01 setembro 2025

Crítica à metafísica alemã, objetividade e subjetividade

As citações abaixo são extraídas do v. 2 do Sistema de política positiva, de Augusto Comte, em seu cap. 1. 

Elas tratam de várias questões fundamentais para o ser humano: como entendemos a realidade, qual a parte do mundo e qual a parte do ser humano em nossas idéias, qual o papel dos sentimentos... isso pode parecer, à primeira vista, mera discussão acadêmica, mas são reflexões que têm aplicações diretas e imediatas na vida de todos nós.

É uma leitura densa, mas muito recompensadora.

O volume 2 da Política positiva foi publicado em 1852 e seu subtítulo é este: “Contendo a Estática Social ou o tratado abstrato da ordem humana”.

O capítulo 1 desse livro tem por título o seguinte: “Teoria geral da religião, ou teoria positiva da unidade humana”.


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- Crítica à metafísica neokantiana, caráter aproximativo e conveniente das leis naturais, margem para elaboração estética das leis, acordo objetivo-subjetivo:

“Essa subjetividade assessória, viciosamente exagerada pelos pretensos sucessores de Kant, conduz ainda ignorantes pensadores a um idealismo não menos imoral que absurdo, que consagra involuntariamente uma completa personalidade e rejeita doutoralmente toda vida coletiva. Faz-se assim degenerar em retrogradação na direção do absoluto a direção filosófica mais própria a constituir o espírito relativo, conforme as diversas condições cerebrais de cada noção real. Mas, por outro lado, os puros cientistas [savants], e sobretudo os geômetras, na falta de um regime enciclopédico, resultam com freqüência, de uma forma inversa, na mesma degradação, ao exagerarem, por seu turno, a independência da ordem natural.

A sã filosofia caminha firmemente entre essas duas armadilhas contínuas. Ela representa todas as leis naturais como construídas por nós com materiais exteriores. Apreciadas objetivamente, sua exatidão não pode ser nunca senão aproximativa. Mas, estando destinadas apenas às nossas necessidades, sobretudo ativas, essas aproximações tornam-se plenamente suficientes, quando elas são bem instituídas segundo as exigências práticas, que fixam habitualmente a precisão conveniente. Além dessa medida, permanece com freqüência um grau normal de liberdade teórica, que devemos sabiamente usar para melhor satisfazer nossas puras inclinações mentais, inicialmente científicas, em seguida mesmo estéticas. Em relação às mais simples e melhor elaboradas de todas as leis reais, os geômetras, a despeito de si mesmos, aplicam freqüentemente essa preciosa faculdade ao justo aperfeiçoamento de suas concepções fundamentais. Eles empregam-na sobretudo para fornecer às relações abstratas uma plena continuidade, indispensável ao desenvolvimento das especulações matemáticas, mas que a ordem exterior desmentiria sempre, se conduzíssemos demasiadamente longe seu estudo sistemático. Por exemplo, a lei newtoniana da gravitação não convém mais para toda distância que a lei de Mariotte para toda pressão. Elas fornecem entretanto bases legítimas, uma à nossa mecânica celeste, a outra à teoria matemática de nosso gás. Sem essa continuidade subjetiva, seu uso racional tornar-se-ia quase ilusório.

Nossa construção fundamental da ordem universal resulta então de um concurso necessário entre o exterior e o interior. As leis reais, vale dizer os fatos gerais, não são nunca senão hipóteses suficientemente confirmadas pela observação. Se a harmonia não existisse de maneira nenhuma fora de nós, nosso espírito seria inteiramente incapaz de concebê-la; mas, em nenhum caso, ela não se verifica tanto quanto supomo-la. Nessa cooperação contínua, o mundo fornece a matéria e o homem, a forma de cada noção positiva. Ora, a fusão desses dois elementos não se torna possível senão por sacrifícios mútuos. Um excesso de subjetividade impediria toda visão geral, sempre fundada sobre a abstração. Mas a decomposição que nos permite abstrair permaneceria impossível se não descartássemos um excesso natural de subjetividade. Cada homem, ao comparar-se com os outros, remove espontaneamente de suas próprias observações o que elas têm inicialmente de muito pessoal, a fim de permitir o acordo social que constitui a principal destinação da vida contemplativa. Mas o grau de subjetividade que é comum a toda a nossa espécie persiste ordinariamente, aliás sem nenhum grave inconveniente. Nós não poderíamos reduzi-lo senão pelo comércio intelectual com outros animais, que não se estabelece senão raramente e para noções subalternas. Aliás, algumas restrições sucessivas que experimentaram assim a influência subjetiva, conforme uma necessidade crescente de ouvir-se com inteligências as mais diversas, jamais as concepções alcançariam uma pura objetividade. É assim tão impossível quanto inútil determinar exatamente as participações respectivas do exterior e do interior em cada noção real” (Política, v. II, p. 32-35)

