08 agosto 2011

Sobre a desconsideração da subjetividade na Teoria Política

A teoria política de Augusto Comte reconhece de maneira radical dois âmbitos da ação social: os poderes Temporal e Espiritual. Cada qual tem suas particularidades sociológicas e seu domínio político; as recomendações de Comte levam sempre em conta essa diversidade. Ora, a Teoria Política, pelo menos desde Hobbes, mas com certeza desde Guilherme de Ockham, desconsidera o poder Espiritual e afirma somente o Temporal; daí a facilidade com que as recomendações de Comte destinadas ao poder Espiritual sejam lidas como sendo para o Temporal, com a conseqüente interpretação de “autoritarismo” (basta ler-se Stuart Mill para evidenciar-se a utilização sistemática dessa falácia). (Aliás, deve-se juntar a isso a hipocrisia teórica, que assume que a citação comtiana de Hobbes é um sinal seguro de seu “autoritarismo”, como se Marx, Weber e toda a tradição política ocidental, com a exceção de Hannah Arendt, não afirmassem que o Estado funda-se em última análise na violência física: basta ler-se Roberto Romano para comprovar-se o emprego dessa falácia.)

Por outro lado, em sentido inverso, o problema subjacente à má interpretação da teoria política de Comte indica um empobrecimento muito grande da Teoria Política de modo geral, que só entende a política em termos de Estado, dominação, “aparelhos coercitivos”, “interesses” etc., de modo a ignorar os elementos ideacionais da política, ou a encará-los de maneira cínica e instrumental.

A acusação de que A. Comte é autoritário revela um brutal empobrecimento teórico da Teoria Política: seu resultado prático é fácil de prever e de comprovar: é a política da força, é afirmação de que o único meio aceitável para a vida política é por meio do Estado e, last but not the least, a doutrina oficial de Estado.

Uma outra conseqüência desse empobrecimento teórico, agora de caráter metodológico, é o desenvolvimento das propostas “interpretativas” nas C. Humanas: como o movimento moderno é em direção ao “materialismo” e, ao mesmo tempo, a Teoria Política enfatiza o poder, as concepções que desconsideram a subjetividade perdem importância. Isso, por sua vez, permite que a metafísica da “vontade”, da “ontologia”, do máximo subjetivismo tenha espaço: daí as propostas “interpretativistas”.

Recusa do "ordem e progresso" como afirmação da metafísica da vontade

A recusa em aceitar que “a ordem é a base do progresso” e que “o progresso é o desenvolvimento da ordem” tem uma origem intelectual, que reforça e é reforçada por dificuldades de concepções políticas. A negação de que o progresso tem necessariamente que se basear na ordem implica que não se aceita limitações para a ação humana, que seria onipotente e infinitamente plástica: a afirmação das “vontades” (ou, mais recentemente, da “imaginação”) é um dos traços da metafísica (se a “vontade” for “divina”, tratar-se-á de teologia). Em sentido semelhante, o elogio da política como sendo o reino da vontade – como feito por muitos dos críticos da “tecnocracia”, das leis naturais e de qualquer coisa que constranja a liberdade da “vontade” – nada mais é que a afirmação do conceito metafísico de vontade, da vontade ilimitada; esse conceito, como diversos outros, aliás, é bastante característico do pensamento alemão e foi ilustrado bem no escrito de Max Weber, Governo e parlamento.

Sobre teorias morais cientificamente embasadas

É possível uma teoria moral que não leve em consideração a realidade humana? Ou, em outras palavras, é possível definir-se o que bom e ruim, belo e feio, justo e injusto sem se conhecer como é o ser humano, sua situação no mundo, as características de sua vida coletiva, o funcionamento de sua mente? Além disso, é possível teorizar a moral sem entender as mudanças ao longo do tempo por que passa o ser humano?

De um ponto de vista estritamente lógico, é claro que, sim, é possível ignorar cada uma, várias ou todas as condições acima; prova disso são as inúmeras teorias que histórica ou atualmente estão à disposição. Todavia, não apenas o ser humano já dispõe – na verdade, desde há pelo menos 150 anos – de conhecimentos cosmológico e social para elaborar teorias que satisfazem as condições acima quanto, por outro lado, os ideais morais – que, por si sós, já são dificilmente atingíveis (e devem ser assim) – só podem (ter alguma chance de) sucesso caso correspondam à realidade dos fatos.

Assim, por um lado, a moralidade exige o conhecimento da realidade para estabelecer-se. (Na verdade, trata-se também de uma questão de eficácia: a realidade impõe-se de qualquer forma; a rejeição a ela ou sua ignorância não apenas não facilitam nada como, ao contrário, freqüentemente dificultam a vida e tornam-na triste e desgostosa.) Por outro lado, a moralidade é o complemente necessário da realidade. Esse “complemento” ocorre em dois níveis, que são em última análise duas facetas do mesmo aspecto: deve-se conhecer a realidade para aplicar-se o conhecimento; a aplicação segue parâmetros que em última análise são morais. Ao mesmo tempo, a moralidade indica o que deve ser estudado ou não.

Evidentemente, é possível separar de modo radical a moralidade da realidade; é possível até mesmo opô-las e agir como se uma não dissesse respeito à outra. Todavia, mais adequado é vinculá-las.

A moralidade tem um caráter ideal e valorativo que não se prende à realidade. Ora, o erro habitual é querer separa um da outra, de tal forma que não haja vinculação alguma entre ambos; no que se refere à moralidade, essa ausência de vinculação dar-se-ia por meio da ignorância, do altaneiro desrespeito pela realidade (com base, por exemplo, na concepção de que o “ser” é diferente do “dever-ser”). Ora, sem ignorar o aspecto puramente valorativo da moral, a questão mais importante é “calibrá-la” com base na realidade, de modo a exigir do ser humano aquilo que é possível, isto é, factível. Uma moral estabelecida dessa forma poderá servir de guia para o ser humano em termos políticos e afetivos; servirá de parâmetro para os julgamentos e as avaliações e também oferecerá modelos, ideais e idéias para serem perseguidos e realizados. Aliás, mesmo que alguns (vários) ideais não sejam efetivamente passíveis de realização (ou de realização permanente e/ou completa), nem por isso eles deixarão de ser merecedores de dedicação e respeito, ou seja, nem por isso deixarão de atuar como ideais e como valores morais.

Assim, não há incompatibilidade entre o conhecimento da realidade e a definição de parâmetros morais; na verdade, uma boa teoria moral é aquela que é concebida de acordo com a realidade historicamente perceptível das teorias morais, considerando sua importância, seus elementos e sua dinâmica, em associação com o conhecimento social e psicológico do ser humano. Bem vistas as coisas, aliás, reiteramos: a moralidade e o conhecimento da realidade – ou, para usar outras palavras, a moral e a ciência – são complementares, não opostos; não há nenhuma impropriedade em falar-se em elaborar cientificamente uma moral, nos termos definidos acima. Convém notar, por outro lado, que há, sim, impropriedade em falar em “moral científica” caso defina-se de maneira estreita tanto a moral quanto a ciência, entendendo-se a moral como algo absoluto (devido a alguma origem teológica ou metafísica dessa definição) e/ou a ciência em termos “naturalísticos”, isto é, tomando as Ciências Naturais como sinônimo de ciência tout court e subordinando os métodos e as teorias das Ciências Humanas às C. Naturais. (Na verdade, exatamente o procedimento da redução das C. Humanas às C. Naturais é o realizado por inúmeros dos que afirmam o caráter absoluto da moral.)

Essas reflexões podem ser aplicadas, por exemplo, ao que se chama de “Ciência Política”. A normatividade está presente no que se chama usualmente de “Teoria Política”; o conhecimento da realidade, na “Ciência Política” propriamente dita. Ora, uma não pode andar afastada da outra, mesmo em termos epistemológicos (no sentido de que as pesquisas empíricas requerem pressupostos morais, sem se reduzirem a eles).

Essas perspectivas, que muitos consideram o ápice da reflexão teórica contemporânea, em particular do que se chama de “pós-positivismo”, são defendidas com clareza e extrema conseqüência por Augusto Comte, o pai da Sociologia e do Positivismo. (A ignorância, o preconceito e a busca metafísica do “novo” são maiores e piores do que usualmente se pensa.)

A conjugação entre a moral e a ciência é um dos problemas mais freqüentes da atualidade; na verdade, muito do que se faz nas C. Humanas é a busca dessa conjugação. Ora, esse esforço foi o que norteou a obra de Comte. Porque A. Comte era muito “humanista” para os “científicos” e muito “científico” para os “humanistas”, sua obra com freqüência é desconsiderada: mas isso se dá, como se percebe, porque uns e outros fecham-se em seus domínios exclusivos (e exclusivistas), embora afirmem a necessidade de conciliação entre as perspectivas polares – isto é, se e quando afirmam. (Como indicamos, há os “científicos” que reduzem o ser humano às C. Naturais e há os “humanistas” que desprezam as ciências, com base em preconceitos teológicos e/ou metafísicos.)

