09 setembro 2025

"Ordem e Progresso" em tempos de fascismo e identitarismo

No dia 9.9.2025 o jornal carioca Monitor Mercantil publicou o meu artigo "Ordem e Progresso" em tempos de fascismo e identitarismo.

O original está disponível aqui: https://monitormercantil.com.br/ordem-e-progresso-em-tempos-de-fascismo-e-identitarismo/.

Reproduzimos abaixo o texto.

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‘Ordem e Progresso’ em tempos de fascismo e identitarismo

Desmoralização da direita e da esquerda e fim dessa polarização Por Gustavo Biscaia de Lacerda


Bandeira do Brasil - Ordem e Progresso (foto de André Maceira, CC)

Com uma certa e triste frequência, a frase “Ordem e Progresso” é alvo de polêmica. Geralmente, essas polêmicas envolvem o sentido da ordem e sua importância para o progresso, resultando em oposição entre direita e esquerda.

Um exemplo disso é o artigo que Djamila Ribeiro publicou em 28 de agosto na Folha de S. Paulo, intitulado “Independência ou morte”. O subtítulo desse texto resume as ideias e o conhecimento que a autora tem do “Ordem e Progresso”: “Pensar de forma independente é recusar o mito da ordem e progresso”.

Em um artigo que se esmerou em citar autoras feministas, a autora referiu-se uma única vez ao “Ordem e Progresso”, foi incapaz de explicar o que significa essa frase e resumiu a “ordem” à “manutenção da desigualdade”.

À parte sua escandalosa superficialidade, a autora repetiu um procedimento que, infelizmente, é corrente na esquerda, ao resumir a “ordem” ao status quo, à sociedade capitalista, à paz de cemitério ou a uma combinação desses sentidos.


Embora a esquerda faça questão de degradar dessa forma a noção de ordem, a direita faz questão de não se sair melhor ao tratar do “Ordem e Progresso”, na medida em que, por seu turno, despreza o progresso.

Ora, os erros da direita e da esquerda sobre o “Ordem e Progresso” são mais que fruto de ignorância; eles são mais que fruto de preconceitos e revelam disposições morais e políticas profundas e altamente danosas para a sociedade brasileira e para a Humanidade.


2 erros simétricos da direita e da esquerda

Direita e esquerda cometem erros simétricos a respeito do “Ordem e Progresso”. Elas assumem que: (1) ordem e progresso podem e devem ser encarados separadamente; (2) a ordem deve vir antes do progresso. É claro que essas considerações podem ser feitas isoladamente, mas, no caso da frase “Ordem e Progresso”, presente na bandeira nacional, todas elas estão erradas.

É natural que direita e esquerda considerem a ordem separadamente do progresso; na verdade, suas respectivas perspectivas exigem tal separação e definem-se exatamente pela parcialidade de suas vistas. Enquanto a direita valoriza a ordem contra o progresso, a esquerda afirma o progresso contra a ordem.

Para a direita, a ordem é o valor social primordial, tomando como base a memória das relações sociais antigas; o progresso, que implica mudança, corresponde à alteração sistemática das relações sociais — o que, para eles, é ruim. Essa concepção é estática; não por acaso, na direita estão os “conservadores”, embora, no fundo, eles devam ser chamados de “retrógrados”.

Já a esquerda quer o progresso sistemático; sua concepção é dinâmica, mas, por outro lado, ela considera que o passado (quando não o presente) é uma constante e eterna injustiça, que, portanto, deve ser destruída. Embora deseje ser progressista, a esquerda busca ser revolucionária e, ainda mais, destruidora.

Direita e esquerda entendem de maneira oposta a ordem e o progresso. A direita sacrifica o progresso em nome de uma ordem estática que tende a ser retrógrada; a esquerda sacrifica a ordem em nome de um progresso que tende a ser destruidor. É evidente que essas duas perspectivas são inconciliáveis e insustentáveis. A única solução é unir, de maneira íntima, a ordem com o progresso, entendendo-os como dois aspectos de uma realidade única.


