Reproduzo abaixo três pequenos textos de positivistas brasileiros: um do historiador paranaense David Carneiro, sobre a inauguração de uma estátua da Humanidade em Paris, e dois do Contra-Almirante Henrique Batista da Silva Oliveira, sobre a bandeira nacional brasileira e sobre as estátuas de Aleijadinho.
São textos interessantes, embora curtos; eles têm entre 20 e 30 anos e, sem dúvida alguma, valem a pena serem lidos, mesmo que a título de cultura geral.
Este blogue é dedicado a apresentar e a discutir temas de Filosofia Social e Positivismo, o que inclui Sociologia e Política. Bem-vindo e boas leituras; aguardo seus comentários! Meu lattes: http://lattes.cnpq.br/7429958414421167. Pode-se reproduzir livremente as postagens, desde que citada a fonte.
15 maio 2017
Contra a retórica da violência
Nos últimos anos tem crescido no país um estilo retórico pleno de violência e agressividade, sob a justificativa de "reação ao politicamente correto".
Claro que o grande nome brasileiro dessa retórica é Olavo de Carvalho, mas ele está acompanhado por outros nomes, como Reinaldo Azevedo, Diogo Mainardi e Rodrigo Constantino e seus seqüazes - provavelmente não por acaso, todos de "direita". (Aliás, embora sejam brasileiros e refiram-se ao Brasil, com base em teorias da conspiração muitos deles auto-exilaram-se.)
Isso serve apenas para tornar o ambiente pior. O "politicamente correto" trouxe sérios danos à racionalidade e aos hábitos sócio-políticos, mas o fato é que não é por meio dos berros e dos xingamentos que se reverterá esses danos.
Adotar a agressividade como uma suposta forma de demonstrar "liberdade" e "ausência de preconceitos" é uma tolice - e uma perigosa tolice. Em vez de consagrar verdadeiramente a liberdade, a retórica da violência e a retórica violenta servem apenas para consagrar a própria violência. Em suma, a despeito de pretender-se a favor de padrões civilizatórios, a retórica violenta/da violência é um dos mais poderosos instrumentos contra a própria civilização; mais que uma reação, é reacionária e retrógrada.
Cabe aqui uma observação de Bertrand Russell, em um contexto um pouco diferente, mas perfeitamente aplicável ao presente caso: "se muitos dos problemas atuais decorrem da racionalidade, não é com menos racionalidade que esses problemas serão solucionados".
(Claro: o que eu disse acima aplica-se da mesma forma a toda a gente da "esquerda" - desde aqueles que pregam a morte à burguesia e a ditadura comunista até a suposta filósofa que afirmou que "a classe média é uma merda", passando por todos os que defendem anarquismos anticapitalistas.)
14 maio 2017
Revista Época: "Justiça anula passaporte diplomático de RR Soares"
A matéria abaixo, publicada pela revista Época na véspera do aniversário da Abolição da Escravidão no Brasil, é extremamente alvissareira. Como se sabe, os passaportes especiais ("passaportes diplomáticos") concedidos pelo governo brasileiro a determinados cidadãos, tornou-se moeda de troca política e prebenda familiar nas últimas duas décadas: líderes religiosos e membros da família Lula da Silva, injustificadamente, receberam-nos. Apesar disso, aos poucos, esses passaportes estão sendo anulados, seja por decisões políticas, seja por decisões judiciais.
No caso em tela, um dos homens mais ricos do país, que amealha fortuna com isenção crescente de impostos, perdeu um de seus inaceitáveis privilégios, isto é, o direito de ter tratamento especial para sair do país. (Aliás, como indica a matéria, não foi apenas R. R. Soares que perdeu esse privilégio, mas também sua esposa.)
Em meio à degradação da vida pública que se constata no Brasil há algumas décadas, bem como da laicidade, a decisão da Justiça traz um alívio para todos os verdadeiros republicanos e para os defensores da laicidade do Estado.
O original pode ser lido aqui.
* * *
Justiça anula passaporte diplomático de RR Soares
Na decisão, a magistrada refuta o argumento dos líderes
religiosos de que eles possuiriam “relevância nacional necessária” e aponta que
o Estado brasileiro é laico
MATEUS COUTINHO
12/05/2017 - 17h29 - Atualizado 13/05/2017 17h08
A Justiça Federal em São Paulo anulou a portaria do
ex-ministro de Relações Exteriores José Serra (PSDB) que concedeu no ano
passado passaporte diplomático ao pastor da Igreja Internacional da Graça de
Deus, R. R. Soares.
A decisão desta quinta-feira (11) é mais uma derrota de
líderes religiosos na Justiça que foram beneficiados com o documento que, na
prática, permitia ao pastor e sua mulher, também beneficiada com o documento
especial, a ter acesso à fila de entrada separada nos países e vistos
gratuitos, quando necessários aos brasileiros.
No ano passado, a Justiça já havia determinado a suspensão e
o recolhimento dos passaportes dos pastores. Agora, o juiz anulou o ato do
Poder Executivo que concedeu o benefício. A rigor, o documento é concedido a
autoridades que, entre outros motivos, viajam para representar os interesses do
país.
“A Portaria de 28 de junho de 2016 do Ministério das
Relações Exteriores deve ser anulada em razão de manifesta ilegalidade
ocasionada tanto pela ausência de motivação idônea, como pelo desvio de sua
finalidade, o que, em última análise, fere a moralidade administrativa”,
assinala a juíza da 7ª Vara Federal Cível de São Paulo, Diana Brunstein, na
decisão.
A sentença foi expedida na ação popular movida pelo advogado
Ricardo Amin Abrahão Nacle questionando a concessão do benefício aos
religiosos. A decisão é de primeira instância e ainda cabe recurso.
Apesar de citar uma portaria do então ministro José Serra, o
tucano não é alvo da ação, pois a Justiça Federal entendeu que ele deveria ser
excluído do processo e que a União Federal, por meio da Advocacia-Geral da
União, deveria responder pelo caso.
Na decisão, a magistrada ainda refuta o argumento dos
líderes religiosos de que eles possuiriam “relevância nacional necessária” e
aponta que o Estado brasileiro é laico. “As viagens missionárias dos corréus
são indubitavelmente constantes, porém, como dito na própria contestação, visam
defender os interesses da Igreja, propagando a doutrina cristã e isto não
representa os interesses do país, que como organização estatal é laico e,
portanto, neutro em relação às mais diversas crenças e religiões, cabendo
apenas garantir e zelar pela liberdade de consciência e de crença, assegurando
livres manifestações religiosas, nos termos do artigo 5º, VI da Constituição
Federal”, segue a sentença.
