31 janeiro 2023

Anotações sobre as hierarquias (ou classificações) positivas

No dia 3 de Homero de 169 (31.1.2023) fizemos nossa prédica positiva, em que demos continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, especialmente em sua quinta conferência, dedicada ao culto público.

Antes da leitura comentada, exercendo nosso papel de sacerdócio positivo, da Religião da Humanidade, condenamos, na medida das nossas forças, o atual genocídio praticado de maneira criminosa e intencional contra os índios ianomânis, no Norte do Brasil. Tal genocídio foi principalmente causado pela omissão intencional da ajuda dos poderes públicos (federal e estadual) em prover os auxílios aos nossos irmãos indígenas, especialmente em termos alimentares.

Para a Religião da Humanidade, o genocídio dos ianomâmis é motivo de tristeza e cobrança pelo menos por três motivos:

1) foi um positivista ortodoxo brasileiro, aliás também descendente de indígenas, que criou o antigo Serviço Nacional de Proteção aos Índios (SNI), com vistas a localizar, identificar e respeitar os inúmeros grupos indígenas que vivem no território nacional: trata-se do grande Cândido Mariano da Silva Rondon, o "Marechal da Paz".

2) A Religião da Humanidade foi enormemente desenvolvida pela instituição do "neofetichismo"; o neofetichismo, por sua vez, consiste na incorporação do fetichismo inicial à positividade final, aumentando o espaço dedicado à afetividade na vida humana, completando o papel da afetividade na vida lógica humana e, assim, tornando o Positivismo mais adequado a cumprir seu objetivo, que é o de realizar altruisticamente a harmonia coletiva e individual. Pois bem: o fetichismo é a categoria geral que nomeia as religiões indígenas e, portanto, trata-se de uma dívida de gratidão do Positivismo para com esses povos.

3) A política positiva estabelece que a política moderna tem que ser pacifista, tanto em âmbito internacional quanto em âmbito interno, da mesma forma que estabelece que cumpre ao Ocidente o dever de atuar como exemplo moral nesse sentido. O exemplo moral a ser dado pelo Ocidente, em termos de pacifismo, corresponde ao abandono total do colonialismo e do imperialismo, bem como ao mais cioso respeito aos povos mais frágeis e que não se encontram no nível de desenvolvimento ocidental. Na prática, no caso do Brasil, isso significa que os povos indígenas têm que ser cuidadosamente respeitados e valorizados. (A atuação de Rondon, portanto, corresponde à aplicação deste princípio e do princípio anterior ao caso brasileiro.)


Índio ianomâmi (sem maiores identificações)
Índio ianomâmi (sem maiores identificações)


Marechal Rondon, em 1930

Após a leitura comentada do Catecismo positivista, fizemos o nosso sermão. O tema escolhido para essa reflexão semanal foi a teoria positiva das hierarquias. Assim, apresentamos abaixo as anotações que havíamos elaborado para tratar desse tema. É importante notar que essa exposição valeu-se intensamente de um diálogo travado ao longo dos dias anteriores (e não concluído até a realização da prédica) com nosso amigo Hernani Gomes da Costa (embora, é claro, as eventuais falhas, limitações ou exageros da exposição sejam de minha inteira responsabilidade).

(Algumas considerações adicionais de Hernani, que devido a alguns motivos não puderam ser incluídas na prédica, podem ser lidas nesta postagem.)

A prédica foi gravada e está disponível nos canais Apostolado Positivista (acesse.one/Hierarquia) e Positivismo (encr.pw/Sequencias). No vídeo do Apostolado Positivista, o sermão pode ser visto a partir de 34' 35".

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Anotações sobre as hierarquias positivas

 

-        A noção de hierarquia é uma das principais na política atual e também é um conceito fundamental no Positivismo: mas é evidente que o sentido dado à palavra “hierarquia” na Religião da Humanidade é muito diferente do dado na política atual

o   Na política atual, a hierarquia é a relação vertical, basicamente política, mas com certa freqüência também social, em que um indivíduo ou um grupo está acima dos demais e, por isso, tem poder sobre esses demais, isto é, manda neles

o   Embora no Positivismo esse sentido político e social esteja presente, ele é secundário em relação a um sentido filosófico mais amplo

-        O sentido fundamental da hierarquia no Positivismo é o de organização, de princípio de arranjo

o   O enunciado elementar das hierarquias no Positivismo é o da 14ª lei da filosofia primeira: “Todo classamento positivo procede segundo a generalidade crescente ou decrescente, tanto subjetiva como objetiva”

o   Adicionalmente, há também a lei dos intermediários, correspondente à 15ª e última lei da filosofia primeira: “Todo intermediário deve ser subordinado aos dois extremos cuja ligação opera”

