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Conservadores à deriva no Brasil
Os conservadores brasileiros
estão à deriva, ou assim parece; a falta de rumo que eles apresentam é tão
grande que em muitos casos eles não deveriam ser chamados de “conservadores”, porém,
sim, de “reacionários” ou de “retrógrados”. Cada vez mais se ouvem notícias ao
mesmo tempo chocantes e tristes de pessoas que comemoram aniversários de
adolescentes valorizando as relações sociais características da escravidão
negra extinta em 1888; ou que chicoteiam manifestantes que expõem idéias
contrárias; ou que se rejubilam com o assassinato de políticos esquerdistas...
o ápice dessa perspectiva consiste em apoiar um Capitão reformado do Exército
que, embora afirme apoiar as ações das Forças Armadas, começou sua carreira
política na década de 1980 por meio de motins e da instalação de uma bomba em
um quartel – e que, desde então, pauta suas atividades parlamentares pelo
radicalismo, pela violência, pelo combate às liberdades públicas e pela
negligência em relação aos temas vinculados às Forças Armadas.
Entrementes, deixarei para
comentar esse militar demagogo mais adiante; neste momento é necessário
concentrar-me no conservadorismo em geral e no conservadorismo brasileiro em
particular.
Historicamente, os conservadores
começaram a definir-se dessa forma no final do século XVIII, na Inglaterra, em
reação à Revolução Francesa. O expoente inicial do conservadorismo foi o
político e pensador irlandês Edmund Burke, que, no livro Reflexões sobre a revolução em França (1790), rejeitou as mudanças
rápidas e violentas introduzidas na França, propondo, ao contrário, o respeito
pelo passado e mudanças incrementais nas instituições. Dessa forma, a concepção
histórica de Burke não era estática, reconhecendo que as sociedades e as
instituições mudam ao longo do tempo; em sua concepção, as instituições são
frágeis e, de qualquer maneira, são cristalizações da experiência histórica, de
modo que convém respeitá-las e fazer modificações pequenas, ao longo do tempo,
a fim de testar a eficácia das alterações propostas. Além disso, para Burke e
para a tradição conservadora que ele iniciou, as instituições devem ser
respeitadas não apenas devido a um respeito quase místico pelo “passado” – o
que é o mero tradicionalismo –, mas também porque se considera que elas
asseguram as liberdades públicas e as garantias jurídicas dessas liberdades (habeas corpus, devido processo legal,
direito à ampla defesa; liberdades de pensamento, expressão e associação etc.).
Como se vê, o conservadorismo filosófico
combina a resistência às mudanças sociais – em particular, às mudanças provocadas, conscientes – com a aceitação de que as coisas mudam. Não há dúvida
de que essa fórmula varia de autor para autor, no sentido de que alguns
concentram-se mais na resistência que na aceitação, ou vice-versa; assim, em
geral, embora o conservadorismo não tenha uma concepção estática da história,
para ele a história tem um ritmo bastante lento; por outro lado, de modo geral
essa forma de pensar (ou esse “temperamento”) vincula-se à defesa das
liberdades. Evidentemente, refiro-me aqui a algo chamado “conservadorismo
político-filosófico”, em sua vertente inglesa, ou seja, a uma tradição
intelectual que surgiu em conjunto com e mesmo em reação à modernidade
ocidental, após 1789. Um comentário desse tipo é importante para enfatizar a
deriva em que se encontra o “conservadorismo” brasileiro – que, como indicado
acima, tem dado mostras de que não “resiste” aos avanços, mas que os rejeita, e que não defende as liberdades
e a solução pacífica de disputas, mas celebra a violência, a truculência, a
opressão e – o que, sem dúvida, é o mais chocante, também a escravidão.
De qualquer maneira, a relação
com os movimentos da história (rejeição ou aceitação) e o sentido aplicado a
essa relação (proteção da liberdade ou estímulo ao progresso) permite
caracterizar também a chamada “esquerda”, para além dos conservadores. Cabe
notar que é de propósito que não
estou assumindo como equivalentes “conservadores” e “direita”, por um lado, e
“progressistas” e “esquerda”, por outro lado. Em um livro dos anos 1990 que se
tornou famoso (Direita e esquerda –
razões e significados de uma distinção política), o italiano Norberto
Bobbio estabeleceu que o conteúdo específico da “direita” seria a defesa da liberdade, ao passo que o conteúdo da
“esquerda” seria a promoção da igualdade.
Bobbio reconhecia que essa proposta seria polêmica e sujeita a uma infinidade
de objeções; da minha parte, considero que, embora seja extremamente didático e
simpático, de fato esse livro difunde um sério equívoco político. Qual equívoco?