A juíza também analisou os argumentos de que a concessão do
benefício buscava dar isonomia aos líderes religiosos, já que durante o Brasil
Império líderes católicos receberam o passaporte. O magistrado lembrou que,
durante o Império, o Estado não era laico e que, portanto, não caberia comparar
a situação com a de outros líderes religiosos. “Modificado este princípio
fundamental do Estado, a atenção à isonomia se dá com a não concessão do
passaporte diplomático a qualquer líder religioso, inclusive os católicos, não
a extensão desta prática reconhecidamente arcaica e inconstitucional, que
ofende a isonomia entre líderes religiosos e os demais Cidadãos”, afirma a
sentença.
O benefício a RR Soares e sua mulher não foi o primeiro
concedido pelo governo federal. Em 2013, durante o governo Dilma Rousseff, o
líder da Igreja Mundial do Poder de Deus, Valdemiro Santiago de Oliveira, e a
mulher dele, Franciléia de Castro Gomes de Oliveira também receberam o
benefício. Outros líderes de igrejas também já receberam o documento, que dá
direito ao uso de uma fila especial nos aeroportos, mas não dá imunidade
diplomática.
Com menos de uma semana no cargo, em maio deste ano, José
Serra concedeu o mesmo benefício para o pastor Samuel Ferreira e a mulher
Keila, também pastora, da Assembleia de Deus. Ferreira é investigado na Lava
Jato suspeito de lavar dinheiro de propina para Eduardo Cunha (PMDB-RJ) por
meio da igreja em Campinas. A assessoria de imprensa de Ferreira afirma que ele
devolveu o passaporte em fevereiro.
O sistema de concessão de passaportes diplomáticos foi
alterado em 2011, depois de revelado que os filhos e netos do ex-presidente
Luiz Inácio Lula da Silva tinham o documento mesmo depois da sua saída do
governo e de não serem menores de idade, como determinava o decreto sobre o
tema. Na época, a legislação dava ao ministro o poder de decidir quem poderia
receber o passaporte em casos considerados de interesse nacional – o então
ministro das Relações Exteriores, Celso Amorim, concedeu o documento aos filhos
de Lula pouco antes do final de seu governo, em 2010.
O advogado Alexandre Henrique, que representa o pastor e sua
mulher, diz que vai recorrer da decisão, que classificou de “muito fraca”.
“Acredito que a decisão vai ser reformada. O desembargador do caso já negou a
liminar que mandava recolher os passaportes no ano passado. Acreditamos que
essa decisão também deve ser revista no Tribunal (Regional Federal da 3ª
Região)”, disse.
Ricardo Alves: "Fátima e a transformação do catolicismo português"
Reproduzo abaixo um texto pequeno mas extremamente informativo, escrito pelo republicano português Ricardo Alves, a propósito das supostas "aparições de Fátima", que completam um século neste ano. Embora escrito em 2008, a efeméride demonstra que o artigo abaixo é, infelizmente, atualíssimo.
Os dados apresentados por Alves são verdadeiramente chocantes. O mito de Fátima mistura, de modo proposital, profecias sobre o passado, verdades fabricadas, silêncio eterno, campanhas políticas contra a República (e, depois, contra o comunismo), campanhas políticas a favor do longo autoritarismo de Salazar, instrumentalização do Estado em beneficio da Igreja Católica e enriquecimento da Igreja. Ah, claro, também um profundo obscurantismo.
O original pode ser lido aqui.
* * *
Os dados apresentados por Alves são verdadeiramente chocantes. O mito de Fátima mistura, de modo proposital, profecias sobre o passado, verdades fabricadas, silêncio eterno, campanhas políticas contra a República (e, depois, contra o comunismo), campanhas políticas a favor do longo autoritarismo de Salazar, instrumentalização do Estado em beneficio da Igreja Católica e enriquecimento da Igreja. Ah, claro, também um profundo obscurantismo.
O original pode ser lido aqui.
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Fátima e a transformação do catolicismo português
As «aparições» de Fátima, entre 13 de maio e 13 de outubro de 1917, nasceram em reacção ao laicismo da República e nas circunstâncias da 1ª guerra mundial, mas o culto e o santuário ali instalados adaptaram-se facilmente ao regime reacionário de Salazar, designadamente ao seu anticomunismo, e constituem hoje o coração do catolicismo português, que seria inimaginável sem Fátima e o seu capital simbólico e financeiro.
Fátima I: a manifestação anti-republicana
No dia 5 de outubro de 1910, triunfa em Portugal a República. A laicidade era um elemento matricial do programa republicano, e nas primeiras semanas do novo regime foram expulsas as ordens religiosas, laicizado o ensino e instituído o registo civil obrigatório. Seguiu-se em abril de 1911 a Lei de Separação da Igreja do Estado (inspirada na lei francesa de 1905), através da qual o catolicismo deixou de ser a religião de Estado, se suprimiram as despesas relativas ao culto católico e ao salário do clero, se expropriaram edifícios da Igreja católica, mas também se amenizou a transição cedendo os templos para uso gratuito da Igreja, e concedendo pensões aos sacerdotes em funções que não hostilizassem a lei e a República. Porém, a maioria do clero (incitada por Pio X, que denunciou de imediato o português «ódio à Igreja» na encíclica Jamdudum in Lusitania) não aceitou o novo regime. A Lei de Separação fazia também depender de autorização prévia o culto religioso fora dos templos, o que obstaculizou as procissões populares habituais nos meios rurais.
