23 maio 2024

Cidadania, confiança, responsabilidade

As citações abaixo, extraídas da undécima conferência do Catecismo positivista, dedicada ao regime público, apresentam toda uma densa filosofia política que impressiona por seu realismo, seu respeito à dignidade humana e sua antecipação radical dos mais profundos desejos políticos atuais. Não por acaso, Augusto Comte soube ver através das disputas políticas e sociais tão tristemente características da nossa época e que opõem direita e esquerda, retrógrados e revolucionários, tradicionalistas, ultraliberais, comunistas e democráticos.

Alguns esclarecimentos. O Catecismo positivista foi escrito por Augusto Comte em 1852 como um livro de explicação e divulgação do Positivismo, ou melhor, da Religião da Humanidade; ele foi escrito na forma de diálogos entre um sacerdote e u’a mulher. Os textos abaixo foram extraídos da quarta edição, de 1934, da tradução brasileira, originalmente de 1895, feita por Miguel Lemos, fundador da Igreja e Apostolado Positivista do Brasil. Na estrutura do Catecismo subjaz a concepção da tríplice natureza humana, em que o ser humano organiza-se em sentimentos, em idéias e em atividade prática: para regular e estimular cada uma dessas partes, a religião organiza-se por sua vez, respectivamente, em culto, em dogma e em regime. O culto e o regime, por sua vez, organizam-se em privados e públicos: os privados são individuais e domésticos, ao passo que os públicos referem-se à vida coletiva “nacional” (ou extradoméstica).

Para facilitar o entendimento de cada uma das citações abaixo, incluímos títulos; esses títulos não devem ser entendidos como esgotando as idéias presentes em cada uma das citações. São estes os três títulos: (1) “Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos”; (2) “Confiança e responsabilidade”; (3) “Todos os cidadãos são funcionários sociais”.

Embora os trechos sejam mais ou menos autoexplicativos, alguns esclarecimentos e observações adicionais podem ser úteis.

Antes de mais nada, deve-se notar que os nossos hábitos contemporâneos – amplamente metafísicos – consagram o entendimento de que não se deve confiar nos governantes, ou seja, que os governantes são por definição irresponsáveis, egoístas, mesquinhos. É claro que isso pode acontecer concretamente e que, de fato, infelizmente ocorre com freqüência. Todavia, não se pode assumir por princípio que os governantes terão esse comportamento reprovável e desprezível; é o contrário o que deve ser pressuposto: deve-se pressupor que os governantes merecem a nossa confiança. O pressuposto de que os governantes terão um comportamento reprovável serve para cinicamente legitimar e justificar esse comportamento reprovável, ou seja, esse pressuposto acaba atuando no sentido contrário do que supostamente denuncia; além disso, é bastante claro que pressupor que os governantes não merecem confiança torna sem sentido qualquer reclamação de que os governantes, por qualquer motivo, não merecem confiança. Também se deve notar que não é porque algum ideal é freqüentemente desrespeitado que ele deixa de ser válido por si só. Por fim, esse ideal não é somente moralmente correto: ele também se baseia na natureza das coisas, ou seja, ele baseia-se na realidade sociológica.

Essas considerações todas aplicam-se tanto à realidade política quanto à realidade econômica. Quando Augusto Comte fala em “superiores” e “inferiores”, ele não se refere à qualidade moral das pessoas, mas à sua situação social; em outras palavras, os superiores são aqueles que estão em cima e têm poder, ao passo que os inferiores são os que estão embaixo e não têm (ou têm menos) poder.

Em segundo lugar, a referência aos “dois poderes” e à sua separação considera o poder que muda o comportamento a partir do aconselhamento, da opinião e dos valores, ou seja, subjetivamente, que é o poder Espiritual, e o poder que modifica o comportamento impondo essa modificação, ou seja, objetivamente, que é o poder Temporal. De maneira mais simples, eles correspondem respectivamente ao sacerdócio e ao governo propriamente dito. A teoria política e social do Positivismo consagra a separação entre ambos como um dos fundamentos da política moderna.

