enunciado da lei intelectual dos três estados, compartilha características da teologia e da positividade: absolutismo por um lado, maior preocupação com a realidade, por outro lado

-        Há algumas "classificações", no âmbito do Positivismo, que não seguem a lei da hierarquia

o   Essas classificações o mais das vezes têm origem histórica e seus conteúdos podem – e devem – ser explicados teoricamente

§  Não são propriamente “classificações”: tratam-se mais de seqüências, mas, vale notar, não são seqüências hierárquicas

§  Exemplos dessas classificações (ou seqüências): as três leis dos três estados; a tríplice transição ocidental

o   Uma primeira interpretação (estritamente pessoal) para a diferença entre essas seqüências histórico-filosófico-morais e as classificações propriamente ditas é que, nessas seqüências históricas, há uma intensidade moral associada aos últimos termos que é menor que a intensidade dos últimos termos de classificações propriamente hierárquicas

§  Por exemplo: na lei intelectual dos três estados, é claro que a positividade é mais valorizada que a teologia; mas essa valorização não me parece tão intensa quanto a valorização da Moral como ciência sagrada ou do sacerdócio na classificação social

§  Uma sugestão de justificativa para essas diferentes intensidades: ao tratar das seqüências históricas, Augusto Comte considera que os termos antigos já pertencem ao passado e não há tanta necessidade de enfatizar, ou salvaguardar, ou valorizar os termos mais recentes (a teologia é passado, pertence aos museus); nas hierarquias atuais, todos os termos são contemporâneos e, aí, cumpre distinguir cuidadosamente a importância relativa de cada um (a Matemática é nossa contemporânea tanto quanto a Moral)

o   Mas uma segunda diferenciação – esta devida ao meu amigo Hernani Gomes da Costa – entre as seqüências históricas e as classificações positivistas propriamente ditas é esta: as classificações (as hierarquias) podem e devem ser percorridas com legitimidade de um lado para o outro (com diferentes conseqüências, claro está), ao passo que as seqüências histórico-moral-filosóficas admitem apenas um sentido em sua marcha

§  Assim, como observa Augusto Comte, é igualmente válido (mas, novamente, com diferentes conseqüências) passar-se do amor para a fé quanto da fé para o amor; da Matemática à Moral quanto da Moral à Matemática; do sacerdócio ao proletariado quanto do proletariado ao sacerdócio; da política à religião quanto da religião à política

§  Mas, por outro lado, não faz sentido e não é correto passar-se – por exemplo, no caso da lei intelectual dos três estados – da positividade de volta para teologia, quando já se passou da teologia e atingiu-se a positividade (ou, dito de outro modo: não é aceitável nem correto voltar ao absolutismo egoístico quando já se atingiu o relativismo altruísta)

-        Podemos abordar a noção de hierarquia a partir de uma referência até certo ponto distante do Positivismo, mas que no final é-lhe complementar: a teoria antropológica elaborada por Louis Dumont

o   O antropólogo francês Louis Dumont, estudando nos anos 1960 a Índia, propôs definir a lógica social e moral do conceito de “hierarquia”; não seria a relação politicista e igualitarista de mando e obediência, mas de “englobamento de contrários”

o   O “englobamento de contrários” consiste em que um princípio filosófico, social e/ou moral organiza globalmente o sistema, incluindo em seu interior, como casos particulares, aqueles princípios que são diferentes dele

§  Dessa forma, o englobamento de contrários abarca, abrange, engloba sempre as várias situações, em que estas são respeitadas em si mas integradas à totalidade por meio de um princípio maior

§  A lógica do englobamento dos contrários claramente se manifesta em todo o Positivismo, desde a fase científica da Filosofia até (e muito mais em) a fase religiosa da Política

·         É a lógica do englobamento de contrários que permite que se verifique no Positivismo, sem incoerências ou arbitrariedades, a perspectiva “caleidoscópica”, proposta por Angèle Kremer-Marietti (novos desenvolvimentos a partir de novas perspectivas, com os mesmos elementos)

o    No igualitarismo, por outro lado, não há princípio maior capaz de organizar a sociedade e de englobar os casos diferentes, desviantes e/ou particulares: no igualitarismo presume-se que todos os princípios são iguais e que, na melhor das hipóteses, devem ser justapostos

§  O igualitarismo recusa-se a reconhecer qualquer princípio organizador e englobante

§  É bastante claro que o igualitarismo consiste no “princípio que não é princípio” que subjaz à política do Ocidente – e, mais do que isso, o igualitarismo é a consagração da política metafísica (destruidora e negativa por excelência)

§  Não é por acaso que a política como choque (ou da política segundo o nazista Carl Schmitt, ou seja, como “relação amigo-inimigo”) é um dos maiores valores atuais do Ocidente: há apenas disputa seca entre os grupos; esse também é um dos motivos que consagram o materialismo economicista

