Quando eu era aluno de graduação, do mestrado e do
doutorado, sempre que ouvia falar em "burguesia" ficava irritado:
essa palavra quase sempre era proferida por marxistas, que de fato têm uma
escabrosa metafísica político-moral. Para o marxismo, a "burguesia" é
uma entidade e sempre é ruim, sempre é maléfica.
Entretanto, se deixarmos de lado a metafísica marxista e
entendermos de maneira concreta a palavra "burguesia", ela assume um
caráter descritivo. Nesse caso, a burguesia nacional é o conjunto dos grandes
capitalistas brasileiros, isto é, dos donos de lojas, de fábricas, de empresas
de investimento, dos especuladores financeiros.
Sem dúvida que também há a pequena burguesia, isto é, os
micro e pequenos empresários, além dos empresários individuais; da mesma forma,
podemos incluir na categoria geral de burguesia a classe média profissional,
isto é, os profissionais liberais, aqueles que têm sua renda e seu status
social ligados a um diploma universitário: médicos, engenheiros, advogados,
professores universitários, consultores etc. Creio que atualmente os
"youtubers", os "influenciadores" também entram nessa
categoria.
Mas deixemos de lado a pequena burguesia e os profissionais
liberais; o que me interessa aqui é a burguesia, isto é, o grande capital.
Se até 2018 eu tinha paciência e boa vontade com a burguesia
brasileira, desse ano em diante não dá mais para levá-la a sério.
Não me incomoda o fato de que a burguesia é rica e que, por
isso, tem poder e/ou influência. A vida, a sociedade são assim; se não fossem,
seria estranho.
Mas quem é rico tem responsabilidades coletivas. Ao
contrário do que diz a metafísica liberal e individualista, cujo grande centro
de difusão atualmente são os EUA, a riqueza não é sinal de mérito individual e
não existe para prazer dos ricos. A riqueza é um fardo, pois implica sempre e
necessariamente responsabilidades gigantescas: os donos do capital não têm que
ficar sempre e cada vez mais ricos, eles têm que produzir mais riqueza para
sempre e cada vez mais alimentar (e vestir e educar e entreter) a população,
seja por meio da geração de empregos - esse deveria ser o seu principal
instrumento e, portanto, a sua principal preocupação -, seja por meio de ações
sociais diretas (como deveria ser a ação do Sistema S), seja por meio do
pagamento de impostos.
Ora, desde 2018 a burguesia brasileira aderiu a um projeto
político-social fascista, de desprezo sistemático aos trabalhadores, de
destruição das sociedades indígenas, de destruição das nossas florestas, de
venda do patrimônio nacional, de redução sistemática dos salários, de
precarização sistemática das condições de trabalho. Em outras palavras, a
burguesia brasileira faz tudo o que é possível para destruir o que há de
civilizado no país, mesmo que tenha a audácia de conspurcar as palavras
"modernidade" e "progresso".
(Diga-se de passagem que "fascismo" é outra
palavra que o marxismo e a esquerda degradou, ao usar de maneira cínica contra
tudo o que não era marxismo e esquerda. Mas, ainda assim, a palavra
"fascismo" tem um conteúdo descritivo que resiste à sua degradação
pelo marxismo; é considerando esse conteúdo que eu emprego, de maneira
concreta, para referir-me a um governante que é, sim, fascista.)
Aliás, o governo fascista insiste em degradar outra bela
expressão de que os brasileiros têm a honra de tomar como divisa política; em
outras palavras, os fascistas degradam e conspurcam o belo "Ordem e
Progresso".
Para a burguesia nacional é ótimo dizer-se contra o
"marxismo cultural"; a burguesia não se importa com o conteúdo específico
dessa corrente, mas também não deseja ser criticada como parasitária, como
irresponsável, como... inútil. (Não por acaso, essa burguesia emprega um
especulador financeiro altamente suspeito como porta-voz, para dizer que os
servidores públicos é que seriam parasitários.)
