12 setembro 2025

Contra o militarismo presidencial e as lutas fratricidas

Reproduzimos abaixo o opúsculo n. 256 da Igreja Positivista do Brasil, de 1908, que tem por título "Basta de lutas fratricidas". 

Da autoria de Raimiundo Teixeira Mendes e publicado originalmente há quase 120 anos, ele é tristemente atualíssimo e é por isso que o publicamos. Como se pode ler abaixo, sua atualidade reside em particular em que as "lutas fratricidas" que se combatia em 1908 eram  (1) estimuladas por mensagens presidenciais que (2) excitavam grupos militaristas.

Esse opúsculo, além de revelar-se atualíssimo, mais uma vez evidencia que - contra o senso comum acadêmico brasileiro - o Positivismo é pacifista e civilista, ou seja, é antimilitarista e contra a violência.

A transcrição do opúsculo foi gentilmente feita pelo Prof. Fernando Pita, da UERJ.

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Nº 256 


IGREJA E APOSTOLADO POSITIVISTA DO BRASIL

 

O Amor por princípio e a Ordem por base:

o Progresso por fim

 

Viver para outrem.                                                           Viver às claras.

 

Basta de lutas fratricidas

 

A propósito da agravação que a mensagem presidencial veio a produzir na agitação militarista, devida à retomada das tradições da diplomacia imperial.

 

Todos os artifícios retrógrados introduzidos depois para impedir semelhante resultado foram tão impotentes para reanimar o cadáver da guerra como o do teologismo, mesmo sob pretexto de progresso, e apesar da ausência das convicções públicas que deviam estigmatizar essa conduta. Em relação ao mais imoral desses expedientes, ouso proclamar aqui os votos solenes que faço, em nome dos verdadeiros positivistas, para que os árabes expulsem energicamente os franceses da Argélia, se estes não a souberem dignamente restituir àqueles. Ufanar-me-ei sempre de ter, na minha infância, desejado ardentemente o sucesso da heroica defesa dos espanhóis. (Augusto ComteCatecismo Positivista, 13ª Conferência)

 

            Uma frase pungentíssima e desastradíssima da mensagem presidencial veio inesperadamente produzir uma agravação na agitação militarista determinada e entretida pela retomada das tradições diplomáticas peculiares ao tristíssimo passado imperial do povo brasileiro. Essa frase é tanto mais condenável quanto forma o mais insólito contraste com as mais nobres aspirações pacíficas da diplomacia ocidental. Julgamos por isso do nosso dever apelar, ainda uma vez, para o altruísmo e a razão das classes dominantes, e especialmente do Sr. Presidente da República, e sobretudo do Sr. Ministro das Relações Exteriores.

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            Nesse intuito, basta recordar a série das publicações em que, desde o seu início, em 1881, o Apostolado Positivista do Brasil tem-se esforçado por fazer chegar ao público e aos estadistas brasileiros o conjunto dos ensinos de Augusto Comte acerca da missão pacífica reservada à diplomacia. É incontestável que essa vulgarização — graças à índole essencialmente humanitária do povo brasileiro, como de todas as nações ibero-americanas — tem contribuído para conjurar as mais graves consequências dos extravios militaristas.

            Mas essa influência continua a ser contrariada pela educação metafísica das classes letradas, educação que as expõe às mais cruéis devastações da política retrógrada, inaugurada pela sanguinária dominação de Robespierre e desenvolvida pelo triunfo ainda mais sanguinário do primeiro Bonaparte.

            Sem atenderem para a conduta dos grandes políticos ocidentais desde Henrique IV, nem para a incomparável evolução dos pensadores modernos, entre os quais basta citar Leibniz, Kant, Condorcet e Augusto Comte, nem para o irresistível ascendente da fraternidade universal na massa feminina e proletária, os políticos brasileiros se deixam fascinar pelas vitórias efêmeras da retrogradação no Ocidente europeu, no correr do século XIX.

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            Para dissipar essas funestas ilusões, nos limitaremos a lembrar aqui a lista das publicações a que aludimos. Elas podem ser encontradas em muitas das bibliotecas públicas do Brasil, além de que várias foram distribuídas pelos estadistas brasileiros a ocidentais, sobretudo americanos.