Há outro aspecto a considerar: o espírito de mediação, de busca do meio-termo teórico, é bem mais difícil de obter-se que os extremos. De fato, é mais fácil para o ser humano pensar por meio de extremos, mormente opostos, que por meio de conceitos nuançados; todavia, no que se refere às relações entre moral e ciência, a permanência dos pólos opostos mantém dificuldades e raciocínios que não avançam nem o conhecimento nem a moralidade, ao impedir a obtenção do necessário meio-termo da complementaridade. A afirmação contínua dos pólos opostos faz o ser humano oscilar entre os exclusivismos de cada lado, em vez de adotar uma perspectiva que solucione os problemas enfrentados.

Sobre a legitimação do republicanismo via liberalismo

É completamente incorreto querer assimilar o republicanismo contemporâneo ao liberalismo. É bem verdade que qualquer teoria política atual tem que reconhecer o fato da “liberdade dos modernos”, o que pode ser facilmente assimilado à valorização liberal dos indivíduos; mas, por outro lado, como vários autores já indicaram, a liberdade negativa tem a necessidade lógica e prática da liberdade positiva e, ainda mais, uma “república” não é somente uma justaposição de indivíduos, de modo que tem que prover alguma concepção de “bem comum”. É necessário afirmar essas idéias a fim de evitar-se tentativas de legitimar o republicanismo (em particular de acordo com a riquíssima tradição francesa) via aproximação com o liberalismo (em particular o anglossaxão), como fez Jean-Fabien Spitz em Le moment républicain.

Se, nesse livro, por um lado, o autor está correto ao indicar que os pensadores por ele recenseados assumem o “indivíduo”, por outro lado, seu desejo de aproximar-se do liberalismo fá-lo desprezar republicanos que enfatizam mais o bem comum ou a coletividade que o indivíduo, embora não se filiem ao robespierrismo rousseauniano e a sua postura anti-indivíduo.

Com essa tentativa de justificar o republicanismo por meio de sua aproximação ao liberalismo, Spitz desvaloriza o republicanismo, em vez de valorizá-lo. Se só é aceitável o republicanismo de corte liberal, para que perder tempo sendo republicano? É mais fácil ir diretamente à fonte e aceitar-se alguma variedade “social” do liberalismo!

Nesse sentido, está coberto de razão Quentin Skinner em seu Liberdade antes do liberalismo, que argumenta que é o liberalismo uma corrupção do republicanismo e não o contrário. Restrito ao caso inglês do século XVII, é necessário complementar a leitura dessa pequena obra magistral com pelo menos outras duas: L’Idée républicaine en France, de Claude Nicolet, e Utopia e reforma no Iluminismo, de Franco Venturi.

Sobre o fim dos "ismos"

O colapso do comunismo, seguido do alastramento e da derrocada do neoliberalismo, teve uma conseqüência estranha: a afirmação de que o século XXI não pode ter mais “ismos”. Ora, essa idéia, avançada mesmo por marxistas, repete o que se falou nos anos 1950, sobre o “fim das ideologias”.

Não é possível o fim dos “ismos”, simplesmente porque o ser humano não apenas reage, mas ele age; ao agir, segue concepções e perspectivas preliminares, que estão consignadas ou aproximam-se de variadas formas, necessariamente, em alguns dos “ismos”. Caso alguém afirme não se pautar por ideologias ou filosofias ou doutrinas, simplesmente adotará uma conduta confusa e errática, em um padrão que na melhor das hipóteses será um amálgama eclético, isto é, uma colagem arbitrária de perspectivas de outras doutrinas – ou seja, uma solução de compromisso intelectual e afetiva incoerente e empírica, que, no fundo, seguirá as linhas mestras do que se aprendeu na infância.

Além disso, a ausência de uma doutrina racional, que ao mesmo tempo descreva a realidade e prescreva o bem, o justo, o verdadeiro e o belo, resultará de maneira mais ou menos imediata em alguma forma de egoísmo: pessoal, familiar, regional, nacional, civilizacional, classista – ou variações ou combinações deles. A ausência de doutrinas, assim, embora afirmada como um dos pináculos da consciência contemporânea, é precisamente o contrário: é a ausência de direção e, portanto, é a ausência de parâmetros claros e racionais; assim, não é progresso, mas é retrogradação e impossibilidade de progresso. (Mas, afinal, por que seria isso um problema? Não se afirma correntemente que “o progresso é um mito”?)

A ausência de doutrinas – que, na verdade, é a recusa de doutrinas filosóficas sistemáticas, mas não a ausência de teologias, metafísicas e misticismos em geral – é uma das conseqüências da pós-modernidade (pelo menos, conforme descrita por Jean-François Lyotard) e conduz a um estado de terrível laissez-faire: sem parâmetros, sem valores, não há por que agir; se não há orientação para a ação, seu resultado é o egoísmo erigido em princípio fundamental (mesmo que inconsciente). Isso é a retrogradação mais radical possível.

Vinculado ao “fim dos ‘ismos’” está o multiculturalismo. O multiculturalismo não resolve nada; embora ele afirme a dignidade de todas as doutrinas, não conduz a nada além da justaposição dos seres humanos; em outras palavras, não permite que os seres humanos vivam juntos, sob uma doutrina mínima comum, que indique parâmetros e valores que possibilitem o diálogo de todos com todos. Além disso, a afirmação formal de que todas as doutrinas e filosofias são iguais – quando existem, evidentemente, pois o multiculturalismo convive com a já mencionada idéia do “fim dos ‘ismos’” – resulta em uma recusa consciente da valoração da realidade: além de impossível, isso produz resultados funestos, como a recusa de avaliar (em um exemplo fácil) o nazismo. Da mesma forma, se todas as doutrinas são iguais e devem ser respeitadas com um espírito de “autodeterminação das culturas”, o diálogo entre as doutrinas não é possível: daí a justaposição de seres humanos, que não interagem mas vivem lado a lado, sem se relacionarem.

07 agosto 2011

Tradução do "Discurso sobre o conjunto do Positivismo"

Passo a traduzir o "Discurso sobre o conjunto do Positivismo", escrito por Augusto Comte em 1848. Farei essa tradução por partes e começo-a pelo capítulo final do livro (cap. 6), dedicado a reunir os elementos expostos anteriormente e coordená-los com vistas à constituição e à afirmação da Religião da Humanidade.

Agradecerei bastante se houver observações construtivas a respeito da tradução. Havendo dúvidas sobre trechos do texto, fico à disposição para dirimi-las.