§  Vale notar que essas duas leis integram a seção mais subjetiva da filosofia primeira

-        Retomando o conteúdo: o que a lei da hierarquia estabelece é que toda e qualquer classificação tem que ser elaborada considerando a generalidade decrescente ou crescente, seja ela objetiva, seja ela subjetiva

o   Um primeiro aspecto que se evidencia do princípio acima é que “classificação” equivale a “hierarquia” e vice-versa, o que corrobora a nossa afirmação anterior de que, no Positivismo, a hierarquia é acima de tudo igual a “organização, arranjo”

o   Em segundo lugar, é necessário ter-se clareza de que, no Positivismo, as hierarquias, ou as classificações, não consistem em meras listas, ou meras seqüências

§  Como veremos adiante, o Positivismo valoriza inúmeras seqüências específicas; em alguns casos, tais seqüências são extremamente valorizadas, desenvolvidas e aprofundadas: mas, ainda assim, tais seqüências não são, em si mesmas, classificações

o   Esse princípio vale para as classificações científicas e também para as classificações sociais e morais

§  A lei da classificação das ciências (também chamada de “hierarquia das ciências”) exemplifica uma classificação ao mesmo tempo científica e moral, com generalidade objetiva decrescente e generalidade subjetiva crescente

§  A classificação (hierarquia) social proposta por Augusto Comte revela uma generalidade subjetiva decrescente (e uma generalidade objetiva crescente), ao passar do sacerdócio, para as mulheres, para o patriciado, para o proletariado

o   De modo geral, o âmbito objetivo é complementar ao subjetivo: a Moral é a ciência subjetivamente mais ampla, assim como objetivamente é a mais restrita

o   Nas classificações positivistas, cada um dos termos tem que ser valorizado e respeitado por si só; ainda assim, os termos que se apresentam como subjetivamente mais gerais são os mais importantes e mais nobres: a Moral, o sacerdócio, a religião, o amor

o   Os elementos que são objetivamente mais gerais são menos nobres, mas são importantes por si sós e têm uma influência (donde uma importância) maior

o   Principalmente em relação aos elementos menos valorizados há uma série de compensações, geralmente de caráter moral (e, portanto, de valorização social), freqüentemente com conseqüências políticas

§  Por exemplo, o proletariado é o objeto principal da política positiva, é o conjunto da população e também é o fiscal da política

§  Outro exemplo: o sacerdócio é subjetivamente o mais importante, mas a política e a economia cabem ativamente ao patriciado e passivamente ao proletariado

-        A outra lei da filosofia primeira – a lei do intermediário – tem um papel complementar na teoria das hierarquias; ela estabelece que os intermediários ligam os pólos entre si e, portanto, os intermediários compartilham características com esses pólos

o   No âmbito do Positivismo, o exemplo mais clássico de intermediário é a metafísica, que, conforme o enunciado da lei intelectual dos três estados, compartilha características da teologia e da positividade: absolutismo por um lado, maior preocupação com a realidade, por outro lado

-        Há algumas "classificações", no âmbito do Positivismo, que não seguem a lei da hierarquia

o   Essas classificações o mais das vezes têm origem histórica e seus conteúdos podem – e devem – ser explicados teoricamente

§  Não são propriamente “classificações”: tratam-se mais de seqüências, mas, vale notar, não são seqüências hierárquicas

§  Exemplos dessas classificações (ou seqüências): as três leis dos três estados; a tríplice transição ocidental

o   Uma primeira interpretação (estritamente pessoal) para a diferença entre essas seqüências histórico-filosófico-morais e as classificações propriamente ditas é que, nessas seqüências históricas, há uma intensidade moral associada aos últimos termos que é menor que a intensidade dos últimos termos de classificações propriamente hierárquicas

§  Por exemplo: na lei intelectual dos três estados, é claro que a positividade é mais valorizada que a teologia; mas essa valorização não me parece tão intensa quanto a valorização da Moral como ciência sagrada ou do sacerdócio na classificação social

§  Uma sugestão de justificativa para essas diferentes intensidades: ao tratar das seqüências históricas, Augusto Comte considera que os termos antigos já pertencem ao passado e não há tanta necessidade de enfatizar, ou salvaguardar, ou valorizar os termos mais recentes (a teologia é passado, pertence aos museus); nas hierarquias atuais, todos os termos são contemporâneos e, aí, cumpre distinguir cuidadosamente a importância relativa de cada um (a Matemática é nossa contemporânea tanto quanto a Moral)

o   Mas uma segunda diferenciação – esta devida ao meu amigo Hernani Gomes da Costa – entre as seqüências históricas e as classificações positivistas propriamente ditas é esta: as classificações (as hierarquias) podem e devem ser percorridas com legitimidade de um lado para o outro (com diferentes conseqüências, claro está), ao passo que as seqüências histórico-moral-filosóficas admitem apenas um sentido em sua marcha