            A essa lista, juntaremos apenas 2 ordens de ponderações. Eis a lista de que nos ocupamos:

Imigração chinesa. Mensagem ao embaixador chinês em Londres, 1881.

Question franco-chinoise. Idem, 1881.

Questão de limites entre o Brasil e Argentina, 1884.

Esboço biográfico de Benjamin Constant, fundador da República brasileira. Acha-se aí uma apreciação da diplomacia imperial especialmente da guerra do Paraguai, 1892.

Pelos indígenas brasileiros, 1894.

À nossa irmã a República do Paraguai. 1894.

A propos du conflit hispano-américain, Bulletin 2, 1898.

Sentence arbitrale de Berne, sur la contestation entre la France et le Brésil. Bulletin 8, 1900.

A questão do Acre. Boletins 22, 29, 30. 1901, 1903, 1904.

A questão com o Peru. Boletim 32, 1904.

A República e o militarismo, 1906.

O militarismo ante a política moderna, 1907.

A diplomacia e a regeneração social. I. A missão diplomática, II. A franqueza diplomática, III A Conferência de Haia em 1907, publicados estes últimos (III) também em francês, 1907.

Ainda os indígenas do Brasil e a política moderna, 1907.

Ainda o militarismo perante a política moderna. A propósito da agitação a que deu lugar a lei do sorteio, 1908.

 

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            Isto posto, a primeira das nossas observações atuais deduz-se logo da inspeção da lista precedente. Ela mostra que as intervenções acerca dos extravios solidários, diplomáticos e militaristas do governo brasileiro têm se tornado mais frequentes depois que o Ministério do Exterior foi confiado ao Sr. Paranhos do Rio Branco. Hora, quando se compara o conceito de que goza o Sr.Ministro do Exterior, e os seus antecedentes, qual dos presidentes que o têm apoiado, e quando se considera a situação do Brasil em relação às nações vizinhas, não se pode ter a mínima dúvida de que é ao atual Sr.Ministro do Exterior que cabe a responsabilidade capital da política dos governos brasileiros que por ele se têm guiado, e mesmo a dos governos sul-americanos alarmados. Eis por que devemos dirigir especialmente este apelo ao Sr.Ministro das Relações Exteriores.

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            Ninguém melhor do que o Sr.Ministro sabe o alcance real dos motivos que determinaram a sua elevação política. Porque os sucessos brasileiros dos arbitramentos aque ligou o seu nome podem ser tão legitimamente atribuídos à preeminência do seu patriotismo e da sua habilidade diplomática, como o fracasso brasileiro do arbitramento em que figurou o Sr. Joaquim Nabuco pode ser imputado à falta de civismo e à imperícia deste. Em tais litígios — como em todos os processos —, o êxito depende sobretudo das disposições dos juízes. A justiça das causas e o mérito dos negociadores, inseparável daquela, não podem, pois, ser aquilatados simplesmente pela sentença, frequentemente tão cega como a sorte das guerras.

            Aliás, só por um abuso de linguagem poder seria invocar a justiça em semelhantes pleitos. Porque as nações ocidentais disputam-se então um território que elas arrancaram, com requintada crueldade, às ingênuas tribos fetichistas que o povoavam. Como dizia o velho José Bonifácio, cumpre não esquecer que todos são usurpadores.

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            Semelhante reflexão mostra logo que o arrastamento com que a turba-multa dos letrados políticos brasileiros aclamou os sucessos diplomáticos do Sr.Ministro do Exterior foi devido unicamente à anarquia moral e mental da sociedade contemporânea, que perdeu a moral e a fé teológicas sem ter ainda achado a moral e a fé científicas. A marcha do povo brasileiro, lisonjeada no seu amor-próprio nacional, acompanhou o cegamente as classes dominantes que o desnorteiam em vez de dirigi lo.

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            Tais foram as circunstâncias que determinaram o último presidente e o seu sucessor, ligados espontaneamente pelos seus precedentes monarquistas, a confiarem a conduta da diplomacia brasileira, e mesmo sul-americana, ao Sr.Ministro do Exterior. Nesta situação excepcional, o Sr.Ministro podia, e pode ainda, transformar a sua elevação política em pedestal de uma verdadeira glória, tornando-se o promotor abençoado da paz sul-americana.