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Conclusão geral do Discurso preliminar sobre o conjunto do Positivismo[1]
Religião da Humanidade
O amor por princípio, a ordem por base e o progresso por fim; tal é, após este longo discurso preliminar, o caráter fundamental do regime definitivo que o Positivismo vem inaugurar ao sistematizar todas a nossa existência, pessoal e social, por uma combinação inalterável entre o sentimento, a razão e a atividade. Essa sistematização final preenche, bem além de qualquer possibilidade anterior, as diversas condições essenciais, seja quanto ao desenvolvimento especial das diferentes partes de nossa natureza, seja quanto à sua conexão geral. A supremacia necessária da vida afetiva encontra-se aí melhor constituída que antes, a partir da universal preponderância do sentimento social, que pode diretamente encantar quaisquer pensamentos e atos.
Jamais opressiva a respeito do espírito, uma tal dominação do coração santifica a inteligência ao votá-la doravante para o serviço contínuo da sociabilidade, de que ela deve consolidar o ascendente e esclarecer o exercício. Dignamente subordinada ao sentimento, a razão adquire assim uma autoridade que não pudera ainda obter, como única apta a desvendar a ordem fundamental que dirige necessariamente toda a nossa existência de acordo com o conjunto das leis naturais dos diversos fenômenos. Essa base objetiva da verdadeira sabedoria humana reage profundamente sobre nossos próprios afetos, que encontram, na obrigação de conformarem-se a ela, uma fonte de fixidez própria a conter sua versatilidade espontânea e uma estímulo direto à preponderância dos instintos simpáticos. Nobremente aplicado a um ofício fundamental que o preserva de toda divagação ociosa, o gênio científico encontra o mais vasto alimento na apreciação de todas as leis reais que influenciam sobre os nossos destinos e sobretudo no estudo de nossa própria natureza, individual e coletiva. A preponderância do ponto de vista sociológico, longe de sufocar as especulações mais abstratas, aumenta tanto sua consistência quanto sua dignidade, ao constituir a única unidade que elas comportam.
Ao assegurar à imaginação sua justa influência sobre o conjunto da vida humana, esse regime final consolida e realiza o desenvolvimento habitual da imaginação, daqui para frente aplicada à sua destinação característica – a idealização contínua da realidade. As funções científicas não são indispensáveis senão para construir a base exterior de todas as nossas concepções. Mas, esse ofício uma vez cumprido, as funções estéticas convêm mais à nossa inteligência, desde que seu exercício respeite sempre esse fundamento necessário, aliás tão próprio para prevenir seus desvios. Sob esse única condição geral, elas são diretamente encorajadas pela sistematização positiva, como estando ao mesmo tempo as mais conformes ao seu princípio afetivo e as mais próximas de seu fim ativo. Profundamente incorporadas à nova existência, elas constituem-lhe, de ordinário, o exercício mais doce e o mais salutar de nossa inteligência, que não saberia tender mais diretamente a cultivar a afeição e a perseguir o aperfeiçoamento.
Primeiramente emanada da vida ativa, a sistematização final a ela regressa com um acréscimo de energia, que, após sua longa preparação especulativa, ela pôde remontar ao seu princípio ativo, tornado doravante sua fonte direta. Longe de suscitar qualquer abatimento, esse amor fundamental conduzir-nos-á sempre à mais completa atividade, ao votar toda a nossa existência ao aperfeiçoamento universal. Ele não nos obriga a estudar a ordem universal senão a fim de melhor aplicar nossas forças quaisquer, individuais ou coletivas, ao seu melhoramento artificial. Duramente esboçado até agora, mesmo a respeito do mundo material, essa destinação normal não pôde ainda ocupar senão a menor parte dos esforços humanos. Seu desenvolvimento não poderia tornar-se degradante senão se limitasse-se aos níveis inferiores do aperfeiçoamento. Desde que nossa sabedoria especulativa abarque diretamente seu principal domínio, nossa sabedoria ativa aplica-se sobretudo aos mais eminentes fenômenos, em que a ordem natural é ao mesmo tempo mais imperfeita e mais modificável. Assim aumentada e sistematizada, nossa existência persegue de preferência o melhoramento intelectual e ainda mais o aperfeiçoamento moral, seja na ternura, seja na coragem. A vida privada e a vida pública encontram-se doravante ligadas por um mesmo fim principal, de que a vida familiar vem enobrecer todos os atos. Daí, a preponderância necessária da prática, longe de jamais ser hostil à teoria, prescreve-lhe sobretudo as mais difíceis pesquisas, para descobrir as verdadeiras leis de nossa natureza pessoal e social, de que o conhecimento permanecerá sempre inferior às nossas necessidades reais. Em vez de dispor à secura moral, uma tal atividade habitual encaminha-nos sem cessar a melhor sentir que o amor universal constitui não somente nossa principal felicidade mas também nosso mais possante meio, indispensável à eficácia de todos os outros.
É assim que, na existência positiva, o coração, o espírito e o caráter consolidam-se e desenvolvem-se mutuamente, após a sistematização habitual de seus próprios exercícios naturais. Jamais a vida pública e a vida privada puderam ser assim tão ligadas, exceto por essa igual consagração a uma mesma destinação essencial, em que elas não diferem senão pela extensão de seus meios respectivos. Votadas uma e outra a fazer prevalecer sempre, tanto quanto possível, a sociabilidade sobre a personalidade, cada uma aplica-lhe sem cessar, e a todos os propósitos, todas as nossas forças quaisquer – afetivas, especulativas e ativas.
Após essa posição final do grande problema humano, a arte social, diretamente consagrada à sua solução geral, assume doravante como princípio fundamental a separação normal dos dois poderes elementares, um moral, que aconselha, o outro político, que comanda. A preponderância necessária deste último, sempre fundada sobre a força material, representa o ascendente espontâneo da personalidade sobre nossa imperfeita natureza, em que as mais grosseiras necessidades encontram-se com as mais urgentes e as mais contínuas. Sem essa irresistível fatalidade, nossa própria vida individual ficaria falha de consistência e de direção; mas sobretudo nossa existência coletiva não comportaria nem caráter, nem atividade. É por isso que o poder moral, que repousa sobre a convicção e a persuasão, deve manter-se puramente moderador, sem jamais se tornar diretor.
Emanado do sentimento e da razão, ele representa especialmente a sociabilidade; somente ela cultiva-o imediatamente. Mas, porque ele corresponde aos nossos mais eminentes atributos, ele não pode obter uma preponderância prática que pertence aos [atributos] mais enérgicos. Inferior em força, ainda que superior em dignidade, ele opõe sempre seu classamento virtual dos indivíduos de acordo com seu mérito mental e moral ao seu classamento real segundo a riqueza ou a grandeza. Sem jamais chegar a fazer prevalecer seus princípios de apreciação, ele ainda leva a modificar felizmente a ordem natural de toda sociedade, ao lembrá-la dignamente do espírito de conjunto e do sentimento de dever, que a atividade prática tende a alterar.
Esse ofício fundamental, cuja necessidade é em todos os lugares sentida, sistematiza-se com a atribuição característica desse poder moderador, para preparar-nos para a vida real por uma sã educação geral, principalmente relativa à moral, mesmo em sua parte intelectual. Assim votada à especulação e à afeição, essa força modificadora não pode constituir um digno órgão sistemático da sociabilidade senão permanecendo sempre exterior à ação. Seu primeiro dever consiste então em combater, em seu próprio seio, nosso vãos instintos de elevação temporal, que não se tornam salutares, malgrado a impureza de sua fonte ordinária, senão nas naturezas verdadeiramente destinadas a um indispensável comando. Essa renúncia solene à riqueza e à grandeza torna-se a base primitiva do verdadeiro poder teórico e a condição inicial de sua legítima resistência às usurpações sempre iminentes do poder prático. Ele obtém assim seus principais apoios habituais, ao desenvolver suas afinidades naturais com os elementos sociais que são, como ele, necessariamente estrangeiros ao governo político.
Primeira fonte espontânea da influência modificadora, a partir de sua natureza eminentemente afetiva, as mulheres tornam-se então, em virtude de sua situação passiva, as auxiliares domésticas do verdadeiro poder espiritual. Ele associa-as intimamente ao seu ofício essencial, confiando-lhes toda a educação privada, de que a educação pública não constitui, no regime positivo, senão um indispensável complemento sistemático. Como esposas, elas participam ainda mais de suas funções consultivas, ao temperar por meio da persuasão o ascendente material que ele [o poder Espiritual] modera somente pela convicção. No gênero de vida pública que convém à sua natureza, elas assistem-no espontaneamente, para elaborar a opinião comum de que ele torna-se o órgão sistemático, apreciando os atos, e sobretudo as pessoas, a partir dos princípios que ele fornece-lhes. Esse íntimo concurso desenvolver-se-á mais quando as mulheres, dignamente preservadas pelos homens de toda solicitude material, serão em toda parte também estrangeiras à riqueza e à dominação, como se vê tão freqüentemente entre os proletários.
Ainda que menos pura e menos direta, a afinidade do povo com o poder filosófico fornece naturalmente a este uma enérgica assistência civil em seu inevitável antagonismo com o poder político. Privados ao mesmo tempo de lazer material e de força individual, os proletários não saberiam habitualmente participar do governo prático, cuja eficácia depende sobretudo de sua concentração. Ao contrário, a força moral, sempre emanada de uma livre convergência, comporta, e mesmo exige, ramificações universais. Ora, liberados de toda grave responsabilidade prática, os proletários associam-se naturalmente ao poder teórico, com base na disponibilidade de espírito e na despreocupação pessoal que os dispõe mais que seus chefes temporais às vistas de conjunto e aos sentimentos generosos. Eles fornecerão assim a principal base habitual da verdadeira opinião pública, quando uma educação geral, que lhes será sobretudo destinada, permitir-lhes bem caracterizar seus votos. Suas necessidades, assim como suas inclinações, aproximam-nos sempre do sacerdócio filosófico, que se tornará seu órgão sistemático face às classes dirigentes. Em troca desse ofício natural, ele receberá deles uma imponente assistência por sua grande missão social de subordinar sem cessar o comando à moralidade. Nos casos excepcionais que exigirão a intervenção política do poder moderador, o caráter ativo de seu elemento popular dispensará seu elemento filosófico de uma anomalia que o desnaturalizaria quase tanto quanto ao seu elemento feminino.




[1] Fonte: Comte, A. 1929. Système de politique positive. V. I. 5e ed. Paris: Société Positiviste. P. 321-327. Tradução de Gustavo Biscaia de Lacerda.

30 julho 2011

Astronomia versus astrologia

Artigo didático opondo a Astronomia à Astrologia. Extremamente útil para evitar-se a astrologia e todas as pseudociências.

Autoria de Carlos Alexandre Wuenche e publicado na revista Ciência Hoje (Rio de Janeiro, v. 43, n. 256, p. 24-29, jan.-fev.2009).

Disponível aqui.

