09 abril 2024

O que é o patriciado?

No dia 16 de Arquimedes de 170 (9.4.2024) fizemos nossa prédica positiva, dando continuidade à leitura comentada do Catecismo positivista, em sua décima conferência, dedicada ao regime privado.

Na parte do sermão, abordamos o conceito de "patriciado" no âmbito do Positivismo.

A prédica foi transmitida nos canais Positivismo (aqui: https://encr.pw/CCHo6) e Igreja Positivista Virtual (aqui: https://l1nk.dev/HEMrz). O sermão começou aos 51 min 11 s.

As anotações que serviram de base para a exposição oral do sermão encontram-se reproduzidas abaixo.

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O que é o patriciado? 

-        Há algumas semanas um novo adepto do Positivismo, que se tem mostrado interessado em aspectos práticos da doutrina, pediu que eu abordasse a concepção de “patriciado”: daí esta prédica

o   Como veremos, a teoria do patriciado é simples em seus termos gerais, embora guarde relações com muitos aspectos da Religião da Humanidade

o   Dessa forma, diversos aspectos desta exposição serão comentados inicialmente em um momento e serão concluídos em outro momento: não se trata de fragmentar o raciocínio, mas de juntar aos poucos os vários elementos para que eles constituam um todo orgânico

-        O conceito de “patriciado” acaba surgindo no cruzamento de diversas teorias específicas de Augusto Comte

o   Essas teorias são: a teoria religiosa e da regulação moral da sociedade (é a teoria do sacerdócio); a teoria da política positiva (é a sociocracia e os poderes Temporal e Espiritual); a teoria das atividades práticas (a teoria da indústria)

o   Como sabemos, as teorias do sacerdócio e da sociocracia foram expostas e desenvolvidas no Sistema de política positiva e nas obras assessórias (Catecismo positivista, Apelo aos conservadores, correspondência)

o   Mas a teoria da indústria foi apenas projetada: ela seria exposta e desenvolvida no tomo IV da Síntese subjetiva, previsto para a década de 1860

o   De qualquer maneira, como ficará evidente ao longo desta exposição e como uma decorrência natural das teorias do sacerdócio e da sociocracia, a proposta positivista do patriciado não faz nenhum sentido fora dos quadros da Religião da Humanidade e da respectiva regeneração por via religiosa

§  Em particular, isso significa (1) que o patriciado não é um conceito apenas político-econômico e (2) que o patriciado não é uma palavra diferente para tratar da burguesia (e justificá-la)

-        Indo diretamente ao ponto: os patrícios são os líderes, ou melhor, os chefes econômicos

o   O nome “patrício” vem da Antigüidade romana, homenageando os líderes políticos e chefes das famílias da República romana

§  Essa homenagem indica o quanto Augusto Comte respeitava e valorizava os romanos

§  Da mesma forma, a palavra “proletariado”, também adotada por Augusto Comte, tem origem nos plebeus romanos

o   Os patrícios – cujo conjunto constitui o patriciado – representam a providência material da Humanidade

o   Os patrícios são os responsáveis pela produção material da Humanidade, decidindo o que deve ser produzido, em qual quantidade, com qual tecnologia, empregando quantos trabalhadores, visando a qual mercado específico etc.

§  Augusto Comte determina quatro tipos gerais de atividades produtivas: a agricultura, a indústria, o comércio e, estimulando cada um deles, os bancos

o   Os empreendimentos devem limitar-se pela capacidade de responsabilizarem-se pessoalmente por suas atividades

§  Augusto Comte não chegou a desenvolver estes aspectos, mas parece-nos que a responsabilização deve ser avaliada por seus efeitos concretos, o que abrange a geração de empregos, os salários pagos, as condições de trabalho e a qualidade e a quantidade da produção

·         A máxima prática – “a riqueza é social em sua origem e deve ter uma destinação social” – impõe-se com toda a clareza aqui

o   Vale lembrar que essa máxima é positivista e que só o Positivismo elaborou-a

·         Há espaço para o lucro, mas este deve ser entendido como a condição para o crescimento econômico e para os investimentos produtivos; o lucro não pode ser visto como um fim em si mesmo nem como a satisfação da ganância

o   Nesse sentido, o lucro não é único nem, de longe, é o principal parâmetro para avaliar o “sucesso” de algum empreendimento

o   O sucesso de um empreendimento é a sua capacidade de satisfazer as necessidades sociais: como já indicamos, geração de empregos de qualidade, produção de produtos úteis e de qualidade