            A política positiva não discute a origem das forças sociais, e propõe-se apenas a dirigir a aplicação dessas forças, segundo os interesses supremos da Humanidade. E assim tem procedido o Apostolado Positivista do Brasil, desde o seu início.

            Fiel aos ensinos de Augusto Comte, o Apostolado Positivista tem, portanto, apelado continuamente para o altruísmo e a razão do Sr.Ministro do Exterior, esforçando-se por patentear e todo o bem que a sua posição lhe proporciona fazer, toda a glória que daí reverterá para o povo brasileiro e para o seu nome individual, e assinalado, indiretamente, a gravidade da condenação em que está incorrendo e fazendo incorrer o povo brasileiro, persistindo na política militarista do Império.

            Da mesma maneira que quando pela vamos para o altruísmo e a razão do ex-imperador D. Pedro II, não nos desanima o contraste entre a iminente posição política do Sr.Ministro do Exterior e a nossa humildade apostólica. Porque somos apenas órgãos, imperfeitíssimos embora, da elite das almas humanas, mulheres e homens em todos os tempos em todos os lugares, condensadas pela evolução social em Augusto Comte. Em tais condições, é essa elite a quem ouviria o Sr.Ministro, e não a nós; como é essa elite que o Sr.Ministro desconhece quando menospreza as reflexões de que somos apenas fiéis transmissores.

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            Apoiados em tais convicções, ainda uma vez solicitamos a atenção do Sr.Ministro do Exterior parar a meditação científica do Passado e a previsão, também científica, da Posteridade, sem as quais o nosso tempestuoso Presente não pode ser compreendido, e, portanto, guiado.

            A evolução da Humanidade é regida por leis naturais tão superiores à intervenção dos homens como as leis astronômicas. Seja qual for o poder de que um povo ou um estadista pensem dispor, em um momento dado, esse povo e esse homem são fatalmente dominados pelas leis da evolução social. O homem se agita e a Humanidade o conduz.

            Todo o poder dos povos e dos homens só lhe permite perturbarem momentaneamente tal evolução, se lhe for contrário, ou acelerarem-na, se lhe for favorável. Daí resulta que a Posteridade não poderá nem ser frustrada, nem ser corrompida, os aplausos e os sucessos do Presente são impotentes para conter ou desviar a obra secular das gerações.

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            Em virtude dessa evolução, o futuro do povo brasileiro será o que ela determina, e não o que o amor-próprio dos estadistas atuais pode ambicionar. Assim como o povo brasileiro quebrou a unidade política da raça lusitana, o mesmo povo fragmentar se há em nações independentes politicamente, desde que a fatal vulgarização da poesia, da ciência, e da indústria, houver permitido satisfazer plenamente às aspirações da fraternidade universal. Igualfuturo aguarda os grandes Estados atuais, grandes pelo território. É, pois, para o encaminhamento pacífico desse ideal inevitável de livre união religiosa, que devem convergir todos os esforços dos verdadeiros estadistas.

 

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            Daí decorre o dever atual de manter a paz a todo o transe. Só a invasão do território brasileiro, não contestado e habitado efetivamente por brasileiros, e não simplesmente explorado por aventureiros, pode justificar hoje a repulsa pelas armas. Mas, mesmo então, cumpre não proceder para com os povos mais fracos ou equivalentes, como não se procederia para com os povos mais fortes. É preciso ter sempre presente a conduta tantas vezes observada e ainda ultimamente seguida por ocasião da ocupação inglesa da ilha da Trindade.

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            Ora, seria simplesmente quimérico imaginar um ataque dessa ordem por parte das nações que cercam o Brasil. Lemos o folhetoCorrendo o véu, e essa leitura basta para mostrar quanto seria fácil ao Sr.Ministro do Exterior dissipar todas as apreensões ali enumeradas.

            A homogeneidade social dos povos sul-americanos assegura desde logo ao povo brasileiro, à vista de uma superioridade numérica e de sua posição geográfica, uma força política que o torna o principal responsável pela página América do Sul. Acresce que a vulgarização da Religião da Humanidade aqui, vulgarização que não existe em grau comparável nas outras nações sul-americanas, inclusive o Chile, apesar dos esforços dos nossos correligionários Lagarrigue, torna essa responsabilidade ainda mais irrecusável.