22 julho 2011

"Os positivistas ortodoxos e a Guerra do Paraguai"

Artigo do historiador marxista gaúcho Mario Maestri, abordando a oposição dos positivistas ortodoxos à Guerra do Paraguai. O autor indica que os positivistas, liderados por Miguel Lemos e Raimundo Teixeira Mendes, foram uns dos poucos, se não os únicos, a denunciarem o imperialismo e a prepotência de D. Pedro II no Cone Sul e, particularmente, contra o Paraguai e o Uruguai.

Dessa forma, ajuda a derrubar dois mitos difundidos pelos "liberais" brasileiros, a saber, as idéias de um D. Pedro como um governante "pacífico" e "industrioso" e os positivistas como "militaristas" ou "alienados da realidade nacional" (como propagou Sérgio Buarque de Hollanda).

Publicado na Revista Brasileira de História Militar (Rio de Janeiro, ano 2, n. 4, abril de 2011) e disponível aqui: http://www.historiamilitar.com.br/artigo2RBHM4.pdf.

06 maio 2011

Republicanismo na Inglaterra

Entrevista sobre republicanismo na Inglaterra, que, entre inúmeros aspectos, enfatiza o quanto essa instituição é anacrônica, atualmente inútil e que sobrevive muito devido à propagação de uma fantasia. Vale a pena.

O original em vídeo está disponível aqui.

A transcrição está disponível abaixo, a partir da página do jornal eletrônico Conjur.

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"Atração exercida pela Monarquia é uma fantasia"