§  Além disso, no aspecto da responsabilização pessoal há um aspecto de conhecimento pessoal entre o patrão e os empregados, com relações afetivas desenvolvendo-se entre eles

·         Não apenas se trata de relações afetivas (altruístas) entre patrão e empregados, mas também do desenvolvimento de verdadeira confiança mútua

o   Como o capital é social em origem e destinação, os patrícios devem ser vistos – e, acima de tudo, eles devem ver a si mesmos – como os administradores do capital material humano em favor da sociedade, não como “donos” da riqueza

§  A administração do capital é responsabilidade pessoal intransferível de cada patrício

§  Como gestores, eles devem ter a capacidade para isso, ou seja, eles devem ter poderes para isso

·         Suas amplas (ou melhor, suas pesadas) responsabilidades exigem que eles tenham amplos poderes

§  Mais do que outros, os patrícios devem entender e aplicar a noção de deveres mútuos

·         Todos têm deveres para com todos; mas, dependendo da situação de cada um, alguns têm maiores deveres que outros: no caso dos patrícios, seus deveres são realmente maiores que os dos demais

-        A atuação dos patrícios pode, e deve, ser contraposta à atuação das outras forças sociais:

o   Em relação ao proletariado, os patrícios são a força concentrada; o proletariado é a força dispersa

§  Augusto Comte lembra que o proletariado tem poder por meio da união; já os patrícios são poderosos devido aos meios de que dispõem – e, por isso, seus desvios são muito mais graves

o   Em relação ao sacerdócio, os patrícios representam o poder temporal; o sacerdócio é o poder espiritual

o   Em relação às mulheres, os patrícios representam a força física; as mulheres constituem o aconselhamento moral

-        Os patrícios são os servidores da Humanidade mais diretamente expostos ao egoísmo individualista e às perspectivas de detalhe

o   Os patrícios são os responsáveis pela conservação, pela reprodução e pelo aumento das riquezas materiais

§  As riquezas materiais são temporárias, no sentido de que, com o passar do tempo, todas elas degradam-se (é claro que algumas degradam-se mais rapidamente que outras); da mesma forma, há muitos tipos de riquezas materiais e os resultados de uma atividade são os insumos de outras atividades: o resultado desses aspectos é que são necessários muitos chefes práticos para muitas atividades contínuas

§  Essas atividades são egoístas e particularistas por si sós

o   Assim, os patrícios são os mais expostos às piores condições mentais e morais: embora sacerdotes, proletários e mulheres corram determinados riscos morais, intelectuais e práticos, conforme suas situações e suas atividades, o fato é que são os patrícios os que mais se sujeitam ao egoísmo

§  A conseqüência disso é que os chefes práticos são aqueles que mais dificilmente aceitaram a Religião da Humanidade e sua disciplina moral

§  Essa maior dificuldade, ou melhor, essa maior resistência (que não é necessariamente passiva) implica até mesmo conflitos entre os chefes práticos e as demais forças sociais (orientadas pelo sacerdócio)

·         De qualquer maneira, importa lembrar: o poder Temporal pertence aos chefes práticos; caso as outras forças sociais (sacerdotes, proletariado, mulheres) assumam o poder Temporal, essas outras forças necessariamente se degradarão

-        Os marxistas, com seu desprezo geral por tudo que não é marxista, consideram que o conceito positivista de “patriciado” é uma forma diferente de falar “burguesia”

o   Evidentemente, essa forma de pensar dos marxistas está errada e consiste em um preconceito desprezível, que em todos os sentidos só piora as coisas

o   Esse preconceito marxista é um preconceito e não é aceitável; entretanto, de uma forma bastante oblíqua, podemos considerar que esse preconceito marxista ajuda a entender o valor do patriciado: o patriciado consiste nos chefes práticos que não são burgueses

o   Ao contrário do que os preconceitos marxistas difundiram, os próprios marxistas não têm o monopólio das concepções críticas sobre a burguesia: Augusto Comte era extremamente severo contra a burguesia, entendendo-a como mesquinha, egoísta, frívola, oportunista, dinheirista

§  Além de criticar a burguesia, Augusto Comte também criticava a “burguesocracia” – o que deveria encerrar toda e qualquer discussão a respeito do suposto caráter “burguês” do Positivismo