No dia 13 de maio de 1917, Lúcia dos Santos, Jacinta Marto e Francisco Marto (respectivamente com 10, 7 e 8 anos de idade) dizem à família e aos vizinhos que lhes aparecera, sobre uma azinheira da Cova da Iria, uma «senhora vestida de branco». Mais precisamente: Lúcia vira, ouvira e falara com a «senhora», Jacinta vira e ouvira, e Francisco olhara somente. A entidade ter-lhes-ia pedido para voltarem todos os meses até fazer seis, altura em que lhes revelaria o que pretendia. As três crianças, que naturalmente se aborreciam a guardar ovelhas e viviam submersas num ambiente de religiosidade intensa, são interrogadas pelo pároco da freguesia de Fátima no final do mês, e não mais deixarão de ser devidamente enquadradas, e apoiadas, pelo clero. De tal modo que se na segunda «aparição» estarão presentes cerca de 50 pessoas, na terceira já serão mil ou mais. Até então, a «mensagem» registada nos interrogatórios resume-se a promessas de «levar para o Céu» os três pastores, a encorajamentos para «rezar o terço» e a alusões vagas ao final da guerra (onde havia jovens da freguesia). Mas em julho, a imprensa começa a interessar-se pelo assunto: um jornal católico de Ourém alude, em tom sonhador, à hipótese de «a Rainha dos Anjos fazer desta freguesia uma segunda Lurdes». A polémica atinge rapidamente os jornais nacionais, e o administrador do concelho de Ourém reage levando as crianças para sua casa no dia 13 de agosto, pretendendo evitar uma manifestação que seria uma violação da interdição de concentrações religiosas públicas sem autorização prévia. Os pastores ficarão em casa do administrador durante dois dias, bem hospedados e brincando com os seus filhos, o que não impedirá Lúcia de inventar anos mais tarde (apenas uma das suas muitas invenções…), que teriam estado na prisão com criminosos de delito comum. Sem se atrapalhar com este contratempo, Lúcia «vê», no dia 19 de agosto e noutro local, aquela que agora designa por «Nossa Senhora». E a 13 de setembro comparece, com mais de 20 mil pessoas, na penúltima «aparição», considerada uma «desilusão» pelos presentes, mas na qual está, pela primeira vez e enviado pelo cardeal patriarca de Lisboa, o sacerdote que será o principal promotor do culto de Fátima: Manuel Nunes Formigão. Finalmente, a 13 de outubro a «Nossa Senhora» declara-se «muito ofendida» (presumivelmente pelo anticlericalismo) e anuncia (é Lúcia quem o garante perante várias testemunhas) que a guerra terminou naquele momento e que os soldados voltarão[1]. Nesse dia, nesta cova no cimo de uma serra, em condições atmosféricas instáveis típicas do início de Outono (movimento rápido das nuvens e alternância de Sol e chuva), certas pessoas acharão que o Sol «bailou», outras que «rodou» e outras ainda que quase se «precipitou» sobre a Terra. Individualidades tão diversas como o livre-pensador António Sérgio e o católico conservador Domingos Pinto Coelho, entre outras, assegurarão que nada de especial se passou, para além da variação natural da luz do Sol com a densidade das nuvens em movimento. E (se isso interessa…) milhões de pessoas em todo o mundo nada notaram de anormal, nesse mesmo dia e a essa mesma hora, no Sol que observavam, presumivelmente o mesmo da Cova da Iria[2].
Estes acontecimentos, originados possivelmente por fantasias de crianças ou por uma encenação, aconteceram num momento oportuno para a Igreja católica. O esforço de guerra desestabilizava a jovem República, com o aumento do custo de vida, o crescimento do desemprego e motins causados pela escassez de alimentos. Após a entrada oficial na guerra (fevereiro de 1916), os partidos republicanos uniram-se no apoio ao governo, e os monárquicos receberam ordem, do rei exilado em Londres, para se absterem de política enquanto a guerra durasse. A Igreja católica era portanto, nesse momento, a única oposição organizada ao regime que podia instrumentalizar a aversão à guerra (as pastorais dos bispos portugueses tiveram um tom tão político, em 1917, que seis bispos foram expulsos das suas dioceses). Todavia, as «aparições» poderiam ter caído no olvido como uma episódica manifestação de protesto[3], mas a Igreja católica fará deles o coração da sua «reconquista cristã» de Portugal, talvez porque Fátima, ao contrário de outros locais de «aparições» de «Nossa Senhora» seus contemporâneos[4], reunia condições geográficas excepcionais e o empenho do clero.
Geograficamente, o local é adequado para um santuário de sucesso. Por se situar no cimo de uma serra, a Cova da Iria garante, quando demandada a pé, algum do «sacrifício» que desde o início foi pedido pela «senhora», e conferia inicialmente o isolamento que não se conseguiria numa planície ou num centro urbano. E, embora sendo de difícil acesso quando o uso do automóvel não se generalizara, não se situa muito longe da linha Lisboa-Porto, e portanto ficará sempre na proximidade de quaisquer vias rodoviárias ou ferroviárias que liguem as duas principais cidades do país. Adicionalmente, por se situar numa zona litoral (mais populosa do que o interior) e a norte do Tejo (a sul do qual o catolicismo foi sempre mais fraco), Fátima garantia uma distância não excessiva para ser percorrida pela maioria dos devotos peregrinos das aldeias do Norte e Centro de Portugal.
Quanto ao clero, deve destacar-se o papel do sacerdote Nunes Formigão, que visitou a inspiradora Lurdes pela primeira vez em 1909 (voltará em 1914, em ambas as ocasiões por períodos de semanas ou meses) e ficou impressionado com as «curas assombrosas» e, especulemos, as possibilidades deste género de empresa religiosa, tendo-se comprometido a divulgar a «devoção mariana» em Portugal. Como dizem prosaicamente as biografias devotas, «Nossa Senhora aceitou o seu voto» – e Formigão aparece em Fátima em setembro de 1917. Será um dos primeiros sacerdotes a interrogar os videntes, figura determinante na aquisição dos terrenos da Cova da Iria, relator único da comissão canónica sobre os acontecimentos de 1917, e autor de vários livros e numerosos artigos promotores do santuário em jornais católicos e no boletim mensal Voz de Fátima. Pode arriscar-se dizer que, sem ele e sem o bispo Correia da Silva, os acontecimentos de 1917 não passariam hoje de uma curiosidade histórica.
Fátima II: o santuário do Estado Novo
Em janeiro de 1918 dá-se um acontecimento fulcral para o aproveitamento clerical de Fátima: a diocese de Leiria (cidade a 25 km de Fátima) é restaurada, sendo nomeado bispo, em maio de 1920, José Alves Correia da Silva (1872-1957), que peregrinara já a Lurdes doze vezes e era tão devoto de «Nossa Senhora» que consagrou a diocese à Virgem Maria dez dias depois de tomar posse. Após um atentado à bomba contra a capela recentemente fundada na Cova da Iria, Correia da Silva nomeia, em maio de 1922 e a pedido de Formigão (que aponta explicitamente o exemplo de Lurdes) uma comissão eclesial para estudar o caso, declara catolicamente correcto o culto no local e manda fundar (outubro de 1922) o boletim mensal Voz de Fátima (que atingiria 366 mil exemplares em 1936, e no qual o incansável Formigão recenseará mais de mil «curas milagrosas»). Seguem-se os trabalhos de construção civil, coroados em 1929 pela inauguração da central eléctrica do santuário, em que estiveram presentes o Presidente da então Ditadura Militar (Óscar Carmona) e o ministro das Finanças, o católico conservador Oliveira Salazar[5]. A afluência de peregrinos aumentara ao longo da década, apesar da correcção eclesiástica aos aspectos mais «pagãos» que as romarias populares tinham tomado entre 1917 e 1922, mas auxiliada pelas visitas de quase todos os bispos portugueses e outras personalidades católicas. Fátima encontrara, entretanto, o regime político que lhe convinha. Nas palavras do cardeal Cerejeira[6]: «Desde que Nossa Senhora de Fátima apareceu em 1917 no céu de Portugal, uma especial bênção de Deus desceu sobre a terra portuguesa. Encerrou-se o ciclo violento da perseguição religiosa e começa uma época nova de pacificação das consciências e de restauração cristã».