Entrevista do ativista antimonarquista britânico Graham Smith ao jornalista Silio Boccanera do programa Milênio, transmitido originalmente no dia 25 de abril pelo canal de televisão por assinatura Globo News. O Milênio vai ao ar às 23h30 de segunda-feira, com repetições às 3h30, 11h30 e 17h30 de terça; 5h30 de quarta; e 7h05 de domingo.
Foto: Paulo Pimentel/Globo NewsO sucesso do filme O Discurso do Reientre críticos e público desperta mais uma vez o intrigante culto à Monarquia britânica, uma instituição que fascina muitos e enfurece outros. A mistura de história, conto de fadas, celebridade e telenovela que se desenrola nas ilhas britânicas contamina também outros países, onde o público estrangeiro e criado em culturas diferentes se deixa levar também por narrativas pitorescas como a do rei gago George VI.
Antes disso, fizeram e fazem sucesso na TV o drama de um antecessor que enlouqueceu no trono e perdeu a colônia americana, rainhas virgens e poderosas, soberanas mais contemporâneas que resistem a mostrar emoção diante de tragédias ou dinastias salpicadas de ginástica de alcova. Sem esquecer das princesas gamourosas de verdade e rivais sem glamour; príncipes envelhecendo em eterna espera para herdar a coroa da coroa; ou herdeiros coroados que largam o trono para casar com a mulher amada, divorciada e estrangeira em trama digno de telenovela.
O culto à Monarquia como celebridade se agravou ainda mais, em abril, quando o príncipe William, segundo na linha do trono, se casou com a plebéia Kate Middleton. Uma cerimônia que alcançou altos índices de audiência na TV pelo mundo em clima de conto de fadas. Nova festa está marcada para o ano que vem, quando a rainha Elizabeth II completa 60 anos no trono.
Encantam-se os fãs, irritam-se os que veem na Monarquia uma instituição obsoleta retrógrada, cara, perdulária, elitista, fútil e sobretudo antidemocrática, porque não eleita. É o caso da organização britânica Republic, que defende o fim da Monarquia e sua substituição por uma República com um chefe de estado eleito em vez de escolhido por direito hereditário. O governo executivo continuaria nas mãos do parlamento, como hoje. O principal dirigente desse grupo de pressão, Graham Smith, conversou com o Milênio em Londres.
Silio Boccanera — Lançaram mais um filme de sucesso sobre a Monarquia britânica, como tantos outros antes, e tivemos o casamento do príncipe Wiliiam. Ou seja, a febre da realeza está de volta, como já aconteceu no passado. Por que esse fascínio pela família real britânica, pelas famílias reais em geral, pela Monarquia em geral?
Graham Smith — Faz parte do imaginário. É uma coisa histórica, de conto de fadas, da Disney etc. E hoje faz parte dessa cultura de celebridades. Eles são ricos, se mostram como uma família de prestígio. E acho que eles conseguiram se separar muito bem de sua posição constitucional. Ou seja, eles evitam ser colocados no mesmo nível que os políticos. É como se fossem celebridades de alto nível. E, como nos contos de fadas, eles exercem certa atração, isso é verdade. Mas esse interesse sempre existiu, e esse interesse vem do mundo todo, seja de países republicanos ou monarquistas. Portanto, ele nada tem a ver com ideais políticos, filosóficos ou com a visão da Monarquia em si. É apenas uma expressão cutlural ou uma ideia relacionada a contos de fadas. Uma fantasia, não algo sério.
Silio Boccanera — É claro que, para os republicanos e antimonarquistas em geral, a ideia da Monarquia parece muito antiquada, obsoleta. Mas, observando países que ainda são monarquistas, do Reino Unido à Holanda e aos países escandinavos, vemos que são países muito modernos. Não há contradições nesse aspecto.
Graham Smith — Há uma contradição, e isso é um problema. Há movimentos republicanos em todos esses países europeus. Cerca de seis meses atrás, foi criada uma aliança entre esses movimentos. Essa questão é tratada atualmente em todas as monarquias européias. E esse conflito ocorre porque somos países modernos e cosmopolitas. No entanto, temos essas instituições que tentam se impor na psique do país, na identidade nacional, de um modo que não é apropriado. E isso é especialmente forte no Reino Unido, onde ouvimos que somos um país atrasado, tradicionalista, que ama a família real e não necessariamente valoriza a democracia. E isso tudo vem do fato de termos essa instituição que é muito presente e que se autopromove, que continua promovendo suas ideias. Isso se choca com quem realmente somos, e é um dos motivos para querermos acabar com a Monarquia. Queremos um sistema que represente quem realmente somos, e não um que tente nos deixar presos ao passado.
Silio Boccanera — Analisando o impacto internacional da Monarquia britânica, tirando sua popularidade, o fator novela e celebridade, a rainha é chefe de Estad de alguns países da Commonwealth, formada por ex-colônias britânicas. Vários desses países a mantiveram como chefe de Estado. Ao contrário dos Estados Unidos, que abandonaram a Monarquia, vários outros países a mantiveram. Não é estranho eles terem tido chance de pôr fim a isso e não fazê-lo?
Graham Smith — A Commonwealth tem mais de 50 países, e a rainha é chefe de Estado de apenas 14 deles. A maior parte dos países da Commonwealth são repúblicas. E é justo dizer que os países mais estáveis e prósperos e que conseguiram se tornar democráticos de maneira pacífica e sem grandes problemas, não viram a necessidade de dar esse passo.
Silio Boccanera — Canadá, Austrália...
Graham Smith — Exato. Canadá, Austrália, Nova Zelândia e alguns pequenos países do Caribe. Eles são muito próximos dos Estados Unidos. Mas todos os outros países, onde foi mais difícil a transição da colônia para Estado independente, romperam definitivamente com o passado e viraram repúblicas. E há movimentos republicanos no Canadá, Austrália e Nova Zelândia. A maioria dos australianos quer o fim da Monarquia. Na Nova Zelândia, esse número é quase metade da população, dependendo da pesquisa. Mas, quando se pergunta sobre a sucessão, com Charles sendo coroado rei, o apoio ao republicanismo começa a aparecer.
Silio Boccanera — Talvez devêssemos lembrar aos espectadores que a Monarquia não é apenas a rainha, o marido dela e os príncipes, mas toda a estrutura da família real. Qual é o tamanho dela?
Graham Smith — É mais do que a família real, é a Constituição, é um sistema político. Mas, em termos da casa real, estamos falando sobre 15, 16 pessoas com o título de Sua Alteza Real, que fazem coisas como inaugurar hospitais, cortar fitas, esse tipo de coisa. E que recebem do Estado. A maioria recebe algum tipo de subsídio para viagens, moradia, essas coisas. E mais pessoas, além dessas 15, moram de graça em palácios, em casas, e por aí vai. Mas há outros além desses 15, que são todos os funcionários, pois é uma estrutura bem grande. Muitas pessoas trabalham tanto nos palácios quanto nas casas, servindo à família real.
Silio Boccanera — E quem paga por isso? O contribuinte?
Graham Smith — O contribuinte, isso. O contribuinte paga quase tudo isso. Eles tentam evitar... Há territórios chamados “ducados”, o Ducado de Lançastes e o Ducado da Cornuália, que dão dinheiro para a rainha e para o príncipe Charles. Estou falando de 10 milhões, 20 milhões de libras por ano. Então alegaram... Como recebiam dinheiro desses ducados, estavam gastando seu próprio dinheiro, mas isso ainda é dinheiro dos contribuintes, pois, sem a Monarquia, os ducados seriam propriedade do Estado. Então, todo o dinheiro que vai para a família real e que mantém a Monarquia iria para o Tesouro e para o Estado se não houvesse Monarquia.
Silio Boccanera — Você faz parte de um movimento antimonarquista. O que seria feito de todas essa pessoas? Eles teriam que trabalhar, viver como qualquer pessoa? Seria um horror!
Graham Smith — Nós somos democratas. Nós acreditamos que todos deveriam ser tratados da mesma maneira. Se nos tornarmos uma República, eles serão cidadão, como todos nós, e teriam que cuidar de si mesmos, teriam que pagar impostos, trabalhar, se precisassem, o que é improvável, pois eles são bem ricos, mesmo sem nossa ajuda. Eles poderão apenas viver para aproveitar a vida.
Silio Boccanera — Mas a rainha aqui tem um poder extraordinário, que outros monarcas não têm. Ela é chefe da Igreja.
Graham Smith — É.
Silio Boccanera — É uma função muito importante, não é? Ela está acima do arcebispo da Cantuária.
Graham Smith — Na verdade, temos uma Igreja de Estado. E nosso monarca tem um poder enorme que outros monarcas não têm. A maioria das monarquias européias tem em sua Constituição limites muito rígidos do que o monarca pode fazer. E, em vários países, como a Suécia, o monarca não pode fazer quase nada. No Reino Unido, a rainha é chefe da Igreja e nomeia todos os membros da Igreja. Mas ela também nomeia vários funcionários do Estado. Ela nomeia o primeiro-ministro e todos os ministros. E, se ela se recusar a fazê-lo, ninguém poderá fazer nada, a menos que o Parlamento faça algo.
Silio Boccanera — Não acontece na prática, mas pode acontecer.
Graham Smith — Pode e já aconteceu. Embora raro, no período moderno... Nos últimos 30, 40 anos não aconteceu muito, mas a rainha já nomeou primeiros-ministros de sua própria escolha, e isso aconteceu porque o Partido Conservador, nos anos 50 e 60, não elegeu líderes internamente. As pessoas meio que emergiram a partir de acordos nos bastidores. Então, houve dois primeiros-ministros nomeados pela rainha por indicação de pessoas que não deveriam aconselhá-la. Houve certa preocupação no partido, e por isso eles decidiram passar a eleger seu líder, para que ficasse claro quem ele seria. Mas ela pode dissolver o Parlamento, e ninguém poderia fazer nada. Ela pode demitir o primeiro-ministro e nomear outra pessoa. Ela também pode impedir a aprovação de leis. Há todas essas coisas que ela pode fazer, mas é improvável que faça. O perigo é que alguém como Charles, na condição de rei, fique tentado a usar algum desses poderes em particular. Por exemplo, digamos que haja um governo conservador que simpatize com a Monarquia e que não faça nada errado. O monarca tem reuniões secretas privadas com o primeiro-ministro todas as semanas. Não é impossível imaginar o rei Charles dizendo a um primeiro-ministro que proponha fazer algo que ele desaprova: “Olha, posso tornar sua vida difícil, tenho poder para fazer isso, então quero que você mude essa política.” E ninguém saberia disso.
Silio Boccanera — Então, sua preocupação é que, embora as pessoas digam que a Monarquia é inofensiva, pois a rainha ou rei não tem poderes, você está dizendo que, na verdade, eles têm. A rainha escolheu não exercer esse poder, mas ele existe.
Graham Smith — Com certeza. Não estamos sugerindo que teremos uma crise, em que Charles exerça seus poderes, mas há o risco de que ele exerça sua influência. Além disso, por outro lado, o chefe de Estado tem um trabalho a fazer, e ele precisa ser capaz de aconselhar e alertar o primeiro-ministro se achar que ele está seguindo um caminho específico. Ele tem que poder tomar decisões sobre a dissolução do Parlamento se houver algum tipo de crise política. Mas não é uma função que um monarca pode ou deve desempenhar, pois não pode ser responsabilizado se tomar a decisão errada. Nós queremos alguém que possa tomar essas decisões e ser responsabilizado por elas.
Silio Boccanera — Os planos de reforma do seu grupo republicano é acabar com a Monarquia e mudar a situação atual. Mas vocês querem criar o quê?
Graham Smith — Nós queremos um Reino Unido republicano e democrático. Nós não queremos algo grandioso ou suntuoso, mas uma Constituição republicana muito direta que diga que o poder pertence ao povo, que o país é democrático e que será governado assim. Nós teremos políticos, mas o poder deles será limitado. O chefe de Estado será eleito e agirá de forma independente, protegendo a Constituição e exercendo algumas funções básicas. Queremos um chefe de Estado constitucional, não queremos o presidencialismo nos moldes que existe no Brasil ou nos Estados Unidos. Ele não teria poder político, não tomaria decisões políticas, só tomaria decisões constitucionais. Por exemplo, se o Parlamento aprovar uma lei que o presidente considere inconstitucional, o presidente pode se recusar a promulgá-la,e a lei seria submetida a um tribunal, que a julgaria. Se o Parlamento não conseguir decidir quem será o primeiro-ministro, o presidente pode atuar como árbitro. Então, uma República bem direta, prática e pragmática, com um chefe de Estado exercendo uma função determinada.
Silio Boccanera — Então, um presidente mais como o da Alemanha, da Itália...
Graham Smith — Da República da Irlanda.
Silio Boccanera — E não como o da França, do Brasil ou Estados Unidos.
Graham Smith — Com certeza. Ele teria um papel bem simples e funcional.
Silio Boccanera — Com relação à função de chefe de Estado, como você disse, vocês preferem presidentes com poucos poderes. Aqueles que defendem a Monarquia e a rainha ou rei como chefe de Estado dizem que o fato de eles não serem ligados a nenhum partido político é algo positivo.
Graham Smith — Seria positivo se a rainha fizesse alguma coisa. Essa é a falácia desse argumento. Se ela tivesse alguma função, se pudesse atuar independentemente do primeiro-ministro, sua aparente imparcialidade seria algo positivo. Mas, como ela delega seu poder ao primeiro-ministro, isso é irrelevante, não faz diferença. Nós queremos alguém que seja não só imparcial, mas que possa ser responsabilizado por essa imparcialidade. Esse é outro ponto importante: não sabemos quão imparcial a rainha é, pois não sabemos nada sobre ela. Ela nunca dá entrevistas. Ela nunca sentaria aqui para responder a perguntas sobre o que fez e por que fez. E ela tem essas reuniões secretas. Por isso, não sabemos o que ela faz a portas fechadas, não sabemos o que acha sobre os partidos políticos. E não podemos responsabilizá-la se ela tomar alguma decisão errada. Mas a questão toda é que ela não se envolve, então não faz diferença se ela é imparcial ou não. Com um chefe de Estado eleito, ainda é possível ter alguém imparcial, mesmo que ele tenha uma carreira em um partido político. Nós já vemos isso com o presidente da Câmara dos Comuns. Espera-se que ele seja imparcial, e ele sempre foi imparcial. Ainda assim, eles são eleitos e pagos, servem a casa por muitos anos...
Silio Boccanera — E representam um partido.
Graham Smith — Exato. Mas, assim que se tornam presidentes, eles deixam o partido e se tornam um membro da Câmara independente. E não há por que não ter uma figura semelhante como chefe de Estado. Mas essa imparcialidade deve ser constatada, julgada, e ele deve poder ser responsabilizado.
Silio Boccanera — E o que você faria com o chefe de Estado, a rainha ou o rei Charles? A guilhotina não pode ser, a forca...
Graham Smith —
Somos uma organização democrática e pacífica. Como eu disse antes, nós queremos nos libertar e libertá-los. Eles estariam livres de suas obrigações e livres para viver a vida que escolhessem, e nós seriamos livres para escolher seu sucessor.