-        A dificuldade (ou recusa) de conhecer e entender os sentidos que Augusto Comte dá à “hierarquia” é um sinal poderoso de o quanto a nossa época é superficial e metafísica

o   A dificuldade (ou, de novo: a recusa) em entender-se o sentido que Augusto Comte dá à “hierarquia” também indica o quanto o seu pensamento tem fortes características “não ocidentais”

§  Essa “não ocidentalidade” do Positivismo não deixa de ser paradoxal, ou pelo menos é irônica: afinal, foi a partir do estudo profundo da história da Humanidade como um todo, tomando o Ocidente como objeto principal de reflexão e preocupação, que se desenvolveram as instituições do Positivismo

§  Na verdade, não é nem “paradoxal” nem “irônica” essa “não ocidentalidade”: bem ao contrário, ela comprova a impressionante profundidade moral, social e filosófica de Augusto Comte, que soube ultrapassar largamente os preconceitos sociais e intelectuais próprios ao Ocidente

§  É importante afirmar a “não ocidentalidade” do Positivismo para deixar de lado todos os sofismas metafísicos que afirmam que o Positivismo seria “eurocêntrico”

o   A mera afirmação (1) da harmonia mental e social e (2) da possibilidade e necessidade de conjugação e superação da ordem e do progresso, via amor, já indica o quanto Augusto Comte afasta-se das tendências atuais do Ocidente e de sua aproximação com outras civilizações

o   A “não ocidentalidade” do Positivismo foi indicada faz algumas décadas por Emmanuel Lazinier, que indicou o caráter “chinês” do pensamento de Augusto Comte

25 janeiro 2023

Livros sobre o Positivismo

No dia 24 de Moisés de 169 (24.1.2023) fizemos a prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista; em particular, continuamos a quarta conferência, dedicada ao culto público e abordamos o culto sociolátrico (resumido e sistematizado no que é conhecido como calendário positivista abstrato).

Antes da leitura comentada, lembramos a transformação de Benjamin Constant Botelho de Magalhães, ocorrida em 22.1.1891. Benjamin Constant foi o positivista que proclamou a República no Brasil, em 15.11.1889, propondo o belo, pacifista e cívico ideal de sociocracia - ideal que foi abandonado e desprezado pelas elites intelectuais e políticas brasileiras em seguida (elites liberais, católicas e/ou marxistas).


Após a leitura comentada, modestamente apresentamos os livros de nossa autoria que foram publicados nos últimos anos e que tratam do Positivismo.

Como de hábito, a prédica foi transmitida nos canais Apostolado Positivista (l1nk.dev/Benjamin-e-livros) e Positivismo (https://www.youtube.com/watch?v=c6TuAooPb7w). A apresentação dos livros pode ser vista a partir de 1h 00' no vídeo do Apostolado Positivista.

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Os livros que apresentei são os seguintes; todos eles estão disponíveis em livrarias físicas e virtuais, como a Amazon e também a Estante Virtual. Todos eles têm versões impressas; os livros publicados com a Poiesis têm também versões eletrônicas.
















- Positivismo, Augusto Comte e Epistemologia das Ciências Humanas e Naturais (Marília: Poiesis)












- O léxico de Augusto Comte: criptografia e filosofia (Marília: Poiesis)

(O livro é de Ângelo Torres; a mim coube a organização, a revisão do texto e o prefácio)




20 janeiro 2023

Luís Gustavo Mota: celebração do aniversário de Augusto Comte (19.1.2023)

Para celebrar o aniversário de nascimento de Augusto Comte (19.Moisés.169 - 19.1.2023), a nosso pedido nosso querido correligionário Luís Gustavo Mota gravou um vídeo, que foi publicado nas redes sociais:


Celebração do aniversário de Augusto Comte (19.1.2023)

No dia 19 de Moisés de 169 (19.1.2023) realizamos uma prédica extraordinária, a fim de celebrar o aniversário de nascimento de Augusto Comte (1798), fundador da Religião da Humanidade e do Positivismo.

Nessa ocasião lemos um breve texto; também celebramos a memória de Rosália Boyer (1764-1833), mãe de Augusto Comte, e da transformação de Cândido Rondon (1958).


O texto preparado para a ocasião pode ser lido abaixo.