Tendo reunido um total de duas vezes, a comissão diocesana conclui os seus trabalhos em 1930, e Correia da Silva publica seguidamente uma carta pastoral onde declara dignas de crédito as «visões» e autoriza o culto a «Nossa Senhora de Fátima». A mina estava aberta, bastava agora explorar o filão.
O que acontecera, entretanto, às três crianças? Francisco e Jacinta tinham adoecido um ano depois das «aparições», enfraquecidos pelos jejuns que a «senhora» recomendara e vitimados pela epidemia de pneumónica que grassava pela Europa. Morreram em abril de 1919 e em fevereiro de 1920, respectivamente. Quanto a Lúcia, foi levada em maio de 1921 para um internato religioso. Na véspera da sua partida, o bispo de Leiria chamou-a para a proibir de falar sobre as «aparições» com quem quer que fosse. Lúcia tinha 14 anos, e ficará reclusa em conventos e casas religiosas desde então até à sua morte, com 97 anos, em 2005. No final dos anos 30 escreveu as Memórias da Irmã Lúcia, ostensivamente em obediência à «vontade de Deus» tal como transmitida através do representante por ela reconhecido – o bispo de Leiria – e assumidamente acrescentadas e corrigidas pelo bispo e seus ajudantes. O livro pretende proceder à fixação da mitologia de Fátima, mas contradiz em vários aspectos relevantes a versão dos acontecimentos que ela e os primos tinham dado vinte anos antes. Interessa aqui referir que o conteúdo ideológico da «mensagem» se torna agora nacionalista (pela primeira vez, uma «visão» menor de 1916 é identificada como «o anjo da guarda de Portugal») e anticomunista. O «segredo» transmitido às crianças é revelado, dividido em três partes. A primeira, a célebre «visão do inferno», com fogo, animais e demónios aterradores, e que parece ser um resultado directo da catequese terrorista a que Lúcia fora sujeita na infância. A segunda, um pedido de «estabelecimento no mundo» da «devoção ao imaculado coração de Maria», meio que, teria garantido a «Nossa Senhora», evitaria que rebentasse a 2ª guerra mundial – o que não foi possível fazer, como é óbvio, por este pedido apenas ter sido revelado… em 1941 (a revelação de uma «profecia» em data posterior ao acontecimento profetizado não impede os católicos fatimistas, evidentemente, de verem ali uma prova da intervenção do «sobrenatural»[7]). Reveladoramente, a segunda parte do «segredo» insistia em que era necessário «consagrar a Rússia ao coração de Maria», sob risco de esta nação «[espalhar] os seus erros pelo mundo, promovendo guerras e perseguições à igreja». No entanto, em julho de 1917, data suposta desta preocupação celestial com a Rússia, Kerenski governava. A viragem anticomunista da «mensagem de Fátima» pode dever-se tanto a razões internacionais (o desenvolvimento da URSS nos anos 30 e o crescente apelo do comunismo na Europa ocidental) como internas (à data da publicação das Memórias…, a principal força de oposição ao salazarismo eram já os comunistas e não os republicanos). Como diria lapidarmente o cardeal Cerejeira em 1953: «Fátima – Altar do Mundo – opõe-se a Moscovo – capital do reino do Anti-Cristo». A nova «mensagem de Fátima», no fundamental e sem esquecer a sua insistência no «sacrifício» e na «obediência», servia o presente e o futuro do Estado Novo. Lúcia, com a autoridade de quem falara com «Nossa Senhora», chegará mesmo a escrever que «Salazar é a pessoa por Ele [Deus] escolhida para continuar a governar a nossa Pátria».
Fátima III: manifestações de massas e consumismo na era da democracia
Quase um século depois, Fátima fornece ao catolicismo português um ponto de foco e uma fonte de receitas financeiras (através de donativos, hotéis, museus e outros negócios, religiosos e profanos, isentos de vários impostos). O número de visitantes anuais, segundo o santuário, encontra-se entre quatro e cinco milhões, o que rivaliza com Lurdes. As receitas são inestimáveis (poderão atingir vinte milhões de euros, apenas metade consumidos em despesas), e já possibilitaram a construção de uma faraónica catedral de 70 milhões de euros, inaugurada em 2007.
Quanto ao capital simbólico, o catolicismo popular português seria hoje inimaginável sem a «Nossa Senhora de Fátima», e a «Virgem Maria» tornou-se a figura central em tantas novas igrejas que parece quase mais importante do que Cristo. Porém, até alguns católicos (não fatimistas) notam que aquele culto contém aspectos pagãos. Realmente, «ir a Fátima» é, para os peregrinos, um negócio em que o sofrimento das caminhadas e das deslocações de joelhos ou de rastos à volta do recinto do santuário deve ser pago, pela deusa de Fátima, com o cumprimento de pedidos e promessas. O «pagamento», contraditoriamente com o «universalismo» católico, só pode ser feito naquele local do concelho de Ourém e em nenhum outro. Quando não têm pruridos com estes «desvios pagãos», as elites católicas lidam com Fátima através do mecanismo de transferência a que o filósofo Daniel Dennett chama «crer na crença»: o mais importante, dizem-nos, não é a veracidade das «aparições» ou a credibilidade da «mensagem», mas sim o facto de tanta gente ter fé nessas mesmas «aparições» e nessa mesma «mensagem». Assim, a generalidade dos intelectuais católicos, e muitos sacerdotes, evitam um debate em que as contradições do fatimismo e o simples bom senso lhes seriam desfavoráveis, e deixam o literalismo da crença para as multidões que enchem o santuário.
Faltam, evidentemente, os santos. Em maio de 2000, foram beatificados os dois pastorinhos já falecidos, invocando a «cura» de uma paralisia histérica, comprovada por três médicos «independentes» (pai, mãe e filha) e «imparciais» (todos membros da Servitas de Fátima). Nessa ocasião, foi lida a terceira parte do «segredo», onde um «bispo de branco» e os seus acompanhantes são dizimados por «tiros e setas» de um «grupo de soldados». Em 2000, Lúcia identificou esta cena com o atentado de Ali Agca, em 1981. E, no documento interpretativo do «segredo»[8], Angelo Sodano agradeceu à «Virgem Santíssima» a derrota do bloco comunista. Morta Lúcia em 2005, a santidade é uma questão de tempo.
Fátima entrou numa nova fase. No período democrático, as peregrinações ao santuário, entre maio e outubro de cada ano, conferem ao catolicismo português um aspecto de religião de massas que seria impossível conseguir anualmente de outra forma, e que permite à hierarquia amplificar as suas campanhas políticas, as mais recentes contra a despenalização do aborto e o casamento entre homossexuais (as novas «ofensas ao coração imaculado de Maria»). O catolicismo português, religião oficial do Estado até 1910, substituiu o apoio estatal pelo apoio na crença na visita a Portugal de uma figura celestial.[9]
Ricardo Alves
Setembro de 2008
[1] Evidentemente, a guerra não apenas não terminara como continuou durante mais de um ano. O pior momento para as tropas portuguesas, aliás, aconteceria no dia 9 de abril de 1918, quando o Corpo Expedicionário Português foi destroçado na batalha de La Lys.
