O artigo abaixo foi publicado em 24.10.2019 no jornal curitibano Gazeta do Povo. A versão eletrônica do texto está disponível aqui.
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Os conservadores brasileiros rumo ao desastre
Os conservadores brasileiros estão à deriva: eu fiz essa
observação em 1º de abril de 2018 e, desde então, os problemas apenas se
acentuaram. Na verdade, a deriva diminuiu, mas a direção seguida pelos conservadores
nacionais não poderia ser pior e mais desastrosa. Senão, vejamos.
Antes de mais nada, o conservadorismo não é necessariamente
contra o “progresso”, embora seja ambíguo a respeito. O que o conservador
deseja é o respeito às tradições e as mudanças temperadas pela cautela; as
mudanças devem ser graduais, para que seus efeitos positivos e negativos sejam
avaliados e, conforme for, sejam feitas alterações institucionais. As
tradições, nesse sentido, são vistas como o fruto da sabedoria acumulada ao
longo dos séculos: modificá-las é possível, mas não necessariamente desejável.
Ora, essa concepção de conservadorismo é inglesa, refletindo
sem dúvida o desejo de manter o status
quo, particularmente a vitória dos barões feudais sobre a monarquia
centralizada, na forma do parlamentarismo, em 1688. Essa vitória foi em si
mesma uma alteração profunda (não por acaso foi chamada de “Revolução Gloriosa”) e pôs termo a um
século de crises políticas e sociais, em um país cuja história foi marcada por
golpes, guerras civis, guerras externas, colonialismo etc., conforme
Shakespeare exemplifica à farta para o período entre o final da Idade Média e o
início da Idade Moderna.
O que importa notar do que se vê acima é que o
conservadorismo britânico não é estranho às mudanças sociopolíticas, embora
seja-lhe arisco. A Inglaterra modificou-se – e bastante – desde 1688, com a
inclusão política de inúmeros grupos que não participavam da vida política na
época da ascensão de Guilherme III: os trabalhadores, as mulheres, os católicos
(!); um gigantesco império ultramarino foi criado, mantido e desfeito nesses
mais de 300 anos. Aliás, chega a ser notável o fato de que mesmo o
conservadorismo britânico não se opôs, nem desmontou, a estrutura do Welfare State criada após 1945, a
despeito da virulenta retórica ultraliberal de M. Tatcher. Ao mesmo tempo,
assim como pautas “esquerdistas” foram incorporadas à agenda política
britânica, um traço aristocrático difundiu-se pela sociedade: o respeito às
diferenças filosóficas, religiosas e intelectuais, bem como o respeito às
divergências políticas, consubstanciado na fórmula “agree to disagree”. Juntamente com a desconfiança em relação às
mudanças (em particular as planejadas), os conservadores mantêm uma
desconfiança a respeito das posturas “ideológicas”.
O conservadorismo brasileiro, claro, não tem obrigação
nenhuma de ser como o britânico; mas, no presente caso, o que poderia ser a
manifestação da autonomia nacional prenuncia uma situação terrível, um
verdadeiro desastre. Comparando o atual conservadorismo brasileiro – que,
aliás, ocupa o poder em nível nacional – com o conservadorismo britânico, o que
se evidencia é que o único traço comum é a valorização das “tradições”; fora
isso, os conservadores brasileiros são intensamente “ideológicos”, fazem
questão de realizar uma “revolução” sociopolítica (à direita), não se preocupam
em preservar legados, não percebem a história brasileira como o esforço
coletivo das gerações precedentes para o benefício coletivo – e, acima de tudo,
são intolerantes e consideram que discordar deles é sinal de má-fé ou de problemas
mentais.
Em meados de outubro ocorreu em São Paulo a versão
brasileira da CPAC (Conservative Political Action Conference), de origem
estadunidense. Ao contrário dos conservadores britânicos, os estadunidenses
inspiram os brasileiros nesses péssimos traços indicados acima. Talvez devido
ao peso que a teologia tem nos Estados Unidos, talvez como reflexo do ranço
racista existente lá, o fato é que os conservadores brasileiros reunidos na
CPAC – aliás, por que os conservadores brasileiros mantiveram o título em
inglês, se estamos no Brasil? – esforçaram-se para espelhar a virulência que os
conservadores estadunidenses apresentam atualmente. Três ministros de Estado
fizeram questão de participar do evento organizado ostensivamente pelo terceiro
filho do atual Presidente da República; esses ministros foram bastante ambíguos
em suas atuações, revelando qualquer coisa menos respeito ao bem público, ao
republicanismo, quando se valeram de suas posições institucionais como
ministros de Estado – agentes responsáveis pelo bem comum de todo o país – mas
manifestaram-se como integrantes e defensores de uma parcela específica da
população brasileira. Em outras palavras, esses ministros foram literalmente
partidários; ou, considerando que eles valorizam a teologia cristã, eles foram
especialmente sectários.
Elementos básicos da tradição
ocidental foram negados com veemência, até mesmo com raiva: o racionalismo,
o empirismo, o naturalismo próprios ao Iluminismo foram considerados
desprezíveis pelo Ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo; aliás, ele
também considerou de somenos importância o fim da sociedade de castas realizado
pela Revolução Francesa. A Ministra da Mulher, da Família e dos Direitos
Humanos, Damares Alves, deu continuidade à divulgação de boatos, desinformações
e fake news, sugerindo que em
ambientes não conservadores há o consumo em regra de maconha e a introdução
sistemática de crucifixos nas vaginas (!). Mas em um tal festival de disparates
semioficiais, o maior veio logo do Ministro da Educação, Abraham Weintraub: ele
disse que a esquerda é uma “doença”, aliás similar à sida/aids: ora, as doenças
têm que ser exterminadas e, de qualquer modo, elas correspondem à anormalidade
dos organismos; no caso específico da sida/aids, é uma doença fatal. Na fala do
Ministro da Educação, não há nada de
tolerância, de respeito, de “agree to
desagree”, mas violência, incitação à agressividade, a sugestão de que quem
é não conservador, isto é, quem é de “esquerda”, é doente, ou melhor, é a
própria doença.
Fala-se muito na necessidade de constituir-se um partido de
“direita” no Brasil, em oposição à “esquerda”; nesse caso, a “direita” é tomada
como sinônima de “conservadorismo”. A relação entre “direita” e conservadorismo
é algo a ser discutido, mas a proposta em si pode ser bastante interessante e
pode vir a satisfazer uma necessidade sociopolítica nacional. Entretanto, esse
novo e atual conservadorismo, constituído como está, defendendo idéias como as
indicadas há pouco, será desastroso para o país: são idéias retrógradas (não
por acaso, identifica-se como “conservador” e participou do CPAC um deputado
federal que é descendente de d. Pedro II e que já defendeu na Câmara dos
Deputados nada menos que a escravidão no Brasil), são boatos e desinformações,
são incitações à violência de cidadãos contra cidadãos. Esse conservadorismo
altamente ideológico e raivoso não tem como dar certo; não é mais um
conservadorismo à deriva: ele aponta com clareza para o abismo.
Gustavo Biscaia de Lacerda é Doutor em Sociologia Política e
Sociólogo da UFPR.