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Comemoração do aniversário de Augusto Comte (19.Moisés.169 – 19.1.2023)

 

- Conforme o colendário de celebrações da Igreja Positivista do Brasil: Festa de Rosália Boyer (28.1.1764-3.3.1837)

- Transformação de Cândido Rondon (19.1.1958)

 

-        Augusto Comte é o fundador da monumental Religião da Humanidade

o   Afirmar a fundação da Sociologia, da História das Ciências; as suas reflexões sobre filosofia e sociologia da religião, sobre filosofia e sociologia das ciências; sobre epistemologia; sobre filosofia política e social – tudo isso é importante, mas, francamente, tudo isso é secundário em face da fundação da Religião da Humanidade

-        Ele nasceu Isidoro Augusto Maria Francisco Xavier Comte, em 19 de janeiro de 1798, em Montpellier, no Sul da França

o   Cedo foi para Paris estudar na Escola Politécnica, onde viveu um ambiente de patriotismo-com-internacionalismo, fraternidade, generosidade, ciência e progresso; lá combinou estudos das ciências inferiores com estudos sobre Sociologia e Moral

o   Como sabemos, sua carreira divide-se em duas fases: a do Aristóteles moderno, da filosofia positiva, e a do São Paulo moderno, da Religião da Humanidade: o vínculo entre elas é o amor profundo que se desenvolveu entre ele e Clotilde de Vaux, nos anos de 1845 e 1846

-        Sua obra é intelectual, mas seus objetivos são políticos, sociais e morais: a fundação da Religião da Humanidade é condição necessária para o estabelecimento da “sociedade normal”, que se baseia nos princípios do altruísmo, do relativismo, da história (e da continuidade histórica), tendo em vista a busca da harmonia coletiva e individual

-        Celebrar Augusto Comte é não apenas celebrar o fundador da Religião da Humanidade, o nascimento do gigantesco gênio que fundamentou o pensamento positivo e criou a síntese que abarca o conjunto da existência humana; mas:

o   A presente celebração é também a realização das mais profundas propostas da Religião da Humanidade, em que afirmamos que nós, agentes da Humanidade vivos, membros objetivos do presente, devemos sempre e cada vez mais tudo o que temos aos nossos predecessores, já transformados, muitas vezes incorporados à Humanidade, mas em todo caso subjetivos, com vistas ao legado que deixaremos para o futuro

o   Ao realizarmos a presente celebração, não somos somente positivistas: mais do que tudo, com ela afirmamo-nos humanos

-        Como sabemos, embora Augusto Comte tenha lançado os fundamentos da Religião da Humanidade em sua colossal obra Sistema de política positiva (1851-1854) e em inúmeras posteriores, menores ou não, quando ocorreu sua transformação em 1857 ele deixou sua obra inconclusa: a Religião da Humanidade já estava fundada, mas inúmeras instituições e reflexões complementares ainda estavam por serem lançadas e/ou desenvolvidas

o   Entre essas instituições e reflexões complementares estão suas considerações sobre a moral teórica (que se chama atualmente, a partir da tradição metafísica, de “Psicologia”), a moral prática (a pedagogia), sobre a sociedade industrial (em que ele abordaria, entre outras coisas, o que se chama de “economia política”), além de obras poéticas sobre a Humanidade e sobre sua querida cidade de Paris

-        O Positivismo afirma a possibilidade e a necessidade de unir e, por meio dessa união, superar cada um deles individualmente, a ordem e o progresso, por meio do vínculo, do fundamento e objetivo do amor

o   Da mesma forma, Augusto Comte fundou a Sociologia e, depois, a Moral para estender a cientificidade aos âmbitos mais difíceis, mais complicados, mas mais urgentes e mais nobres: os âmbitos próprios ao ser humano, seja coletivamente, seja individualmente

o   A moralidade defendida por Augusto Comte substitui o individualismo pela coletividade, ao substituir o absoluto teológico-metafísico pelo relativismo sociológico (ou humano)

-        Após o incrível sucesso do Positivismo no Ocidente e nas áreas por ele influenciadas entre meados do século XIX e início do século XX, o avanço da metafísica revolucionária e mesmo da retrogradação revolucionária a partir pelo menos de 1914 fizeram diminuir a importância do Positivismo e da Religião da Humanidade

o   Simplesmente não é casual ou fortuita essa diminuição de importância: o absolutismo retrógrado e/ou revolucionário tornou-se a tônica da vida política, social e intelectual do Ocidente a partir de então (e, com base no Ocidente, do resto do mundo): marxismo, comunismo soviético, nazifascismo, autoritarismos variados; mais recentemente a política identitária

o   Mesmo os impulsos generosos e de renovação da política mundial foram em maior ou menor medida contaminados por essas metafísicas retrógradas e/ou revolucionárias, resultando cada vez mais em conflitos desnecessários e evitáveis (conflitos fratricidas, como dizia Teixeira Mendes)

o   Vale lembrar que, para o Positivismo, a metafísica é um conceito intelectual completamente secundário: mas, em termos políticos e sociais, atualmente ela é da maior importância prática:

§  A metafísica é dissolvente, é crítica, é destruidora; seu objetivo é destruir todas as instituições humanas, assumindo como permanente o que é temporário e como representante da regra o que evidentemente é a exceção

o   O alastramento dessa metafísica retrógrada e/ou revolucionária tem como resultado também o combate sistemático ao Positivismo e à Religião da Humanidade: assim, não é por acaso que os políticos fazem o possível para manter as sociedades no âmbito da estreita oposição “direita-esquerda” e que os autodenominados intelectuais, com suas práticas academicistas e cientificistas, fazem o possível para desprezar o Positivismo e torná-lo a palavra-síntese de tudo o que seria ruim