Silio Boccanera — Onde você vê apoio para a causa republicana? Há sinais de crescimento?
Graham Smith —
Eu acho que o apoio da Monarquia está diminuindo e mudando. As pessoas têm criticado mais a instituição, tem relutado um pouco mais em continuar com essa deferência. Isso não necessariamente significa que elas apóiem uma República, ainda, mas o terreno está sendo preparado para um debate sólido. Então nós vemos que há bastante espaço para construirmos uma Monarquia que apóie o que queremos. E o apoio vem de todas as vertentes políticas e sociais, de pessoas de direita, de esquerda, de centro, de todas as idades e estilos de vida. Elas consideram a ideia como uma opção válida. E isso é uma grande mudança de 30 anos atrás, quando era uma aspiração somente da esquerda. Hoje, não é assim.
Silio Boccanera — Mas o outro lado, os monarquistas, vêem republicanos como um bando de comunistas estranhos, esquerdistas, anarquistas. Vocês são tudo isso?
Graham Smith — De forma alguma. Na verdade, nós, os republicanos talvez tenhamos uma visão semelhante em relação aos monarquistas. Quando falamos de monarquistas, como um grupo, não estamos falando da maioria do país, mas de uma minoria ardente que defende a Monarquia, que participa de organizações e segue a rainha no Twitter, por exemplo, que realmente se interessa por isso. Mas eles também são uma minoria. E há uma minoria de republicanos. Há todo um grupo no meio disso que olha os dois lados e pensa: “Não sei quem devo apoiar.” E, como eu disse, eles concordam em manter a Monarquia porque nunca pensaram nos motivos para mudar o sistema. Mas, no que diz respeito aos republicanos, nós estamos em todas as vertentes políticas e sociais, e as pessoas que governariam uma República seriam tão normais quanto qualquer um, são pessoas inteligentes, instruídas e profissionais que querem um país democrático.
Silio Boccanera — Você nasceu e foi criado nesta atmosfera, com todas essas tradições que você intelectualmente rejeita hoje, mas, como um cidadão britânico, como alguém com essa criação, quando pensa no ano que vem, no jubilei da rainha, que completará 60 anos de reinado, com todo tipo de comemoração, o que você vai fazer? Você vai participar?
Graham Smith — Nós estaremos em campanha, como no casamento. Faremos nossas festas nas ruas e nossas reuniões. Nós aproveitamos todas as oportunidades, pois vemos esses acontecimentos não como datas nacionais, mas da Monarquia. São eventos criados para perpetuar mitos e promover a instituição. E, com certeza, ano que vem, quando chegar o 60º aniversário, nossa mensagem principal será: por 60 anos, uma pessoa teve certeza de que seria chefe de Estado. Ela nunca nos perguntou, nunca pediu nosso voto para isso, nunca sugeriu que o povo pudesse dar sua opinião. E isso quer dizer que estamos mais perto de ter Charles fazendo o mesmo. E eu vou me sentar e dizer ao Charles para ir ao Palácio de Buckingham e virar chefe de Estado sem nem perguntar nada? Nós queremos essa discussão, que as pessoas escolham como será. Vamos lembrar as pessoas de que é uma instituição bizarra, que não deve se perpetuar por mais 60 anos. Como eu disse, a Monarquia sobrevive porque o povo não pensa nisso. E esses eventos grandiosos só fazem as pessoas pensarem e ajudam nossa campanha.
Silio Boccanera — Se formos além da família real britânica e pensarmos em outras monarquias, da Espanha à Escandinávia e aos países africanos, elas ainda exercem algum fascínio. Talvez não tão forte. Você acha que isso tem relação com o conceito de que há pessoas que recebem coisas por direito inato, e não por mérito próprio?
Graham Smith — Eu não sei se é isso. Mais uma vez, acho que eles exercem alguma fantasia. E acho que as pessoas que gostam e se interessam pela vida da Monarquia também entendem isso. Quando o Afeganistão se livrou do Talibã, falou-se do retorno do rei ao seu trono. Discussões semelhantes ocorreram também no Leste Europeu. Mas nenhum desses países deu esse passo, eles não restituíram a Monarquia. E acho que essa fantasia é alimentada, até certo ponto, pela frustração com os políticos plebeus, sejam eles democráticos ou não. Daí, essa ideia do cavaleiro que vem salvar o país. Mas as pessoas percebem que isso não acontece na vida real e continua sendo uma fantasia, em vez de ser considerado como uma solução política séria.
Silio Boccanera — E a possível atração do fator que podemos chamar de ligação com o passado? É uma família com uma longa tradição, uma família muito antiga, que faz as pessoas se sentirem confortáveis, pois ela as une à sua própria história. Você acha que isso influencia?
Graham Smith — Há alguma verdade nisso. Não podemos deduzir muita coisa a partir disso. Em grande parte, isso faz parte do pacote de relações públicas da Monarquia. Eles tentam sugerir ou promover a ideia de que há essa longa ligação. É claro que a família de qualquer pessoa é antiga, e todo país tem uma história e uma tradição antigas, distintas do resto do mundo. É possível analisar outros aspectos da mesma maneira. Mas os monarquistas e as famílias reais sabem muito bem usar isso como sua própria história. Acho que existe esse aspecto, mas não podemos tirar muito significado dele.
Silio Boccanera — Uma das críticas dos republicanos à Monarquia é que a família real não deve se envolver em questões públicas nem defender posições. A rainha parece seguir essa linha, mas o príncipe Charles se envolveu em muitas controvérsias, e a última era relacionada à arquitetura moderna, que ele odeia. Fale sobre o último incidente, no qual até você esteve envolvido, protestando contra ele.
Graham Smith — Ele se envolve em várias coisas, e a arquitetura é uma das coisas nas quais se envolveu muito. Acho que você se refere...
Silio Boccanera — Chelsea.
Graham Smith — Chelsea Barracks. É um empreendimento muito grande em um terreno degradado de West London. O local está abandonado há bastante tempo, e o governo quis construir um grande empreendimento lá, que ia gerar muito dinheiro, ia empregar milhares de pessoas. Como sempre, alguns moradores se opuseram à arquitetura, e houve um processo democrático, para que o conselho local decidisse o que fazer. Mas esse processo seria demorado, colocando em risco muitos empregos. Charles usou sua influência e sua autoridade para, basicamente, pôr um ponto final em tudo. Os empreendedores tinham o apoio financeiro de famílias reais do Oriente Médio – ele falou com eles – e todo o projeto foi cancelado. E chegou a um ponto, em Londres, em que vários arquitetos passaram a mostrar o projeto ao príncipe Charles antes de construir, com medo de investir muito no empreendimento, e tê-lo cancelado porque Charles se envolveu.
Silio Boccanera — Ele vai alem...
Graham Smith — Muito além de sua função. E ele faz isso em todos os assuntos. Ele faz lobby na área de saúde pública, ele pede que o governo gaste em tratamentos que ele defende, em vez de tratamentos convencionais. Ele faz lobby para o meio ambiente. Recentemente, ele fez um discurso contra o crescimento econômico, dizendo que ele causa danos ao meio ambiente, tanto globalmente quanto no Reino Unido. E isso é uma questão muito controversa, ainda mais quando o governo se esforça tanto para incentivar o crescimento econômico. Ele não pode fazer isso, pois não pode ser responsabilizado por suas posições.
Silio Boccanera — E haveria também todo o aspecto cerimonial disso.
Graham Smith — Certamente.
Silio Boccanera — Ele cortaria fitas por aí.
Graham Smith — Um chefe de Estado constitucional. Ele exerceria quase o mesmo papel que a rainha. Mas a diferença é que a rainha não pode ter nenhuma atuação, pois ela não pode ser responsabilizada, então ela delega seu poder ao primeiro-ministro. Ou seja, nós temos um chefe de Estado que não pode cobrar responsabilidade dos nossos políticos, porque ela delega esse poder ao primeiro-ministro. Ou seja, nós temos um chefe de Estado que não pode cobrar responsabilidade dos nossos políticos, porque ela delega esse poder ao primeiro-ministro cujo óbvio interesse é não responsabilizar os políticos. Nós queremos alguém que cumpra a Constituição e seja independente do governo.
Silio Boccanera — Alguém que equilibre melhor as coisas.
Graham Smith — Exato.
Silio Boccanera — Se analisarmos a Espanha, por exemplo, a Monarquia está associada à modernidade. O rei Juan Carlos teve uma participação política forte e evitou uma volta à ditadura. Ao pensar na Monarquia espanhola, pensamos em modernidade; ao pensar na Monarquia britânica, pensamos em algo do passado. Essa avaliação está correta?
Graham Smith — Os problemas dos países europeus são bem diferentes, e os da Espanha são diferentes dos nossos, pois sua história e sua experiência com a Monarquia são bem diferentes. Como você disse, o rei evitou um golpe de Estado que levaria à ditadura. Eles também tiveram a Guerra Civil, a República, Franco etc. Isso mudou totalmente a natureza do debate. No Reino Unido, sempre tivemos Monarquia, e, por isso, a natureza do debate é totalmente diferente. Nós temos muito mais em comum com as monarquias do norte da Europa do que com a da Espanha, que é bem diferente.
Silio Boccanera — Da Escandinávia e...
Graham Smith — Dinamarca, Holanda, Bélgica, Suécia e Noruega. Eles têm uma relação parecida com a Monarquia.
Silio Boccanera — Há sempre o fator “novela”, não é? Acompanhamos a vida dessas pessoas, de seus filhos, netos, como se acompanhássemos uma novela de televisão.
Graham Smith — Sim, mas é um fenômeno razoavelmente recente, dos últimos 20, 30 anos, desde que a família real britânica e, provavelmente, as de outros países também, começaram a ficar mais expostas aos olhos da mídia, com episódios de suas vidas privadas estampadas nas capas dos tabloides. E virou mesmo um tipo de novela. É uma faca de dois gumes, pois, quando alguém está o tempo todo nos tabloides, o interesse pela novela cresce, mas sua reputação, sua imagem, podem ser manchadas. O que eles têm feito, com exceção do casamento, é transformar essa novela numa coisa muito sem graça, meio monótona, tirando seu fascínio, pois a reação deles foi fazer o contrário. De tanto tentar evitar escândalos como os dos anos 80 e 90, eles se tornaram entediantes.
Silio Boccanera — As pessoas não gostam muito de Charles... Elas respeitam e gostam da rainha, mas a ideia de Charles se tornar rei pode afastar o povo da Monarquia?
Graham Smith — Parte do apoio que a Monarquia tem está relacionada à rainha. Ela reinou durante toda a transição para a sociedade moderna, de uma época em que tínhamos muito mais respeito pela família real, em 1952, em que questionávamos menos as coisas e as aceitávamos... O Reino Unido era o Reino Unido, nada havia mudado, nós éramos daquele jeito, e assim ficamos. Então passamos por um longo período de transição, para uma democracia muito mais popular. Todos querem se pronunciar, querem ser ouvidos, querem discutir tudo e querem ter escolhas. Acho que, como a rainha reina há tanto tempo, a maioria das pessoas não lembra como era antes. Com isso, ela se tornou o fator-chave...
Silio Boccanera — Eles dizem: “Enquanto foi ela, tudo bem. Mas, se for o Charles, eu não quero.”
Graham Smith — Exato. Eles sentem um afeto pessoal por ela, e nunca viveram nada diferente. Mas, assim que se fala em mudar o monarca, as dúvidas surgem. Tanto a mudança da pessoa quanto as mudanças mais substanciais, ou a discussão do funcionamento do sistema, tudo isso suscita várias dúvidas. Quando o monarca está vivo, as pessoas não pensam nisso. As pessoas não pensam duas vezes nisso, veem como parte da vida britânica. Basta começar a falar criticamente do assunto para as opiniões começarem a variar bastante.
Silio Boccanera — Em termos de apoio do povo, ao menos no Reino Unido, as últimas pesquisas da BBC, de uns anos atrás, mostram que 76% dos britânicos querem manter a Monarquia. É um número bem alto.
Graham Smith — É uma grande maioria, sim. Cerca de 20% a 25% das pessoas querem o fim da Monarquia. São milhões de pessoas. Somos um país populoso. Mas não há um debate significativo de alto nível muito freqüente. Há várias oportunidades para isso, e vamos promover um grande debate, para aumentar esse apoio. Mas esses 76% têm uma opinião menos sólida do que se pensa. A maioria das pessoas entrevistadas acha que não devemos gastar um centavo com a Monarquia. Isso sugere que as pessoas passaram de um apoio realmente ativo a algo do tipo: “Vamos manter a Monarquia, pois não faz muita diferença para nós.”
Silio Boccanera — Mas, quando você mostra os gastos...
Graham Smith — Exato.O que se tira disso é: “Não ligo para isso, então por que acabar?” “Não ligo para isso, então por que devo sustentá-los?” Isso significa que grande parte – não todos os 76%, mas grande parte deles – simplesmente não se interessa mais pela Monarquia, o que é uma grande mudança do cenário de 20, 30 anos atrás. Isso nos dá chance de dizer por que o tema é importante e por que devemos fazer algo a respeito. E são essas pessoas que não ligam que nós queremos convencer de que é hora de mudar.
(Foto: Paulo Pimentel/Globo News)