Nos termos de Comte, ordem e progresso não são opostos e excludentes

Ora, embora possa parecer banal e trivial, é necessário que ordem e progresso não sejam definidos de maneiras opostas e excludentes, mas complementares. Para que ordem e progresso sejam dois aspectos de uma realidade única, a ordem tem que ser vista como dinâmica, e o progresso tem que considerar a manutenção da sociedade.

Nos termos claros e precisos de Augusto Comte, “o progresso é o desenvolvimento da ordem” e “a ordem é a consolidação do progresso”: apenas dessa forma é possível superar a oposição sociológica, filosófica e política entre a ordem e o progresso.

Unir a ordem ao progresso e, inversamente, o progresso à ordem implica necessariamente que a ordem tem que deixar de ser retrógrada e o progresso tem que deixar de ser destruidor. A direita tem que reconhecer o movimento e a busca de melhorias; a esquerda tem que abandonar o espírito destruidor e a concepção de que a ordem é sempre estática. Ambas têm que deixar de lado as concepções de que o antigo é bom ou ruim e que o novo é ruim ou bom apenas porque o antigo é antigo e o novo é novo.

Direita e esquerda — ou melhor, ordem e progresso — definem-se um em relação ao outro. A oposição mútua entre eles tem vários resultados negativos. O primeiro deles é que, se um nega o outro, nenhum deles é realmente levado a sério e nenhum dos dois se mantém.

Em segundo lugar, a negação mútua da ordem e do progresso faz com que os traços negativos de cada um deles se acentuem: a ordem torna-se cada vez mais retrógrada e o progresso, cada vez mais revolucionário, tornando-se anárquico. Em consequência disso, o embate mútuo torna-se ao mesmo tempo retrógrado e anárquico.

Em terceiro lugar, esse embate descamba para uma oscilação social e política, com períodos de ordem (estática) e de progresso (revolucionário). Essa é a dinâmica ocidental (e, por extensão, mundial) desde a Revolução Francesa.

As narrativas liberais e marxistas reproduzem a oposição entre direita e esquerda, ou seja, entre ordem e progresso, e são incapazes de perceber e reconhecer a oscilação: o século 19 caracterizou-se por isso; o período da II Guerra dos 30 Anos (1914-1945) caracterizou-se pela mesma oscilação; e a Guerra Fria (1947-1991) transformou a oscilação em disputa geopolítica.

A afirmação atual entre, por um lado, os tradicionalismos e sua forma política mais extrema, o neofascismo, e, por outro, os identitarismos, é apenas a versão mais recente e agressiva da oposição entre ordem e progresso.


Superação da oposição entre ordem e progresso

A superação da oposição entre ordem e progresso não é uma política de “centro”; é uma política que é ao mesmo tempo progressista, sem ser revolucionária, e que busca manter as instituições sociais sem ser retrógrada.

Essa política não é de extrema esquerda, o que a torna suspeita para a esquerda; ela não é de extrema direita, o que a torna suspeita para a direita. Ela respeita a história, sem ser tradicionalista; ela afirma o progresso, sem ser destruidora. Essa política não apenas rejeita os graves e profundos erros da direita e da esquerda, como torna esses dois lados (e sua oposição mútua) irrelevantes.

Não é por acaso que essa política é alvo dos fascistas e dos identitários; não é por acaso que tanto os asseclas dos Bolsonaros quanto Djamila Ribeiro critiquem o “Ordem e Progresso”. Eles não o conhecem, não o entendem e rejeitam-no; mas, com certeza, intuem que o “Ordem e Progresso” corresponde à superação de suas perspectivas opostas, ou seja, da necessária desmoralização desses opostos irreconciliáveis e do urgente fim dessa polarização.

Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Sociologia Política e sociólogo da UFPR.

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