-        Assim, mais do que nunca, o Positivismo, ou melhor, a Religião da Humanidade tem que ser afirmada e difundida: o amor, o relativismo, a fraternidade, o pacifismo são os parâmetros maiores dessa grande elaboração; quem se opõe ao Positivismo opõe-se, no fundo, a esses parâmetros

-        É motivo da maior e mais profunda alegria podermos realizar a presente celebração do aniversário de Augusto Comte: com isso, não apenas celebramos a memória do fundador da Religião da Humanidade, mas celebramos todos os grandes valores que essa instituição promove

18 janeiro 2023

Transformação de Miguel Vicuña Navarro

É com grande tristeza que informamos a transformação de Miguel Vicuña Navarro (1948-2023).



Positivista chileno, conhecedor profundo e pesquisador da história política, social e intelectual do Chile, responsável pela Fundação Juán Enrique Lagarrigue, ele transformou-se no dia 1.1.2023.

Reproduzimos aqui o belo relato feito por Marcelo Pérez:

"É com tristeza que compartilho com vocês notícias que tocam o mundo do positivismo em Santiago. Miguel Vicuña, secretário e guardião dos arquivos da Fundação Juan Enrique Lagarrigue, faleceu ontem, Dia da Humanidade, aos 74 anos. Miguel também foi um reconhecido poeta e professor de filosofia. Em 1997 publicou La emergencia del positivismo en Chile, o mais importante texto sobre o positivismo de Augusto Comte no Chile. Neste momento está sendo organizado um velório na Fundação Juan Enrique Lagarrigue, rodeado de todos os tesouros da Igreja Positivista Chilena."

Neste vídeo vemos um pouco de sua atuação, em particular ao tratar de Alfredo Lagarrigue, que foi filho do grande positivista Luís Lagarrigue (indicado ao Prêmio Nobel da Paz) e um dos fundadores do que se chama de "via chilena ao socialismo":

https://www.youtube.com/watch?v=88zb3Guj9YI  

Teoria positiva das férias

No dia 17 de Moisés de 169 (17.1.2023) realizamos a prédica positiva, iniciando a leitura comentada da teoria do culto público (quinta conferência do Catecismo positivista). Na sequência, na reflexão semanal, fizemos algumas considerações sobre o que podemos chamar de teoria positiva das férias.

Antes da leitura comentada, lembramos alguns aniversários e centenários que ocorreram no início do ano: Teixeira Mendes (nascimento: 5.1.1855), Pierre Laffitte (morte: 4.1.1903), Luís Pereira Barreto (nasc.-morte: 11.1.1840-11.1.1923), Frederic Harrison (morte: 14.1.1923) - e, no início deste ano, a transformação do positivista chileno Miguel Vicuña (1948-1.1.2023).

A prédica está disponível nos canais Apostolado Positivista (https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/1781211292278737/) e Positivismo (https://www.youtube.com/watch?v=r76pRHDU6FU); a exposição sobre a teoria das férias está disponível no Apostolado Positivista a partir de 51' 30".

Abaixo reproduzimos as anotações que nortearam nossa exposição sobre a teoria da férias.

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-        À primeira vista, pode parecer tolo falar sobre as férias; mas elas são necessárias

-        As férias correspondem a um período anual em que todo servidor da Humanidade cessa temporariamente suas atividades a fim de descansar

o   Os períodos de descanso não são apenas anuais, mas são também semanais: não por acaso, temos o descanso semanal de dois dias (embora algumas categorias profissionais tenham esse descanso limitado a um dia ou a um dia e meio)

o   Aliás, a necessidade de descanso impõe-se mesmo em períodos mais longos e a respeito de questões que nos imponham um esforço contínuo, como no caso das preocupações políticas (ou, em outro âmbito, no caso das preocupações financeiras)

-        As férias correspondem a uma necessidade física e mental, mas também social

o   A base física das férias está na lei da alternância da atividade e do repouso, em que todos os órgãos precisam repousar ou diminuir sua atividade

o   A necessidade social corresponde à possibilidade de cada servidor visitar parentes e amigos, com isso reforçando e aprofundando os laços sociais e afetivos

§  É importante enfatizar a importância social – coletiva e afetiva – das férias, pois elas são atualmente entendidas apenas como momentos individuais de prazer hedonista

-        Torna-se claro que as férias anuais e o descanso semanal não são um “direito”, mas uma necessidade e, portanto, uma obrigação devida a todos os servidores da Humanidade; assim, elas impõem-se como elementos da Estática Social, ou seja, da ordem

o   Quem é contra as férias mas fala em “ordem social” para tal oposição na verdade revela preconceito, ignorância e desprezo pelo ser humano

o   Da mesma forma, afirmar a rejeição às férias em nome da “ordem” evidencia antes de mais nada uma concepção puramente capitalista (ou industrialista) da ordem social, em que o ser humano é apenas um instrumento mecânico para geração do lucro

o   Inversamente, afirmar as férias como um elemento do progresso revela a pobreza mental e intelectual de quem supostamente defende o “progresso”