§  Assim, como observa Augusto Comte, é igualmente válido (mas, novamente, com diferentes conseqüências) passar-se do amor para a fé quanto da fé para o amor; da Matemática à Moral quanto da Moral à Matemática; do sacerdócio ao proletariado quanto do proletariado ao sacerdócio; da política à religião quanto da religião à política

§  Mas, por outro lado, não faz sentido e não é correto passar-se – por exemplo, no caso da lei intelectual dos três estados – da positividade de volta para teologia, quando já se passou da teologia e atingiu-se a positividade (ou, dito de outro modo: não é aceitável nem correto voltar ao absolutismo egoístico quando já se atingiu o relativismo altruísta)

-        Podemos abordar a noção de hierarquia a partir de uma referência até certo ponto distante do Positivismo, mas que no final é-lhe complementar: a teoria antropológica elaborada por Louis Dumont

o   O antropólogo francês Louis Dumont, estudando nos anos 1960 a Índia, propôs definir a lógica social e moral do conceito de “hierarquia”; não seria a relação politicista e igualitarista de mando e obediência, mas de “englobamento de contrários”

o   O “englobamento de contrários” consiste em que um princípio filosófico, social e/ou moral organiza globalmente o sistema, incluindo em seu interior, como casos particulares, aqueles princípios que são diferentes dele

§  Dessa forma, o englobamento de contrários abarca, abrange, engloba sempre as várias situações, em que estas são respeitadas em si mas integradas à totalidade por meio de um princípio maior

§  A lógica do englobamento dos contrários claramente se manifesta em todo o Positivismo, desde a fase científica da Filosofia até (e muito mais em) a fase religiosa da Política

·         É a lógica do englobamento de contrários que permite que se verifique no Positivismo, sem incoerências ou arbitrariedades, a perspectiva “caleidoscópica”, proposta por Angèle Kremer-Marietti (novos desenvolvimentos a partir de novas perspectivas, com os mesmos elementos)

o    No igualitarismo, por outro lado, não há princípio maior capaz de organizar a sociedade e de englobar os casos diferentes, desviantes e/ou particulares: no igualitarismo presume-se que todos os princípios são iguais e que, na melhor das hipóteses, devem ser justapostos

§  O igualitarismo recusa-se a reconhecer qualquer princípio organizador e englobante

§  É bastante claro que o igualitarismo consiste no “princípio que não é princípio” que subjaz à política do Ocidente – e, mais do que isso, o igualitarismo é a consagração da política metafísica (destruidora e negativa por excelência)

§  Não é por acaso que a política como choque (ou da política segundo o nazista Carl Schmitt, ou seja, como “relação amigo-inimigo”) é um dos maiores valores atuais do Ocidente: há apenas disputa seca entre os grupos; esse também é um dos motivos que consagram o materialismo economicista

-        A dificuldade (ou recusa) de conhecer e entender os sentidos que Augusto Comte dá à “hierarquia” é um sinal poderoso de o quanto a nossa época é superficial e metafísica

o   A dificuldade (ou, de novo: a recusa) em entender-se o sentido que Augusto Comte dá à “hierarquia” também indica o quanto o seu pensamento tem fortes características “não ocidentais”

§  Essa “não ocidentalidade” do Positivismo não deixa de ser paradoxal, ou pelo menos é irônica: afinal, foi a partir do estudo profundo da história da Humanidade como um todo, tomando o Ocidente como objeto principal de reflexão e preocupação, que se desenvolveram as instituições do Positivismo

§  Na verdade, não é nem “paradoxal” nem “irônica” essa “não ocidentalidade”: bem ao contrário, ela comprova a impressionante profundidade moral, social e filosófica de Augusto Comte, que soube ultrapassar largamente os preconceitos sociais e intelectuais próprios ao Ocidente

§  É importante afirmar a “não ocidentalidade” do Positivismo para deixar de lado todos os sofismas metafísicos que afirmam que o Positivismo seria “eurocêntrico”

o   A mera afirmação (1) da harmonia mental e social e (2) da possibilidade e necessidade de conjugação e superação da ordem e do progresso, via amor, já indica o quanto Augusto Comte afasta-se das tendências atuais do Ocidente e de sua aproximação com outras civilizações

o   A “não ocidentalidade” do Positivismo foi indicada faz algumas décadas por Emmanuel Lazinier, que indicou o caráter “chinês” do pensamento de Augusto Comte

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