[2] Os «videntes» também não viram o «bailado do Sol», mas pode-se-lhes perdoar por se terem distraído a ver a «sagrada família» no próprio Sol.
[3] Em 1822, a «Virgem Maria» aparecera a dois pastorinhos de Carnide, aflita com a primeira Constituição do liberalismo, e conferindo assim a «autoridade divina» ao pretendente absolutista D. Miguel. Em dezembro de 1917, Sidónio Pais tomou o poder, e durante um ano esforçou-se por «acalmar» a questão religiosa.
[4] Nomeadamente, a «aparição» de uma «senhora de branco» na remota localidade do Barral, concelho de Ponte da Barca (maio de 1917) e em Pardilhó, concelho de Estarreja (junho de 1916).
[5] No dia 28 de maio de 1926, o exército, apoiado nos sectores conservadores e na Igreja católica, derrubara a República e instaurara uma ditadura da qual Salazar se tornou claramente a figura preponderante em 1932.
[6] Companheiro de quarto de Salazar em Coimbra, Manuel Gonçalves Cerejeira (1888-1977) foi cardeal de Lisboa entre 1929 e 1971.
[7] O mesmo aconteceria com a terceira parte do «segredo», que seria também divulgada (2000), após o acontecimento que alegadamente profetizaria de forma muito alegórica, o atentado a Karol Wojtyla (1981).
[9] Uma versão em língua francesa deste texto foi publicada na revista L´Idée Libre nº283 (dezembro de 2008).
"Vatileaks" e a violenta corrupção financeira no Vaticano
A entrevista abaixo foi recentemente publicada na revista portuguesa Visão; ela indica o fato escandaloso de que o Vaticano, isto é, a Cúria da Igreja Católica, embolsa por baixo 80% dos recursos arrecadados para auxílio aos pobres. Além disso, a entrevista também indica que a canonização é um negócio como qualquer outro e no qual é necessário fazer pesados investimentos financeiros.
Chama a atenção o fato de que a sede mundial de uma igreja tenha leis soberanas próprias, um governo teocrático, e que, por meio de acordos internacionais, um outro Estado soberano aplique as decisões jurídicas dessa igreja. Tal situação verdadeiramente anômala existe desde 1929, quando o regime fascista de B. Mussolini celebrou o Tratado de Latrão, reconhecendo à Igreja Católica personalidade jurídica de Estado soberano - mesmo que o Vaticano seja, no final das contas, apenas um pequeno bairro na cidade de Roma.
O livro já recebeu uma tradução brasileira, publicada em 2016 - pode ser adquirida aqui. É de questionar-se, de qualquer maneira, se ele ensejará investigações aprofundadas sobre a riqueza da Igreja Católica no Brasil, além de maiores investigações sobre as igrejas evangélicas também aqui operantes.
O original da entrevista encontra-se disponível aqui.
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Chama a atenção o fato de que a sede mundial de uma igreja tenha leis soberanas próprias, um governo teocrático, e que, por meio de acordos internacionais, um outro Estado soberano aplique as decisões jurídicas dessa igreja. Tal situação verdadeiramente anômala existe desde 1929, quando o regime fascista de B. Mussolini celebrou o Tratado de Latrão, reconhecendo à Igreja Católica personalidade jurídica de Estado soberano - mesmo que o Vaticano seja, no final das contas, apenas um pequeno bairro na cidade de Roma.
O livro já recebeu uma tradução brasileira, publicada em 2016 - pode ser adquirida aqui. É de questionar-se, de qualquer maneira, se ele ensejará investigações aprofundadas sobre a riqueza da Igreja Católica no Brasil, além de maiores investigações sobre as igrejas evangélicas também aqui operantes.
O original da entrevista encontra-se disponível aqui.
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"O meu livro é
um mapa da corrupção no Vaticano. Todo o dinheiro recolhido fica para os
cardeais, em vez de ir para os pobres"
MUNDO 09.05.2016 às 9h47
Entrevista a Emiliano
Fittipaldi, o jornalista que passou um ano a investigar a gestão das finanças
das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. A investigação resultou
no livro Avareza, e a fuga de informação que relata já mereceu o nome de
Vatileaks
Isabel Nery
ISABEL NERY
Jornalista
O dinheiro do
Vaticano entra sobretudo pela mão dos fiéis, que esperam vê-lo aplicado em
obras de caridade. Mas, afinal, está investido em ações como as da petrolífera
Exxon, e bens imobiliários. Depois de receber uma lista de propriedades da
Igreja em Londres, Paris e Roma, no valor de 4 mil milhões de euros, o
jornalista da revista italiana L'Espresso passou um ano a investigar a gestão
das finanças das instituições que gerem os bens da Igreja Católica. Fittipaldi
descobriu que as esmolas são transformadas em fundos e que as beatificações são
verdadeiras máquinas de fazer dinheiro. Chegou a dizer-se que a fuga de
informação teria vindo de elementos próximos de Francisco, mas o Papa também já
criticou publicamente o livro. Avareza é agora lançado em Portugal, pela
editora Saída de Emergência, numa altura em que o autor, de 41 anos, enfrenta
um processo, acusado do crime de “subtração e divulgação de notícias e
documentos reservados”, previsto na lei do Estado do Vaticano. Se perder,
poderá ser condenado a um máximo de 8 anos de prisão. Por isso, confessa-se
“cansado”. Pela reação negativa de Francisco, “surpreendido”. As revelações, e
fuga de informação inscrita em documentos sigilosos, já mereceram o nome de
Vatileaks.
Quais foram as
descobertas mais chocantes desta investigação jornalística?
Em 2012, as esmolas recolhidas para apoiar os pobres somaram
53,2 milhões, mas só 11 milhões foram para ajudar os mais desfavorecidos. A
Cúria romana ficou com 35,7 milhões. Há cardeais a viverem em luxo. No meu
livro digo o nome e apelido de cada um. Descobri que há cardeais a viver em
Roma em apartamentos de 400 metros quadrados. E não usam esse espaço nem para
pobres nem para refugiados.
Como é que usam o
dinheiro das esmolas?
Descobri que Tarcisio Bertone [ex-secretário de Estado] usou
200 mil euros de um hospital pediátrico para fazer restauros na sua casa. Um
cardeal pedófilo pagava 50 mil euros por mês à secretária.
De onde vinha todo
esse dinheiro?
Um dos negócios incríveis que denuncio no meu livro é o das
beatificações. O caminho mais rápido para chegar a santo é pagar a um bom
advogado para tratar do processo. Pela beatificação da espanhola Francisca Ana
de las Dolores cobraram-se 482 693 euros.