Associar a “esquerda” à “igualdade” não é em si problemático (nem, da mesma
forma, associar a “direita” à “liberdade”): o problema surge quando se vincula
a esquerda ao progresso, isto é, à concepção
de que a história (1) tem uma direção, considerando o conjunto dos séculos, e
(2) que é possível acelerar a marcha histórica para que se percorra mais
rapidamente esse caminho. Ora, nos termos de Bobbio, se a esquerda é o campo do
progresso, esse progresso está vinculado à igualdade; inversamente, a direita
seria o campo do “não progresso”, isto é, o campo da “ordem” e/ou do
“conservadorismo” e/ou do reacionarismo.
Assim, o problema que Bobbio não
quis perceber, ou reconhecer, ou enfrentar, é que o progresso exige a liberdade
e, na medida em que ele consiste no desenvolvimento das capacidades humanas, o
progresso estimula a diferenciação social e individual, ou seja, atua na
direção contrária à igualdade; inversamente, face ao progresso, a igualdade só
pode ser promovida por meio da limitação das habilidades humanas, via compressão
das liberdades. Em suma: o progresso exige a liberdade e estimula as diferenças
(ou as desigualdades), ao passo que a igualdade exige a restrição ou a
supressão das liberdades: isso é sabido pelo menos desde o início do século
XIX.
A concepção de que a esquerda
seria “boa” porque seria “progressista” reside, portanto, em um profundo
mal-entendido sobre em que consiste o progresso; a chancela moral positiva
vinculada ao progressivismo conduziu a esquerda a erros monumentais por todo o
mundo desde o início do século XX, incluindo aí o Brasil: a intentona comunista
de 1935, os arroubos populistas nos anos 1950 e 1960, as guerrilhas urbanas e
rurais durante o regime militar – e, mais recentemente, o ódio social promovido
por Lula em seus mandatos e a falência econômica do Brasil nos mandatos de
Dilma Rousseff. Não há necessidade de estender-me sobre as mancadas práticas da
esquerda (no Brasil ou no mundo), nem sobre os seus defeitos intelectuais –
tudo isso é público e notório.
O problema que se verifica no
Brasil, entretanto, é que a reação recente à esquerda consiste tão-somente
nisso: em uma reação. São idéias e
atos que se definem apenas pela negação do outro, não pela proposição de idéias
alternativas que visem a melhorar a sociedade e as instituições. Por certo que
há exceções a esse diagnóstico, mas elas consistem em exceções, não na regra. O que os “conservadores” brasileiros fazem
frente à esquerda e ao seu igualitarismo? Afirmam a liberdade e o mérito;
todavia, tanto a liberdade quanto o mérito afirmados são abstratos – e abstratos demais
–; no que se refere à fórmula da Revolução Francesa “Igualdade, liberdade,
fraternidade”, afirmam apenas a liberdade, rejeitam totalmente a igualdade e
desprezam a fraternidade.
Se a liberdade é a condição para
o progresso social e se o progresso desenvolve as potencialidades humanas,
tanto a liberdade quanto o progresso caminham na direção oposta da igualdade.
Todavia, ao longo do século XX evidenciou-se que há alguns tipos de “igualdade”
que precisam ser valorizadas, especialmente em termos “formais”, ou
institucionais; essas modalidades constituem alguns dos fundamentos das
sociedades livres contemporâneas: a isonomia (a igualdade de todos perante a
lei), a igualdade de educação (como fundamento intelectual, cívico e técnico do
progresso) e condições mínimas de vida para todos, a fim de acabar com a
miséria e garantir a dignidade humana. Esses elementos são as condições do
progresso social e, nesse sentido, constituem elementos da “ordem social”; mas,
além disso, eles exigem que à liberdade seja adicionada um aspecto central, a
fraternidade – ou a generosidade, o altruísmo. Deixando de lado os termos
ariscos, polêmicos e problemáticos que são “direita” e “esquerda”, as relações
sociológicas, políticas e morais entre ordem e progresso foram estabelecidas no
século XIX por Augusto Comte: “O progresso é o desenvolvimento da ordem; a
ordem são as condições do progresso” e “O amor por princípio e a ordem por
base; o progresso por fim”.
Em nome da igualdade social, a
esquerda sacrifica a liberdade mas, ainda que nominalmente, aceita a
fraternidade; já a direita, ou os conservadores, supostamente celebra a
liberdade, mas ignora elementos da igualdade “formal” e despreza a
fraternidade. Tanto em um caso como no outro, o que há são simulacros de progresso
e de ordem: é um progresso que não desenvolve as potencialidades humanas e uma
ordem que não permite esse desenvolvimento. Novamente Augusto Comte tem a
palavra: ordem sem progresso e progresso sem ordem resultam em oscilação
terrível entre uma ordem autoritária e um progresso anárquico.