-        Pode parecer tolo afirmar politicamente a importância das férias, mas o fato é que, sob a influência do ultraliberalismo protestante (principalmente estadunidense, mas não somente dos EUA), nos últimos anos vários grandes capitalistas e várias grandes empresas têm-se manifestado resolutamente contra os aspectos da Estática Social que beneficiam os trabalhadores

o   Outro aspecto que tais capitalistas e empresas têm combatido resolutamente são os contratos coletivos, a sindicalização dos trabalhadores e as greves

o   É claro que, por outro lado, tais capitalistas e tais empresas cinicamente não recusam os aspectos da Estática que os beneficiam mais diretamente (como suas próprias possibilidades de acumulação de capital, suas taxas de lucro e seus bônus anuais)

o   Entre tais empresas e capitalistas que desenvolvem ativamente políticas antitrabalhadores podemos citar Ellon Musk (Tesla, Twitter) e a Amazon

-        No Brasil a rejeição das férias anuais e dos descansos semanais verifica-se nas práticas de precarização e de manutenção do trabalho precário, estimuladas pelos liberais, pelos neoliberais e pelos ultraliberais e também por empresários que são limitada e hipocritamente defensores da “ordem social”

o   Essa precarização do trabalho pode ser verificada não somente no subemprego e nos “bicos”, mas também, nos últimos anos, na uberização do trabalho

o   O subemprego, os bicos, a “uberização” do trabalho dificultam ou impedem a sindicalização, os contratos coletivos, as greves e, de maneira central para o que nos interessa, também as férias anuais e os descansos semanais

24 dezembro 2022

Live AOP: Fernanda Alcântara - "Harriet Martineau e Augusto Comte"

No dia 21 de dezembro tivemos mais uma Live AOP, desta feita com a participação da Profª Drª Fernanda H. C. Alcântara, da Universidade Federal de Juiz de Fora (campus de Governador Valadares). Em uma agradável conversa que durou quase duas horas, a palestra tratou de Harriet Martineau e de suas relações com Augusto Comte. A Profª Fernanda tem-se dedicado, nos últimos vários anos, a estudar, resgatar e traduzir a obra de Harriet Martineau (ou "Miss Martineau", como sempre foi respeitosamente referida nos círculos positivistas).

O vídeo dessa Live AOP pode ser visto no canal Positivismo, aqui: l1nq.com/Martineau.

Harriet Martineau foi uma pensadora, socióloga, etnóloga e divulgadora da ciência que atuou na Inglaterra de meados do século XIX. No que se refere a Augusto Comte e ao Positivismo, Miss Martineau fez em 1851-1852 a famosa condensação do Sistema de filosofia positiva de Augusto Comte, publicado originalmente entre 1830 e 1842, em seis volumes; na versão condensada, essa obra ficou com três volumes (ou até dois, dependendo da edição), sob o título "A filosofia positiva de Augusto Comte". O trabalho foi tão bem feito que Augusto Comte - que em sua correspondência com Miss Martineau tratava-a por "minha colega" - passou a recomendar a leitura não do seu próprio original, mas da versão condensada!

Em virtude desse trabalho importantíssimo e descumunal, Miss Martineau tornou-se uma das mais importantes divulgadoras do Positivismo na Inglaterra. Embora tenha participado desse relevante serviço após John Stuart Mill, as pesquisas da Profª Fernanda levam a crer que Miss Martineau atingiu um público bem maior, seja junto ao comum do povo, seja junto aos eruditos e pesquisadores.

(Algumas observações bibliográficas, teóricas e históricas: o Sistema de filosofia positiva foi originalmente intitulado Curso de filosofia positiva; mas, a partir de 1848 (no Discurso sobre o conjunto do Positivismo), Augusto Comte estabeleceu que essa obra deveria ser indicada e renomeada como Sistema de filosofia positiva. A obra original era em francês; a condensação de Miss Martineau foi feita em inglês; Comte recomendava a leitura tanto da versão em inglês quanto, é claro, a em francês. Por fim, a condensação não é um resumo: trata-se de uma nova obra, que aborda de maneira mais direta os mais importantes assuntos tratados na obra original.)

Esse trabalho descomunal pode ser consultado, lido e baixado no portal Internet Archive

- volume 1: aqui

- volume 2: aqui




21 dezembro 2022

Anotações sobre as liberdades política e filosófica

No dia 20.12.2022 realizamos a nossa prédica positiva - a última do ano -, na qual terminamos a leitura comentada da teoria do culto privado, com a exposição dos últimos quatro sacramentos positivos (madureza, retiro, transformação e incorporação).
Em seguida, nas reflexões semanais, apresentamos alguns elementos da teoria positiva da liberdade. O primeiro aspecto exposto foram alguns conceitos de liberdade política conforme são estudados atualmente (negativa, positiva e republicana): Augusto Comte propõe e defende concepções próprias a cada uma dessas modalidades.