Quer dizer que nos
países pobres não pode haver santos?
Não. Em África ou nas Filipinas não há dinheiro para isso.
Mas o Banco do Vaticano ganhou 100 milhões de euros. Francisco quis fechá-lo e
depois mudou de ideias. Todo o dinheiro devia ir para os pobres. Mas, em dois
anos, o fundo do Banco do Vaticano só entregou 17 mil euros, embora tenha
amealhado cem milhões. Daí o título do meu livro, Avareza.
O Vaticano é
avarento?
O Vaticano comporta-se como uma offshore. Nem sequer dá toda a informação à polícia sobre quem tem
contas no seu banco. Por vezes, o Vaticano decide como um banco e não como uma
Igreja. Francisco quer mais transparência para o futuro, mas não quer que se
descubra o passado. Quer limpar a Igreja por dentro sem que ninguém saiba. Mas
eu não trabalho para o Vaticano nem para o Papa. Sou jornalista.
Vive num país que
alberga o Estado do Vaticano. Como conseguiu escrever sobre um tema tão
sensível?
Em Itália é muito difícil escrever sobre isto. Temos o
Vaticano dentro do nosso país. E o Vaticano tem uma relação muito estreita com
a televisão, com muito poder sobre ela. Mas o tema é bom para quem faz
jornalismo de investigação, como eu.
Conseguiu publicar
artigos e livros sobre o tema, apesar de tudo.
Sou um jornalista sortudo: tenho toda a liberdade no meu
jornal. Em Itália é muito difícil escrever sobre corrupção na Igreja Católica.
A comunicação social italiana está em 77º lugar no índice de liberdade de
imprensa. O Governo é muito próximo da Igreja e não diz nada sobre este
escândalo. A informação que publico está a ser revelada pela primeira vez na
história.
Ficou isolado com a
publicação do livro?
Os meus colegas dizem que roubei os documentos, uma rádio
católica sugeriu que me enforcasse. Mas tenho todo o apoio do meu editor. E já
muita gente leu o meu livro. Fico feliz com isso. Porque o que um jornalista
mais quer é ser lido. Comecei há 4 anos a escrever sobre o tema para a minha
revista.
Quem lhe passou a
informação queria prejudicar o Papa ou ajudá-lo?
As minhas fontes são seculares e do Vaticano. Não se
conhecem. Algumas gostam do Papa e outras não. Não sei se querem ajudar ou
destruir o Papa. Mas os jornalistas não têm de perguntar “porquê” às fontes. As
motivações da fonte não são um problema nosso. Nós só temos de fazer o nosso
trabalho.
Que leitura faz do
facto de aparecerem estes documentos na altura em que o Papa é Francisco, visto
como moderado e defensor dos mais fracos?
É estranho.
Mas, lendo o seu
livro, parece que é mais uma questão de imagem do que de conteúdo.
A propaganda do Vaticano é muito forte. Francisco é um
comunicador perfeito. Escrevemos que este Papa mudou tudo em apenas 3 anos no
Vaticano. Mas não é verdade. Não é possível. O Papa é o homem mais poderoso do
mundo. O grande escândalo é em Roma. Todos sabem que a Igreja Católica tem
problemas com as finanças.
Por haver demasiados
vícios e demasiado antigos na Igreja?
O Vaticano é um Estado rico. Mas todo o dinheiro recolhido
fica no Vaticano, para os cardeais, em vez de ir para os pobres. Isso é incrível!
É aí que está o problema. Mas fico feliz por estar a denunciar. Depois do meu
livro, Francisco mudou o sistema para haver mais controlo.
Está desiludido com
Francisco?
Francisco e o Vaticano estão muito zangados comigo porque
destruí essa propaganda. Ele queria reformar, mas não teve tempo para isso. E
agora está sozinho. Tem muitos inimigos.
O Papa corre mais
perigo de vida por ter querido reformar a Igreja?
Não me parece. Mas, na Cúria romana, muitos odeiam-no.
Tendo em conta tudo o
que denuncia, pode ser bom sinal, ser odiado pela Cúria?
Para um papa que quer mudar a Igreja, sim. Mas não sei se
será capaz. Espero que ele ganhe esta batalha, mas não tenho a certeza. O meu
livro não é contra a fé, mas contra a corrupção na Igreja. Os padres devem rezar,
não andar em casa dos políticos. Em Itália, a Igreja tem negócios, incluindo na
área da saúde, casas e palácios. A ingerência da Igreja em Itália é muito forte
e Francisco quis mudar isso.
A popularidade
ajuda-o ou prejudica-o?
Ser tão popular é muito importante. Pode fazer algumas
reformas por ter o povo com ele. Mas cometeu erros.
Quais?
Quando mudou os homens próximos de Benedict [Bento XVI,
anterior Papa] deu a sua confiança a Pell [responsável pelas finanças do
Vaticano]. Foi um grande erro de Francisco. Pell trabalha dentro do banco do
Vaticano e não quer transparência. Francisco viveu muitos anos em Buenos Aires.
Talvez não soubesse bem o que se passava no Vaticano.
Como reagiu àquilo
que revelou sobre o Vaticano no seu livro?
A reação deixou-me muito surpreso. Ele é um rei no Vaticano
e eu tenho um problema com a justiça dele. O Papa está muito zangado com a
edição do meu texto. Levou-me a tribunal. Depois da publicação disse em
público, na Praça São Pedro, em Roma, dirigindo-se à multidão, que o meu livro
era mau para a Igreja.
Porquê?
Não percebo porque é um problema para a reforma que
Francisco quer fazer. O meu livro é um mapa da corrupção no Vaticano! Acho que
o livro poderá ajudar no futuro.
Preocupa-o que os
radicais islâmicos usem investigações como esta para denegrir a Igreja Católica
e ganharem terreno?
Nunca me tinham perguntado isso… Não tenho o poder de mudar
o mundo. Não sei se pode destruir a fé na Igreja. Mas isso não é um problema
meu. Sou jornalista. Toda a informação que divulgo é verdadeira.
Ninguém o acusa de
publicar informações falsas ou erradas?
Não. Nem uma linha do livro foi desmentida.
Nos processos que tem
contra si, de que o acusam, então?
Acusam-me de ter revelado informação confidencial. Dizem que
os meus documentos são privados e pessoais. Mas ninguém diz que publiquei
mentiras. Se digo a verdade, não devo ter problemas com a justiça.
Mas está a ter.
Sim. A sentença deverá ser conhecida em meados de maio. Mas
fiz outro trabalho jornalístico sobre Bertone e estou com problemas porque um
tribunal de Roma diz que o difamei. Nos próximos tempos, vou passar mais tempo
em tribunal do que no jornal.
Que pena poderão
aplicar-lhe?