02 maio 2011

Dia do Trabalho

O Dia do Trabalho, 1° de Maio, é uma das datas mais importantes a serem comemoradas, especialmente no Brasil, cujo calendário é tão marcado por um detestável clericalismo.

Nessa data comemora-se a atividade prática que cria, todos os dias, a todo instante, a realidade material da sociedade. Desse modo, não apenas o esforço direto para a constituição da sociedade, mas também os esforços de cada um dos indivíduos que realiza esses esforços: é assim que o Dia do Trabalho também é o Dia dos Trabalhadores.

A sociedade são sempre e cada vez mais as subjetividades individuais e coletivas: as lembranças e os valores que recebemos de nossos antepassados (próximos e distantes), as lembranças e os valores que deixaremos para nossos descendentes (próximos e distantes). É apenas com o passar do tempo que podemos melhorar: apenas com paciência, com bons exemplos, com o acúmulo de idéias corretas (mas também de erros!) que o ser humano pode conhecer-se melhor, pode tornar-se um indivíduo mais correto e afetivo e pode melhorar a realidade em que vive.

Mas essas realidades só são possíveis porque temos uma existência objetiva, no presente, que depende radicalmente do trabalho material para existir: a comemoração do Dia do Trabalho, bem como do Dia do Trabalhador, é um ato de justiça e uma afirmação da Humanidade.

No Positivismo, o conjunto dos trabalhadores, o proletariado, é a “providência geral”: como indicamos há pouco, são os agentes diretos da Humanidade.

Religião e Positivismo

O Positivismo é uma religião. Mas o que isso quer dizer? No dia-a-dia, a palavra “religião” tem os sentidos de (1) “teologia” e (2) “instituições religiosas”, ou seja, são as crenças nas divindades e/ou as organizações que promovem essas crenças.

Para nós, positivistas, a religião são também as instituições, mas não somente isso; em vez de serem apenas as teologias, a religião é o conjunto de práticas, de instituições, de idéias, de valores que fazem o ser humano conhecer-se cada vez melhor, que o aperfeiçoam. Em outras palavras, para o Positivismo a religião é o esforço moral e intelectual para o ser humano melhorar como indivíduo, como membro de família, como cidadão e como integrante da Humanidade.

A teologia é apenas uma das várias fases da religião e mesmo ela não assume uma única forma: o fetichismo é muito diferente do politeísmo e estes são diferentes do monoteísmo. Nenhuma dessas formas é igual às outras, de modo que não se pode falar que “todas as religiões são iguais” somente porque todas essas modalidades acreditam em seres sobrenaturais. Se há algo em comum a todas as religiões é que elas são meios para um fim: o fim é o “religare” do ser humano, isto é, do ligar cada um a si mesmo e, em seguida, religá-lo aos vários vínculos sociais.

Assim, nós, positivistas, somos religiosos: não acreditamos nos deuses e procuramos melhorar os seres humanos. Isso é religião, não a crença nos deuses.

Pequenos textos sobre o Positivismo

A partir de hoje postarei pequenos textos sobre o Positivismo. Eles terão o objetivo de esclarecer aspectos da doutrina positivista. Este blogue procura tratar de questões políticas, científicas, sociológicas e filosóficas, mas também há espaço para algo mais doutrinário: será esse o objetivo dessas postagens.

É necessário lembrar que o Positivismo, conforme elaborado por Augusto Comte em suas várias obras, tem um objetivo profundamente prático: ele destina-se a oferecer parâmetros, regras, valores e idéias para orientar a vida dos seres humanos. Assim, esses pequenos textos procurarão expor algumas dessas regras.

28 abril 2011

Centenário da Lei de Separação entre Igreja e Estado de Portugal

Material produzido pela Associação República e Laicidade, de Portugal, em comemoração - e defesa - do centenário da lei portuguesa de separação entre a Igreja e o Estado (1911-2011):

http://www.laicidade.org/centenario-da-lei-de-separacao-da-igreja-do-estado/

CENTENÁRIO DA LEI DE SEPARAÇÃO DA IGREJA DO ESTADO

Artigo 1º

A República reconhece e garante a plena liberdade de consciência a todos os cidadãos portugueses e ainda aos estrangeiros que habitarem o território português.

Artigo 2º

A partir da publicação do presente decreto, com força de lei, a religião católica apostólica romana deixa de ser a religião do Estado e todas as igrejas ou confissões religiosas são igualmente autorizadas, como legítimas agremiações particulares, desde que não ofendam a moral pública nem os princípios do direito político português.

Artigo 3º

Dentro do território da República ninguém pode ser perseguido por motivos de religião, nem perguntado por autoridade alguma acerca da religião que professa.

Artigo 4º

A República não reconhece, não sustenta, nem subsidia culto algum; e por isso, a partir do dia 1 de Julho próximo futuro, serão suprimidas nos orçamentos do estado, dos corpos administrativos locais e de quaisquer estabelecimentos públicos todas as despesas relativas ao exercício dos cultos.

Bons amigos republicanos,

completa-se hoje um século sobre a «minha» Lei de Separação da Igreja do Estado [1].