 

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            De sorte que, da elevação moral e política do governo brasileiro depende essencialmente hoje a dissipação de todas as prevenções e preconceitos nacionalistas dos povos que rodeiam o Brasil, em relação a este.

            Por outro lado, a política positiva demonstra que, apesar dos manejos quaisquer da política brasileira, a paz sul-americana poderia ser mantida, se as nações que rodeiam o Brasil ouvissem os conselhos de Augusto Comte. Mas a falta de propaganda positivista sistemática nessas nações as expõeàs ciladas de um cego amor-próprio nacional. E isso constitui uma atenuante para os extravios políticos dos respectivos governos, atenuante que se torna agravante para a conduta militarista do governo brasileiro.

 

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            Cremos que seria inútil insistir mais para patentear ao Sr.Ministro do Exterior quanto urge que ele coloque a sua elevação política ao serviço real da causa da Humanidade, que é, ao mesmo tempo, a causa do povo brasileiro. Semelhante atitude lhe granjearia uma glória imortal; ao passo que a persistência da diplomacia imperial só pode acarretar uma inevitável condenação por parte da elite dos contemporâneos e do conjunto da Posteridade, tanto sobre a sua memória, como sobre esta angustiosa fase

histórica do povo brasileiro.

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            Quanto à nossa segunda ordem de reflexões, refere-se à conduta dos republicanos brasileiros, isto é, daqueles para os quais a república significa a supremacia da fraternidade universal, buscando na poesia, na ciência, e na indústria, os únicos elementos da grandeza nacional.

            Os nossos antecedentes históricos e toda a evolução brasileira e americana, depois da nefanda guerra do Paraguai, induzem a crer que a agitação militarista atual e os extravios imperialistas da diplomacia brasileira não terão poder de suscitar uma nova luta fratricida entre as nações sul-americanas. Entretanto, essas cruéis circunstâncias bastam para fomentar um sobressalto político e moral extremamente favorável a todas as perturbações sociais.

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            Nessas condições, devemos recordar que a nenhum patriota, civil ou militar, é lícito colaborar na política imperialista atual do governo brasileiro, e muito menos tomar parte em guerras que possam resultar de tal política. Todos os sacrifícios, pessoais, domésticos, e cívicos, devem ser preferidos, sem hesitação, a contribuir-se para a renovação das monstruosas lutas que têm ensanguentado e desonrado a memória dos povos americanos.

            Cumpre, pois estarem todos preparados para recusar obedecer a qualquer ordem do governo nesse sentido, preferindo os ultrajes de que foi vítima o velho José Bonifácio, por parte dos seus contemporâneos, e mesmo o martírio de Tiradentes, votado à infâmia pelos que se proclamavam então os órgãos do povo lusitano. Tudo deve ser aceito, menos prestar-se a ser instrumento de estadista que se transformarem em algozes da humanidade e das pátrias sul-americanas.

            E temos fé que os brasileiros de onde não consentiram em ser cegamente arrastados a macular sacrilegamente, em carnificinas de canibais, o emblema de aspirações regeneradoras da Humanidade, que Benjamin Constant lhes legou. Para afastarmos horrorizados tamanha catástrofe, basta a lembrança de que a política imperial que se tenta reviver conduziu os nossos antepassados a profanarem, em ferozes guerras fratricidas, civis e sul-americanas, e na persistência dos crimes em nome da escravidão africana, o símbolo que o velho José Bonifácio lhes dera, a fim de evocar habitualmente as mesmas aspirações, resumidas desde então na sua fórmula: A sã política é filha da moral e da razão.

Pela Igreja e Apostolado Positivista do Brasil,

R. Teixeira Mendes,

Vice-Diretor

 

Em nossa sede, Templo da Humanidade, rua Benjamin Constant, nº 30.

Rio, 10 de Moisés de 120 (10 de janeiro de 1908).

 

(Publicado na seção ineditorial do Jornal do Commercio de 11 de janeiro de1908)


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