Uma lei do Vaticano de há 3 anos prevê penas para quem
publique informações confidenciais como as que divulgo no livro.
A possível
ilegalidade surge à luz da lei do Vaticano?
O meu crime é ser jornalista. O Vaticano não tem imprensa
livre. Rege-se por leis próprias, que não são as mesmas das italianas. Mas há
um acordo entre Itália e o Vaticano, e quem cometer um crime no Vaticano pode
ter problemas com a lei italiana.
Que problemas?
Podem aplicar-me uma pena de 5 a 8 anos. Mas será difícil
porque Itália tem lei de liberdade de imprensa.
Sendo pouco provável
a condenação judicial, que outras consequências lhe trouxe a publicação deste
livro sobre os escândalos financeiros do Vaticano?
Tentaram destruir a minha reputação. E a reputação é o mais
importante para um jornalista. Fui ao Vaticano para me defender deste ataque.
Eu não ameacei ninguém. Para o Vaticano eu sou culpado. Mas terão um problema
político se me acusarem.
O seu livro mudará
alguma coisa?
Às vezes podemos mudar alguma coisa. Denunciei 10% do
escândalo económico dentro do Vaticano. Sei de cardeais que têm milhões de
euros no banco do Vaticano. Se outros quiserem investigar, terão muito sobre o
que escrever.
Quer dizer que não
continuará a escrever sobre o tema?
Estou muito cansado. Fui muito atacado em Itália. Dei
entrevistas a jornais dos EUA, Espanha e Portugal. Mas, em Itália, nem um
jornal quis ouvir as minhas denúncias.
É Católico?
Sou agnóstico.
10 maio 2017
"Bancada religiosa" deturpa proposta de reforma política
Na verdade, em vez de exigir a desincompatibilização de sacerdotes, o que se deveria fazer é a completa ineligibilidade dos sacerdotes.
A lisura dos dois poderes - o Temporal (o Estado) e o Espiritual (as religiões, os órgãos de aconselhamento e de opinião etc.) - requer, necessariamente, a separação entre si. Assim, sacerdotes simplesmente não podem, ou não poderiam, nem se candidatar a nenhum cargo político nem se elegerem a nada.
A ação da "bancada religiosa" evidencia, mais uma vez, o quanto as igrejas desejam o poder do Estado para imporem-se. Deve-se notar um fato muito importante: a "bancada religiosa" é basicamente cristã, composta pelos evangélicos e pelos católicos.
* * *
A matéria abaixo foi publicada originalmente na Gazeta do Povo, em 9.5.2017; o original pode ser lido aqui.
* * *
Reforma política: relator sofre derrota por pressão da bancada religiosa
Comissão queria unificar em seis meses o prazo para candidatos de 40 ocupações profissionais se afastarem de suas funções antes da eleição. Deputados evangélicos e católicos foram contra
- Brasília
- Evandro Éboli, correspondente
A bancada religiosa, formada por deputados evangélicos e católicos, mostrou seu poder e força na comissão especial de Reforma Política da Câmara na noite desta terça-feira (9). Parlamentares desse segmento conseguiram excluir do relatório que líderes religiosos candidatos numa eleição tenham que se desincompatibilizar dessas funções seis meses antes do pleito. O relator Vicente Cândido (PT-SP) buscou unificar o prazo de seis meses para mais de 40 ocupações, cujos profissionais são candidatos.
A bancada religiosa ameaçou rejeitar todo o capítulo. E tinha votos para vencer. Ao sentir a pressão, o comando da comissão e os que seriam votos contrários, recuaram e fizeram um acordo: aprovava todo o capítulo, com a ressalva de votar em separado a exclusão dos líderes religiosos. E assim se deu.
A sugestão de incluir pastores e padres na regra, entre outros missionários, foi do Ministério Público Eleitoral, do procurador Nicolao Dino, do Tribunal Superior Eleitoral (TSE). Pelo texto aprovado, a regra vale para presidente, diretor e conselheiro de empresa privada, de associação, de entidade ou organização não-governamental que receba benefício fiscal ou tributário.
A medida atinge também líderes sindicais. Deputados do PT e do PCdoB reconheceram que cochilaram ao não incluir essa categoria entre as exceções, como os religiosos. Cândido reconheceu que, se fosse a voto, o lobby religioso venceria e derrotaria todo seu texto. “Ali é força. Se levasse a voto, íamos perder”, disse o relator.
04 abril 2017
Dois sites positivistas
Dois portais positivistas foram lançados nos últimos dias pelos irmãos Carlos Augusto e Paulo Augusto Proença Rosa.
Esses portais são os seguintes:
- História da Ciência (http://www.wix.com/caproencarosa/historiadaciencia)
- Filosofia Positiva ou Científica (http://www.wix.com/paulaugusto/filosofia-positiva)
24 março 2017
200.000 visitas!
Hoje batemos a marca de 200.000 visitas no blogue Filosofia Social e Positivismo!
Para um blogue dedicado ao Positivismo, sem dúvida alguma essa é uma grande marca, é um grande feito. Fundado em 4 de janeiro de 2007 - pouco mais de dez anos atrás -, em 23 de julho de 2015 alcançamos 100.000 visitas e agora, após 14 meses, conseguimos dobrar as visitas.
Modestamente, isso comprova a relevância do Filosofia Social e Positivismo - em outras palavras, ele atende às necessidades sociais, políticas e intelectuais de nossa sociedade. É tudo o que almejamos.
Para um blogue dedicado ao Positivismo, sem dúvida alguma essa é uma grande marca, é um grande feito. Fundado em 4 de janeiro de 2007 - pouco mais de dez anos atrás -, em 23 de julho de 2015 alcançamos 100.000 visitas e agora, após 14 meses, conseguimos dobrar as visitas.
Modestamente, isso comprova a relevância do Filosofia Social e Positivismo - em outras palavras, ele atende às necessidades sociais, políticas e intelectuais de nossa sociedade. É tudo o que almejamos.
22 março 2017
O Globo: "Defesa do Estado laico"
Artigo publicado em O Globo, do Rio de Janeiro, em 22.3.2017. O original encontra-se disponível aqui.
É notável, e estarrecedor, como mesmo membros do poder Judiciário erigem-se em representantes de teologias e de igrejas, em vez de defenderem e valorizarem os princípios básicos da vida republicana.
Em artigo publicado neste espaço, o juiz federal William Douglas qualificou de “intolerante” ação de improbidade ajuizada pelo Ministério Público em face do diretor do Arquivo Nacional, acusado de promover cultos evangélicos no auditório da instituição.
É notável, e estarrecedor, como mesmo membros do poder Judiciário erigem-se em representantes de teologias e de igrejas, em vez de defenderem e valorizarem os princípios básicos da vida republicana.