Na sequência, abordamos a chamada "liberdade moral", ou "liberdade filosófica": a concepção de Augusto Comte a esse respeito muitas vezes é criticada. Todavia, o exame detalhado da concepção própria a Augusto Comte e, ainda mais, das críticas que lhe são dirigidas deixa claro que tais críticas celebram a arbitrariedade e os caprichos: em outras palavras, tais críticas celebram não a liberdade humana, mas a imaturidade e o infantilismo do ser humano (seja individual, seja coletivamente).

Apresentamos abaixo as anotações que utilizamos para a exposição da teoria positiva da liberdade.

A prédica foi gravada ao vivo no canal Apostolado Positivista (disponível aqui: https://www.facebook.com/ApostoladoPositivista/videos/2375938302773412) e no canal Positivismo (disponível aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DyELzJqcw3w). Os comentários sobre a liberdade estão disponíveis no vídeo do Apostolado Positivista a partir de 50' 15".


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Anotações sobre a liberdade

 

-        A liberdade é um dos temas mais clássicos de reflexão filosófica, política e social

o   Para o que nos interessa, podemos considerar aqui dois tipos gerais de liberdade, a “filosófica” e a “política”

§  Antes de mais nada: não trataremos aqui da liberdade econômica

o   Augusto Comte evidentemente trata de ambas

§  Mais do que tratar de ambas, Augusto Comte relaciona uma à outra de maneira íntima

§  Na presente exposição, trataremos antes da liberdade política e, com os seus elementos, trataremos da liberdade “filosófica”

-        Em termos de liberdade política, eis o que podemos comentar:

o   O conceito mais básico e elementar é o de Thomas Hobbes, que entende a liberdade como a capacidade de realizar coisas sem sofrer obstrução

o   O sentido básico que Augusto Comte dá à liberdade segue esse conceito de Hobbes

-        Entre os séculos XVII e início do século XIX, a partir da chamada “querela dos antigos e dos modernos”, estabeleceu-se uma distinção entre a “liberdade dos antigos” e a “liberdade dos modernos”; no século XX essa distinção recebeu uma nova elaboração, entre “liberdade negativa” e “liberdade positiva”

o   A liberdade negativa consiste em fazer o que se deseja, sem que nada ou ninguém ofereça obstáculos ou resistências

o   A liberdade positiva consiste na autonomia da decisão

o   Na década de 1990, após o fim do comunismo, revalorizou-se o republicanismo (e a cidadania) e, a partir disso, propôs-se também a “liberdade republicana”, que é a ausência de arbitrariedade nas relações políticas

§  O propositor da liberdade republicana, Phillip Pettit, inspira-se no constitucionalismo da antiga república romana, mas no geral ele tem uma concepção bem restrita e pobre de “república” (ele rejeita os aspectos que as repúblicas costumam e que devem ter: antimonarquia, afirmação das liberdades, caráter social das repúblicas)

·         Pettit afirma que essa modalidade de liberdade é uma variação da liberdade negativa; assim, ele acaba aproximando-se mais do liberalismo (liberdade negativa) e afastando-se da “democracia” (liberdade positiva)

·         Convém lembrar que o liberalismo é uma degradação do republicanismo, especialmente na Inglaterra do século XVII; em outras palavras, não é o republicanismo que seria uma alternativa atual e meio esquisita ao liberalismo

§  Embora tenha sérias limitações filosóficas, a proposta de Pettit – de que a liberdade consiste na ausência de arbitrariedade nas relações políticas – é uma concepção fundamental e em si mesma muito acertada

·         De modo central, a ausência de arbitrariedade significa que ser livre não é o mesmo que fazer qualquer coisa quando e do jeito que se desejar

-        Augusto Comte fala em liberdade considerando sempre a autonomia decisória individual e coletiva (liberdade positiva) e a ausência de obstáculos (liberdade negativa); também defende a ausência de arbitrariedade (liberdade “republicana”):

o   A autonomia nas decisões e o respeito tanto à autonomia quanto às decisões é o que confere dignidade nas relações sociais

o   As liberdades de consciência, expressão e associação são as liberdades fundamentais da vida política moderna

o   O pacifismo, o relativismo e a fraternidade evitam a arbitrariedade nas relações sociais e políticas; além disso, a república deve ter um caráter social mais que político

-        No que se refere à “liberdade filosófica”: é a respeito dela que as considerações de Augusto Comte sobre a liberdade são mais conhecidas:

o   Popularmente, quando há referências ao conceito positivista de liberdade, menciona-se apenas um pequeno trecho específico (um parágrafo, na verdade) do Catecismo positivista