Em terceiro lugar, a idéia de que todos são “funcionários sociais” não deve ser confundida com a concepção comunista e liberal de que todos seriam “funcionários públicos” (ou, por outra, funcionários do Estado). A preocupação de Augusto Comte é em valorizar o altruísmo e as preocupações de todos para com todos; ao contrário do que a mentalidade moderna e burguesa propõe, as atividades individuais não são estritamente pessoais, no sentido de servirem apenas para satisfazer necessidades pessoais e egoísticas. Todas as atividades têm um objetivo coletivo e são as necessidades sociais que devem ser atendidas. É por isso que a riqueza tem origem social e é por isso que a riqueza tem que ter uma destinação social. Assim, sem negar a existência do âmbito privado e doméstico, o Positivismo rejeita a concepção moderno-burguesa que opõe de maneira sistemática e rígida o público e o privado: eles não são âmbitos duros, estanques e antinômicos, mas são acima de tudo complementares: a vida individual e doméstica prepara-nos para a vida pública e esta corrige os defeitos daquela.

Para concluir: todas essas concepções baseiam-se em um exame detido da realidade sociológica, histórica e antropológica do ser humano. Ao mesmo tempo em que elas baseiam-se em estudos sociológicos, elas têm em mira objetivos sociais, políticos e morais bastante claros, em particular, como já indicamos, ultrapassar as disputas entre reacionários e revolucionários, entre direita e esquerda, entre ordem e progresso – disputas tão tristemente próprias ao Ocidente dos últimos vários séculos. A teoria política ocidental, profundamente marcada (e consciente e intencionalmente marcada) pelas disputas oscilatórias dos últimos séculos, com grande dificuldade, com grande esforço, apenas atualmente consegue elevar-se um pouco da superficialidade dessas disputas e, por meio da noção de “cidadania”, aproximar-se de concepções mais amplas, mais profundas e mais saudáveis como as que Augusto Comte apresentou, com assombrosa antecipação, cerca de 170 anos atrás. 

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(1) “Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos”

“O SACERDOTE – O regime público consiste todo ele, minha filha, em realizar dignamente esta dupla máxima: Dedicação dos fortes pelos fracos; veneração dos fortes pelos fracos. Nenhuma sociedade pode perdurar se os inferiores não respeitarem os superiores. Nada confirma melhor semelhante lei do que a degradação atual, em que, por falta de amor, cada um não obedece senão à força; se bem que o orgulho revolucionário deplore o pretendido servilismo de nossos antepassados, que sabiam amar seus chefes. A segunda parte dupla condição social é, pois, comum a todos os tempos. Mas a primeira não foi realmente introduzida senão na Idade Média; pois que toda a Antigüidade, salvo felizes exceções pessoais, pensava de modo diverso, como o atesta seu aforisma predileto: Paucis nascitur humanum genus[1]. Assim, a harmonia pública repousa sobre a atividade dos dois melhores instintos altruístas, respectivamente apropriados aos inferiores [veneração] e aos superiores [bondade] em suas mútuas relações. Todavia, este concurso só pode surgir e persistir nas almas assaz preparadas por um hábito suficiente da mais enérgica, conquanto a menos eminente [apego], das três inclinações simpáticas mediante um justo surto dos afetos domésticos.

Tal solução reside inteiramente na separação fundamental entre os dois poderes espiritual e temporal. Não é possível assegurar a dedicação dos fortes aos fracos senão pelo advento de uma classe de fortes que só possa obter ascendente social devotando-se aos fracos, em virtude da livre veneração destes. É assim que o sacerdócio se torna a alma da verdadeira sociocracia. Mas isto supõe que ele se cinja sempre a aconselhar, sem nunca poder mandar” (Comte, 1934, p. 358-359)

 

(2) “Confiança e responsabilidade”

“O SACERDOTE – [...] Todas as complicações sociais inspiradas pela desconfiança não conduzem realmente senão à irresponsabilidade. Confiança inteira e plena responsabilidade, tal é o duplo caráter do regime positivo” (Comte, 1934, p. 363)

 

(3) “Todos os cidadãos são funcionários sociais”

“A MULHER – [...] Erigindo todos os cidadãos em funcionários sociais, em virtude da utilidade real de seus ofícios respectivos, o positivismo nobilita a obediência e consolida o comando. Em vez de ter um simples destino privado, cada atividade sente-se honrada pela sua digna participação no bem público. Ora, para obter esta salutar transformação, o sacerdócio nunca precisará suscitar um entusiasmo excepcional. Bastar-lhe-á sempre fazer prevalecer por toda parte uma exata apreciação das realidades habituais” (Comte, 1934, p. 366)

 



[1] Nota de Miguel Lemos: “Paucis nascitur humanum genus” (Lucano, Farsália, livro 5º, v. 343): “O gênero humano vive para um pequeno número de homens”. 

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