Voltemos ao tema do
conservadorismo. Como vimos, os conservadores – pelo menos aqueles
influenciados pela tradição britânica – em princípio aceitam o progresso, ainda
que a contragosto; eles também valorizam as liberdades e respeitam a
experiência histórica: esses fatores permitem que esses conservadores possam
dar uma contribuição efetiva para a sociedade. O que os assim chamados
“conservadores” brasileiros têm feito afasta-se desse programa, em particular
no sentido de rejeitarem a experiência histórica e de desvalorizarem as
liberdades e o sistema de garantias institucionais das liberdades. O elogio da
escravidão – encoberto por festas de aniversário de crianças (!!!) ou pelo
chicotear manifestantes –; a afirmação do racismo; o desprezo pelas mulheres e
por suas contribuições à sociedade; o elogio desbragado do autoritarismo
militar, da “solução” violenta de conflitos e das torturas: nada disso
corresponde a um programa de liberdades, não se aproxima do conservadorismo
britânico e, por fim, é contrário tanto ao progresso quanto à ordem. As
corretas e necessárias noções de “mérito” e “meritocracia”, por exemplo, são
pegas no fogo cruzado desses vários conceitos equivocados.
Dito isso, desde 2013, uma
estranha nostalgia pelo autoritarismo militar tem-se organizado em corrente
política, associada ao “conservadorismo”: isso exige alguns comentários. Devido
ao regime militar de 1964, até há poucas décadas costumava-se associar os
militares (e a “direita” e os “conservadores”) a autoritarismo, a truculência e
a torturas; inversamente, o pacifismo era vinculado à sociedade civil, ao
progresso e à esquerda.
Entretanto, essas diversas
associações são bastante conjunturais: simplesmente não há motivo para vincular
os militares a brucutus acéfalos e violentos. Três exemplos bastam para
ilustrar o ponto. No final da década de 1880 o Tenente-Coronel Benjamin
Constant Botelho de Magalhães lecionava Matemática na Escola Militar; embora
pertencesse profissionalmente às Forças Armadas (tendo mesmo lutado na Guerra
do Paraguai (1864-1870)), Benjamin Constant adotava uma abordagem filosófica e
histórica em seu ensino, resultando em um viés cívico, civilista e pacifista:
os seus alunos de modo geral viam-se antes como cidadãos e depois como soldados;
em particular, eles entendiam que o progresso é um ideal a ser perseguido, mas
que, para isso, as condições da ordem têm que ser satisfeitas: liberdades,
condições dignas de vida, primado da lei. Um dos seus mais ilustres alunos foi
Cândido Mariano da Silva Rondon, o “Marechal da Paz”, aquele que dizia – e
praticava! – a bela fórmula “morrer se for preciso, matar jamais”.
Em reação ao ensino cívico,
civilista e pacifista de Benjamin Constant, procedeu-se nas décadas de 1910 a
1930 diversas alterações no ensino militar, promovidas principalmente pelo
futuro General Góes Monteiro: autoritário, esse militar esteve envolvido nas
conspirações civil-militares de 1930, 1937, 1945, 1954 e, claro, 1964. Os
exemplos de Benjamin Constant e Rondon ilustram que a vinculação entre
militares e truculência não é algo necessário: o autoritarismo militar pode ser
um projeto político, como no caso de
Góes Monteiro. Aliás, convém notar que, apesar desse profundo defeito político
(seu autoritarismo), Góes Monteiro era também um intelectual, ou seja, ele
estudava e procurava articular racionalmente suas idéias: assim, não há porque
vincular militarismo e anti-intelectualismo. Ainda mais: até mesmo o
autoritarismo militar pode rejeitar o estilo brucutu, anti-intelectual e
demagógico de proceder: as ações cuidadosas e firmes do General Ernesto Geisel,
durante seu governo, sugerem que ele seria contra o Deputado Federal que
supostamente “representa” os militares. Dessa forma, esse Deputado revela-se
apenas um demagogo incoerente, que desconhece a história das Forças Armadas
brasileiras e que, portanto, não a honra no que ela teve de melhor.
O resultado das reflexões acima
– das quais tive que deixar de lado o crescente papel político do
conservadorismo cristão – é que a “direita” brasileira em geral e os chamados
“conservadores” em particular estão profundamente desorientados. Essa
desorientação não é daninha apenas para eles mesmos, como eventual grupo
político ou como defensores de determinados valores culturais e morais: essa
desorientação é prejudicial para o Brasil como um todo, ao difundir concepções
erradas de ordem e progresso, de igualdade, liberdade e fraternidade, e ao
estabelecer uma dinâmica viciada com a esquerda – cujos problemas intelectuais,
morais e políticos são sobejamente conhecidos. Em vez de buscarem aliar-se em projetos
claros em prol das condições de ordem e progresso, cada vez mais conservadores
e esquerdistas alimentam entre si um relacionamento de ódio mútuo e acusações constantes
– em que, a despeito de acertos políticos ocasionais e específicos, nenhum dos
dois lados está efetivamente na direção correta.
Gustavo Biscaia de
Lacerda é Sociólogo da UFPR e Doutor em Sociologia Política pela UFSC.
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