§  Nesse trecho, muito famoso, Augusto Comte afirma que não temos liberdade de desobedecermos às leis naturais:

 

O Sacerdote – [...] Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda a parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da Terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a interposição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre se ela se efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional” (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-244)

 

o   Esse trecho tornou-se famoso porque os críticos do Positivismo atribuem-lhe vários aspectos negativos: cientificismo, determinismo, ausência de liberdade

o   Vale reforçar: esse trecho é famoso porque os “críticos” de Augusto Comte limitam-se apenas a esse trecho, que é um pequeno parágrafo de uma obra de divulgação de Comte: as reflexões e as obras propriamente políticas (Opúsculos de filosofia social, Sistema de política positiva, Apelo aos conservadores) são desprezadas

o   Mas a leitura do trecho completo, isto é, a leitura integral dos parágrafos anteriores e posteriores em que se insere a citação acima evidencia que as interpretações negativas são extremamente superficiais, quando não de má-fé:

 

A Mulher – Antes de encetarmos o melhor domínio teórico, eu devo, meu pai, submeter-vos um escrúpulo geral devido às objeções metafísicas que com freqüência tenho ouvido formular contra esta extensão decisiva do dogma positivo. Toda sujeição do mundo moral e social a leis invariáveis, comparáveis às da vitalidade e da materialidade, é agora apresentada, por certos argumentadores, como incompatível com a liberdade do homem. Posto que estas objeções me tenham sempre parecido puramente sofísticas, nunca eu soube destruí-las nos espíritos, ainda muito numerosos, que se deixam, assim, estorvar em sua marcha espontânea para o positivismo.

O Sacerdote – É fácil, minha filha, superar este embaraço preliminar, caracterizando diretamente a verdadeira liberdade.

Longe de ser por qualquer forma incompatível com a ordem real, a liberdade consiste por toda parte em seguir sem obstáculos as leis peculiares ao caso correspondente. Quando um corpo cai, a sua liberdade manifesta-se caminhando, segundo sua natureza, para o centro da terra, com uma velocidade proporcional ao tempo, a menos que a inter-posição de um fluido não modifique a sua espontaneidade. Do mesmo modo, na ordem vital, cada função, vegetativa ou animal, é declarada livre, se ela efetua de conformidade com as leis correspondentes, sem nenhum empecilho exterior ou interior. Nossa existência intelectual e moral comporta sempre uma apreciação equivalente, que, diretamente incontestável, quanto à atividade, se torna, por conseguinte, necessária para seu motor afetivo e para seu guia racional.

Se a liberdade humana consistisse em não seguir lei alguma, ela seria ainda mais imoral do que absurda, por tornar-se impossível um regime qualquer, individual ou coletivo. Nossa inteligência manifesta sua maior liberdade quando se torna, segundo seu destino normal, um espelho fiel da ordem exterior, apesar dos impulsos físicos ou morais que possam tender a perturbá-la. Nenhum espírito pode recusar seu assentimento às demonstrações que compreendeu. Mas, além disto, cada qual é incapaz de rejeitar as opiniões assaz acreditadas em torno de si, mesmo quando ignora os verdadeiros fundamentos em que assentam, a menos que não esteja preocupado de uma crença contrária. Podemos desafiar, por exemplo, os mais orgulhosos metafísicos a que neguem o movimento da terra, ou doutrinas ainda mais modernas, posto que eles ignorem absolutamente as provas cientificas de tais doutrinas. O mesmo acontece na ordem moral, que seria contraditória se cada alma pudesse, a seu bel-prazer, odiar quando cumpre amar, ou reciprocamente. A vontade comporta uma liberdade semelhante à da inteligência, quando nossos bons pendores adquirem bastante ascendência para tornar o impulso afetivo harmônico como verdadeiro destino dele, superando os motores contrários.

Assim, a verdadeira liberdade é por toda parte inerente e subordinada à ordem, quer humana, quer exterior. Porém, à medida que os fenômenos se complicam, eles se tornam mais suscetíveis de perturbação, e o estado normal supõe neste caso maiores esforços, os quais, aliás, são aí possíveis graças a uma aptidão maior para as modificações sistemáticas. Nossa melhor liberdade consiste, pois, em fazer prevalecer, tanto quanto possível, os bons pendores sobre os maus; e é também nisso que o nosso império tem a sua maior amplitude, contanto que a nossa intervenção se adapte sempre às leis fundamentais da ordem universal.

A doutrina metafísica sobre a pretendida liberdade moral deve ser historicamente considerada como um resultado passageiro da anarquia moderna; porquanto ela tem por objeto direto consagrar o individualismo absoluto, para o qual tendeu cada vez mais a revolta ocidental que teve de suceder à Idade Média. Mas este protesto sofistico contra toda verdadeira disciplina, privada ou pública, não pode de modo nenhum entravar o positivismo, se bem que o catolicismo não pudesse superá-lo. Jamais se conseguirá apresentar como hostil à liberdade e à dignidade do homem o dogma que melhor consolida e desenvolve a atividade, a inteligência e o sentimento (Augusto Comte, Catecismo positivista, 4ª ed., Rio de Janeiro, 1934, “Oitava conferência”, p. 243-247; os grifos são meus).