Cem anos passados, isola-se com demasiada facilidade a Lei da Separação de outra legislação que partilhava o mesmo objectivo laicizador. A Lei do Registo Civil obrigatório [2] e a generalização do Ensino laico [3] são injustamente ignoradas. Pela laicização do Registo Civil, tornou-se possível a todos os cidadãos portugueses nascer, casar e morrer sem dar conta disso à Igreja. Não creio que os portugueses do século XXI imaginem o que era fazer depender cada um desses actos da presença de um padre, que guardava o seu registo em livros só dele. Parece-me evidente que hoje jamais o aceitariam. E com a generalização do ensino laico pretendíamos formar cidadãos nos valores republicanos, liberais e laicos. Os valores que a todos podem unir, para além das tutelas clericais, tantas vezes impostas desde a infância. Sei que não tivemos tempo para concluir essa parte da nossa obra. Mas atravessámos tempos difíceis, até uma guerra mundial.

Queria falar-vos da Lei de Separação. A Lei a que hoje ligam o meu nome, o que é de justiça, porque muito trabalho me deu. Mas eu não estava sozinho. Não era o único português a desejá-la e os republicanos portugueses não eram uma minoria de marcianos anti-religiosos infiltrados no bom povo português. Éramos muitos, embora principalmente nas cidades. Leiam o que dizia o meu amigo Fernão Botto Machado em defesa do Registo Civil obrigatório [4], ou o que dizia a minha amiga Beatriz Pinheiro contra a educação clerical e jesuítica [5], e compreenderão como os nossos argumentos eram lógicos, razoáveis e sensatos. E como ainda hoje muitos de vós concordariam com o que esses meus amigos da Associação do Registo Civil e da Liga Republicana das Mulheres Portuguesaspretendiam. Talvez os portugueses ainda venham a sentir necessidade de proferir palavras semelhantes, em pleno Século XXI. Quem sabe.

Nada me espanta mais do que a importância que dão a umas palavras que me atribuem, e que teria pronunciado no dia 21 de Março de 1911, no Grémio Lusitano. Eu teria dito que «em duas gerações, Portugal terá eliminado completamente o catolicismo». Ora, nesse mês, afirmei em várias conferências que «com o seu aspecto mercantil degradante, consequência da influência dos jesuítas, aspecto a que emprestaram o seu selo as congregações e a Companhia de Jesus, a continuar esta situação, em breve a religião católica se extinguiria». Talvez tenha sido essa frase, mal entendida ou desastradamente anotada, que provocou este centenário equívoco. Porque eu desmenti várias vezes que a tivesse pronunciado [6]: em Santarém, em Novembro de 1912, eu disse que «os reaccionários, à falta de argumentos insuspeitos, atribuíram-me a intenção de querer acabar, mediante essa lei, com o Catolicismo em Portugal em duas ou três gerações. A verdade é que a Lei não faz mal ao Catolicismo, mas que este vivia, antes dela, em Portugal, uma vida artificial (…) Em vez de ferir a religião, a Lei permite à Igreja Católica viver longe da agitação política, procurando ressurgir, pura e respeitável, pela fé e pela bondade dos seus sacerdotes»; e perante a Assembleia Nacional, em 10 de Março de 1914, afirmei que «tenho sido acusado de muitas coisas e, entre elas, a de extinguir o sentimento religioso em duas gerações. Esta calúnia é de tal natureza que merece o sorriso e o desdém que quase sempre merecem os caluniadores». Pelo contrário, a legislação que eu assinei, oficialmente, sentado à minha mesa e após longa ponderação, está publicada nos jornais oficiais, assumida e sem ambiguidades. Mas já nada posso fazer: a frase que eu teria proferido entre amigos, talvez para acordar os mais sonolentos, tornou-se mais importante do que centenas de artigos legais que escrevi e que não extinguiam coisa alguma, a não ser privilégios indevidos. Talvez haja aqui um claro sinal de que os portugueses preferem a superficialidade das frases tonitruantes à complexidade de textos legais que requerem estudo aturado. Querer tornar uma frase apócrifa (estou a ser simpático) no símbolo e no objectivo oculto de toda uma legislação, que eu aliás sempre afirmei que podia ser debatida e melhorada, é tornar verdade uma mentira mil vezes repetida. Mas se essa frase se tornou um dogma da fé católica portuguesa, admito que devo calar-me. Por respeito.

Voltemos à Lei de Separação. Com ela, a religião católica deixou de ser a religião do Estado. Só por si, esse singelo facto não exaltaria ninguém. Mas, do mesmo passo, os sacerdotes católicos deixaram de ser funcionários públicos e os generosos subsídios que a igreja recebia foram eliminados. Fui então acusado de «perseguir a igreja católica». Até a Lei do Divórcio [7] foi inserida como parte dessa «perseguição». Será que os portugueses de 2011 sabem que se considerou «perseguição» o tornar o divórcio legal? Eu sei que o podem compreender: ainda recentemente se considerou «perseguição ao catolicismo» legalizar o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo (questão, diga-se, que no meu tempo ninguém colocou).

Há quem diga que as comissões cultuais que a Lei criava pretendiam «controlar» ou «dominar» a igreja católica, e que eu (só eu, sempre o único responsável) as quereria formar com republicanos anticlericais. E no entanto, eu disse claramente que «a intenção da Lei era apenas a de criar uma corporação que recebesse os donativos com que se devia pagar ao padre e não cultuais com livres-pensadores (…) O que se não compreende é que tome conta do culto quem com o culto se não interessa» [8]. Acrescento que a Lei de Separação francesa, de 1905 [9], ainda hoje está em vigor, e sendo muito semelhante à portuguesa ninguém hoje considera que tenha «extinguido» o catolicismo ou que «persiga» os católicos, havendo até quem ache que os privilegia comparativamente com os muçulmanos!

Eu sei, separar pode sempre ser figurado como antipático, violento até. Mas tomem em consideração que a igreja católica que eu enfrentei em 1911 era muito diferente da que hoje conhecem. Condenava a democracia e a laicidade (o Syllabus de Pio IX, sabem o que era?). Hoje, ao que sei, mesmo alguns bispos dizem defender a laicidade (mas condenam o laicismo; tal fineza de distinção dir-se-ia, no meu tempo …jesuítica). A igreja católica evoluiu, e há que reconhecê-lo. Mas há que reconhecer igualmente que essa evolução talvez se deva, em parte, aos republicanos portugueses, franceses, mexicanos e outros…

O nosso objectivo era a liberdade de consciência para todos: os católicos, os de outras religiões, os livres pensadores, os ateus. Acreditávamos que pela instrução e pela ciência o futuro de todos e de cada um seria melhor (e estou em crer que não nos vão contradizer neste desiderato?). Alguns souberam reconhecer que tínhamos razão. Como os protestantes de então[10], ou os judeus, comunidades religiosas que a Lei de Separação tirou da clandestinidade. De variadas formas explicámos os nossos objectivos, hoje tão mal compreendidos e distorcidos por historiadores clericais mais preocupados em atribuir-nos tenebrosas intenções. Leiam por exemplo o que disseram os meus correlegionários Magalhães Lima [11] ou Raúl Proença[12]. Atrevem-se a dizer que algum deles seria parte de uma obra de «extinção» ou «perseguição»? E no entanto, foi ao meu lado que estiveram, e não ao lado dos outros, os clericais… de que lado estava a liberdade, afinal?

Esta missiva já vai longa. Sei que no Portugal de 2011 o clericalismo continua a existir. Que há novamente sacerdotes pagos pelo Estado para exercer funções exclusivamente religiosas. Que há símbolos religiosos emescolas públicas (que se são templos, sê-lo-ão do saber laico). Que há professores nessas escolas que são as confissões religiosas que nomeiam, mas o Estado que salaria. Que existe uma Concordata, que é como que uma forma de tentar anular a Separação sem o dizer frontalmente. Que há mil e uma formas, subtis e dissimuladas, de subsidiar o culto e de contornar a Separação. Nem sei como têm dinheiro para tal.

Seja como for, meus amigos, eu estou morto há muito. Ficou o meu exemplo e os meus esforços, com os seus acertos e erros. Dei o meu melhor, pela liberdade de cada um contra a maioria e a tradição. Que a minha obra vos sirva de inspiração.

Saúde e fraternidade,

Afonso Costa

  1. Lei de Separação da Igreja do Estado (20 de Abril de 1911)
  2. Lei do Registo Civil (20 de Abril de 1911)
  3. Decreto sobre a Instrução (22 de Outubro de 1910)
  4. «A obrigatoriedade do Registo Civil» (Fernão Botto Machado, 1908)
  5. «A Educação Congreganista» (Beatriz Pinheiro, 1910)
  6. Afonso Costa nunca disse a frase que lhe atribuíram (Carlos Ferrão, «Desfazendo Mentiras e Calúnias», 1967)
  7. Lei do Divórcio (3 de Novembro de 1910)
  8. Discurso em Defesa da Lei de Separação (Afonso Costa, 1914)
  9. Lei (francesa) de Separação das Igrejas do Estado (1905)
  10. Memorial das Igrejas protestantes (1911)
  11. «O Espírito Laico e o Espírito Livre Pensador» (Magalhães Lima, 1911)
  12. «O Partido Republicano e as crenças religiosas» (Raúl Proença, 1910)