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“A dificuldade principal da elaboração positiva consiste então na sucessão necessária de diversas grandes fases teóricas, em que cada uma depende da precedente e que entretanto não se tornam religiosamente eficazes senão por sua combinação total. Cada um desses graus sucessivos exige induções que lhes são próprias; mas elas não podem nunca se tornar sistemáticas senão sob o impulso dedutivo resultante de todas as ordens menos complicadas. Sem essa subordinação normal, conforme à dependência dos fenômenos, as leis naturais perderiam tanto consistência quanto racionalidade. Em uma tal hierarquia, as ordens inferiores propagam para o alto a regularidade e a fixidez diretamente próprias à sua simplicidade, ao passo que elas adquirem em retorno a dignidade inerente ao domínio superior. A eficácia religiosa da filosofia real depende sobretudo dessa dupla comunicação entre seus diversos elementos essenciais. Tais são as condições indispensáveis para estabelecer suficientemente a invariabilidade fundamental da ordem universal, cujo melhor tipo concernirá sempre aos fenômenos celestes, como os únicos subtraídos a toda intervenção humana.

Mas, malgrado a constante preponderância dessa primeira apreciação, o dogma positivo deve também caracterizar cuidadosamente as modificações normais que comporta quase sempre a economia natural. Para bem as conceber, é necessário inicialmente reconhecer que elas não oferecem nada de fortuito. Pois elas resultam diretamente da hierarquia geral dos fenômenos, em que cada ordem modifica todas aquelas que a dominam. Com efeito, a harmonia universal exige tanto essa reação quanto esse império. Haveria, sem dúvida, anarquia total se os fenômenos mais particulares não estivessem subordinados aos mais gerais. Mas a ausência de modificações inversas estabeleceria uma confusa identidade. A verdadeira distinção entre as grandes categorias naturais repousa essencialmente sobre essas reações necessárias, a cuja falta apenas as mais simples leis subsistiriam. É necessário então conceber a ordem real como tão distante do caos quanto da anarquia, ou como supõem ao mesmo tempo o movimento e a fixidez. Tal é, pelo menos, sua noção necessária em todo o mundo compatível com a vida; isso é o que constitui o único caso digno de exame.

Com efeito, a concepção de ordem universal como mais ou menos modificável resulta diretamente do grande dualismo filosófico entre a natureza morta e a natureza viva. Inicialmente, todo ser vivo, seja ele reduzido à existência vegetativa, modifica sem cessar o meio que o domina, conforme os materiais de que ele dispõe daí e os produtos que ele elabora. Por outro lado, ele modifica-se a si mesmo, para melhor se adaptar à sua situação. Esse duplo atributo expande-se sempre à medida que o ser torna-se mais elevado e mais desenvolvido. Ora, importa reconhecer que o ser não cria nunca no meio a aptidão para as modificações correspondentes: ele limita-se a utilizá-la. Se já o meio não fosse de maneira nenhuma modificável por si só, uma reação tão fraca quanto o é necessariamente a influência vital não lhe poderia alterar a constituição. Da mesma forma as mudanças que sofre a ordem material, apenas sob o conflito das potências inorgânicas, são com freqüência superiores a todas as provenientes dos seres vivos. Estes seres não fazem então senão determinar ao exterior o exercício de uma propriedade sobre a qual repousa sua existência. Mas essa relação constitui entretanto a única destinação necessária de uma tal aptidão exterior. Ainda que não pudéssemos de maneira nenhuma conceber a vida em um meio imodificável, suporíamos facilmente um tal meio, desde que nada nele vivesse, como em alguns planetas inabitáveis. A variabilidade normal da ordem material refere-se então essencialmente à existência vital, mas sem dela provir” (Política, v. II, p. 36-38).

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