Mas a verdade é que, como observei acima, o marxismo
consiste em uma enorme metafísica político-moral; sua acusação à
"burguesia" no final não passa de indignação política para
adolescentes rebeldes.
Agora, dizer com clareza que a nossa burguesia é mesquinha,
é egoísta, é covarde, é irresponsável - isso é muito pior e muito mais duro.
Dizer que a nossa burguesia resolveu embarcar - quando não assumir - no
fascismo para justificar seu individualismo antissocial é tudo o que ela não
deseja. O que a nossa burguesia deseja é ser sempre e cada vez mais exploradora
da população, insensível aos seus problemas, irresponsável em seus
comportamentos.
O Positivismo, aquela mesma filosofia que formulou o belo
"Ordem e Progresso", afirma que o capital, a riqueza, tem origem
social e que, portanto, ela tem que ter destinação social. É o Positivismo que
afirma que a destinação social da riqueza impõe pesadas responsabilidades sobre
os ombros dos ricos, isto é, da burguesia. É o Positivismo que rejeita como
mesquinha, como imoral, a idéia de que a riqueza por si só é sinal de mérito e
que os ricos não têm nenhuma obrigação para com ninguém, exceto serem cada vez
mais ricos.
(Não é por outro motivo que os representantes
histérico-ideológicos dessa burguesia têm mirado cada vez mais no Positivismo,
tornando-o o alvo preferencial de seu ódio e de suas mentiras, deixando de lado
a lenga-lenga sobre o "marxismo cultural".)
Desde 2018, cada vez mais eu vejo a burguesia brasileira -
os donos de grandes lojas, de grandes empresas, de grandes indústrias; os
presidentes dessas empresas, os administradores de fundos de especulação -
fazendo questão de defender o "direito" de ser mesquinha e inútil.
O comportamento degradante de nossa burguesia, que já seria
extremamente condenável somente pelo seu ignóbil apoio ao fascismo, tem-se
aprofundado nesta crise de saúde pública. A nossa burguesia, em vez de assumir
republicanamente, civicamente, humanamente, que o isolamento social é a medida
mais efetiva para combater as mortes; em vez de assumir esse fato e pagar para
isso, o que nossa burguesia insiste em fazer é querer que os trabalhadores e a
população continuem a trabalhar como se não houvesse nenhuma violenta
emergência de saúde. Para essa burguesia, se a classe média e os trabalhadores
morrerem nos hospitais, não há problema: essa mesma burguesia não tem vergonha
de dizer que hoje, quando estamos longe do pico da epidemia no país, esse pico
já foi ultrapassado para os ricos! Esses mesmos ricos têm a ilusão de que a
pandemia não os atingirá apenas porque eles são ricos e porque, caso contraiam
a doença, eles podem viajar em UTIs aéreas para os mais caros hospitais de São
Paulo e do Rio de Janeiro. Essa mesma burguesia tem até mesmo um representante
no Ministro da Saúde!
É com um misto de crescentes tristeza e raiva que cada vez
mais me convenço de que a burguesia brasileira tem um comportamento
desprezível. Ricos, eles querem apenas ser mais ricos às custas da vida e da
dignidade de nossa população; com influência política, eles apóiam o fascismo;
com capacidade de manter empregados sem trabalhar por meses (como donos de
cadeias de lojas e lanchonetes já se gabaram), eles insistem que "todos"
(isto é, todos os outros) devem trabalhar normalmente, como se não houvesse uma
pandemia mortal. Com influência moral, eles repetem discursos desprezíveis, que
passam a ser os discursos da pequena burguesia, da classe média profissional e
- isso é o mais chocante - mesmo dos trabalhadores!
Quando tudo isso acabar - isto é, quando a pandemia for
passado e o fascismo tiver sido varrido do Brasil -, será que ainda haverá
algum país para que essa burguesia possa agir?
Ou, de maneira mais importante: será que nossa burguesia terá aprendido
a ser decente, responsável, humana, altruísta? Pessoalmente, eu acredito que
não; entretanto, é como dizem: a esperança é a última que morre.
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