§  Frederic Harrison – que, aliás, como muitos outros positivistas no mundo todo, na Inglaterra fundou sindicados e confederações de sindicados – punha-se contra a “plutonomia”, isto é, contra a regulação social estipulada pelos ricos[1]

o   Considerando os problemas morais e práticos a que os patrícios estão expostos, uma forma bastante direta de evidenciar o grau de difusão do Positivismo, de aceitação da Religião da Humanidade e de implantação da sociocracia é verificar quantos burgueses tornaram-se patrícios e, de qualquer maneira, quantos patrícios há na sociedade

§  Inversamente, pode-se determinar o quanto uma sociedade está distante da sociocracia por meio da rejeição dos chefes práticos dos ideais sociocráticos e do patriciado

-        Embora evidentemente fosse contra os conflitos, Augusto Comte reconhecia um valor prático na chamada “luta de classes”

o   Para Augusto Comte a luta de classes não tem as características que os marxistas definem para ela; ou seja, para o Positivismo, a luta de classes não é um ideal moral-social; não é a força motora da história; não é a condição para o fim das “contradições sociais”; não pode nunca assumir o aspecto de guerra de classes

§  Vale notar que todos os elementos da noção marxista de “luta de classes” distorcem o entendimento da realidade e pioram muito os problemas sociais

o   Rejeitado todo o conteúdo revolucionário, destruidor e violento da luta de classes, o valor que Augusto Comte percebia nela era, por um lado, o de evidenciar as necessidades do proletariado e, por outro lado, evidenciar a necessidade de regulação social e moral das relações sociais

-        Passando para o âmbito propriamente político, o poder Temporal deve ser chefiado por patrícios

o   Esse aspecto é decorrente do caráter industrial das sociedades positivas: o poder cabe a quem realmente é o responsável pelas principais atividades sociais (o sacerdócio nas teocracias, os chefes militares na Antigüidade e na Idade Média)

o   O poder Temporal é mais restrito que o poder Espiritual, mas, de qualquer maneira, ele não pode ser ocupado por pessoas concentradas em seus egoísmos

§  A noção de que os patrícios correspondem aos chefes práticos regenerados pela Religião da Humanidade já indica alguns de seus atributos

§  Ainda assim, as atividades e as exigências políticas são diferentes das econômicas: isso Augusto Comte não chegou a tratar

§  Não deixa de ser notável que, no calendário positivista, exista um mês para a política moderna (Frederico, o duodécimo mês), com indivíduos com atividades claramente discerníveis, mas que o mês da indústria moderna (Gutenberg, o nono mês) não haja propriamente líderes, no sentido do patriciado

§  De qualquer maneira, a exigência de que os chefes políticos tenham perspectivas gerais e sejam efetivamente dotados de um sentimento social levou Augusto Comte a recomendar que, extraordinariamente, o poder Temporal seja ocupado por um proletário em vez de por patrícios

-        Por fim: com a idade de 63 anos deve ocorrer a aposentadoria, por meio do sacramento do retiro: Augusto Comte recomendava que os patrícios retirados constituíssem uma corporação – por mais informal que fosse – da “cavalaria patrícia”, dedicada a afirmar e difundir os valores e as práticas da Religião da Humanidade entre os patrícios atuantes e também a corrigir injustiças e desvios

-        Em suma:

o   Os patrícios consistem nos chefes práticos (“empreendedores econômicos”) regenerados pela Religião da Humanidade

§  Essa “regeneração” consiste na aceitação e, mais ainda, na aplicação dos parâmetros positivistas

·         Em um sentido afirmativo, esses parâmetros são a responsabilidade pessoal por suas ações e decisões; a preocupação com o bem comum; o entendimento de que o capital é social em sua origem e destinação e que os chefes práticos são gestores da riqueza, não seus donos absolutos

·         Em um sentido negativo, esses parâmetros são a rejeição do comportamento mesquinho, egoísta, frívolo próprio à burguesia e à burguesocracia



[1] Citamos Harrison porque há alguns anos um artigo de sua autoria foi recuperado por um antropólogo francês (disponível aqui: https://www.cairn.info/revue-du-mauss-2014-1-page-309.htm&wt.src=pdf); mas é claro que não foi apenas ele que se manifestou contra a burguesia e a burguesocracia e, mais importante que isso, que se manifestaram a favor da fraternidade e da sociocracia. Um pouco ao acaso, podemos citar os seguintes nomes: os irmãos Lagarrigues no Chile; Fabien Magnin e seus amigos proletários na França; ainda na França, o sindicalista e criador de uma confederação sindical Auguste Keufer; evidentemente, também Miguel Lemos, Teixeira Mendes e os positivistas ortodoxos brasileiros.

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