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Defesa do Estado laico
Todos são livres para fazerem pregações e cultos, mas um arquivo público e um tribunal não se prestam a esta finalidade
por Sergio Gardenghi Suiama / Jaime Mitropoulos
22/03/2017 0:00
Em artigo publicado neste espaço, o juiz federal William Douglas qualificou de “intolerante” ação de improbidade ajuizada pelo Ministério Público em face do diretor do Arquivo Nacional, acusado de promover cultos evangélicos no auditório da instituição.
Em benefício do direito à informação, achamos importante prestar alguns esclarecimentos. Em primeiro lugar, o diretor do Arquivo efetivamente promoveu reuniões em favor da sua religião, e não “encontros” nos quais múltiplas crenças estavam representadas, como afirmou o magistrado. Os cultos eram semanais e somente cessaram após o fato ter sido denunciado pela imprensa (O GLOBO, 17-7-2016). Portanto, a ação trata exatamente da preferência a uma religião em detrimento das demais.
Em segundo lugar, a liberdade constitucional de culto nada tem a ver com a proibição de que as dependências, equipamentos e servidores de uma instituição pública sejam usados para proselitismo religioso. Todos são livres para fazerem pregações e cultos, mas um arquivo público ou um tribunal não se prestam a esta finalidade, mas sim a outras, do interesse de cidadãos crentes e não crentes.
A esse respeito, é importante aprofundar a discussão para além do lugar-comum “o Estado é laico, e não ateu”. Não é demais lembrar as guerras e perseguições históricas contra os que não professam esta ou aquela crença. Talvez uma das principais lições que podemos extrair da História seja a da importância de se garantir a separação entre o interesse público, representado pelo Estado, e os interesses e valores das várias religiões. Tal princípio encontra-se previsto na Constituição, que proíbe o Estado de manter com representantes de igrejas relações de dependência ou aliança.
Assim, se o Estado não deve impedir o exercício da fé, tampouco pode permitir que grupos religiosos loteiem ou capturem o serviço público, utilizando as estruturas custeadas por todos para promover seus interesses particulares. Erro grosseiro comete quem afirma que os defensores da laicidade pregam a intolerância, pois é exatamente o contrário disso: em um mundo impregnado por fundamentalismos, deve-se assegurar o igual respeito a todas as crenças e impedir que os espaços das instituições públicas sejam transformados em púlpitos, como ocorreu no auditório do quase bicentenário Arquivo Nacional.
Perseguição religiosa haveria se a Justiça proibisse cultos em locais privados ou a ocupação de ruas ou praças para a realização de festas ou procissões, o que não é o caso. A comparação a Hitler, feita pelo magistrado, não poderia ser mais infeliz pois, em tempos como os atuais, nos quais vem se tornando comum prefeitos entregarem “a Deus” as chaves do município, não há nada mais contra a maioria do que defender a laicidade estatal como valor democrático necessário à convivência pacífica de múltiplas visões de mundo. Mais do que tolerância, a neutralidade exigida pelo Estado laico assegura o respeito à liberdade religiosa de todos.
Sergio Gardenghi Suiama e Jaime Mitropoulos são procuradores da República no Rio de Janeiro.
18 março 2017
Gazeta do Povo: "Escola sem Partido, os evangélicos e a esquerda"
Artigo de minha autoria, publicado em 18.3.2017 na Gazeta do Povo, de Curitiba.
O original pode ser lido aqui.
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O original pode ser lido aqui.
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Escola sem Partido, os evangélicos e a esquerda
As discussões sobre o projeto “Escola sem Partido” têm sido marcadas por grandes mal-entendidos em parte acidentais, em parte propositais. Como não poderia deixar de ser, dificultam a compreensão dos sérios problemas ligados ao projeto.
Notemos à partida que o nome “Escola sem Partido” é enganoso. Ele foi proposto no Senado pela bancada evangélica, com apoio católico, supostamente para evitar o proselitismo político nas salas de aula. Mas, ao sair das generalidades, o projeto evidencia sua meta: ao afirmar uma preponderância das famílias na educação de crianças e adolescentes, deseja-se evitar que as escolas desempenhem o seu papel de esclarecimento e de transmissão do conhecimento. Mais especificamente: o que a bancada evangélica deseja é que nem a Teoria da Evolução nem temas de educação sexual sejam ensinados e que, em geral, todos os conhecimentos contrários ou polêmicos para a teologia (cristã) possam ser questionados e impedidos de serem apresentados. É a instrumentalização direta do Estado por denominações teológicas específicas para manipular os currículos. É o puro obscurantismo em ação.
A família é fundamental, não é todo-poderosa ou onisciente. A escola é a intermediária entre família e sociedade: transmite conhecimentos e também estabelece o convívio. Ela é uma etapa na vida coletiva e, assim, estabelece uma ruptura com a família. Caso vivêssemos presos ao âmbito familiar, nunca teríamos a vida política, ou o conceito de “público”, ou o Estado-nação, ou a noção de “humanidade” – apenas o despotismo paterno.
Por outro lado, muitos dos críticos do Escola sem Partido são – para dizê-lo com um eufemismo – ambíguos a respeito de suas motivações. É certo que o Escola sem Partido institui mais que um controle sobre os professores: quer um verdadeiro patrulhamento ideológico. Mas muitos dos que defendem a necessária e correta liberdade de cátedra defendem-na desejando, na verdade, manterem-se livres para o proselitismo político – sendo mais específico, o proselitismo político (quando não político-partidário) de esquerda.
O Escola sem Partido teve sua origem na chamada “direita”, em grupos liberais e neoliberais, dos moderados aos radicais. Tais grupos apresentam propostas desvairadas – o “Estado mínimo”, a intervenção militar –; mas, neste caso em particular, eles estão corretíssimos. Uma parte substancial do ensino fundamental e médio é política e ideologicamente enviesada, encarada como “espaço de disputa” política. A própria ideia de ensino “crítico” já evidencia a intensa politização do tema.
Nesse sentido, basta passar os olhos pelos livros de História e até de Geografia, quando não de Sociologia e mesmo de Filosofia. Noções como “luta de classes” e “burguesia versus proletariado” abundam. Isso vale para o ensino público e para o privado e, o que é pior, vige desde bem antes dos governos esquerdistas do Partido dos Trabalhadores.
Pode-se dizer que não existe ensino sem “ideologia”. De fato, o ensino não é nem tem como ser neutro. Mas não ser neutro não pode equivaler a doutrinação. O mesmo motivo que leva a rechaçar o projeto evangélico é aplicável à prática da esquerda. Se há valores a organizar o ensino fundamental e médio, que sejam universalistas e includentes – o humanismo, a ciência, a cidadania, a fraternidade e a preparação para o mercado –, e de maneira nenhuma o obscurantismo, a teologia e a revolução do proletariado.
Gustavo Biscaia de Lacerda é doutor em Teoria Política e sociólogo da UFPR.
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