 

-        O trecho acima tem que ser entendido como uma crítica científico-filosófica às pretensões de que a liberdade consiste em desejar qualquer coisa e, a partir disso, em querer fazer qualquer coisa

o   Como vimos acima, a respeito da liberdade republicana, desejar qualquer coisa e poder fazer qualquer coisa é o mesmo que ser arbitrário e não ter nenhuma regra; mais do que isso, é o desejo de uma realidade que ceda aos nossos caprichos

-        A concepção de leis naturais estabelece que o mundo não é caótico, ou seja, que ele obedece a regularidades:

o   As regularidades evidenciadas e afirmadas pelas leis naturais rejeitam também, em particular, a concepção de que o mundo é governado por entidades que fazem o que querem, quando querem, do jeito que querem

o   Lembremos que a teologia é a transposição para a ordem cósmica de um desejo imaturo interno aos seres humanos

-        Entendendo a questão de uma outra perspectiva e chegando ao ponto que nos interessa aqui: a concepção de leis naturais requer o amadurecimento intelectual e moral do ser humano, no conjunto dos vários sentidos próprios ao amadurecimento:

o   É necessário reconhecer que a realidade impõe limites à ação humana

o   É necessário reconhecer que o mundo não obedece às meras vontades humanas

o   É necessário reconhecer que a satisfação das vontades humanas requer tanto a limitação dessas vontades quando a adequação das vontades às possibilidades efetivas de ação

§  Podemos até não gostar do fato de que a realidade não é dócil às vontades humanas: ainda assim, temos que nos resignar a isso e aprender a lidar com a realidade

·         Essa resignação é o que todos os filósofos sempre reconheceram como sendo a “sabedoria”

·         É necessário insistir: essa resignação consiste, precisamente, em um dos mais importantes aspectos do que se chama, por toda parte, de “amadurecimento”

§  Por outro lado, insistir em que o mundo e a realidade deveriam curvar-se à vontade humana é puramente pirraça, é mentalidade e comportamento infantil e caprichoso

-        Há uma concepção difundida segundo a qual a mera vontade humana, entendida como puro desejo de algo, não tem limites e que, portanto, nesse sentido, a vontade humana seria “livre”

o   A concepção da vontade-desejo da liberdade também consiste em um entendimento infantil da liberdade, especialmente da liberdade negativa (que é a ausência de impedimentos à ação): a liberdade aí é tornada sinônima de arbitrariedade

o   A redução da vontade humana ao “desejo” é o último refúgio da concepção infantil de liberdade, ao tentar recuar ao máximo da subjetividade o âmbito do arbitrário

-        Como a teologia e a metafísica buscam o absoluto e o arbitrário; como elas consistem em transpor para uma suposta objetividade algo que é próprio ao que é subjetivo, o resultado é que a concepção de liberdade que rejeita as leis naturais é uma concepção teológico-metafísica

o   Essa concepção tem o terrível agravante de que é imatura ou, da pior maneira possível, é infantil, é mimada

-        Reconhecermos o império das leis naturais e submetermo-nos a ele é a única garantia de ação e de aperfeiçoamento, ou seja, é a única possibilidade de liberdade

o   Qualquer possibilidade de ação requer o conhecimento das leis naturais (seja o conhecimento empírico e concreto, seja o conhecimento sistemático e abstrato)

o   Como dizia Francis Bacon, “só se pode controlar a natureza submetendo-se a ela”

-        É por meio do conhecimento e do reconhecimento das leis naturais que o ser humano pode agir e satisfazer suas necessidades e, quando é o caso, também seus desejos

o   O (re)conhecimento das leis naturais é ao mesmo tempo uma etapa e um resultado geral do amadurecimento do ser humano

o   Vale notar que até mesmo os desejos satisfeitos pelo recurso às leis naturais não são desejos arbitrários, pois são limitados e regulados pelas condições idiossincráticas dos indivíduos e, acima de tudo, pelos “contextos” sociais, em termos políticos e morais (e mesmo tecnológicos)

-        Em suma: Augusto Comte reconhece a particularidade das reflexões políticas sobre liberdade, mas evidencia que mesmo essas reflexões não podem isolar-se de reflexões mais amplas sobre a realidade cósmica e sobre a existência humana no mundo

o   Não há nisso nenhum cientificismo, nenhum determinismo, nenhuma negação da liberdade (ou a afirmação de autoritarismo): o que há é a exigência de amadurecimento moral e intelectual e a rejeição da arbitrariedade (moral, intelectual e política)